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O FALOCENTRISMO E SEUS DESCONTENTES. Por UMA LEITURA FEMINISTA DA ANTROPOFAGIA Ew estaua comendo os textos, estava lambendo-os, chpando-os, beiiando-os, Eu som a imumenivel crignea de suas multplicidades. Hilene Cixous, La Venue a 'Ecviture IntRopugio' Oswald de Andrade tem sido constan- temente celebrado pela critica brasileira como 0 detonador de uma verdadeira re- novacdo estética na literatura brasileira. Contudo, para os estudiosos do autor, ele sempre esteve além da reformulagao esté- tica, constituindo-se como promotor de uma nova ética, caracterizada pela supera- Gio da “civilizagao patriarcal e capitalista, com as suas normas rigidas, no plano so- cial, ¢ 0s seus recalques impostos, no pla- no psicolégico”? Nesse sentido, € curioso notar que as categorias comumente utii- zadas para designar o caréter da produgio Emanuelle Oliveira Universidade Vanderbilt artistica de Oswald de Andrade encon- tram-se impregnadas de profundas cono- tages politicas. Palayras como “revolu- cdo”, “radicalismo”, “ruptura”? projetam no plano do inconsciente uma correspon- déncia quase que imediata entre inovacio artistica e transformarao social. Essa cor- relagio, muitas vezes, pode produzir um perigoso reducionismo, uma ver que posi- es estéticas radicais ndio necessariamen- te implicam posigées politicas radicais.* No preficio a Serafim Ponte Grande, © proprio Oswald de Andrade percebe a disparidade entre campo estético € 0 campo social. Nesse texto, 0 autor repu- dia a antropofagia, movimento que havia Jangado em 1928 com o Manifesto Antro- péfago ¢ alasta-se do modernismo, para abragar as diretrizes do partido comunis- ta, ao qual se filiou em 1931: O movimento modernista, culminando ro sarampio antropofigico, parecia indicar Panre IV + Rexerrunas 417 + este tab fo ele 7,3 20 apo do Cor Necenal de ecenatr Cente Teomlgio, i, Basi oteio Candie eas lb acer, agus ar Be Compe, “Un Pet a fadenicade” Po aun Cava 0 fe Roce sana, Cn Sasa, 1978. 9.000, Harlde de Camposce ceva pox de Osea ‘cage cra ade “revlucenaa pc sl Ragu de Compe ‘alts cater revo to" da artepoani vee os Aneopolag Pues, artooeso © Art pofog ao Pale, Crt Meroe 1978, 0.173) Fim toca la apo adrtoeotenase const muna coxeo pe a ‘aka! (otras ( wedorcode Baie Sirbote Algor nC ‘e Ona Anse de aneeo, engo B 188,037, ancl shan roe 'Notes on» Conse Vong ane oe etoraorati erate Shera 2 cna ofa do moet. Sonnsonatne gue 9c lec a pris fase do nodes basi com sas faces vt com Stetearerte rogrmastan, Tberadas pot Me de trae Osa bo Adie, Totrsan pasa “The ae ‘xcredn part oy wayor tater cos ete! separation fie whe fom ‘te calf in whch ctor owes sho Mot oe Pech whe wean fate of to mevement ste 1920: 0m dened the sats of movers Conant here ec 9 nghlqacsionabe espe the projection potest raison an ese such (Cause oe Arce, wo are asst daha. sf 0 sarced and equi es} Geshe postiars een mate acl ott, em andl doheson, "hows Consent Vngut the Case of verse aed ‘ma pani Sues Sr "41989, 5 31 * osu de Andade, Sat Fonte Garde Rode ana, Cisieage Basler, 1972, p18 ark de carpe. et “Seat Grane hice Tio" refeese ay 20 retace de Onl “Eno petsn0 co Safn— un fcc mai mgresionanies ocumertes dros nee mara, desabsada page de fea e autora, baa contundent de om cntonts Tisoicosocsle dun confite peso nl sro “que usopia co serie lustcaderetespectvameste orse ato, ages tans na praia pesos og, Manfartando sua ota eser pel meres, saa de fer na RevolganPeletara ‘onal engaate, ue emerge paso ear de ese ‘dh otc de 1950 e gras tenia de mural zocateo © um fendmeno avangado. Sio Paulo possuia tum poderoso parque industrial. Quem sabe se a alta do café nio ia colocar a literatura nova-tica da semicol6nia ao lado dos cus- tovos surrealismos imperialistas? (..) Eu prefiro simplesmente me declarar enojado de tudo. E possuido de uma tinica vontade. Ser, pelo menos, easaca de ferro na Revolu- gio Proletaria.$ Assim, o que parece permanecer tan- to no Manifesto Antropéfago quanto em Serafim Ponte Grande & 0 sarcastico e cor- rosivo humor oswaldiano; um humor que funciona, nio como detonador de estru- turas sociais, mas sim como arguto critico de uma elite pré-capitalista e patriarcal, socialmente caduca ¢ culturalmente iden- tificada com os padroes europeus.