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Evaldo Cabral de Mello A OUTRA INDEPENDENCIA O federalismo pernambucano de 1817 a 1824 32 19 =) editorall34 pst? 309 { TEXTO 4 \ Dezessete © inicio do movimento da Independencia em Pernambuco é costu- ‘meiramente datado da “conspiragio dos Suassunas” (1801), que resultou na prisio de Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, o coronel Suassuna, senhor do engenho homénimo, e de um dos irméos, suspeitos de tramarem oestabelecimento de regime republicano na capitania. Segundo cronista coe- vo, “o piblico jamais penesrou os esconderijos deste mistério, porque molas reais e secretas fizeram corzer sobre ele cortinas impenereéveis”, merc® de certo frade por cujas “eligiosas méos” corretam “tios de dinheiro”, “tirando-se por fruto serem os acusados resticuidos & liberdade, a posse de seus bers seqiies- ixados, A estima e prémios do soberano”. Outro irméo, José Francisco, teria sido o agente da conjura na Europa, a fim de obter o apoio de Bonaparte, ‘gracas As conexGes magénicas de que dispunha em Paris, como sugere o fata dde que sera nomeado represensante do Grande Oriente de Franga junto 2 Grande Oriente lusitano, torando-se um dos negociadores do convénio de cooperagio entre ambos.! "J. Dias Matis, Os mvs pemambueanos, Recife, 1853, . 112; A. H. de Olvera Mos- ques, Hindvialemapenaria em Portuga i, Des erigen ao trianf,Ltboa, 1990, p. 82,429. Fran ico de Pela serd nomeado eapitdo-mor de Olinda eo prépri Jor Francisco, merc des sas proecber magdnicss, governador do Rio Grande do Note, de Sto Miguel (Agore) ede Mose: bigue. Koster conhecru-o em Natal em 1810 quando Jos Francico Ihe delarou que © episédio de 1801 no pasara de fas denincaspterentade pot inimigo da ffl: Henry Koster, Troe tn Brac, Londres, 1816, p. 70, Um reexame do asunto em Guilherme Pectira das Neves, “Aste posta conspiagzo de 1801 em Pernambuco: dias ihusteadas ou confitos tradicional", Revie Poruguea de Hi, 33, pp. 429. as Porcugal achava-se acuado pela alianga Franco-espanhola, que levaré nax quele mesmo ano de 1801 & “guerra das laranjas”, mas néo esté claro se a coadjuvagae francesa fora mero objeto de cogitagio, ou se, como ce alegard na época, o Primeito Cénsul chegou 2 envolver-se na intriga, da qual sé de- sisttia com a assinatura da paz de Badajoz, que pos fim a0 conflito na Penin- sula Ibérica. Entre 1796 e 1800, nada menos de sete projetos haviam sido apresentados ao governo francés visando atacar o Brasil a fim de arruinar 0 comércio inglés, inclusive o projeco Willaumez.(1799), que tinha em mira aco- meter Pernambuco. Como os conjurados baianos de 1798, os Suassunas acre- ditavam poder contar com ajuda da Franca, pois face a0 obstéculo da alianga anglo-portuguesa, ela sempre parecera aos conspiradores da cerra seu dbvio protetor internacional? E provével, alids, que 0 plano visasse sobretudo a precatar-se da ocupagio inglesa, no caso em que a invasao do Reino impe- disse o Principe Regente de atravessar 0 Adlantico, como o préprio Suassuna teria declarado ao delator da cabala.} Na eventualidade de Porcugal baqueat frente a Espanha e & Franca, a Inglaterra sentiria @ tentagdo, como ocorverd pouco depois na Cidade do Cabo em Buenos Aites, de intervirmilitarmente nas capitanias do Norte, que se haviam tornado importantes fornecedores de algodio & sua industria téxtil, E inegdvel que, na hipétese de o Principe Regente cair em mios inimi- ¢g2s, seja em 1801, seja em 1807, o que, nesta iltima ocasizo, por pouco nfo se verificou, a ctiagio de um governo provisério da capicania se teria impos- to naturalmente no s6 2 Pernambuco como ao Brasil, & maneira do que acon- tecerd na América espanhola com a formaczo de juntas auténomas, que, para fins de autodefesa e em nome da monarquia, cujo titular, Carlos IV, fora destronado por Napoledo, transformar-se-iam nos mocores da emancipasao. 2 Vd, a respira Eva Cabral de Mello, A fonda dor mazombor, Nobrs cone mascees Pemambuce, 1656-1715, 2 ed, Sio Paul, 2003, pp. 325-7. ° DH, x pp. 20, 3, 62,151, 136, 175s Maximiano Lopes Machado, nowas a Francisco Mania Tavaes, Hina da reo de Pernambuco em 1617, 2, Recife, 1884, p. xi: Angelo Perera, D_Jote Vi principe evti A Independencia de Bra, Lisboa, 1956, p. 277; Janine Poteet. Proje expeditions ex dasaques eur lex ctr du Beil (1796-1800), Caravelle 54, pp. 209- 22; lesnnJance, Ne Bahia, conor o Ip i. Haid eso de sei de 1798, Sto Paslo, 1996, 148; Alfredo de Canalho, Aventura ¢avemureivs no Brasil Rio de Janeiro, 1929, pp. 291-2. 26 Dezanere “Trajetéria que, no Brasil foi fiustrada pela vinda da familia real. Como assi- nalou Francisco de Sierra y Mariscal, autor em 1823 de um plano de recon- iquista do Reasil por Poreagal. « ransferéncia da Coroa evitara uma “revolu- Glo projetada’, que “teria cortido parelha com a da América espankola’, Se malgrado os erros governamentais, como a ocupagio da Banda Oriental, 0 regime juanino péde manter-se por treze anos, devera-se a que “no Rio de Janeiro se tinham acumulada as riquezas do Império portugués ¢ estas The davam meios, ainda que sempre escassos, para castigar qualquer conspiracéo das provincias", O desfecho nio passou despercebido em Pernambuco, onde iuitos pensavam como Afonso de Albuquerque Melo, a0 escrever, ainda em meados do século XIX, que “foi ter pisado nesta terra a maldita Core de Portugal e ter-nos deixado um Principe, a causa de cudo”, isto ¢, da adogie do Império unitério.* "A instalagéo do aparelho de Estado portugués no Rio, proclamando a intengio de fundar um grande Império luso-brasileiro que cecuperasse a po- cigio de Portugal no sistema de equilfbrio europeu, deu seguramente inflexéo jmprevista A emancipagio da América portuguesa. Até entio, frente & guerra ccuropéia e seu previsivel impacto sobre a estabilidade do trono, as provincias ido Norte tinham a escolha entre a Independéncia separada, provavelmente sob forma regional, a que as predispunha a existéncia do entreposto recifense; ou a Independéncia associada ao Sul, perspectiva remora face a0 descompssso centce as aspiragées politicas numa ¢ noutta area. A presenga de 1). Joao no Rio constituiu a etapa inicial na eliminacio da primeira alternative, Como as- sinalou Roderick J. Barman, “a Corea ficou muito mais capacitada a se imis- cuir nos negécios provinciais", 0 que redundou na diminuigio da autonomia eda influéncia das elites locais.® ot mais que, anteriormente a 1808, 0 Rio tivesse consolidado seu entrs- posto comercial no Sul do Brasil foi a “interioriaacio da metrépole” que The “ABN. 43-44, p. $9: Afonso de Albuquerque Mio. A bed no Bai Se naiment side, mare epusuna e, Recife, 1989, p. 39 primera igo de 1854 5 Va a espeito Mara de Lous Viana Lyra, api do padero Inpro Rio de an 10,1894 S Rodecc J. Barman, Breit. The fring of nan, 1798-1852 Stanford 1988, p47 a t ‘Acorns notrenoenca permitiu acaudithar a Independéncia, ao transferis-Ihe 0 papel exercido por Lisboa, dotando-o de uma estrutura burocrética que, a0 entaizar-se, promo- vverd a emancipasio sob forma monarquica ¢ centralizada. A presenca da Corte ‘acentuou a integragéo do Sul, deflagrada pela mineragéo no século XVIII, ¢ reforgou a diferenciaggo de interesses entre o comeércio vinculado a Lisboa ¢ 20 Porto ¢ os negociantes fluminenses, muitos deles convertidos & grande lavoura, a0 passo que os investimentos piblicos e privados estimularam gru- pos comprometidos com a preservacio do novo staru imperial do Rio.” Se do ponto de vista mercantil o Rio se alimentava “fundamentalmente do,préptio Sul-Sudesce, estando praticamente ausentes de sua esfera o Nordeste ¢ 0 Nor- te", na vertente fiscal, em particular, sua condigao de “metrépole interio- rizada” permitiu-lhe desfeutar, nas relagSes com as provincias, das vantagens do sistema colonial. O citado Sierra y Mariscal acentuava que 4 passagem de Sua Majestade Fidelissima para 0 Brasil fer da Core do Rio de Janciro o recepticulo de todas a5 riquezas do Império portugués. Os pre tendentes (a cargos pbblicos ¢ favoreseégios) para li evaram somas consi- derives, Os generaie das provincias de rezorno de seus governos Id gasta- ram quanto tinham adquirido neles, Nas eausas de foro que li iam por ape- lacio Ld gastavam somas incriveis. O erdrio régio de Portugal softa saques avultadissimos. As provincias do Brasil softiam, umas saques de 400 con- to, outras mais e outeas menos. Os visjantes das diversas nagSes, os minis- tos das Cortes estrangeia ¢ 0s emigradas de diversos pontos da Amética cspanhola Id gastaram somas muito fortes. Os saques feitos sobre as diver ‘sas provincias do Impésio [puseram] em movimento aum grau sumo 0 co rércio daquela Corte, © cométcio do rio da Prata para lé encarninhou seu giro, conduzido pela concorréncia e emigracio dos espanhsis curopeus oca- sionada pelas dissens6escivis das provincias da América meridional? 