Você está na página 1de 22
TRADUCOES ENTRE MEMORIA E HISTORIA* A problematica dos lugares Pierre Nora** Tradugao: Yara Aun Khoury*** 1. O fim da historia-meméria Accleragdo da historia. Para além da metafora, é preciso ter a nogdo do que a expressdo significa: uma oscilacdo cada vez mais rapida de um passado definiti- vamente morto, a percepgao global de qualquer coisa como desaparecida - uma ruptura de equilibrio. O arrancar do que ainda sobrou de vivido no calor da tradigao, no mutismo do costume, na repetigdo do ancestral, sob o impulso de um sentimento historico profundo. A ascensdo 4 consciéncia de si mesmo sob 0 signo do terminado, o fim de alguma coisa desde sempre comegada. Fala-se tanto de meméria porque ela ndo existe mais. A curiosidade pelos lugares onde a memoria se cristaliza e se refugia esté ligada a este momento particular da nossa historia. Momento de articulagdo onde a consciéncia da ruptura com o passado se confunde com o sentimento de uma memoria esfacelada, mas onde o esfacelamento desperta ainda memédria suficiente para que se possa colocar o problema de sua encarnagdo. O sentimento de con- tinuidade torna-se residual aos locais. Ha locais de meméria porque nao ha mais meios de meméria. Pensemos nessa mutilagdo sem retorno que representou o fim dos camponeses, esta coletividade-meméria por exceléncia cuja voga como objeto da histéria coincidiu com o apogeu do crescimento industrial. Esse desmoronamento central de nossa * In: Les liewx de mémoire. I La République, Paris, Gallimard, 1984, pp. XVIII - XLII. Tradugo autorizada pelo Editor. © Editions Gallimard 1984, ** Diretor de estudos na “Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales” ***Departamento de Historia, PUC-SP. Proy, Historia, Séo Paulo, (10), dez. 1993 memoria sO é, no entanto, um exemplo. E 0 mundo inteiro que entrou na danga, pelo fenémeno bem conhecido da mundializagéo, da democratizagdo, da massifi- cacao, da mediatizagdo. Na periferia, a independéncia das novas nagdes conduziu para a historicidade as sociedades ja despertadas de seu sono etnologico pela vio- lentag4o colonial. E pelo mesmo movimento de descolonizagdo interior, todas as etnias, grupos, familias, com forte bagagem de memoria e fraca bagagem historica. Fim das sociedades-meméria, como todas aquelas que asseguravam a conservacao e a transmissao dos valores, igreja ou escola, familia ou Estado. Fim das ideolo- gias-memérias, como todas aquelas que asseguravam a passagem regular do passado para 0 futuro, ou indicavam o que se deveria reter do passado para preparar o futuro; quer se trate da reagdo, do progresso ou mesmo da revolugdo. Ainda mais: é 0 modo mesmo da percepgdéo histérica que, com a ajuda da midia, dilatou-se prodigiosamente, substituindo uma meméria voltada para a heranca de sua propria intimidade pela pelicula efémera da atualidade. Aceleragdo: 0 que o fenémeno acaba de nos revelar bruscamente, é toda a distancia entre a meméria verdadeira, social, intocada, aquela cujas sociedades ditas Pprimitivas, ou arcaicas, representaram 0 modelo e guardaram consigo o segredo - a hist6ria que é 0 que nossas sociedades condenadas ao esquecimento fazem do passado, porque levadas pela mudanga. Entre uma memoria integrada, ditatorial ¢ inconsciente de si mesma, organizadora e toda-poderosa, espontaneamente atuali- zadora, uma memoria sem passado que reconduz eternamente a heranga, conduzindo © antigamente dos ancestrais ao tempo indiferenciado dos herdis, das origens e do mito - ¢ a nossa, que sé € hist6ria, vestigio e tilha. Distancia que s6 se aprofundou a medida em que os homens foram reconhecendo como seu um poder ¢ mesmo um dever de mudanga, sobretudo a partir dos tempos modernos. Distancia que chega hoje num ponto convulsivo. Esse arrancar da memoria sob o impulso conquistador e erradicador da historia tem como que um efeito de revelacdo: a ruptura de um elo de identidade muito antigo, no fim daquilo que viviamos como uma evidéncia: a adequacao da historia e da memoria. O fato que sO exista uma palavra em francés para designar a historia vivida e a operacio intelectual que a torna inteligivel (0 que os alemaes distinguem por