‘ © objetivo deste trabalho € proble- matizar o alcance da critica social oswal- diana através de uma releitura das duas obras mencionadas. No caso do Manifes- to Antropofago, 0 ponto de partida é 0 instigante argumento de Leslie Bary, apre- sentado no artigo “The Tropical Moder- nist as Literary Cannibal: Cultural Iden- tity in Oswald de Andrade”.” Segundo a autora, ao pretender inaugurar uma cul- tura contra-hegeménica através de uma “degluticto antropofigica” de valores culturais europeus, a fim de adapti-los e incorporé-los & cultura nacional, Oswald 418 AntRosoracia Hoje? OSWALD D# ANDRADE EM CENA. termina por reafirmar a sociedade patriar cal que tanto condena.* Do mesmo modo propde que, em Serafim Ponte Grande, « representagio de uma sexualidade anar quizante, longe de inaugurar uma “socie dade antropofagica”, caracterizadora di uma utopia de liberdade e renovagio, constitui-se verdadeiramente um reposi t6rio dos mesmos ideais burgueses que ¢ autor julga repudiar. Sugere que ambas at obras circulam através de uma economis falocéntrica, uma vez que o Manifest. Antropofago e Serafim Ponte Grande sie regulados por uma légica patriarcal que se traduz no privilégio do falo tanto ne espaco simbélico quanto no campo so civeconémico. Nesse sentido Bary poste: Ja que a antropofagia de Oswald de drade apresenta uma discrepincia a formulacao tedrica que se quer p através de uma experimentagao esté a representagao simbélica que de fate deriva da sua narrativa. No enta deixamos de destacar a contribuics Oswald de Andrade sobre a problew da produgao de um novo estilo de $ dade, que viria da degluticao canit das culturas europeias ¢ indigenas. B um tremendo impacto simbélico. E tanto, a intuigo oswaldiana nao reflexdo maior que permita e: das as potencialidades e contrat sua proposta. ie aera a mea fee do ‘rotemsmatrstereom hs COs was come ‘steerer prowess, Tbe por Mise de A rad © Opn ce Aniage, Stan posta: Ths caren pa byway oF 2 ate cos Meo! separation othe whe for ‘he chal in hch eta fires autho Meno at ech whore in te ero of he movement sn the 19206 now deed The sate of moder Conary there ba ee highly questionable rovosoee ie poco aie radeaten ar tee sucha ‘Ose area, i re etek Sa, 0 30 vanced ond eq rl seater potars recat mgt accel poles. em abi obtson, "Nate 2 Consanative Vingutd the Cao versely ama ips Ses Ses “41989, 9.31 osu de odode, Sear Panta Garde Rode nero, (Chlaaa Basia, 1972, pio arid de cares, et “Saati er Grane ee hyo" lees asin 96 pretico de Oneal" no pelsca co eatin om es mas resonates ecumentes de nasa ree risa, desabuas pag de cnundente de un contents Tiicosocale deur confito pasa nla cst “ues aap 6 seme lusadsetoapetvomerte orseu ato, ages lord na prmaa pasos bag, Manfesando asia artade eser palo meres, saa de ‘ere na Rela Peletaea ‘sna engage, ue emerge arco eave de ese dn okende 61950 pte sentsre de mul zocalco © um fendmeno avangado. Sio Paulo possuia ‘um poderoso parque industrial. Quem sabe se a alta do café nao ia colocar a literatura nova-tica da semicolonia ao lado dos cus- tosos surtealismos imperialistas? (..) Eu prefiro simplesmente me declarar enojado de tudo. F possuido de uma tnica vontade. Ser, pelo menos, casaca de ferro na Revolu- fo Proletiria.’ Assim, 0 que parece permanecer tan- to no Manifesto Antropéfago quanto em Serafim Ponte Grande é 0 sarcastico e cor rosivo humor oswaldiano; um humor que funciona, néo como detonador de estru- turas sociais, mas sim como arguto critico de uma elite pré-capitalista e patriarcal, socialmente caduca e culturalmente iden- tificada com os padroes europeus.§ © objetivo deste trabalho € proble~ matizar o alcance da critica social oswal- diana através de uma releitura das duas obras mencionadas. No caso do Manifes- to Antropofago, 0 ponto de partida € 0 instigante argumento de Leslie Bary, apre- sentado no artigo “The Tropical Moder~ nist as Literary Cannibal: Cultural Iden- tity in Oswald de Andrade*.? Segundo a autora, a0 pretender inaugurar uma cul- tura contra-hegeménica através de uma “degluticio antropofgica” de valores culturais curopeus, a fim de adapti-los e incorporé-los 4 cultura nacional, Oswald 416+ Antaororagia Hoje? OSWALD DE ANDRADE EM CENA. termina por reafirmar a sociedade patriar cal que tanto condena.' Do mesmo modo propse que, em Serafim Ponte Grande, i representagio de uma sexualidade anar quizante, longe de inaugurar uma “socie dade antropofigica”, caracterizadora d« uma utopia de liberdade ¢ renovacio, constitui-se verdadeiramente um reposi t6rio dos mesmos ideais burgueses que < autor julga repudiac. Sugere que ambas at obras circulam através de uma economi: falocéntrica, uma vez que o Manifest: Antropofago e Serafim Ponte Grande sie regulados por uma légica patriarcal aie se traduz no privilégio do falo tanto 3 espaco simbolico quanto no campo cioeconémico. Nesse sentido Bary Ja que a antropofagia de Oswald de 3 drade apresenta uma discrepancia a formulagao tedriea que se quer ps através de uma experimentagio est a representagao simbélica que de deriva da sua narrativa. No entai deixamos de destacar a contribuiga Oswald de Andrade sobre a prob! da produgio de um novo estilo des dade, que viria da degluticao canil das culeuras europeias e indige um tremendo impacto simbdlico. § tanto, a intuicao oswaldiana nao eg reflexdo maior que permita e: das as potencialidades e contradis sua proposta. 