7 Maria Odi Siva Dts, “A incviovizagio da mets6poe, 1808-1853", Carlos Guilherme ‘Mots, 1822; Dimon, Sio Paulo, 1972, pp. 164, 171-3, * Jodo Luis Fragoso, omen: de grata aventura, Acura ierarguie ma praca merantil 4 Rie de Jaci, 1790-1830, 2 ed, Rio de Jancio, 1998, p, 103. ABN, 43-44, p. 60. 6 Deasere Na sua condigéo de “parasito do Império porcugués”, o Rio atraiu “o {cio de todas as provincias”, Ressentimento que foi bem maior no Norte, pois: como assinalard Armitage, elas achavam-se “ainda sujeltas a uma pesada quo- ta de exicaigos, ap mesmo tempo que comparstivamente com a capital colhiam muito menos vantagens do que a esta derivava com a chegada da familia real” Dai que as reivindicagSes politica Fossem ali mais amplas, tendendo “A ado- ao de instituicdes representativas" como provara o fato de que, suficiente para contentar o Sul, aclevagéo do Brasil a Reino em 1815 nao obstara a Revolugio de 1817.!° Tal descompasso de aspiragdes politicas originow a assimetria regional do processo de emancipacin. Para Maria Graham, 20 passo que “as capitanias ddo Sul” eram “fortemente mondrquicas ¢ muito dedicadas 3 causa de D. Pe- dro”, as provincias que haviam “estado sob o governo holandés[..] tinham sentimentos decididamente republicanos, reforsados sem duivida pelo cons- tante intercimbio com os Estados Unidos”, cujos cénsules aruavam como “verdadeiros agentes politicos, inculeando aos Estadus da América recém- cemancipados os seus préprios Estados como os modelos mais conveniences para todos os novos governos”. Observard com rszio Caio Prado Jinior que, enquanto 0 “partido brasileiro” no Sul, "gozando de todas as prerrogativas ¢ privilgios, ao poderd ver com simpatia uma revolugto democritica (a por- tuguesa de 1820] e reagir4 concra ela, 0 Nordeste, pelo contrério, encontraré rela a oportunidade de sua libercagio (..] A diferensa ¢ profunda, ¢ isto ex- plica por que foi tio mais dificil apartar o Norte da influéncia das Cortes sai- das da revolugio".! ‘Nio podendo a Coroa, refém do tratado de comércio com a Inglaterra, aumentar os impostos de importacio, onerou-se a produgio do apiicar ¢ do algodio. As vésperas do movimento de 1817, a carge fiscal de Pernambuco ‘compunha-se de quatro categorias: os impostos devidos a El Rei por toda a colénia; as contribuigées criadas para custear a guerra holandesa; as ancigas taxas donatariais que continuaram 2 ser cobtadas mesmo apés a transforma: 1 Joe Aumitage, Hsbrie do Brail Sto Paulo. 1972, p. 10. 2 PAN, 7, p.127: Caio Prado Junior, Fvolurdo police de Brasil outed, 8 ey Si Paulo, 1972, pp. 185-6. . 3 ‘A cura feoerenpescn. lo da capitania donatarial em capitania real, 4 raiz da restauracio do dom Jio lusitano; ¢, por fim, os txibutos exigidos a partir da instalagao da Corte so Rio, como a contribuicio anual de 40 mil cruzados para a reconseruyu Je Portugal, 0 imposto sobre o algodio, equivalente a 10% do seu valor, gra- vando-o duplamente de vez que ele jé pagava 0 dizimo, e a imposicio desti- ‘ada iluminagao piblica do Rio, que se tornou o simbolo da expoliagso fiscal 1os olhos da gente da terra, €8 manutengio da Junta do Comercio al erigida.!? Em 1816, ano-pico em que o preco do algodio disparara mercé da re- cente guerra anglo-americana ¢ do fim do bloqueio continental, a receita de Pernambuco alcangou 1.105.000 contos. Pagas as despesas locais com a ad- miniseragdo régia, transferiram-se para 0 Rio 360 mil contos, equivalentes a 32% da arrecadago, mais do duplo, por conseguinte, da soma estimada por Hipélico José da Costa, Na realidade, a carga fiscal era ainda maior, de vex que os investimentos publicos imprescindiveis, que deviam correr por conta do Erétio régio, como a conservagio do ancoradouro, tinham de ser banca~ dos por donativos, sem que nem sempre as obras fossem realizadas. Autor andnimo alude a que, “de todos 0s erérios, era o de Pernambuco que menos tinha para descansar; os saques ¢ re-saques da Corte ¢ de outros eratios (pro- vinciais} cram quase quotidianos”. Nem mesmo o estado da provincia apés a revolugio republicana induziu a Corte a atenuar as exigéncias financeiras. Em 1818, o Tesouro provincial esteve a ponto de “ndo poder satisfazer os saques extraordinarios que nao cessam de o esgotar”, segundo reclamacio do gover- nador Luis do Rego Barreto.'? O ressentimento com a voracidade fiscal do Rio se exprimird principalmence nas reivindicagées federalistas do periodo 1817-1824. ‘A chegada dos Bragansas, a provincia tinha abundancia de ouro e praca decortente de vultosos saldos comerciais, mas em 1821, quando da partida IAP, 29-30 (1883), pp. 58 ens Koster, Teves pp. 54-5; F. Manis Tavares, Hine de solo de Pemambuco om 1817, 4 ed, Recife, 1969, p. 112. Vd. Maria de Lourdes Viana Ly, *Centalsation, systéme fiseal et auronomie provinciale dans Empire brésiien: Ik province de Pernambuco, 1808-1835", cee & Universidade de Paris X— Nanterre, Pais 1985. "3 RIAB, 29-30 (1883), pp. 66-9: L-F. de Tllenare, Nee dominicales 3 vols Pari, 1971- 1973. ppe 453-4 464; Corrie Brailent, 18, p.A70: FA Pei de Cost, Ani porns Pncanas, 2, 10 vos, Recife, 1983-1987, vit p17. 30 Dessert da familia real, a circulacio 36 constava de papel-moeda e de moeda de co- bre, pois, “sem meios, com um séquito numeroso da nobreza e do clero des- tiuidos de rendimentos\ todos tendo seus protegidos ¢ todos determinados a viver as custas da antiga colénia", a Corte tecorrera, primeico, & depreciay «gio da moeda de prata, € posteriormente & emissio das notas do Banco do Brasil e de moedas de cobre, que prejudicaram Pernambuco sensivelmente, consoante observador inglés: 'A Corte do Rio tinha frequentes « prementes necessidades de dinhel- ro, Nos seas embaragos, o Tesouro sacave antecipadamente sobre os das provincas do Norte, sem levar em conta s eles pogiam pagar sss a+ (ques. Os governadorestinham, contudo, ordens estrita para honti-los ‘Aconteceu mesmo que, et cera ocsio os prsidenes da provincia € do tririo de Pernambuco, nto sibendo com que meiosatendcr exes saques, convocourse uma ceunifo de cometcianees [..] em que se tomou a decision faal de recolher toda a moeda de cobre em ciculago na provincia, de modo a reemiti-la pelo dabro dw seu valor, Este procedimento vergonhoso pro liu a soma indispenstvel a cabrie as necessidades do momento, mas que aconteceu depois Em menos desis meses a maior pate do vabreexsten- te no Brasil apareceu em Pernambuco, devidamente recunhado no dobro do seu valor [oe] A moeda de cabre tornourse assim superabundante em Pemnambuco, de onde jd no voleou 205 lugares de origem. 4 ‘A Corte explorava impiedosamente a prosperidade inédita que a gran- de lavoura e 0 comércio pernambucanos conheceram nos iiltimos anos do século XVIII e primeitos do XIX, gragas 20 surto algodoeiro que atraiu 20 Recife o aluvido de navios estrangeiros a que se referia o autor andnimo da “{déia geral de Pernambuco em 1817”. "A fortuna do Recife devera-se a uma sucesso de circunstincias favord- veis. Do ponto de vista administrative, por mais que a Coroa se empenhasse cem centralizat a gestio da América portuguesa, ela nada podia contra as rea- lidades fisicas que tornavam as antigas capitanias de cima mais facilmente 4), J Stara, A review, nance, tical & commercial, of be Empire of Brazil and ie enures, Londres, 1837, pp. 2-8 2 uy ‘governadas ¢ socorridas de Pernambuco do que da Bahia ou do Rio. A regido ‘eosteira do Cearé a0 Sio Francisco fora conquistada ¢ povoada a partir de Pemambuco, dali gerida a0 longo do perlodo holandés ¢ depois de restaura da a suserania portuguesa. Foi cedendo a tais condigbes que El Rei esiendew a competéncia dos governadores de Pernambuco 20 Cearé, a0 Rio Grande do Norte, & Parafba ea Itamaracé, que passaram a constituir as chamadas “capi- tanias anexas”, integradas, no decorrer do século XVI, & “capitania geral de