Geschichte ¢ Historie), enfermidade de linguagem muitas vezes salientada, for- nece aqui sua profunda verdade: 0 movimento que nos transporta é da mesma natureza que aquele que o representa para nds. Se habitassemos ainda nossa memoria, nao teriamos necessidade de Ihe consagrar lugares. Nao haveria lugares porque nao haveria meméria transportada pela histéria. Cada gesto, até 0 mais cotidiano, seria vivido como uma repetigdo religiosa daquilo que sempre se fez. numa identificagao 8 Proj. Histéna, Sdo Maule, (10), des. 1993 carnal do ato e do sentido. Desde que haja rastro, distancia, mediagéo, nao estamos mais dentro da verdadeira memoria, mas dentro da historia. Pensemos nos judeus, confinados na fidelidade cotidiana ao ritual da tradicdo. Sua constituigao em “povo da memoria” excluia uma preocupacdo com a historia, até que sua abertura para 0 mundo modemo Ihes impos a necessidade de historiadores. Memoria, histéria: longe de serem sindnimos, tomamos consciéncia que tudo opée uma a outra. A memoria € a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela esté em permanente evolugao, aberta a dialética da lembranga e do esquecimento, inconsciente de suas deformagdes succssivas, vulneravel a todos os usos e manipulagdes, suceptivel de longas laténcias e de repentinas revitalizagoes. A historia é a reconstrucdo sempre problematica e incompleta do que nao existe mais. A memoria ¢ um fendmeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a histéria, uma representagao do passado. Porque ¢ afetiva e magica, a meméria nao se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembrangas vagas, telescopicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbélicas, sensivel a todas as transferéncias, cenas, censura ou projegdes. A historia, porque operagao intelectual ¢ laicizante, demanda andlise e discurso critico. A memoria instala a lembranga no sagrado, a historia a liberta, e a torna sempre prosaica. A meméria emerge de um grupo que ela une, 0 que quer dizer, como Halbwachs o fez, que hd tantas memérias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, multipla ¢ desacelerada, coletiva, plural ¢ individualizada. A historia, ao contrario, pertence a todos ¢ a ninguém, 0 que Ihe da uma vocagio para o universal. A meméria se enraiza no concreto, no espaco, no gesto, na imagem, no objeto. A historia so se liga 4s continuidades tem- porais, as evolugdes e as relagdes das coisas. A meméria é um absoluto € a historia s6 conhece o relativo. No coragdo da historia trabalha um criticismo destrutor de meméria espon- tanea. A memoria é sempre suspeita para a historia, cuja verdadeira missdo é des- tmii-la e a repelir. A histéria é desligitimagao do passado vivido. No horizonte das sociedades de historia, nos limites de um mundo completamente historicizado, haveria dessacralizac4o ultima e definitiva. O movimento da historia, a ambigao hist6rica nao sdo a exaltag4o do que verdadeiramente aconteceu, mas sua anulagao. Sem divida um criticismo generalizado conservaria museus, medalhas e monumen- tos, isto ¢, 0 arsenal necessdrio ao seu proprio trabalho, mas esvaziando-os daquilo que, a nosso ver, os faz lugares de memoria. Uma sociedade que vivesse integral- mente sob o signo da historia nao conheceria, afinal, mais do que uma sociedade tradicional, lugares onde ancorar sua memoria. Proj. Historia, So Paulo, (10), dez. 1993 9 Um dos sinais mais tangiveis desse arrancar da historia da meméria ¢, talvez, © inicio de uma histéria da historia, o despertar recente, na Franga, de uma cons- ciéncia historiografica. A histéria e, mais precisamente, aquela do desenvolvimento nacional, constituiu a mais forte de nossas tradiges coletivas, nosso meio de meméria, por exceléncia. Dos cronistas da Idade Média aos historiadores contem- poraneos da histéria “‘total’’, toda a tradigdo histérica desenvolveu-se como exercicio regulado da memoria ¢ seu aprofundamento espontdneo, a reconstituigdo de um pas- sado sem lacuna e sem falha, Nenhum dos grandes historiadores, desde Froissart, tinha, sem divida, o sentimento de s6 representar uma memoria particular. Comynes ndo tinha consciéncia de recolher sé uma memoria dindstica, La