2 UM “MANIFESTO. ANTROPOFALICO”? Em Speculum of the Other Woman, Lucy Irigaray afirma que 0 pensamento filoséfico ocidental sempre produziu um discurso sobre o femninino, no qual a mu- Iher € 0 alvo e 0 objeto do discurso mas- culino. De acordo com a critica helga, 0 sujeito atribui uma representagio simbé- lica e social & mulher, inscrevendo-a em uma logica de producao e reprodugio so- cial e sexual organizada pelo masculino."* Assim, a mulher constitui-se em mero es- pelho da fala masculinas'* “In patriarchal culture the feminine as such (and what- ever that might be will become the subject of further discussion) is repressed; it re- turns only in its acceptable form as man’s specularized other”. Portanto, no uni- verso falocéntrico, nao ha um lugar possi- vel para o feminino propriamente dito. Nao seria estranho portanto que, ao realizar uma critica & sociedade patriarcal burguesa e a todo seu sistema de racio- nalidade, Oswald de Andrade tenha es- colhido privilegiar 0 espago do feminino. Contra os males dessa sociedade “vestida € opressora, cadastrada por Freud” (Ma- nifesto Antropéfago), Oswald poslula a “necessidade da vacina antropofigica”. ‘A inversio antropofagica da cultura ocidental levaria a “um novo estado de natureza, que nos devolve & infancia da espécie, onde, numa sociedade matriarcal, alcangaremos na alegria (...) a prova dos nove de nossa felicidade”."* Essa socieda- de verdadeiramente revolucionaria se da- ria no “Matriarcado de Pindorama”. Oswald de Andrade opde 0 matriarca- do ao patriarcado, pensando desse modo em subverter a légica burguesa capitalis- ta, que, no entanto, se mantém através de relagées bindrias de oposigio: primitivo! desenvolvido, selvalcidade, légicalinstinto. Entretanto, afirma Bary, com sua énfase na organizagao social primitiva e no ideal do matriarcado, 0 Manifesto Antropéfago termina por produzir a ideia do irracional, instintual, feminino selvagem como a construgdo especular do Outro.” A pro- pria escolha de um primitivo matriarcado como lugar privilegiado da utopia repre- senta sua identificagao com 0 mundo pa- triarcal civilizado: The location of Utopia in the space of the Other, then, reveals the MA’s speaker cas a (male) urban intellectual. It is already problematic that this speaker presents himself as an anonymous but representa tive Brazilian who can speak for all with one voice and with no mention of race and class, But beyond the simple elision of so- cial divisions, Oswald's speaker consoli- dates his metropolitan power precisely by ante IV ~ RELELTURAS “419 arco a0, 99 cada de 10" (harlea de Come Serafin um range tiso lo" Sofan Pare rand (Opwald de crac. 580 be clebal1985 6.170) Com rag 9 her ‘alana, constr ands Yara Eugenia Boar A venga aneronatike So Pau, Ata, 1985, 2 Bere Lies Hens, op ct 71-74, Roberta Sm oarigo“Acarer, oben Sopot moses {tte d humor ener so araly, ra poesia co Irodernara 3 problema Ais ego soca oss fo dre com Osvald tema faldace oo erst urges ee burg) co tmumente aoc #0 desta nacre, ad tama supreadert ‘tmen se ourca 9B press. quxe vgs Sepurtanisro ela condi, sie de fot ‘Shae potca cvontager do progres, preigwando humanitade pious, (bencacadae tate, 9 gue oferece via eae traps de cre bela 2 odtedadeconerprsne Urrufanimo ee se Doshel aor ati fe Sermare, "A Coo, 086 een Ponta hernia ‘Guc ovsSta? Sho Plo, Compania do Lee, 156 1.13, res do aut. ech any The oie Moser stay Can ia Carl oon (avs de cree, ras, 72, no. 1991p 109 Sle p13 red de Campos, Sera op at p68 "uc Wear Spec the Other Waa hac, eva ey res 19 pithy "gray oma su rica comuma ade ancompene ‘efloo Feu aries identicao xj da dee, true nse segue le rertotoments desercher Sasser da easrach Jo ; pis tga rma a 5 ‘ores ania sta, meade, un reno 6 fs. desznotnnt de 3 senilddeinfartle core ‘veo cona opine drinute “aris part. rne Seto "out coro pos Scr de Beara, epee ‘aun epeho un especr synerenado" so mss, rau aie cone da ya de ee gar corsaar “eal Mey, sont 1s Femins Liar Meer ene Routed, 1954, "iden 134 Fecetimo stems