Pernambuco”. Na mesma diregio apontava a criago do bispado de Olinda (1676), cuja jurisdigso recobriu o territério que, grosse modo, cottespondera coutrora ao Brasil holandés. CComercialmente, 0 entreposto recifense, esbogado sob o dominio batavo, consolidara-se, na segunda metade de Seiscencos, gragas ao sistema de frotas anuais entre Porcugal eo Brasil, que, por motivos de seguranca, velejavam em comboio, tocando no Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Tal sistema requeria a cabotagem ativa que ligau o Recife aos nicleos populacionais dz marinhas e quando abolido, em meados do século XVII, os privilégios da praca per- ‘maneceram intocados. A efémera Companhia de Comércio de Pernambuco ¢ Paraiba preservou-os. Acossado pela concorréncia de Salvador, com quem teve de partithar, em situagSo desvantajosa, 0 comércio dos “sert6es de den- 140”, o Recife compensou-se, a noroeste, nos “sertOes de fora”, que poderiam ser alcangados a menor custo através dos “portos do sertio", como eram de- signados os nticleos litordneos a oeste da bala de Touros, tanto mais que, no terceito quartel do século XVIIL, a populagao das capitanias da Paraiba, Rio Grande do Norte ¢ Gears era trés vezes maior que 2 da drea pernambucana além-Borborema, inclusive a comarca do So Francisco. ‘Agqueles micleos, podiam-se aplicar, com maior razo, as palavras que acerca da Parafba escrevia um governador do século XVI, segundo o qual “os negociantes por quem correo trato da capitania sfo poucos e pobres, meros feitores dos comerciantes de Pernambuco”, O Cearé, o Rio Grande ea Paraiba 6 foram autorizadas a manter relagbes cometciais diretas com a metrépole 420 ganharem autonomia nos finais de Setecentos, comegos de Oitocentos, 0 ‘que, porém, nao thes permitiu libertar-se imediatamente da intermediagao 5 ABN, 40, pp. 1s: 2 Desessre mercantil do Recife, que se prolongard até a Republica Velha e mesmo de- pois. Em 1826, 0 consul francés, ao assinalar que “o comércio direto desta ridade [da Parafba] comio estrangeiro s6 comegou a adquirir algama impor- tncia de oito anos para ed”, informava 6 existirem ali cinco casas inglesas ¢ ‘uma francesa, das quais trés eram sucursais de casas inglesas do Recife, que thes enviavam fundos para a compra de algodio.'* (© papel de Pernambuco na geragio de superdvits comerciais no Impétio luso-brasileiro jd foi suficientemente posto em destaque, Enquanto o Rio de Janciro era deficitério no seu comércio com Portugal, o Recife ¢ Sé0 Luis e, tem menor escala, Salvador produziam saldos que, para preocupagio das au- toridades da metrépole antes de 1808, davam lugar a remessas monetirias do Reino da ordem de 5 milhées de contos anuais. Em ano excepcionalmente favordvel como 1816, 0 saldo da praga chegou a 6.750.000 contos, descon- tados os gastos com importacio de afticanos (que atingiw, de 1816 2 1820, seu ponto mais alto no séeulo XIX), ¢ de came-seca do Rio Grande do Sul, que constitulam, apés os géneros trazidos do Reino, as principais rubricas das importagses.!7 ‘Ainda em 1822, malgrado a instabilidade politica, a provincia dispunha do saldo de 941 mil contos, resultante sobretudo das vendas de algodso & In- glaterra ¢ & Franca. A maior parce destes gastos compensava 0 desequilibrio das contas com Angola e como restante do Brasil, de ver que as relagbes com Bahia, com o Rio de Janeiro ¢ com o Rio Grande do Sul também eram de- ficitérias. A rentabilidade do algodio reduzira a produgdo local de farinha de mandioca, aumentando 0 volume importado daquelas provincias, sem falar tem que, com 0 aniquilamento da produgio de carne do Cearé, que suprira a capitania até os anos setenta do século XVII, passara-se a importar charque galicho. No comércio com o Brasil, Pernambuco tinha saldo negative de 394 °6 teneu Ferceira Pint, Data ota para ahisra da Paratha, 2 vols, Pratba, 1908, isp 207: CCF, 246.1826. 1 José Jobson de A. Arruda, O Brasil no coméri colonial Sto Paulo, 1980, pp, 209-11 Valenti Alexandre, Or senaides do Inpério. Questo nacional e questo colonial na crise do Amigo Regime pores, Lidboo, 1993, p. 66; Mateus J. M. Carvalho, Liberdade. Rona rapture do ‘excravioma, Reif, 1822-1850, Recife, 2001, p. 126. » S mil contos, o que ainda lhe deixava o excedenve de 548 mil cantos, boa parte do qual enviada ao Rio, a titulo de transferéncia de recursos puiblicos. Em vista estes saldas, nfo podia compreender o autor da “Idéia geral” que “oz bas- tardos e detestéveis pedreiros pernambucanos” se tivessem deixado “alucinar com promessas de amelhoracées republicanas” e concebido “a esperanca de desencaminhar um povo agricola, forte, opulento, satisfeito com as suas pre- sentes vantagens, unicamente suspirando por novos bracos afticanos com que pudesse aumentar a sua opuléncia”.!® ‘Ao longo do periodo juanino, foram para o ralo as expectativas iniciais de reforma politica e institucional. Silvestre Pinheiro Ferteira reconhecia em 1822 que “o Brasil elevado & categoria de Reino [..., nada mais se fer do que cesta simples declaracao; e em vez de se regular a piiblica administragao do Brasil nesta conformidade, tudo continuou como dantes; e as provincias con- tinuaram 2 ser governadas pelo arbitrio de governadores tio arbitrérios e ab- solutos como dantes”, Era a mesma justificagdo que dera para a Revolugio de 1817 o agente enviado pelo governo republicano aos Estados Unidos. Segun- do escrevia AntOnio Goncalves da Cruz, 0 Cabugi, 20 secretirio de Estado, a vinda de D. Joao para o Brasil persuadiu a uma part dos seus habtantes que um peinclpe acssado da des rag romaria dela a licgo que to facil se Ihe fia e que adotaria um me- thor € mais moderado siseema de governo e uma administragio liberal, que pudesse asegurar-hes os bens de que eram senhores ede que nfo gozavam pelo sistema de despotismo que ente eles se praticava, Mas esta experanga 56 existiu por mui pequeno espago de tempo, ¢ isto mesmo s6 entre os que ‘menos instrusio possulam do sumo grau de corrupgio a que rinha chegido aque governo.”” ‘Como ressaltaré Armitage, em Pernambuco “a causa da Independén- cia ndo havia [..] recebido 0 cunho de ficcio” por Ihe falrar “a presenga de ‘uma Corte extravagante e aparatosa: ¢ por este mesmo motivo tinha produ- _ "C.F. Lumachi de Melo, Rome da impos xporap da province de Permanbuc, Recife, 1823; RIAP, 29-30 (1883), p. 69. °° RIHGE, 51, p. 372: DH, cx, p, 263 34 Dreeseee zido ratzes mais profundas entre a populagio".?° Agueando-se a percepcio de tum dominio colonial que se cornara desde 1808 mais préximo ¢ mais sufo- ‘ante, oressentimento nativista conclult que Lisboa jé nfo estava em Lisboa, mas no Rio. ‘Em margo de 1821, quando o confliro politico no Rio, como assinalow Sérgio Buarque de Holanda, ainda nao extrapolara a querelaenczeabsolusitas ¢ liberais portugueses, em Pernambuco o governador Luts do Rego atribula a “inquietagio publica” 20 desejo generalizado de mudanca, aduzindo: “aqui se falava na Constituigdo e Cortes de Portugal; acolé, na independéncia ab- soluta do Brasil; outro clamava com a constituigio politica dos Estados ame- ricanos”, Esta gama de reivindicagSes, mais ampla que a da Corte, era pro- duto da Revolugio de 1817, sem referencia 8 qual, como acentuou Denis Bernardes, a histéria politica da provincia torna-se ininceligivel até & revolea praicira (1848-1849) Ao iniciar-se o movimento da Independencia, Per- ambuco e suas vizinhas do Norte consticutam a tinica regido da colénia = haver ensaiado uma experiéncia de autogoverno, a0 contritio do Sul, que s6 havia conhecido inconfidéncias esmagadas no ovo. Aquela altura, o padre Lopes Gama avaliava o legado de Dezessete: ‘A revolugio de 1817 ¢ uma daquelasépocas memo fveis, que a olhos do pensador imparcial serve de explicar os fendmenos politiens que tém apa recido nesta formosa e malfadada provincia. Um pals, que ao sair dos sus tos de uma comacio getal, viu presos e cobertos de ferros os mais caros © distinvos de seus eidadvs; que vit levar ao patibulo seus sacerdores, cujos corpos decapitados eram depois arrastados a caudas de cavalo; que vit suas familias dspersase foragidas mendigar 0 sustento, expostas a todos 0s tigo- tes da adversidade; um poo no meio do qual se levanton o horrendo trbu- ral de Minos, isco é, uma algada que abriu campo & delagio, & vinganga, 2 2 Armitage, Hida de Bra p. 79. 