Popeliniére uma memoria francesa, Bossuet uma meméria mondrquica e crist4, Voltaire a memoria dos progressos do género humano, Michelet unicamente aquela do “‘povo”’ ¢ Lavisse 6 a meméria da nac4o. Muito pelo contrario, eles estavam imbuidos do sentimento que seu papel consistia estabelecer uma meméria mais positiva do que as preceden- tes, mais globalizante e mais explicativa. O arsenal cientifico do qual a historia foi dotada no século passado sé serviu para reforcar poderosamente 0 estabelecimento critico de uma memoria verdadeira. Todos os grandes remanejamentos hist6ricos consistiram em alargar 0 campo da memoria coletiva. Num pais como a Franca, a histéria da historia ndo pode ser uma operacao inocente. Ela traduz a subversdo interior de uma histéria-memoria por uma historia- critica, e todos os historiadores pretenderam denunciar as mitologias mentirosas de seus predecessores. Mas alguma coisa fundamental se inicia quando a historia comeca a fazer sua propria histéria. O nascimento de uma preocupacao histo- riografica, é a historia que se empenha em emboscar em si mesma o que ndo é ela propria, descobrindo-se como vitima da memoria e fazendo um esforco para se livrar dela. Num pais que ndo daria 4 histéria um papel diretor formador da consciéncia nacional, a historia da historia ndo se encarregaria desse contetdo polémico. Nos Estados Unidos, por exemplo, pais de meméria plural e de contribuigées miltiplas, a disciplina foi sempre praticada. As diferentes interpretagdes da Independéncia ou da guerra civil, apesar de suas implicagdes, por mais pesadas que sejam as tramas, ndo questionam a Tradi¢do americana, seja porque, num certo sentido, ela ndo exista, ou nfo passe principalmente pela histéria. Ao contririo, na Franga a historiografia € iconoclasta e irreverente. Ela consiste em tomar para si os objetos melhor consti- tuidos da tradicao - uma batalha chave, como Bouvines, um manual canénico, como 0 pequeno Lavisse - para demonstrar 0 mecanismo ¢ reconstituir ao maximo as condigées de sua claboracdo. E introduzir a divida no coracdo, a lamina entre a drvore da memoria e a casca da historia. Fazer a historiografia da Revolucdo 10 Proj. Histona, So Paulo, (10), dez. 1993 Francesa, reconstituir seus mitos € suas interpretagées, significa que nés ndo nos identificamos mais completamente com sua heranga. Interrogar uma tradicdo, por mais venerdvel que ela seja, é ndo mais se reconhecer como seu tinico portador. Ora, nao sao unicamente os objetos mais sagrados de nossa tradi¢ao nacional que se propée uma historia da histéria; interrogando-se sobre scus meios materiais ¢ conceituais, sobre os procedimentos de sua propria produgdo e as etapas sociais de sua difusdo, sobre sua propria constituigdo em tradigdo, toda a hist6ria entrou em sua idade historiogrifica, consumindo sua desidentificagao com a memoria. Uma memoria que se tomou, ela mesma, objeto de uma historia possivel Houve um tempo em que, através da histéria ¢ cm toro da Nagdo, uma tradigdo de memoria parecia ter achado sua cristalizagao na sintese da II Republica Desde Lettres sur Vhistoire de France, de Augustin Thierry (1827) até a Histoire sincere de la nation francaise, de Charles Seignobos, adotando uma larga cronolo- gia. Historia, meméria, Nagdo mantiveram, entdo, mais do que uma circulac¢ao natu- ral: uma circularidade complementar, uma simbiose em todos os niveis, cientifico ¢ pedagégico, tedrico ¢ pratico. A definigao nacional do presente chamava impe- riosamente sua justificativa pela iluminagao do passado. Presente fragilizado pelo traumatismo revolucionério que impunha uma reavaliagdo global do passado monér- quico; fragilizado também pela derrota de 1870 que s6 tornava mais urgente, com relacdo a ciéncia alema como ao instrutor alemao, 0 verdadeiro vencedor de Sadowa, o desenvolvimento de uma erudicdo documentdria e da transmissdo escolar da meméria. Nada se equipara ao tom de responsabilidade nacional do historiador, meio padre, meio soldado: ele manifesta-se, por exemplo, no editorial do primeiro numero da Revue historique (1876) onde Gabriel Monod podia legitimamente ver a “‘inves- tigacao cientifica, doravante