cumpilagi 9 coma > focus €9 forte dee pode : "Oona Andiade, Manteo “Ansspetaga do Pu Brst a srpotegi 025 tans ce rer, Coaarzo Bras, 1572, p13 * ene Mines, “trop {aga 20 cance de odes Ir Onell de Ania. Oo Pausisaneporanse "Uti. Ro oe ra, Gigi Beers, 1572 pam "ete Bay 0p. 6 14 "oem, p15 "= gus anal de psa cata Schr ma (8 en aces quiz cara que cae repo, Osnai ane fem que et seaocese como erento ede € progr (um eee fra prea a Fura 8 (ue oures aauerenume ts partes eave cenderods so depsecerente, Damas ’ ‘goes poesa de O5aa © valorizing the rural, the natural, the femi- nine, the savage. The speaker's identifica- tion with such othernesses relegates them 10 controlled or ideal realms, permitting them symbolic but not actual power.” Considerando as ideias de Irigaray e a anilise de Bary do Manifesto Antropo- fago, monta-se a equago que problema- tiza a visio de Oswald de Andrade: Pin- dorama nio € mais do que o reflexo da propria masculinidade do autor. Oswald, como idealizador do discurso do femini- no, cria Pindorama, espago do feminino utépico, que, por sua ver, devolve a ima- gem refletida, confirmando a posigéo de poder simbélico e social em que se en- contra o modernista: ‘Oswald ~ Pindorama “Masculino ~ Feminino/Uropia Falo ~ reflexo do Falo ‘Assim, Oswald “falocentriza” 0 ma- triarcado, ao circunscrevé-lo na propria logica do masculino. Dai cabe pergun- tar se 0 antropéfago seria realmente um “desconstrutor” ou um reafirmador das estruturas do pensamento ocidental. ‘Como bem apontam os criticos Roberto Schwarz'® e Leslie Bary,na sua construgio literdria, Oswald de Andrade muitas vezes apresenta uma nogdo “desproblematiza- da” do Brasil, na qual questdes de clas- se ow so apresentadas de forma quase que condescendente on nao aparecem de todo. Uma analise da questo do género na fase antropofagica da obra do moder nista revela que Oswald de Andrade no logra se libertar do patriarcalismo ineren- te as estruturas sociais brasileiras. Assim, © antropéfago termina por reproduzir 0 discurso falocéntrico nas ut6picas terras do Pindorama. SERAFIM, O HOMEM QUE COME. Serafim Ponte Grande é uma obra do- minada pelo simbolo félico. Em suas 135 paginas, existem 67 referencias diretas (com 0 uso da palavra propriamente dita) ou indiretas (através de metéforas ou ale- gorias) ao Srgio sexual masculino. Isso representa 4,96 alusdes por pagina, numa saturacio completa do uso da imagem. A supremacia do falo cria uma economia fa océntrica, na qual tudo existe em relagao. a ele, ¢ todas as ages se tesumem a sus, presenca. Nesta segio, desvendaremos 4 importancia do falo e sua significagio en Serafim Ponte Grande. K No inicio do livro, Serafim apresenta-s a0 leitor “de capa de borracha e galoc! um “personagem através de uma vides ga”. 0 protagonista aparece protegido, capa e galochas ¢ através de uma vidrag 420+ AwraoporAGiA Hoje? OSWALD DE ANDgADE emt CENA, acentuando um sentimento de irrealidade causado pelos papéis sociais que a socie- dade burguesa impée ao individuo. Como aponta Marilia Leite, a denominagio Se- rafim possui duas composigdes ~ Ser-a-fim ¢ Seré-fim -, uma indicando afirmagio € outra um futuro indeterminado, mas que oferece uma nagio de potencialidade.” Deslocando © nome do campo pura- mente linguistico para o campo social, observa-se que Ser-a-fim constitui-se pelas fungdes invariantes que a sociedade bur- guesa Ihe atribuius ou seja, 0 personagens é construido com o objetivo de servir as estruturas de poder. Em sua infincia e adolescéncia, Serafim possui uma descar- ga sexual violenta ¢ indiscriminada, que tem de ser regulada para a reprodugao so- cial e econémica. Segundo Jon Stratton, “the bourgeois — middle class — culture which is articulated in and through the capitalist economic structure is unique in its mobilization of sexuality as the real- izing force of that social order” No capitulo “Vacina Obrigatéria”, 0 protagonista é delineado tanto em torno da sua fungdo econdmica, “professor de geogeagia e gindstica... 