2 RIAP, 52 (1979), p. 192: Séigio Bustque de Fiolanda, “A heranga colonial — sa des cepa", Hinsria gral da civlieagto brag, O Bra mardruic, iy Sto Paulo, 1962, p13 Bens Antnio de Mendonga Bemarles,“O patioisme consisciona:Peenambuco, 1620-1822" ‘ete 4 Universidade de Seo Paulo, 2001, p. 192, 6 Acura leosresotsen inrigas um povo enfim de acusadores¢acusados devia guardar um fermento de inimizades e disc6cdias, sobejo a empecer todos os passos da sua regenc~ ago politica? Revolta anticolonial, Dezessete foi também uma insurreigdo que esca- fous controle da maronaria portugues ¢ fluminense, Havendo sobrevivi- io, ap6s a ocupacio francesa do Reino, & perseguiczo da Regéncia deixada por D. Joao, a Grande Loja Portuguesa ou So Ota Meets a ta majoritariamente en da nobreza, das forgas armadas ¢ do clero, recuperara-se a partir de 1813 na esteira do regresso das tropas lusitanas que haviam lado sob Welingon,fandandosenovas lj rorganizando-se aentidade de cipula. A reestruturagdo em Portugal, seguiu-se a do Rio, cujas lojas, fechadas em 1806 no governo do conde dos Arcos, reabriram apés a chegada do Principe Regente, gragas tolerincia e& cumplicidade de altos fun- ciondrios do regime, como D, Rodrigo de Sousa Coutinho, que, como vé- rios outros, era tido ¢ havido na conta de pedreiro-livre ou, ao menos, de sim- patizante. Criou-se entio o Grande Oriente Brasileiro, que ceve um futuro protagonista de Dezessere, Anténio Carlos Ribeiro de Andrada, como seu primeito gréo-mestre. __Aoiinvés de masonaria fluminense, a pernambucana fugia da tutela do Grande Oriente Lusitano. Seu aparecimento datava dos primeiros anos do século, sob o estimulo do naturalista Manuel Arruda da Camara e do seu dis- cipulo, o padre Joao Ribeiro. A partir de 1813, ela fora reativada nao de Lis- boa ou do Rio, mas de Londres, por Domingos José Martins, emissirio de pedreiros-livres ingleses. Desde entio, as lojas pernambucanas haviam-se tor- nado exclusivamente brasleiras, excluindo portugueses, os quais por isso mes- ‘mo fizeram seu inferno & parte. Martins ¢ amigos trataram de conquistar lero secular ea oficialidade, empresa tanto mais cil quanto essas categorias jd'se compunham majoritariamence de nacurais da terra, predispostos 2 arua- rem como ponta-de-lanca de um projeto emancipacionista,”? 2 Concilador Nacona, 4.ii.1822, 25 DH, li, pp. 109-10; ev. pp. 234, 258: evi pp 201-2; el, pp. 201-2, 234,240,255; Dias Matting, Or mires. 258, 36 Drzssese ‘Que a magonaria pernambucana recebesse seu impulso de Londres, no de Lisboa, ¢ essencial para compreender Dezessete. Os pedtreiros-livres lusi- tanos haviam caldo sob a influéncia dos franceses, embara sua instituicio ti- wesse sido criagio dos ingleses, que, concudo, s¢ lnwviazn cindide em lojas si vais, devido a quest6es de ritual, s6 se reunificando em 1813. £ provivel, por conseguinte, que a missio de Domingos José Martins a Pernambuco tivesse visado precisamente fomentar alternativa brasileira & conexto franco-luso-flu- minense, devido inclusive ao propésito dos magons portugueses de liquida- tem a posicio privilegiada da Inglacerra no comércio luso-brasileiro. A eal dissensio poderia estar ligado 0 rompimenco de Martins e do padre Joto Ri- beito com o tenente-coronel Alexandre Tomés de Aquino Siqucira, ajudan- te-de-ordens do governador Caetano Pinto, rompimento que Ant6nio Carlos acribuiu a “algumas das misérias do espfrito de bairro”, mas que levou o ofi- ‘ial, provavelmente magom monérquico-constitucional, a denunciar aexisten- ‘dia de projeto republicano. A este respeito, Gliucio Veiga chamou a atencio para a conduta de Caetano Pinto, conhecido por suas inclinagées iluministas, 6 qual mantendo-se impercurbivel diante das adverténcias acerca da conspi- tagio em marcha, s6 se resolveu a agir quando certficadlo pelo oficial de que cla comara catiz antimonérquico.”* 'A maconaria portuguesa nZo alimentava veleidades republicanas mas monarquico-constitucionais, Nos quadros do Grande Oriente Lusitano, pre- ponderavam a oficialidade e o clero, a0 passo que 2 participagdo do comér- cio, da magistratura, do funcionalismo piblico e das profissoes liberais nto superava 30%, Mesmo durante & ocupagio francesa, ela continuata fiel aos Bragancas, embora se tivesse tornado receptiva & discussia sobre a legitimi- dade e a representatividade do poder. Acuada pelo fim do monopélio colo- nial, a burguesia do Reino convertia-se 3 idéia de constitucionalizar a monar- quia a fim de defender sua posigéo face ao predominio britinico ¢ 3 indife- renca da Corte’ do Rio pelas dificuldades domésticas de Portugal. A conjura ide Gomes Freire de Andrade, abortada em maio de 1817, nfo cogitou de re- publica, hesitando apenas entre mancer D. Jodo VI no trono ou substicul-lo 7 Oliveca Marques, Minus de magonaria em Portage p. 109; RIHGR, 30. 3,9. 143 lacio Veigs, Misia das ideas da Faculdade de Dineto do Revf i, Recie, 1980. p. 196. ” x pelo duque de Cadaval. A Revolugio do Porto (1820), na’sua estridéncia antbrinica« ansibrasileira,vsar, apés alguma hestacéo de menor impor- inca, 3 regeneragio da monarquia. como a opcio de “menores custs pol ticos”, a0 atender os “mais imporcantes interesses em jogo”. Como alegardé um conselheiro do monarca, 20 alienar 2 magonaria portuguesa e fluminense, Dezessete comprometeu sua sorte.?> Os pedreiros-livees da Corte também aprender ligdo, redobrando esforcos, a partir de 1821, no fim de ture- lar as lojas provincia. A facilidade e rapider da vitdria em Dezessete impressionaram 0s con- cemporiineos. Ant6nio Carlos admirava-se do “sucesso assombroso” gragas 20 qual “cinco ow seis homens destroem num instante um governo estabelecido todas as autoridades se lhes ujeitam sem duvidar”. Contudo, segundo Tolle- rare, "o povo ndo tomava parte alguma na insurregio”, nem demonstrava ‘aenhum entusiasmo, nenhum transporte”. E lembrando-se das jornadasre- volucionarias de Paris, exclamava: “Que diferenga de ardor entre esta popu- Jaga ea nossal”. Constatava o francés que “o povo {..] tinha-se armado sem saber para que e podia facilmente ser ditigido contra os rebeldes”, caso as au- coridadeseégias se tivessem empenhado em controlar asituacio, Na Paraiba, ‘a novidade arrastou mecanicamente, sem indicio de oposicéo em toda a pro- vincia”; no Rio Grande, “o povo permanecia inerte espectador”, O adesismo da administrasio era geral, donde nao ter havido substituigdes nos altos car- 0s sequer entre os comands da mica, Do interior, afiufam vereadores, pi- rocos ¢ oficiais da milicia para prestar obediéncia a0 novo poder.” Dominou nos primeiros dias a impressio de que 0 movimento nao se fizera contra El Rei mas sim contra seus agentes, a serem em breve subst dos pelo Rio. Os membros da junta proviséria s6 pronunciavam “a palavra sepiiblica em vor baixa e 36 discorrem sobre a douerina dos diteitos do ho- ‘mem com os iniciados”, 0 que equivalia & confissio de que “ela nao seria com- % Oliveira Marques, Mindria de maronaria em Pongal 5, Hse da maconara em 5, pp. 19546, 288-9, 291; Gragne 41S. da Silva Diss, Orprimbrdio ds mapanaria em Poreugl i, 2, Lisbos, 1980, pp. 510, 654 Ale sande, Os sentido do Impéria, pp. 392-410; Angelo Peseta, D, Joto Vili, pp. 310-5 2 DH, i, p. 126; Tolleare, Nowsdominicales i, pp. $48, 550, $92, 610; Dias Martins, Or -marsives pp. 5 € 51; Muniz Tavares, lira p. 83. 