lenta, coletiva e metédica” trabalhar de uma “‘maneira secreta e segura para a grandeza tanto da patria quanto do género humano”’. Lendo-se um tal texto como cem outros semelhantes, pergunta-se como se pode acreditar na idéia que a hist6ria positivista nao era cumulativa. Na perspectiva finalizada de uma constituig¢do nacional, 0 politico, 0 militar, 0 bibliografico ¢ 0 diplomatico sdo, ao contrario, os pilares da continuidade. A derrota de Azincourt ou o punhal de Ra- vaillac, 0 dia dos Dupes ou uma tal clausula adicional dos tratados de Westphalia sobressaem de uma contabilidade escrupulosa. A erudi¢do a mais aguda soma ou subtrai um detalhe ao capital da nado. Unidade poderosa desse espago de memoria: de nosso bergo greco-romano ao império colonial da HII Repiiblica, no mais cesura do que entre a alta erudicao que anexa ao patriménio novas conquistas eo manual escolar que impée a vulgata. Hist6ria santa porque na¢do santa. E pela nagdo que nossa memoria se manteve no sagrado. Proj. Historia, Séo Paulo, (10), de 1993 ” _ _ Compreender porque a conjungdo se desfez sob um novo impulso dessacrali- zante resultaria em mostrar como, na crise dos anos trinta, substituiu-se progressi- vamente a dupla Estado-Nacdo pela dupla Estado-Sociedade. E como, ao mesmo tempo, ¢ por razées idénticas, a historia, que se tinha tornado tadigao de memoria, se fez, de maneira espetacular na Franga, saber da sociedade sobre si mesma. Nesse sentido, ela péde multiplicar, sem diivida, os lances de projetores sobre memérias particulares e se transformar em laboratorio das mentalidades do passado, mas li- berando-se da identificacgdo nacional, ela deixou de ser habitada por um sujeito por- tador e, no mesmo lance, ela perdeu sua vocagdo pedagogica na transmissdo de valores: a crise da escola est4 ai para demonstra-lo. A nagdo nao é mais o quadro unitario que encerrava a consciéncia da coletividade. Sua definigéo nao esta mais em questao, e a paz, a prosperidade ¢ sua redugdo de poder fizeram o resto; ela so est4 ameagada pela auséncia de ameagas. Com a emergéncia da sociedade no lugar espago da Nagao, a legitimagdo pelo passado, portanto pela historia, cedeu lugar a legitimagao pelo futuro. O passado, sé seria possivel conhecé-lo e venera-lo, e a Nagao, servi-la; o futuro, é preciso prepara-lo. Os trés termos recuperaram sua autonomia. A nagdo nfo é mais um combate, mas um dado; a histéria tornou-se uma ciéncia social; ¢ a meméria um fendmeno puramente privado. A nagaéo-memoria tera sido a ultima encarnacdo da histéria-memédria. O estudo dos lugares encontra-se , assim, na encruzilhada de dois movimentos que Ihe dao, hoje na Franga, seu lugar e seu sentido: de um lado um movimento puramente historiogrfico, 0 momento de um retomo reflexivo da historia sobre si mesma; de outro lado, um movimento propriamente historico, 0 fim de uma tradigaéo de meméria. O tempo dos lugares, é esse momento preciso onde desaparece um imenso capital que nés viviamos na intimidade de uma meméria, para sé viver sob © olhar de uma histéria reconstituida. Aprofundamento decisivo do trabalho da hist6ria, por um lado, emergéncia de uma heranga consolidada, por outro. Dindmica interna do principio critico, esgotamento de nosso quadro histérico politico e mental, suficientemente poderoso ainda para nao nos deixar indiferentes, bem pouco con- sistente para sé se impor por um retorno sobre seus mais evidentes simbolos. Os dois movimentos se combinam para nos remeter de uma sé vez, e com o mesmo élan, aos instrumentos de base do trabalho histérico ¢ aos objetos mais simbélicos de nossa meméria: os Arquivos da mesma forma que as Trés Cores, as bibliotecas, os diciondrios € os museus com o mesmo atributo que as comemoracoes, as festas, o Panthéon ou 0 Arco do Triunfo; o dicionario Larousse e 0 muro dos Federados. Os lugares de meméria sido, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciéncia comemorativa numa historia que a chama, porque ela a 12 Proj. Histona. Séo Paulo, (10). dez ignora. E.a desritualizagao de nosso mundo que faz aparecer a nocao. O que secreta. veste, estabelece, constréi, decreta, mantém pelo artificio e pela vontade uma