7° escriturdrio”,? quanto do seu papel social, futuro marido de D, Lala. Portanto, o processo de socia- lizagio de Serafim se completa, terminan- do por inserir 0 personagem na légica da sociedade burguesa. Se a designagio Ser-a-fim representa uma consolidagio do status quo, a com- posigéo Seré-fim marca 0 indicio da des- truigio do mesmo, Serafim possui uma ‘obsessfio sexual que o acompanha desde a infincia, O sexo poderia ser lido como elemento anarquizante no livro, destruin- do a sociedade burguesa em suas bases. Serafim, que inicia a obra “de capa e ga- locha” ¢ casado, literalmente desveste-se a0 longo do romance para reafirmar sua liberdade sexual e social. Em Serafim Pon- te Grande existe uma tensao entre a mo- ral burguesa, representada pelo bindmio casamento-trabalho (capitulos “Vacina Obrigatoria” e “Reparticao Federal de Sa- neamento”), ¢ a amoralidade anarquico- sexual, que descja a derrubada das estru- turas socioecondmicas. Assim, Serafim 6 tum personagem essencialmente dialético, pois contém em sua elaboragao a tese ¢ a antitese: o Sera-fim ¢ o Serd-fim, apon- tando para a sintese de uma nova ordem social, mais precisamente, uma nova or- dem sexual. No entanto, © sistema andrquico for- mulado por Oswald em Serafin esta basea- do na figura do falo, sendo 0 drgao sexual masculino sinénimo de forga irracional que consém potencial destrutivo. No con- texto da obra, as estcuturas da sociedade burguesa ruiriam pelo poder liber(t)ador do falo: € através deste que todos passam Pare IV - RELEITURAS 421 evi 9 ogo de Progreso noc Rok ‘SEhware op ct. p.24¢ Goan, rosie 3 ‘Oona bee atiaro ite dopa ‘fool que rte pas reece peat" nade anerace, ‘rain Pane Grande Sime, Citas Bast 1872.6. 137 ‘entaia Beata ce Fe. tere oisgrlaeaa ‘fate do ae 580 Pa alle, 1983 0.1 tn stan The ie Test Fen, Sonaity 3 {seoboge Bighon, Hon Pros 1987, vi Opus oe aerate, Satin Ponte arc « sup aa ta, p16 "som tom, p16 baer, p. 170, a ser iguais, “despidos” (literalmente) de diferencas sociais ¢ econdmicas, como na cena orgidstica final do navio Bl Durasno. Entretanto, é necessdrio que se problema- tize a escotha de uma légica falocéntrica na constituigao de uma sociedade ideal. As limitagbes desse modelo so claras: 1) reforga 0 modelo capitalista de pro- ducSo, ao reafirmar a organizagao sexu- al burguesa; 2} estabelece desigualdades mais que as elimina, promovendo a do- minagio do masculino (falo) sobre o fe- minino (vagina); 3) por fim, nao propde uma contrassolugo 20 problema socio- politico-econémico brasileiro, dando 20 livro um caracter niilista — em realidade, a proposta final de Oswald nao eria, apenas desconstr6i. Esses trés processos se encon- tram demarcados no romance através de tr@s momentos distintos, a serem analisa- dos:a disputa pelo falo, a poténcia do falo © falocentrizagao. Em “Testamento de um Legalista de Fraque”, 0 falo, além de manter sua signi- ficagio sexual, adquire potencial destru- tivo. Nesse capitulo, uma revolugao agita a cidade Sio Paulo, ¢ Serafim participa dela de forma ins6lita, disparando um ca- ahio abandonado por soldados rebeldes no seu quintal: “Mas eu sou o tinico ci- dadao livre desta famosa cidade, porque tenho um canhao no meu quintal*2? O canhao aparece como alegoria do érgao sexual masculino (canhdo = falo}, onde este transforma-se também em instramen- to revoluciondrio (falo = revolugo). Em “Testamento”, hd uma luta pela hegemo- nia do poder falocéntrico, na medida em que Serafim detém o poder mas necessi- ta consolidé-lo através da eliminagio de seus antagonistas do saber: Pery Astiades (0 vulgo Pombinho), o seu proprio filho, e Benedito Pereira Carlindoga, 0 chefe da repartigao. Com seu canhao, Serafim deseja climinar o filho ¢ 0 patrio, numa clara metifora da destruigio de duas das principais instituigdes burguesas, 0 matri- ménio e o capital. No caso de Pery, ocorre uma releitura do complexo de Edipo, pois Pery conhe- ce a presenca do falo, fazendo com que © pai o castre, “Pombinho é hoje senhor deste segredo de eu possuir um canha0”,# observa Serafim, comparando posterior, mente © seu érgao com o do filho: “O. Pombinho regressa de carabina virginal, equilibrando a noite na cabeca de cow boy”. Portanto, 0 falo de Pombinho na, possui poténcia (“virginal”) nem for (“carabina”). Contra quaisquer ameat a supremacia da sua ordem falocéntr Serafim adverte: “Se o Pombinho aj cer por aqui, neste alto refiigio, onde al © meu canhio azul, fuzilo-o!”. Ji 0 & de Carlindoga € tanto insdlito quanto presentativo: Serafim o elimina “com ti 422 ANTROPOFAGIA Hoje? OswaLD DE ANDRADE EM CENA certeito tiro de canhao no rabo”.