38 Desert preendida pela canalha”. Havendo Tollenare sugerido ao padte Jodo Ribeiro {que publicasse uma gazeta para endoutrinsla,recebera a resposta sonsa “Con ‘Yim deixéclos neste erro”. O manifesto da junta revolucionétis, redigido pelo padze Miguelinho, embora desejasse uma revolusio, desria dos “movimen- tos precipitados", querendo “uma repablica mas quando ossem dispostas os elementos”. Ele ndo defendia mudanga imediata de regime, atribuindo 2 in- surreiggo a0 “espirito do despotismo”, que tolhera uma empresa conciliaé- ria que “ndo seria drdua”. A organizagio do governo provisério devera-se 8 Gque “os patriotas”, achando-se “sem chefe, nem governador”, viram-se na necessidade de “precaver as desordens da anarquia”. Malgrado 0 gesto sim- blico de se consagrar nova bandeira, nlo se proclamou o regime a que corres- pondera, indefinigao que als, seré explorads em favor dos réus, cujo advogae o assinalava com razio que se elegera governo sem que aparecesse documento ‘que declarasse sua natureza, “se era aristocrético ou democrético,¢ vitalicio ou temporirio" 2” Mais do que a reptiblica, a independéncia foi o verdadeiro motor de Deressete, sob este aspecto cle também se incompatibilizou com a aspiragéo de consticucionalizar 0 Império luso-brasleiro. Os observadores estavamn 2cor- des acerca da particular viruléncia do nativismo pernambucano. José Carlos Maytink da Silva Fertao, secretirio do governo de Caetano Pinto ¢ da junta de Dezessete, “tendo visto alguma coisa da histéria de Pernambuco, sabia que cra este um pecado velho, comum a todo o Brasil, mas nesta capitania mais tescandaloso”. E frei Caneca, a0 analisar 0 antagonismo entre “os portugu ses indigenas de Pernambuco e os portugueses europeus nele estabelecidos' antagonismo comum 20 Novo Mundo, onde demonstrara sua eficicia na ‘emancipagio dos Estados Unidos e da América espanhola, acentuava que «este mau humor se tem estendido, porvencura, mais em Pernambuco do que ‘em neahum outto pont do Brasil, pois deixando de parte coisas mais spar tadas de nés, 0 ano de 1710, das percurbagbes civis desta provincia data a épaca do seu maior desenvolvimento; € desse cempo para creme visto, por veres, aparece eocultar-se, bem como os fosfSricospiilampos nas te- vas da noice até que po iltime se mostrou com coda ostentagio ¢ wfania 2 Mian Tavares, Hiri, pp. 58-60; DH, ev. 71 Z 3 ‘Acura Inosrewoencn ‘em 1817, € ainda hoje vai minsndo e solapando, quanto pode, as bases da sociedade?* ‘Antonio Carlos também fazia recuar a paixdo antilusitana da provincia a0 cempo da Guerra dos Masctes, muito recordada cem anos depos, Entio, ‘uma nobreza numerosa e orgulhosa” nfo pudera “sofier com paciéncia a preferéncia que o antigo sistema colonial dava a homens sem nascimento, virtudes ou mérito”, Ao conflito civil, seguira-se seu “abatimenco”, do qual sé comecara a recuperar-se com a politica pombalina de igualar os stidicos de ambos os hemisfétios ¢ de abrir “novas fontes de riqueza”. O reinado de D. ‘Maria, a regéncia de D, Joao ea mudanga da Corte para o Rio haviam feito conceber aos pernambucanos a esperanca de se verem equiparados aos da me- trépole, Mas como “os homens novos [i ¢, 0s reindis de otigem plebeia que haviam ascendido socialmente na terra] s4o sempre orgulhosos”, sobreveio © choque com os naturais, “a quem nfo queriam admitir na partilha das van- tagens que até entio tinham gozado s6 eles”. ‘Os adeptos da monarquia constitucional haviam sido mantidos & mar- gem da conspirasio, preciptada pelas medidas represivasexigidas por of- Ciais reinéis, varios dos quais eram pedreiros-livres ou simpatizantes que re- jeitavam o republicanismo. Entre 0s mondrquico-consticucionas,sobress “Antonio Carlos, que iniciava uma das carreiras mais versdteis de homem pi- blico que jé conheceu o Brasil; cuja nomeacdo para ouvidor de Olinda te- tia sido feta no objetivo de colocar 2 magonaria pernambucana a reboque da do Rio. Quando a junta governativa, formada as pressas por um colégio de dezessete eleitores escolhidos a portas fechadas em reuniio dominada por Martins, debateu o regime a adorar, o representante dos lerados, José Luts de Mendonga, que se concertara com Ant6nio Carlos, propds negociagées com E] Rei para solicitar a redugio de impostos ¢ 0 estabelecimento de limites a0 poder dos governadores, segundo aspiraco que datava da restauracao do do- jo portugueés na capitania. A proposta foi repudiada por Martins, que ‘contava com o apoio da oficialidade da terra, sobretudo do capitéo Pedro da DH, ov p. 214i FC p58. ® RIHGB, 30,1, p. 14 0 Dezesser Siva Pedroso, 0 qual “quis atavessar com a espada.e matara José Luts de Men- longa, porgue este fizera mogio de se etabelecer um ceino constieucional tm lugar de uma repablica” 2 Mendonga ficou a partie dat em posisio sor lada no governo revolucionacio. “Mesmo o delegado da grande lavoura na junta, Manoel Correia de Arate jo, que simpatizava com a posigio do colega, eximiu-se de apoti-a, 50 Passo {que of demas membros, 0 padre Joio Ribeiro, representante do clero.¢ 2 Zipitdo Domingos Teoténio Jorge, do exército, eram, como Domingos Jost Martins, notérios por seus sentimentos monarcbmacos. Os republicans ¢- ham, portanto, matoria no scio do governo, Tollenare, que conhecet Men- dlonga de perto,rragou 0 perfil de um reformistatipico: vitorioso na sua a Velie de advogado, gozava do respeito geal ¢, em particular, do das “pes: vous de consideragio”. Nas suas conversas com o francts, Mendong2, que ig- ora a wrama, néo punha em causa o fegime mondrquico, limitando suas viens aos abusos da administragio colonial, criticas que eram gerais € que Stvertia Tollenate, cram ertoneamente confundidas com “desejos revolucio- snirios”, embora pudessem ser muitas vezes o prelidio das revolugbes, como wContecera em seu pals. Mendonga, que negociara com Caetano Pinto sus fendincia e partida, gatantira-the, lids, que o movimento nio era contra 2 monarquia, mas apenas contra o governador.™* “Antonio Carlos ainda tentou salvar a proposta de negociagio. Malgrado consideré-la comprometida pela inabilidade de Mendong2, sondou Domin- tos José Martins eo padee Joio Ribeiro, Ambos responderar- the disimls- damente que “a lembranga era boa e poderia ter efeito a no ser a impradén Ga do dito José Luis, mas que agora jé no tina mais lugar porque nem & tropa nem 6 povo a queriam e quem ha propusesse morreria necessatiamen- te, 0 que esperavam que ele {.-] no fizesse", Antonio Carlos também con- tactou o pré-homem rural de maior prestigio, 0 coronel Suassuna, que sam- jim ignorara o compl8 cao saber do levante,parira para o Recife com um séquito de milicianos e eseavos aos gritos de “Viva El Rei”, rormando-se su peito 205 republicanos. Amibos concordaram em que “ws homens de qualidade 30 DH, ov pp 9647, eer p. 252: FC, p. 14; Muni Tavares, Hiri, pp. 60-1 31 DHL, evi, pp. 70,89; Vollenare, Nets dominican i p- 976: RIB, 29, pp. 284-5, a C gure leoerexonrcs estavam arruinados se no sj rio ajuntarem os seus esforgos para dettruit uma cx fale aloe Enguno Anno Cain Fa nena a tropa de linha, Suassuna obtera apoio no oul da won des ul da capicania, para onde seguia coma miso de er aio ein gears a0 es ral Congominho, cujos ofciais magons pretendia aliciar em prol da monar- aut onstnonal Tal pj dee cep so rds ogra pe Vinca 2 dpc pro sl rope ab Donings Jv sit us como br una ete comand, Resin Sie fear dn chefia,adotou-se a solugdo de manter ambas as for- as separadas, que foram assim mais facilmence batidas pela tropa dE Rei A essa manobras, podia estar associado o plano de conara-rolugdo part pele Sin Maerade qu etna Cons mani do ldesconscuionais” espns projto que a Algada encontrar ent pape do ded Sd linn oD. Berard ae Fern Portugal? Dees fa mado pra mapa poagu «frien cujo objetivo, consoanteo enviado de Buenos Aires ao Rio, Carlos de Alvear, infomar iu gen, consi et compelir D. Jofo VI a convocar as octes porcuguesase jurar uma Constituigfo, na linha, como se vd ‘ ; como se vé, do qu Gomes Frere de Andrade projtara no Reino e do que lj do Porto = ext com xt em 1820, Oc gu em Pecans mass 6 se haviam antecipado mas nfo haviam feito a revolusa on sch ito a revolugio conforme o com- binado”. O informante de Alvear aduzia que “se 0s petnambucanos houves- sem seguido debaixo destes principios, a coisa [o levante no Rio) sc levaria a -Diante do ato consumado no Reif, amaconaria uminense dvd ‘ase, “unsa favor, que slo geralmentebrasleiros,e outros em contra, que sio| 0s europeus ¢ muitos brasleiros". Em Lisboa, também se sustentava que os 0s haviam traido os pl 8 p lanos masbnicos, eujo objetivo Frneavases Horas a familia relnante aconceder uma nova consiuigfoe adotar o sistema representativo”.23 "IHS, 30, p17. 