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I Alguns problemas da técnica psicanalitica No exercicio de sua profissie, o analista depara cotidianamente com problemas, para cuja solugao nem © conhecimento teérico nem ‘ nia pritica isoluda sao adequados. Pode-se dizer que tocas Ss questoes de técnica agrupam-se em torno cle uma essencial: se € como uma técnica claramente definida de tratamento analitico pode ser deduzida da teoria psicanalitica de doencas psiquicas. Ea questao das possibilidades e dos limites da aplicagdo da teoria & pratica. En- tretanto, pelo fato de a pratica analitica em si naéo fornecer a teoria dos processos psiquicos até que tarefas praticas tenham sido estabele- cidas, temos, para proceder corretamente, dle procurar os caminhos que, partindo da pratica puramente empirica, passam pela teoria e terminam numa pratica teoricamente bem-fundamentada. A vasta ex- periéncia no Seminario de Viena para a Terapia Psicanalitica e em sess6es supervisionadas de andlise mostrou que pouce progredimos além do trabalho preliminar para a solucto do problema acima esbo- gado, Na verdade, temos o material baisico, o chamado ABC da técni- ca analitica, em varios ensaios de Freud @ em suas observagées dis- persas sobre 0 assunto; € as obras muito instrutivas sobre técnica, de Ferenczi € outros autores, ampliaram nossa compreensdo de muitos problemas particulares da técnica. Genericamente falando, entretanto, hd antas téenicas quanto analistas, apesar de todos compartilharem as recomendagoes de Freud, em parte afirmativas e em parte negati- vas, que sio poucas comparadas com o emaranhado de quest6es re- lativas 4 prétic: Esses principios de validade geral, que se tornaram consensuais entre analistas, sao ceduzicos dos conceitos tedricos basicos gerais 17 do processo neurético. Todas as neuroses podem ser remontadas a0 conflito entre exigéncias pulsionais recalcadas — entre as quais as se xuais da primeira infancia estio sempre presentes — € as forgas do ego que as repelem. O resultado do fracasso na solugao desse confli- 10 é 6 sintoma neurético ou o traco de cariter neurdtico. Em termos: de técnica, portanto, a solugdo do conflito. requer a “eliminacio do recalque”; em outras palavras, tornar consciente 0 conflito inconscien- te, Mas a instancia psiquica conhecida como pré-consciente fez, surgi- rem “contra-investimentos” psiquicos contra a eclosao de impulsos re- caleados inconscientes, “contra-investimentos” que atuam como um censor rigido dos proprios pensamentos © desejos do individuo, im- pedincdo-os de se tornarem conscientes, Desse modo, no tratamento analitico, € preciso renunciar ao ordenamento habitual de pensamen- to do individuo requerido pelo clia-a-lia e permitir que o fluxo de idéias se manifeste livremente, sem selegdo critica, No decurso do tra- balho analitico, vestigios de necessidades e experiéncias infantis re~ caleadas inconscientes se sobressaem cada vez mais claramente em meio ao material emergente ¢, com a ajuda do anulista, tm de ser ttaduziclos na linguagem do consciente, A chamaca regra basic da psicanilise, que requer a eliminagao do censor e a entrada em cena da “livre associagao de pensamentos”, € 0 processo mais rigoroso © indispensavel da técnica analitica. Ela encontra poderoso apoio na forca dos impulsos ¢ desejos inconscientes que pressionam em dire- cdo a acdo e a consciéncia, Entretanto, a isso se opde uma outra for- ¢a, também inconsciente, 0 “contra-investimento” do ego, que torna dificil e as vezes impossivel ao paciente seguir esta regra basic, e também alimenta a neurose por meio das instancias morais. No trata- mento analitico, essas forgas apresentam-se como. “resisténcias” a eli- minagao do recalque. Est ‘i compreensio tedrica dita uma regra basica posterior: tornar consciente © inconsciente nao deve