*” Por- tanto, a presenga avassaladora do falo gigante/canhao contribui para a feminili- zagio tanto do filho quanto do chefe da reparti¢dio, uma vez que o primeiro tem seu objeto falico transformado em clité- ris e 0 segundo é penetrado por Serafin (“enrabado”). O falo representa também instrumento de redengio sociossexual na viagem empreendida pelo transatlantico Rumpe-Nuve, no epis6dio “No Elemen- to Sedativo, onde se narra a viagem do Stem-Ship ROMPE-NUVE por diversos oceans”. Contudo, o motor dessa libera~ do nao é Serafim, mas seu fiel amigo Pin- to Calgudo, Marilia Leite aponta para as conotagées sexuais presentes nessa desig- nacio: “na giria, pinto vai designar 0 r- go sexual masculino e caleudo € aquele que usa calcas excessivamente compridas. Calgudo estaria encobrindo o Pinto, 0 que vai provocar no texto uma inventiva sem- pre caracterizada pela hilariedade”* Pinto Calgudo, no seu desejo de “fa- zer esporte”, enfia no buraco da cabine de passageiros um enorme pau, deslo- cando 0 navio de sua rota original. O Rompe-Nuve vai progressivamente se distanciando das convengdes sociais ¢ a anarquia crescente se mescla com os res- quicios da manutengio de uma ordem burguesa, como nos mostra o episédio do “Otho do Porco”: E tratando-se de desenhar 0 “Olho do Porco” da cara vendada, Pinto Calgudo no tarda em produzir no soalho do tom- badilho uma piroquinha, raz40 por que ‘© Capito apita, o Rompe-Nuve estaca € quatro robustos marinheiros 0 agarram ¢ trancafiam nas masmorras do pordo.”* No incidente do desvio de rota do navio, © falo adquire proporgies gi- gantescas, como 0 canhio de Serafim. Marilia Leite afirma que Pinto Calgudo seria 0 alter ego de Serafim, provocando uma situagdo de disputa pela hegemo- nia entre os dois personagens.*” Somen- te falo de Pinto Calgudo apresenta-se como pareo para o falo/forca de Sera- fim, e por essa raz40 0 primeiro é ex- pulso da histéria pelo segundo. Em um epis6dio anterior, Serafim j havia ten- tado feminilizar Pinto Calgudo, ja que considera penetré-lo: “Vem-me & cabega a toda hora uma ideia idiota e absurda. Enrabar o Pinto Calgudo. Cheguei a fi- car com o pau duro. Preciso consultar ‘um médico!”." Esti claro ento que no Rompe-Nuve ha somente lugar para 0 dominio falo- céntrico de Serafim. O préprio nome do barco, Rompe-Nuve, aponta tanto para as rupturas das estruturas sociais quanto para © rompimento dos corpos femini nos (himen), antecipando a temética das ante IV - RELEITURAS 425 idem, 178, Separate Fgh recta, op.et.p. I (giles aaa, Oana de Andade, Seatn Ponte Garde st p.191 aia deste dee dotete op ct. 9.101, Nosnaid de nade, sera Parte Gore « tp 1 John Staton, op ct p3 Sen 9.16 we rgay op. 08.180 (gras da ao “conquistas” sexuais do protagonista nos capitulos posteriores. Portanto, nos capitulos “Testamento “No Sedativo” emergem equagées equi- valentes: canhio = falo / falo = revolugios pau = falo / falo = liberagao, Revolugao ¢ liberagio sao bindmios que apontam para a destruigao de estruturas sociais burgue- sas. Contudo, no modelo oswaldiano de transformagao social, encontram-se con- tradigdes inerentes ao proprio carater da proposta. O canhao é falo gigantesco que, quando ejacula, destréi, corporifican- do uma forga estéril ~ 0 proprio Serafim menciona o fato, afirmando que os brasi- leiros “tém canhao ¢ no sabem atirar”, © pau constitui-se num falo que penetra © feminino: © mar. De fato, sao diversas as referéncias de identificagao entre o mar a mulher, como o balanco das ondas e © caminhar feminino, Todavia, 0 mesmo pau que penetra no mar nao o fertiliza, tornando-se também estéril. Assim, ao contrario de ruir as estrutu- ras da sociedade burguesa, © modelo fa- locéntrico de Oswald termina por reafir- mé-las, Primeiro, o autor fetichiza 0 falo, supervalorizando-o e, desse modo, ratifica © sistema capitalista de organizacao sexu- al; segundo, subordina a sexualidade fe- minina a este, provocando antes uma con- firmagio do poder patriarcal do que seu destronamento, Segundo John Stratton: 424: ANTROPOPAGIA Hoye? OSWALD DF ANDRADE EM CENA Capitalist economic organization re~ quires a fundamental unit of conversion which we understand by the term money. In the sexual organization of bourgeois society the universal solvent is desire. It is the deployment of money which ena- bles the market economy to exist and the deployment of desire which brings into being the fetishism which gives bourgeois society its reality. Stratton indica ainda que, na vida burguesa, o pénis adquire carater icéni- 0: quanto maior o pénis, melhor sera a construgzo de mundo." Em Serafim, 0 érgio sexual masculino se coloca no sis: tema de troca na medida em que a dis- puta pela supremacia do falo indica ums, valorizagao do seu poder de uso/atuagae. {canhfo = pau = falo = forca = porénciak © corpo feminino, entdo, somente p ser compreendido a partir desta equa pois seu valor de circulacao é estabe pelo falo: “A commodity ~ a woman = divided into two irreconcilable bodies her natural body and her socially v which is a particularly mimetic expre of masculine