121.2, 1612 Ade Conn de Olen, Mine cour Rete 1988p Ds Marin, Orman 1c Sono Case. ‘Gast 2 a 1859. f. 207 Mn Tr His. 74 Dc 54 2 Tallee, Nodame, fp 8656897 a Deassere Os telatos de informances da Coroa precisam os contornos da con shuminense, a cuja frente estava0 bari de Sao Lourenco, um pleb Frans por D. Jos, que o promovera de arrecadador de eendas no E+ ware Gro-mor do Reino, «que era alvo de graves acisasses de pectlas®. onopirago particpariam, ence outros, “és (comersantes) ingleses dos mais poderoses desta cidade”, certo fade pemnambucano, Jose de Si Jacinto Mavignier, pregador da Capela Real, outro pernambucano, José Fernandes Can tie de Bernardo José da Gama, ouvidor do Sabaré e que desempe hard papel de elevo na politica da provincia em 1822-1823, seu mg Lud- ero da Paz, contador da fazenda em Petnambucos dois mercadores portu~ tzueses do Rio, um dees com correspondentes no Recife «0 gsm de Bento Jose da Costa, importance horem de negécios desta praca. Ao saberem da Jpsusteigdo pernambucana, eles haviam dado “urtos por ver nfo rerem So" ‘epuido o seu plano”, cujo objetivo era apenas o de redusic os poderes da Coroa. *X monarquia constinicional animavao afi de preserar © Reino Unido, sas a repiblica teria de ser regional, devido 20 descompasso ence a8 asp bes poiticas no Norte, e, por outro lado, no Sul eno conjante da monat- Guia lusitana, Ao rejeitara alternativa mondrquico-constitucional, Dezessete Jevia contencar-se com base territorial menos ampla. O ‘nico vexso aus sovce sreapeito€a carta do padre Joo Ribeiro ao governo proviséso da Pruatba, de 31 de marco de 1817. O sacerdote era categstico: “Pernambuco fimcluindo Alagoas, eneio comarca pernambucana), Parafba, Rio Grande ¢ ‘Ceari devem formar uma s6 repiblica”, pois “estas provincia estio Go com penettadase ligadas em identidade de interests e relagbes, que nso s€ podem Feparar, 20 que se somava a cacasez de quadros dirigents, ae meres “en: Gquanto nio se propagam as utes”. A idéia de que adres entre ° Ceark eo Sac rancisco, que correspondia ao antigo Brail hlandés, consttula uma arce rreiidee esta j fora formulada nas diretries constitucionais de 1799 alegadamente redigidas por Arruda da Cimara, Jodo Ribeiro ¢ José Ferman 1 allo Mores, Heid Brel Reins do Bret-impéia 2 2 ol, Belo Horo 4982; i pp 4567, 4646; Fe Alia Pra, D, foto VP one de clase drt re 1815-1889, Sg Paulo, 1968, 12. : RK ‘Acura Inperesoenen des Portugal, as quais aludiam as “provincias federadas desde ‘Opinito que ndo era consensual, segundo reconhecia Joao Ribeiro, pois Eryn eee ere yetars Puaibeere Rie Grande encorajara os patriotas a estenderem “suas vistas {...] ao bem ser de todo o Brasil”. Ocortia apenas que “as provincias do Norte [estando] mais distantes do sopro empestado da Corte seriam as mais solicitas em responder 20 grito da liberdade”, 20 passo que, a longo praz, as do Sul seguitiam (. ‘0 mesmissimo destino”, Caso nao o fizessem, uma confederagzo do Norte na- da teria atemer, Joio Ribeiro escreveu, aids, & junta paraibana para dissipar a suspeita de que seu projeto visaste a “engrandecer Pernambuco, sujeitan- do-theas outrasprovincias como antigamente”, isto é, como ao tempo em que ae sido capitanias anexas, propondo desde logo que a capital da repa- lica fosse construida, “como condigio essencial”, no interior da Paraiba, a ino quarenta léguas do litoral.36 severou-se que “a revolucéo de 1817 nao foi separatista mas preten- diaa Independéncia ea integridade do entio Reino ‘Unio do Bras”5? Ore como nfo haviaentio “Reino Unido do Brasil” mas Reino Unido de Portu- gal, Brasil e Algarves, néo se pode reivindicar para 0 movimento uma inspi- raglo de unidade brasileira de que ele manifesamente creceu. Por 0 ado 4 inegavel que Dezessete nio pode ser acoimado de separatisa, pois 0 sepa. racism pressupde a constiruigfo previa de uma nasio brasileira, e esta nao existia Aquela altura, a monarquia portuguesa sendo a forma vigente do Esta- do, de que 0 Rio era acapital.>® A imputagao de separatismo a Dezessete,sej2 pelos que a formulam, seja pelos que a rejeitam, é um pseudoproblema. Mes- mo Varnhagen, cuja antipatia pelo movimento é conhecida, absteve-se de Dias Martins, Os més, - .320:M, Arruda da Camara, Oat rides, Recife, 1982, %Dias Martins, Os mtn, p. 321, 2 Gongalo de Mello Mousio, A rrolusie de 1817 ¢ a bidria a indria do Bra Belo Hosizante, ean Onan sans «par frum zs wo emp da nde husivarnente no tocante separegio do Brasil ede Portugal, “ Devesere caractetizé-lo como tal, conscio talvez de que incorzesia em anacronismo. Por fim, cumpre no confundir ox objetivos de Dezessete com suas repercussbes hs América portuguesa. Os temares de contigio insurrecional denotavar as preocupacdes de quem os.exprimia, nfo 0 anim brasiletista do governo re- Nolucionétio, As previs6es de que os acontecimentos em Pernambuco desa- gguariam na independéncia de todo o Brasil no significa que Denessete se prox pusesse a promové-la Quando o representante britinico no Rio ou 0 comandance da estagio naval inglesa no Atlantico sul expressavam tal apreensio, como via de regraa correspondéncia diplomética do periodo, o que os assustava era a adesio de todo 0 Norte a0 movimento. Alvear reporta-se & Bahia, Pard ¢ Maranhao ‘como os alvos dos rebeldes, no ao Sul do Brasil. Naturalmente, em face do que ocortia na América espanhola¢ da inéreia da Coroa lusitans, era natural aque Dezessete fosse visto como a onda do futuro, embora o secretério do exterior, Lord Castlereagh, constatasse em breve que a insurteigao tivera “me- not aleance do que a principio se supés”.?” Isolada no sew republicanism, 2 junta do Recife nfo podia alimentarilus6es acerca das provincias meridio- nais, devido inclusive & sua proximidade da Corte. Se, na melhor das hipste- ses, elas também se revoltassem, fi-lo-iam certamente sob a forma da monar- ‘guia constitucional pretendida pelos masons fluminenses, como ocorterd em 1822, nem se teria mostrado menos hostis a Dezessete do que 0 ministério de D. Jofo VI. Se 06 de marco fora obra da magoneria republicans, néo ha- via por que procurar a adesio do Sul, que s6 poderia comprometer a pureza do novo tegime. ‘Como sintetizou Barman, “a insurreigo no Nordeste no visou a inde- pendéncia do Brasil como um Estado-nacio”.#° O particularismo de Dezes- Sete insinuou-se inclusive na justificaglo politica do movimento. O governo provisrio nfo invocava os direitos do Brasil, mas o descumprimenco pelos Bragangas do pretendido pacto com a capitania, segundo o mito consttucio~ nal de que a restauragio do dominio portugués no século XVII tivera 2 con- Tollenase, Notes dominictles ii, pp. 857-8, 863: G. 8. Graham e R.A, Humphreys, 7 ‘ay and Sth America, Lone, 1962, p. 187; Mello Mourdo, A rele de 1817. pp 258 ¢ 260, © Barenan, Bracil The forging ofa nasion, p59. 6 A cures nomenon trapartida de isengBes de natureza fiscal ¢ administrativa por parte da Corea, Daf a autoproclamacio de Dezessete como a “segunda restauragio de Pernam- ‘buco", consoance rezava a férmulla das seve impressas oficiis, Semelhanre ogo pressupunha que enquanto os pernambucanos seriam “vassalos pol cos", os demais brasileiros eram apenas “vassalos narurais". Dai haver cabido a um mondzquico-constitucional, o deio da Sé de Olinda, recorrer também a0 argumento mais abrangente da violagio pela Coroa do préprio pacto cons- titurivo da nagdo portuguesa, vale dizer, as pretendidas leis das Cortes de Lamego, concepao que, a0 contrario da anterior, era coextensiva a todo 0 Impétio luso-brasileizo." £ sintomético que as miss6es pré-revolucionérias do Recife tenham-se limirado 4 Bahia, 20 Cearé, ao Rio Grande ¢ & Paraiba, embora Domingos Teotdnio Jorge tivesse viajado ao Rio. Que houve contactos com os masons fluminenses,jé 0 sabernos. Vitoriosos, porém, os republicanos contentaram- se em dirigir proclamag6es as provincias vizinhas, abstendo-se de conclamar © Rio eo Sul, ao contrério do que fard em 1824 a Confederagdo do Equador. Asalusdes ao Brasil insertas nos manifestos & Bahia eram recurso ret6tico pa- 1a fustigar a sibieza dos baianos, da mesma maneira como a propaganda re- voluciondria apregoava, para consumo interno ¢ externo, que o Brasil estava a ponto de aderir. Ao assegurar ao governo norte-americano que a revoluczo fora realizada de concerto com as outras provincias ou ao estipendiar as gize- «as de Boston ou Filadélfa para preverem que ela se espalharia por coda a co- lenia, o Cabugé visava sobretudo impressionar os Estados Unidos para cap- tar-lhes o auxilio. Do ponto de vista dos chefes republicanos, a conflagracio das provicis merdionas fhe ia a vanage dobar 3 raster do Ri, ms eles no puseram ma femal posbiiads,emborvsem Julgava Oliveira Lima que em Dezessete a influéncia da Revolugio Fran- esa fora superior a da Revolucio americana, Por uma questo de mimetismo “ DH, ais pp. 10,127; Tellme, Noes dominic isp. 596, ip 662: RIAP, 42 (1948. 