coletividade fundamentalmente envolvida em sua transformagdo ¢ sua renovagiio. Valorizando, por natureza, mais 0 novo do que o antigo, mais 0 jovem do que © yelho, mais o futuro do que 0 passado. Museus, arquivos, cemitérios e colegées, festas, aniversarios, tratados, processos verbais, monumentos. santudrios, asso- ciagdes. so os marcos testemunhas de uma outra era, das ilusdes de cternidade. Dai © aspecto nostalgico desses empreendimentos de piedade, patéticos e glaciais. Sao os rituais de uma sociedade sem ritual; sacralizagées passageiras numa sociedade que dessacraliza; fidelidades particulares de uma sociedade que aplaina os particu- larismos; diferenciagdes efetivas numa socicdade que nivela por principio; sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo numa sociedade que s6 tende a reco- nhecer individuos iguais ¢ idénticos. Os lugares de meméria nascem e vivem do sentimento que ndo ha meméria esponténea, que € preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversarios, organizar celebracdes, pronunciar clogios fiinebres, notariar alas, porque essas operagées nado sdo naturais. E por isso a defesa, pelas minorias, de uma meméria refugiada sobre focos privilegiados ¢ enciumadamente guardados nada mais faz do que levar a in- candescéncia a verdade de todos-os lugares de meméria. Sem vigilancia comemo- rativa, a historia depressa os varreria. Sao bastides sobre os quais se escora. Mas se 0 que cles defendem nio estivesse ameagado, nado se teria, tampouco, a necessidade de construi-los. Se vivéssemos verdadeiramente as lembrangas que cles envolvem, eles seriam inuteis. E se, em compensacao,-a historia ndo se apoderasse deles para deformé-los, transformi-los, sova-los ¢ petrificd-los eles nao se tornariam lugares de meméria. E este vai-c-vem que os constitui: momentos de historia arrancados do movimento da historia, mas que Ihe sao devolvidos. Nao mais inteiramente a vida, nem mais inteiramente a morte, como as conchas na praia quando o mar se retira da memoria viva A Marselhesa ou 0s monumentos aos mortos vivem, assim, essa vida ambigua, sovada do sentimento mixto de pertencimento ¢ de desprendimento. Em 1790, 0 14 de julho ja era e ainda nao um lugar de meméria. Em 1880, sua instituigao em festa nacional em lugar de memoria oficial, mas 0 espirito da Repiblica fazia dele um recurso verdadeiro, E hoje? A propria perda de nossa meméria nacional viva nos impée sobre ela um olhar que nao é mais nem ingénuo, nem indiferente. Memoria que nos pressiona e que jd nao é mais a nossa, entre a dessacralizagdo rapida ¢ a sacralizagao provisoriamente reconduzida. Apego visceral que nos mantém ainda devedores daquilo que nos engendrou. mas distanciamento historico que nos obriga Proj. Historia, So Paula, 10), dez. 1093 3 a considerar com um olhar frio a heranga ¢ a inventarid-la. Lugares salvos de uma meméria na qual nao mais habitamos, semi-oficiais ¢ institucionais, semi-afetivos c sentimentais, lugares de unanimidade sem unanimismo que ndo exprimem mais nem convic¢do militante nem participagado apaixonada, mas onde palpita ainda algo de uma vida simb6lica. Oscilagéo do memorial ao histérico, de um mundo onde se tinham ancestrais a um mundo da relagdo contingente com aquilo que nos engendrou. passagem de uma histéria totémica para uma historia critica: € 0 momento dos Ju- gares de meméria. Nao se celebra mais a nado, mas se estudam suas celebragées. I. A memé6ria tomada como historia Tudo 0 que € chamado hoje de meméria ndo é, portanto, meméria, mas ja historia. Tudo 0 que é chamado de clarao de memoria é a finalizacdo de seu desa- parecimento no fogo da historia. A necessidade de memoria é uma necessidade da historia. Sem divida é impossivel ndo se precisar dessa palavra. Accitemos isso, mas com a consciéncia clara da diferenca entre meméria verdadeira, hoje abrigada no gesto e no habito, nos oficios onde se transmitem os saberes do siléncio, nos saberes do corpo, as memérias de impregnagao ¢ os sabercs reflexos ¢ a meméria transfor mada por sua passagem em historia, que ¢ quase o contrario: voluntaria e deliberada, vivida como um dever ¢ nao mais espontanea; psicoldgica, individual ¢ subjetiva ¢ nao mais social, coletiva. globalizante. Da primeira, imediata, 4 segunda, indireta. © que aconteceu? Pode-se apreender 0 que aconteceu, no ponto de chegada da meta- morfose contemporanea. E, antes de tudo, uma memoria, diferentemente da outra, arquivistica. Ela sc apoia inteiramente sobre o que hd de mais preciso no trago . mais material no vestigio, mais concreto no registro . mais visivel na imagem. O movimento que comegou com a escrila termina na alta fidelidade e na fita magnética. Menos a memoria é vivida do interior, mais cla tem necessidade de suportes exteriores e de referéncias tangiveis de uma existéncia que sd vive através delas. Dai a obsessio pelo arquivo que marca 0 contemporaneo ¢ que afeta, ao mesmo tempo, a preser- vagdo integral de todo o presente e a preservagao integral de todo o passado. O sentimento de um desaparecimento rapido ¢ definitive combina-se 4 preocupagao com 0 exato significado do presente € com a incerteza do futuro para dar ao mais modesto dos vestigios. ao mais humilde testemunho a dignidade virtual do memoravel. Ja nao lamentamos o bastante, em nossos predecessores. a destruigao i Prey, Histone, Sie Paulo, (20) dec 1993 ‘ou © desaparecimento daquilo que nos permitiria saber, para nao cair na mesma recriminagao por parte de nossos sucessores? A lembranga é passado completo em sua reconstituigdo a mais minuciosa. E uma meméria registradora, que delega ao arquivo 0 cuidado de se lembrar por ela e desacelera os sinais onde ela se deposita, como a serpente sua pele morta. Colecionadores, eruditos ¢ beneditinos con- sagravam-se antigamente 4 acumulagdo documentaria, como marginais de uma so- ciedade que avangava sem eles e de uma histéria que era escrita sem cles. Pois a histéria-memoria havia colocado esse tesouro no centro de seu trabalho erudito para difundir 0 resultado pelas mil etapas sociais de sua penetracdo. Hoje onde os his- toriadores se desprenderam do culto documental, toda a sociedade vive na religido conservadora € no produtivismo arquivistico. O que nés chamamos de memoria é, de fato, a constitui¢do gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que nos é impossivel lembrar, repertério insondavel daquilo que poderiamos ter necessidade de nos lembrar. A “memoria de papel” da qual falava Leibniz tornou-se uma insti- tuigdo auténoma de museus, bibliotecas depésitos, centros de documentagao, bancos de dados. Somente para os arquivos piblicos, os especialistas avaliam que a revolugdo quantitativa, em algumas décadas, traduziu-se numa multiplicacao por mil. Nenhuma época foi t4o voluntariamente produtora de arquivos como a nossa, nao somente pelo volume que a sociedade modema espontaneamente produz, nfo somente pelos meios técnicos de reprodugdo ¢ de conservagdo de que dispde, mas pela supersticao ¢ pelo respeito ao vestigio. A medida em que desaparece a meméria tradicional, nés nos sentimos obrigados a acumular religiosamente vestigios, teste- munhos, documentos, imagens, discursos, sinais visiveis do que foi, como se esse dossié cada vez mais prolifero devesse se tornar prova em no se sabe que tribunal da historia. O sagrado investiu-se no vestigio que ¢ sua negagdo. Impossivel de prejulgar aquilo de que se devera lembrar. Dai a inibicdo cm destruir, a constituigao de tudo em arquivos, a dilatagdo indiferenciada do campo do memoravel, 0 inchago hipertréfico da fungéo da memoria, ligada ao proprio sentimento de sua perda eo reforgo correlato de todas as instituigées de memoria. Uma estranha vira-volta operou-se entre os profissionais, a quem se reprovava antigamente a mania conser- vadora, e os produtores naturais de arquivos. Sdo hoje as empresas privadas e as administragdes publicas que engajam arquivistas com a recomendacdo de guardar tudo, quando os profissionais aprenderam que o essencial do oficio € a arte da destruic¢éo controlada. Assim, a materializagio da memoria, em poucos anos, dilatou-se prodigiosamente, desacelerou-se, descentralizou-se, democratizou-se. Nos tempos classicos, os trés grandes produtores de arquivos reduziam-se as grandes familias, a Proj. Historia, So Paulo, (10), det. 1993 1s Igreja e ao Estado. Quem