values” 3 No campo econémico, as mi como objetos-fetiche, sio mera tagio do poder falocéntrico. Hlas, ticipam como mercadorias que aj a estabelecer conexdes de compas parentesco entre os distintos grupos mas- culinos,* consolidando assim 0 poder pa- triareal. No campo cultural, 2 sociedade capitalista reconhece 0 falo como o lu- gar definitivo de todo o discurso, sendo ‘© modelo da verdade e da propriedade. Irigaray indica que, tanto na construgio de sistemas filos6ficos quanto na organi- zacio da propriedade, a mulher sempre desempenhou a funcio de objeto, € nao de sujeito,» sendo construida (e regulada) por um discurso masculino. E pois a poténcia do fato que impri- me os papéis sociais ¢ sexuais femininos ‘em Serafim. Nao é por acaso que, apés © episodio do Rompe-Nuve, seguem-se cenas em que Serafim realiza inimeras conquistas amorosas. Dona Blanca Cla- 1a, Solanja e Caridad-Claridad aparecem como desafios para a poténcia do seu 6r- giio sexuals todavia, Serafim logea seduzi- las, penetré-las ¢ até mesmo reorienté-las sexualmente, inserindo-as no sistema de teocas masculino. Um répido inventério de suas qualidades demonstra a impor- tancia dessas personagens para a vit6ria do falo: D. Blanca Clara € frigida; Solanja, virgem Caridad-Claridad, lésbica. Todas elas possuem “falhas” que devem ser cor rigidas, representando uma clara ameaga a0 universo falocéntrico. No sistema de diferenciagéo sexual lacaniano, 0 homem “tem” 0 falo, ¢ a mulher “é" o falo. Ser o falo é constituir- se em significante do desejo do outro, ou seja, € ser 0 objeto, 0 outro de um desejo masculino heterossexual, representando ¢ refletindo esse desejo: “For women to be the Phallus means, then, to reflect the power of the Phallus, to signify that power, to embody the Phallus, to supply the site to which penetrates, and to sig- nify the Phallus through being its Other, its lack, the dialectical confirmation of its identity” ©” Ao encontrar-se com Serafim, D. Blanca Clara adverte-o: “...Todos os homens que se aproximaram de mim até hoje brocha- ram. Todos!” F importante notar que hd uuma estreita relagao entre a falta de in- teresse pelo falo e sua impoténcia. D. Cla- ta nio fetichiza o 6rgao sexual masculino, colocando-se fora do poder de influéncia do mesmo. Segundo Lacan, a mulher fei- gida é aquela que bloqueou qualquer tipo de identificagio com o modelo félico, ndo possuindo portanto desejo sexual.” Por nao tepresentar 0 falo, D. Clara tanto no 6 reconhece quanto se recusa a concedet qualquer tipo de poder a ele, provocando a derrocada do mesmo (impoténcia). En- tretanto, Serafim recupera a sua poténcia ao desvirginar Solanja e ao resgatae Clari- dad para a heterossexualidade. Irigaray coloca a mulher virgem na ordem social burguesa como puro valor agra IV - ReLurrunas - 425 tiem. 183 ier. 67, sua ute, Gonder rouble Fear an Subversion of ony “ore uted. 198, div de Aree, ‘swat fee Gance, St9. 208, argue aca, “The Meaning of re Pas Famine Seay ae taean arth Foi Ft re Elta por ult § 2rd eau Roe 8 Yo, ante Books, p3 ue gn op. pise + oval de Ata ‘See fone Grande. 0. otip 285 "dem 246 “item p 207 ‘bier p28. de trocas ela é nada mais que mera possi- bilidade, potencialidade, um signo de re- acdes entre os homens." Irigaray utiliza a metéfora do envelope para descrever a mulher virgem na ordem sexual burgue- sa: em si mesma, ela no representa nada; sendo apenas um envelope fechado, espe- rando que alguém a viole, isto é, rompa seu himen.*" Solanja 6 a “mulher misté- rio”: a fim de que possa ser penetrada, necessita primeiro ser decifrada. £ curio- so notar como © protagonista se refere a Solanja: “Nao fora dificil para ele, habil manejador da psicologia feminina, diag- nosticé-la”. Serafim se constitui em “ha~ bil manejador da psicologia feminina” pois 0 personagem constréi as mulheres de acordo com a sua Stica falocéntrica, podendo entio “diagnostici-las”, encon- trando para estas o melhor uso dentro da ordem masculina. Ao desvirginar So- lanja, Serafim nao somente posiciona a personagem em relagao ao seu falo, como também promove sua circulagio na eco- nomia falocéntrica, Por fim, a conquista de Caridad- Claridad representa uma dupla vitoria para a sociedade burguesa: preenche 0 vario deixado pela auséncia do falo reorienta-a de acordo com o falocentris- mo - lésbica-homossexual se torna hete- rossexual. Para Lacan, a ordem (hetero) sexual tem o falo como fetiche; a mulher lésbica é aquela que toma para si o lugar de fetiche. Serafim supre Caridad com 0 falo de que ela necessita, empregando um proceso gradativo de socializacdo/sexu- alizagdo de acordo com o sistema falo- céntrico, Nao é por acaso que a cena de conquista de Caridad é deserita em deta- Ihes, passo a passo: Me faz pegar no scu langa-perfume! Isso me dew um incémodo horrivel de espirito, Era a primeira vez. Nao serd a sihtima.” Caridad deitara a cabega no colo dele cheirava-Ihe voluptuosamente as virilas.