194, 52 Bd Cabal de Melo, ido ein O tain de een penambacin, > Rio de Jani, 1997, pp. 127 DH, ci pp. 39-40. “ ede intoxicacio ideolégica, tendeu-se a utilizar a cenografia ¢ 0 gestuario da Grande Revolusio, cuja dramaticidade era mais apta a empolgar imaginacdes brasileiras, Mas se 0 governo do Recife conhecia as constituigoes de 1791, 1793 e 1795, mostrando preferéncia, aids, pela mais “razodvel”, a vetmi- dotiana, possula o“livro das constituigGes” que Benjamin Franklin “compu sera para as col6nias da América inglesa" A experiéncia noree-americana oferecia figurine mais adequado a tradigio auronomista da provincia do que 4 Revolugio Francesa, cuja concepsio unitiria buscara liquidar, mediance © siscema departamental, os particularismos regionas,identifiados com o poder da aristocracia. Nos primeiros dias do movimento, 0 cénsul britinico asse- gurava que o regime pautar-e-ia pelo “modelo {federal} dos Estados Unidos Sa América”. E.em Washington, declarava 0 Cabugé que a constituicio “deve ser modelada pela dos Estados Unidos, com aquelas alterayes ou modifica- g6es andlogas aos costumes do pats". "O éxito da federagio americans faz vie Tar muitas eabegas", anotava Tollenare, sobretudo em vista da “economia de despesas com uma Corte”. Oliveira Lima também vislumbrou influéncia termidoriana na criagia de uma junta de cinco ditetores, com o fimn de “manter a supremacia do po~ der civil” face a derrapagem militarista. Na realidade, 0 objetivo perseguido nna formacio do governo consistira em doté-lo de base «orporativa, como as- sinalavam a proclamagdo de 9 de margo ¢ 0 manifesto que ficou conhecido pelo galicismo de “Preciso”, 2 primeira utilizando ainda a expressio “ordens do Estado”, o segundo, jé recorrendo & palavra “classes”. 45 Ademais, a tradi- Gao republicana sempre estvera associada aos regimes de tipo colegiado, de Frodo a frisar sua diferenca com 0 despotismo dos sistemas monarquicos. “8 Traravase da tradugt frances da "Colepto das leis constivutivas das colonise inglesat confederadas sb a denominagio de Extador Uaids da Amésica Sereatrionl” publica original rene em Filadelfa em 1778 « qve jf cicalaraentte ot inconfidents minciros: Kenneth Mas rel A devasa da devasa. A Incenfidencia mincre: Bal «Porwga, 1750-1808, 3, Rio de Jancito, 1985, pp. 147 « 162 4 Tollenare, Notes dominical ip. 368, i pp. 664, 854, 45 Sobre a utilizagdo do term “lase” em Dezessere, Carlos Gullherme Mots, Nerd 1817, Sio Paulo, 1972, pp. 104 5 ° Vv N \firmou também Oliveira Lima que a ligdo de Termidor explicaria que o coverno se tivesse esquivado “a uma Constituinte, pelo menos imediata’.*© ‘As raz6es foram mais prosaicas. Em vista da rapidez da reagio da Co- 0a, 0 novo regime nio dispés de tempo suficiente para institucionalizar-se, sbscaculizado pela falta de éegios preexistentes que canalizassem a reivindi- agdo constitucional, como as assembléias coloniais da América inglesa me- amorfoseadas nos congressos revolucionérios que deram aos Estados suas constieuigdes, Mesmo em condigées favoréveis, 0 processo consticuinte nos ‘stados Unidos levara nada menos de treze anos, do primeito Congress Con- inental (1774) & Consticuigio federal de 1787. Os “Artigos de Confedera- 40", adotados em 1776 para entrarem em vigor quatro anos depois, previam ima cootdenagio frouxa das colénias no exercicio dos poderes anteriormen- ¢ exercidos pela Coroa britanica em matéria de defesa, relagées exteriores, aoeda ¢ politica indigenista. Por sua vez, a ratificacio da Constituigio fede- al pelas ex-col6nias tivera de esperar dois anos. ‘Muniz Tavares criticaré a junta do Recife por nfo haver, & maneira do “ongresso Continental da América do Norte, convocado imediatamente um ‘orpo constituinte e legislative que estabelecesse “uma liga federal” para prover seguranga externa. A tal opgio, correspondeu provavelmente o projeto, cujo xto ignora-se, encomendado a Pereira Caldas, cuja existencia ele reconhe- eu perante a Alkada, adiantando que fora posto de lado em favor do redi ot “outro conselheiro”, isto é Anténio Carlos. Mas 0 governo revoluciond- io estava consciente da necessidade de uma entidade confederal. Na citada arta junta da Paraiba, o padre Joo Ribeiro salientava que a questo do des- no a ser dado ao regime municipal legado pela colonizagio deveria ser re- sivido pelo que chamava “o Congresso geral”.*” A iddia de assembléia desti- ada a consagrar uma convengao confederal foi adiada em favor do estabele- imento de Constituigéo pernambucana, a ser aprovada em conclave provin- al tio logo se consumasse a adesio das comarcas de Alagoas e do sertdo, como revisto na “lei orginica”, que deveria vigorar até entio, 2 qual, endossada © Oliveira Lima, noas a Muniz Tavares, Mishra pp. 317-8 sunia Tavares, Hira, pp. 151-2: DH, eli pp. 277-8 Dias Martins, Or mrcrs p 8 “ Desesere pelo governo revolucionério, fore redigida por Antbnio Carlos para ser sub- tmetida & aprovacio das cimaras municipais. (© projeto de “lei orginica” previa que. caso a Constituinte pernam- bucana no houvesse sido convocada dentro de um ano, ou na hipétese de que a Constituigio provincial nfo ficasse conclufda no eiénio seguinte,ajunta do Recife icaria automaticamente extinta, reintegrando-se 0 povo no exerci- cio da soberania, “para o delegar a quem melhor cumpra os fins da sua dele- gagio”. Atéa adogio da Carta, ela enfeixara os poderes executivo ¢ legislati- two. No exercicio das competéncias legisativas seria assessorada, de um lado, por um conselho permanente de seis membros, escolhidos pelas Camaras en- tre “os patriotas de maior probidade e luzes em macéria de administracao”, de outzo, por dois secretirios «le Estado (assuntos internos ¢ externos), do inspetor do Erério e do bispo, que, estando Olinda sede vacante, seria subs- ticuido pelo dedo. Governo e conselho deciditiam por maioria de votos, € 0 primeiro poderia também consultar o segundo em matérias de comperéncia executiva. Por crime de responsabilidade, os governadores s6 poderiam ser processados 20 fim da sua gestio mas os secretirios de Estado sé-Io-iam ime- diatamente, A gestio do Erério incumbiria a um inspetor dependente do governo. A justicaficaria composta, em primeira instancia, dos juizes muni pais, de cujas sencencas recorrer-se-ia 20 Colegio Supreino de Justisa, for- mado por cinco membros vitalicis, extinguindo-se as ouvidorias, cuja juris dco tecornaria aos julzes munvieipais. As leis em vigor continuariam a sto, a menos que derrogadas ou substituidas por um “cédigo nacional e apropei do as nossas circunstancias ¢ precis6es", Preservava-se 0 antigo sistema mu- nicipal. O catolicismo continuacia a sera religito do Estado, colerando-se as cdemais crengas. Previam-se a iberdade de imprensa e a responsabilidade co- nnexa, Os reindis € os estrangeiros naturalizados de denominagao crista eriam acesso aos empregos piiblicos.** Enquanto elaborava-se 0 projeto de lei orginica, a conjuntura mudava radicalmente. A fim de aprové-lo, as Camaras deveriam “convocar o povo de todas as classes”, em ato a ser “o mais solene possivel", pois a0 “povo quase todo [..] Ihe interessa conhecer o como hio-de ser governados”, Contudo, 48 DH, civ pp. 16.23. « A ourts tsoerenorsc cessas assembléias municipais 6 chegaram a ser realizadas no Recife, em Olin- da e-em Igaragu, sendo logo suspensas pelo governo a0 constatar que “os ad~ veisirios da causa liberal valeram se do mesmo projero para mais desvaira- rem a opinigo publica”, mediante interpretagao capciosa dos artigos relativos a liberdade de culto e 2 igualdade de direitos, pois “valendo-se da tendéncia dos devotos, clamavam os perversos com estudada hipoctisia que o intento dos patriotas era destruir a religiéo e dar liberdade aos escravos”. Na verdade, 6 projeto de lei orginica nio falava em igualdade de direitos: e segundo ou- ‘tro contemporineo, 0 descontentamento das Cématas disse respeito exclu- sivamente & liberdade religiosa, embora se deva reconhecer a indignagio das oligarquias municipais com a consulta democritica a0 “povo de todas as clas- ses", que contrariava a tradigio municipalista lusitana no Brasil." Muniz Tavares criticou a consulta as Camaras por isolar “os inceresses reciprocos” e nao oferecer “aquela unidade que constitu a maxima forca da lei", As razdes do recurso 20 antigo sistema camerétio, deu-as Jouo Ribeiro. ‘Como a junta paraibana 0 houvesse abolido, ele opinava tratar-se de “um absurdo em roda a extensio da palavra”, pois um governo nao poderia cons- tituic-se sem ou a manifescago da “maioria do povo por si prépria, ou pelo drgio das Camaras, que representam 0 povo nas diversas seges ou munici- palidades”. “Se vés nio tivésseis feito isto por mera ignorancia, devericis ver sido apunhalados pelo povo da Parafba no dia em que promulgastes tio hor- rivel lei, que os tritinviros de Roma nfo se atreveriam a promulgat.” Ainda segundo Joi Ribeiro, por deficiente que fosse, 0 antigo sistema municipal constitufa a tinica forma de representagio, nao se podendo destrul-lo antes de se criarem outtas “quando se fizer 0 Congresso geral ese fizer a constituigi0 [federal], em que ou ficazdo as Camaras ou coisa idéntica, ainda que tenha ‘outro nome”.2° Dai estabelecer 0 projeto de lei orginica que ‘a administca- ‘do das cimatas ou municipalidades continua no pé antigo”. Na realidade, © mandonismo municipal sai fortalecido com a extincio dos ouvidores ¢ cor- © Mania Tavares, Misia pp. 152-3: DH, ci p. 95: Dias Marcins, Or martes p 54.4, consuls Chars sobre projet dei onginia realizou-se nos primeios dia de abril, enquan- toa dedlarago sobre ov ecravos hava sido feta dias depos do 6 de marco, Tolenare, Notes do- ivicale, ip. 568. 