nao se cré autorizado hoje a consignar suas lembrangas, a escrever suas Memérias, ndo somente os pequenos atores da histéria, como também os testemunhos desses atores, sua esposa e seu médico? Menos o testemunho é extraordinario, mais ele parece digno de ilustrar uma mentalidade média. A liqui- dacao da memoria foi soldada por uma vontade geral de registro. Numa geragdo, 0 museu imagindrio do arquivo enriqueceu-se prodigiosamente. O ano do patriménio, em 1980, forneceu um exemplo evidente, levando a nacao até as fronteiras do incerto. Dez anos mais cedo, o Larousse de 1970 limitava ainda 0 patriménio ao “bem que vem do pai ou da mae”. O “Petit Robert” de 1979 faz “‘da propriedade transmitida pelos ancestrais, 0 patriménio cultural de um pais”. Passou-se, muito bruscamente, de uma concepgdo muito restritiva dos monumentos historicos, com a convengdo sobre os sitios de 1972, a uma concep¢do que, teoricamente, ndo poderia deixar nada escapar. Nao somente tudo guardar, tudo conservar dos sinais indicativos de memoria, mesmo sem se saber exatamente de que memoria s4o indicadores. Mas produzir arquivo € o imperativo da época. Tem-se o exemplo perturbador com os arquivos da Seguranga Social - soma documental sem equivalente, representando, hoje, trezen- tos quilémetros lineares, massa de meméria bruta cujo inventario pelo computador pemnitiria, idealmente, ler tudo sobre 0 normal e sobre 0 patolégico da sociedade, desde os regimes alimentares até os modos de vida, por regides ¢ por profissdes, mas, a0 mesmo tempo, massa cuja conservagdo, tanto quanto a exploracdo conce- bivel demandariam escolhas drasticas e, portanto, impraticaveis. Arquive-se, arquive- se, sempre sobrard alguma coisa! Nao é outro exemplo gritante, o resultado a que chega, de fato, a muito legitima preocupacdo das enquetes orais recentes? Ha atu- almente, somente na Franca, mais de trezentas equipes ocupadas com 0 reco- lhimento “‘destas vozes que vern do passado” (Philippe Joutard). Muito bem. Mas quando se pensa, por um instante, que ai se trata de arquivos de um género muito especial, cujo estabelecimento exige trinta e seis horas por uma hora de gravagdo e cuja utilizagdo s6 pode ser pontual, pois que elas tiram seu sentido da audigdo in- tegral, é impossivel ndo se indagar sobre as possibilidades de sua exploracdo. Que vontade de memoria elas testemunham, a dos entrevistados ou a dos entrevistadores? O arquivo muda de sentido e de “status” simplesmente por seu peso. Ele ndo é mais 0 saldo mais ou menos intencional de uma memoria vivida, mas a secregdo voluntaria ¢ organizada de uma meméria perdida. Ele dubla 0 vivido, que se desen- volve, muitas vezes, em fung&o de seu proprio registro - as atualidades so feitas de outra coisa? -, de uma memoria secundaria, de uma memoria - prétese. A pro- 16 Proj, Historia, Sdo Paulo, (10), des. 1993 indefinida do arquivo é 0 efcito agugado de uma nova consciéncia, a mais clara expresso do terrorismo da memoria historicizada. E que esta memoria nos vem do exterior ¢ nés a interiorizamos como uma obrigagdo individual, pois que ela nfo é mais uma pritica social. A passagem da memoria para a histéria obrigou cada grupo a redefinir sua identidade pela revitalizagdo de sua propria historia. O dever de memoria faz de cada um o historiador de si mesmo. O imperativo da historia ultrapassou muito, assim, 0 circulo dos historiadores profissionais. Nao s4o somente os antigos margi- nalizados da historia oficial que so obsecados pela necessidade de recuperar seu passado enterrado. Todos os corpos constituidos, intelectuais ou nao, sdbios ou nao, apesar das etnias e das minorias sociais, sentem a necessidade de ir em busca de sua propria constituigdo, de encontrar suas origens. Nao ha mais nenhuma familia na qual pelo menos um membro néo se tenha recentemente langado a reconstituigao mais completa possivel das existéncias furtivas de onde a sua emergiu. O crescimento das pesquisas genealdgicas € um fendmeno recente e macico: 0 relatorio anual dos Arquivos nacionais 0 cifra em 43% em 1982 (contra 38% da freqiiéncia univer- sitaria). Fato surpreendente: ndo devemos a historiadores profissionais as historias