® | Hoje fiquei em pelo no quarto € not que minhas coxas se arredondaram, fica ram gordinhas e macias trabalhadas suas mdos, minhas curvas se afirmaraiie ‘meus peitinhos ficaram duros e rebit Mas que coceira no bibicot™ Caridad acordou como um tomat lengéis, Estava na cama de nosso Caridad passa de temorlrejeigio a tagio do falo, celebrando-0 com 0 at xual da penetracio. As cenas se mess entre um narrador em terceita pesse: relato em primeira pessoa de Cari registra a experiéncia em seu 426 Awrnororacts Ho}? OSWALD DF ANDRADE EM CENR fato 6 significativo, pois o falo tanto “ins- reve” (no seu modelo econdmico) quanto “escreve” (no seu sistema de representa- ‘gGes) Caridad. A poténcia do falo portanto regula as personagens femininas do romance. As implicagdes deste ato sao claras: 1) a mu- Iher € condenada a espelhar o falo, nao havendo sexualidade possivel fora dele, ou seja, nao existe sexualidade femininas 2) a mulher é mazcada pelo sinal da au- séncia, logo, € 0 Outro e nao “possui” 0 falo; 3) a mulher é subjugada econdmica e socialmente a0 homem, portanto, 0 femi- nino é visto como construgio masculina. Assim, longe de ser elemento de inverso social, a poténcia do falo confirma a or- dem burguesa. Por fim, este ensaio examinou breve- mente a sociedade utépica delineada por ‘Oswald de Andrade. Em Serafin, a liber- tinagem sexual (des}organizada por Pinto Calgudo no navio El Durasno parece indi- car uma metifora da libertagao individual da sociedade burguesa, No capitulo final ~o “Fim de Serafim” ~ 0 protagonista ndo é mencionado e temos o retorno do seu amigo Pinto Calgudo, orquestrador da cena orgidstica final. A pergunta parece set: © que aconteceu com Serafim? Desa- parece ou morre? Uma vez que o persona- ‘gem jd cumpriu sua parte no livro ~ a to- tal afirmagio do dominio falocéntrico ~, cle perde totalmente a identidade, trans- formando-se num grande ¢ indiferencia- do falo, El Durasno, A crescente desper- sonalizagio de Serafim pode ser também identificada pela narragio que vai de pri- meira pessoa (no inicio da obra) a terceira pessoa (em sua conclusio); culminando coma falocentrizagao do protagonista, ou seja, a sua transformacdo em gigantesco falo. A falocentrizacao € a utopia oswal- diana tal como apresentada em Serafion: uma sociedade (des)regulada para ¢ pelo falo, onde o objeto sexual masculino se constitui em totem supremo. ‘Assim, Serafimt Ponte Grande, longe de criar uma sociedade utépica de card- ter anarquizante, bascada na “rejeicéo da permanéncia” on na “mobilidade inces- sante”, descreve um mundo fechado na adoragio e eternizagio do falo. O modelo de Oswald, portanto, nao se encontra ra- dicalmente oposto a uma matriz de pensa- mento burgués ConcLusao, Neste trabalho, examinou-se 0 papel de Oswald de Andrade como critico das estruturas sociais do Brasil pré-capitalista de comegos do século XX. Priorizou-se sua fase antropofagica, a fim de eviden- ciar que a experimentagao estética no se traduziu em uma visio problematizada de Panre IV - Recerrupas +427 uma sociedade de carter patriarcal. Suge- riu-se que tanto o Manifesto Antropéfago quanto Serafim Ponte Grande terminam por reafirmar as mesmas estruturas que julgam repudiar, uma vez que privilegiam uum discurso falocéntrico. No Manifesto Antropofago, a utopia do “Matriarcado de Pindorama” termina por representar um reflexo do discurso fa~ locéntrico produzido por Oswald. Jé em Serafimn Ponte Grande, o autor condena as personagens ao sistema falocéntrico: na cena final, os tripulantes do El Durasno so “aprisionados” numa orgia sem fim, onde o falo é o elemento preponderante. Portanto, a0 contrario de uma renova- sao, a utopia oswaldiana traduz-se num eterno condicionamento ao falo, Este regula e organiza os desejos e corpos de modo a provocar a subordinacao do femi- nino a logica masculina, Nesse sentido, a ‘utopia oswaldiana @ mais bem compreen- dida como distopia: longe de construir a linguagem em simbolica do feminino, aca- ba por condené-lo a representar um mera imitagao ao discurso masculino. tmp ‘Oswald de Andra, por Ferg, 1918 428 -ANrROPOFAGIA Hoye? OswaLD De ANDRADE Bot CENA

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