50 Munia Tavares, Hiri, p. 152; Dias Martins, Ot més. 318. so Desasere cegedores, cujas fungbes eram cometidas, como vimos, 20s juzes ordinitios das CAmaras, © nativismo ajustava suas contas mais que seculares com os “pecas”, vale dizer, com a justiga gia, mas a tentativa de por vinho novo em vvelhos odres estava fadada a0 fracasso, © antigo sistema municipal nads «t snha de representative, sendo, por isso mesmo, irremediavelmente conserva dor, como compreenderd muito bem frei Caneca em 1824 a0 opor-se & part: cipacto das CAmaras no processo constituinte deflagrado pela Corte do Rio apés a dissolugio de 1823. Tollenare, cuja opinizo Oliveira Lima endossou, afirmava que as hesi- rages consticucionais da junta deviam-se a que no sabia como incorporar tcc homens de cor livres ao mecanismo representative, As Constituigoes fran- esas de 1791, 1793 ¢ 1795 haviam adorado, com variantes, um sistema elel- tora relativamence amplo, que mesmo a Consticuigio termidoriana, com toda sua obsessio pela manutengio da ordem burguesa, nao ousara abolir. Segun- do Tollenate, o governo de Dezessete inclinava-se para um sistema eleicoral ‘com base na propriedade Fundidria, ao mesmo tempo em que descreve 0 pa- dre Jodo Ribeiro, de cuja amizade privou, “arrastado pela leitura das obras de Condorcet”, pista importante acerca do principal idedlogo de Dezessete, Na Revolugio Francesa, Condoscet encarnara a preferéncia, oposta & dos herdei- ros de Rousseau, por um discurso que mergullava suas ralues na isioeracia ¢ thos iluministas escoceses, batendo-se por uma monarquia reformada através dda aplicacio dos métodos estarsticos & politica e& economia, de modo a ga- rantir um sistema racional de representagio dos interesses sociais. Sua chave devia residi, segundo Turgot, no na igualdade politica, sob a forma do ci- dadao ativo em oposicéo a0 cidadao passivo, titular de direitos civis, ndo po- Iiticos, mas no modelo de cidado-propriecirio ural, comprometide com que 1 pais fosse bem governada, por serem, sts palavtas mesmnas de Condorcet, “os tinicos cidadtos verdadciros” >! ‘© corolitio politico da douerina fisiocrética pretendia que, constituin- do a agricultura a atividade producora de riqueza por exceléncia, sobre cla ¢ que se devia organizar 0 Estado, As outras classes erain estranhas & nado, 0 [i Felenate, Notes dominates pp. 568 ¢ 375; Pete Rosanalon, Le wed yen ar, 1992 pp. 98-100; Fangs Fart © Mona Oso, Disonnereriigu dle Réolaton ‘Frage, Asn, Pai, 192, veete "Condor 3 Fo comércio pela sua voeagao cosmopolica a buscar 0 lucro onde © encontrasse, € 0 artesanato pela precaricdade do salitio e pela falta de domictlio fixo que também o desenraizava, s6 ligagdo permanente & terra oterecendo garantia de incegracio social. Destarte, “o interesse das diferentes classes na felicidad sgeral da sociedade esté na razfo inversa da facilidade que tém de mudar de patria”, Ao advogar o imposto territorial, a fisiocracia buscava precisamente substituir a concepgio tradicional de uma sociedade de ordens por uma clas- se de proprietérios rurais que se distinguiriam do povo, mas sobretudo do lero, da nobreza e da alta burocracia, As vésperas de 1789, no cra ainda a igualdade politica, mas o cidadto-proprietdcio que “constituia o horizonte natural da reflexio sobre os direitos politicos para aqueles que se cornatio os arores da Revolugio”, Se a Constituigio de 1791 nao adotow tal sistema, € aque ele se revelara minoricério.*? ‘A fisiocracia do padre Joo Ribeiro manifestou-se na politica de perdoar ‘0 pagamento dos juros das dividas & extinta Companhia Geral de Petnam- buco e Paratba, criada por Pombal e abolida em 1780, no adiamento da re- forma da instituigio servil e no estimulo & lavoura de subsisténcia. A junca sentiu-se obrigada a desmentir o rumor de que os escravos iam ser libertados, ‘embora se cratasse de suspeita que a honrava. “O governo nio engana nin- guéi”, desejava a emancipacio mas a queria “lenta, regular ¢ legal”, mesmo se “o corasio se Ihe sangra 20 ver tio longinqua uma época tio interessante, mas nao a quer prepéstera”. Num pais escravocraca, um sistema eleitoral ba seado na propriedade rural era incompativel, ao menos inicialmente, com ve- leidades abolicionistas. E. uma das primeicas proclamagées revolucionérias concitava 0s pequenos agricultores que haviam acortido nas tropas de mili- cia em defesa da insurreicéo, a regressarem &s suas terras para se empregarem ‘com o maior desvelo nos trabalhos da agricultura, alargando as mos na cultura dos viveres”. E Joo Ribeiro aplaudit a decisto da junta da Parafoa, “a bem da agriculeura”, de proibir a pecudria na faixa litoraea.®$ 5 Rosamallon, Le zoe du cnyen pp 46s, Condorcetvria a admis que o propicltio Ue imével urbane podese sr animilado ao propledro rural 59 Dine Martins, Or mares. 320; Manis Tavares, Misra pp. 1145, 193-4; DH. cl, 10; che p87 By Drsesere Joaquim Nabuco idealizava Dezessete quando afirmou que fora emprei- tada pela “camada superior da sociedade pernambucana, as ancigas familias, ‘0s senhores de engenho, os ricos proprietdsius [que teriam sido] os que mais se apaixonaram pela Independéncia e pela revolucio”. No outro extremo, Fernando de Azevedo acentuou que “a posigao da aristocracia sural, nas lutas que agitaram Pernambuco, foi sempre definida: uma atitude de reagio con- servadora’, tanto assim que “na revolugio de 1817, quase nenhum senhor de engenho {havia} entre os conspiradores”, o que é verdade mas passa por cima do bom miimero deles que aderiram 3 insurreigio. E certo que, na época, jé havia quem sobreestimasse o potencial revolucionétio da agucarocracia. Para recolonizar o Brasil, afiancava Sierra y Mariscal, a Coroa lusitina s6 podia contar com o “partido portugués”, composto sobrerudo pelo comércio, de vez {que os senhores de engenho nio formavam “ordem”, na acepsio de corpo pri- vilegiado, pois “qualquer um] pode ser senhor de engenho e ha muitas qua- lidades de engenho". Como esta classe de proprititios esd sempre no campo, sem 0 que Ficatiam perdidos, sio muito estipidos; como nio conhecem economia ¢ tampouco conhecem a ordem, tem chegado a maior parte deles a tal estado aque para comerem carne de vaca duas veres na semana e terem um cavalo de estrebaria se faz necessivio que morram duzentas pessoas de fome, que ‘os eseravos do engenho, a quem Ihes dio unicamenre osibado livre, para como seu produto sustentarem-ace trabalharem o resto dla semana para seus senhores.°5 Por conseguinte, tais homens pertenciam necessariamente a0 “partido democrata”, “porque é 0 partido das revolugdes, ¢ com ela se véem livres dos seus credores”, Contra este raciocinio, poderia, aids, utlizar-se outro dos at- ‘gumentos do autor. Com efeito, se “a falra de meios” dos senhores de enge- S Joaquim Nabuco, Un etude do Imp tri, 42d, Rio de Janeto, 1975, p- 113; Fernando de Azevedo, Canavins« engenbor na vide politic do Bran, 28 ed., Sto Pal, sid, pp. 119-20. (Carlos Guilherme Mota eambém encars 2 squcarecracia como a base social do movimento: Nor date, 1817, 9.93. 5 ABN, 43-46, p 62 33 \

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