ser feito direta- mente e, sim, pela quebra de resisténcias. Isso significa que o pacien- te precisa primeiro perceber que esta resistindo, depois como o faz, & finalmente contra 0 qué. O trabalho de tornar consciente © inconsciente é chamado de interpretagao”, Consiste ou em desvelar expressoes veladas do consciente ou em restabelecer as relagdes que foram rompicas pelos recalques. Os desejos e medos inconscientes € recalcados estio sem- pre procurando se liberar, ou, mais precisimente, buscando contato com pessoas € situagdes reais, A forea propulsora mais importante desse comportamento € a libido insatisfeita; dai deve-se esperar que o paciente associe também suas exigéncias e temores inconscientes com © analista ea situagao analitica, Disso resulta a “transferéncia”, isto € 0 estabelecimento de relagdes com o analista que se traduzem 18 em manifestagées de 6dio, amor ou medo, Mas essas atitudes, que se dirigem ao analista na situagao analitica, sdo apenas repeticoes cde ou- tras, mais antigas, na maioria infantis, em relagdo a pessoas que, na infancia, tiveram pata o paciente, em determinada altura, significado especial. Ele nao tem consciéncia desse significado. Essas transferén- cias devem ser tratadas sebretudo como tais, ou seja, devem ser “re- solvidas” pela clescoberta de suas relagdes com a infancia do pacien- te. Visto que todas as neuroses, sem excecdo, formam-se a partir de conflitos da infancia, antes dos quatro anos de idade — conflitos que nado puderam ser tratados na ocasiado, mas sao revivides na transferen- cia =, a andlise da wansferéncia, isto é, da parte dela que tem a ver com a quebra das resist@ncias, constitui a pega mais importante do trabalho anlitice. Ja que, além do mais, o paciente tenta, na transfe- réncia, suplantar o trabalho explicativo da andlise — por exemplo, sa- tisfazendo as antigas exigéncias amorosas € impulsos de odio que permaneceram insatisfeitos — ou recusa-se a tomar conhecimento des- sas atitudes, a transferéncia transforma-se geralmente em resisténcia, impedindo © progresso do tratamento. As transferéncias negativas, i to 6, as atitudes expressivas de dio projetadas sobre o analista, sto facilmente reconhecidas como resisténcias desde 0 inicio, ao passo que a transferéncia de atitudes positivas de amor s6 se transforma em resisténcia através de uma stibita mudanga em transferéncia negativa, como resultado de desapontamento ou medo, A opinido de que uma técnica praticada por todos da mesma maneira se desenvolvera a partir da base comum esbogacla acima s6 poderia prevalecer enquanto a terapia ¢ a técnica analiticas nao fos- sem discuticdas de maneira detalhada, ou 0 fossem de modo insuficien- le e nao-sistemitico, Em muitas questdes particulares essa opiniao es- tava certa; mas {4 para a compreensao do conceito de “passividade analitica” havia us mais variadas interpretagdes. A mais extremista, e certamente a menos correta, € a de que se deve permanecer simples- mente calado; todo © resto vem por si. Sobre a fungdo do analista no tratamento analitico existiam e existem, ainda, opinides confusas, Sem divida, é bem sabido que o analista tem de quebrar “administrar” as transferéncias, mas a maneira ¢ a ocasiao em que isso deve ocorrer, € 6 quao diferente sua abordagem deve ser na execu- cdo dessa tarefa em varios casos € situagdes, nunca foram cliscutidos sistematicamente, Portanto, mesmo nas questOes mais simples surgi- das nas situacoes analiticas cotidianas, as opiniSes sao necessariamen- te muito divergentes. Quando, por exemplo, se descreve uma deter- minada situagao de resist@ncia, um analista pensa isso, outro aquilo € um terceiro aquilo outro, E quando entao © analista que descreveu a situacao volta a seu caso com as varias sugest6es de seus colegas, 19

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