mais significativas da biologia, da fisica, da medicina, ou da misica, mas a bidlogos, fisicos, médicos e musicos. S40 os préprios educadores que tomaram em maos a historia da educacdo, a comegar pela educagao fisica, até 0 ensino da filosofia. Com 0 abalo dos saberes constituidos, cada disciplina se colocou 0 dever de verificar scus fundamentos pelo caminho retrospectivo de sua propria constituigao. A socio- logia parte em busca de seus pais fundadores, a etnologia, desde os cronistas do século XVI até os administradores coloniais se pde a explorar seu proprio passado. Até mesmo a critica literéria dedica-se a reconstituir a génese de suas categorias ¢ de sua tradigdo. A histéria toda positivista, mesmo a “chartista” no momento em que os historiadores a abandonaram, encontra nessa urgéncia ¢ nessa necessidade uma difusdo ¢ uma penetracdo em profundidade que ela ainda nao havia conhecido. fim da hist6ria-meméria multiplicou as memérias particulares que reclamam sua propria historia. Esta dada a ordem de se lembrar, mas cabe a mim me lembrar e sou eu que me lembro, O prego da metamorfose historica da memoria foi a conversdo definitiva a psicologia individual. Os dois fenémenos estdo tao estreitamente ligados que nao se pode impedir de salientar até sua exata coincidéncia cronolégica. Nao € no fim do século passado, quando se sentem os abalos decisivos dos equilibrios tradicionais, particularmente 0 desabamento do mundo rural, que a memoria faz sua aparigdo no centro da reflexdo filosdfica, com Bergson, no centro da personalidade psiquica, Proj, Histona, Sdo Paulo, (10), dez. 1993 ” com Freud, no centro da literatura autobiogrifica, com Proust? A violagdo do que foi, para nés, a propria imagem da meméria encamada e a brusca cmergéncia da memoria no coragdo das identidades individuais sio como as duas faces da mesma cisdo, 0 comeco do processo que explode hoje. Nao devemos efetivamente a Freud e a Proust os dois lugares de memoria intimos e ao mesmo tempo universais que sdo a cena primitiva e a célebre pequena madalena? Deslocamento decisivo que sc transfere da meméria: do hist6rico ao psicolégico, do social ao individual, do tran- sissivo ao subjetivo, da repeti¢do 4 rememoracdo. Inaugura-se um novo regime de memoria, questo daqui por diante privada. A psicologizacdo integral da memoria contemporanea levou a uma economia singularmente nova da identidade do cu, dos mecanismos da meméria e da relagdo com o passado. Porque a coer¢ado da meméria pesa definitivamente sobre 0 individuo e somente sobre 0 individuo, como sua revitalizag4o possivel repousa sobre sua relag4o pessoal com seu proprio passado. A atomizac¢do de uma memoria geral em memoria privada da a lei da lembranca um intenso poder de coersdo interior. Ela obriga cada um a se relembrar e a reencontrar 0 pertencimento, principio e segredo da identidade. Esse pertencimento, em troca, 0 engaja inteiramente. Quando a meméria nao esta mais em todo lugar, ela nio estaria em lugar nenhum se uma consciéncia individual, numa decisdo solitaria, nado decidisse dela se encarregar. Menos a memoria é vivida coletivamente, mais cla tem necessidade de homens particulares que fazem de si mesmos homens-meméria, E como uma voz interior que dissesse aos Corsos: “‘Vocé deve ser Corso”, e a0 Bretdes: “E preciso ser Bret#o!”’. Para compreender a forga e o chamado deste designio, talvez fosse necessario voltar-se para a memoria judaica, que conhece hoje, em tantos judeus desjudaizados, uma recente reativacdo. Nesta tradig&o que s6 tem como histéria sua propria memoria, ser judeu, € se lembrar de ser judeu, mas esta lembranca irrefutavel, uma vez interiorizada, o aprisiona cada vez mais. Memoria de que? Em iltima instancia, memoria da memoria. A psicolo- gizagdo da meméria deu a cada um o sentimento que sua salvacdo dependeria, fi- nalmente, do quitar uma divida impossivel. Mem@ria arquivo, meméria dever, é preciso um terceiro traco para completar esse quadro de metamorfoses: meméria-distancia. Porque nossa relagdo com 0 passado, ao menos do modo como ele se revela através das produgdes historicas as mais significativas, é completamente diferente daquela que se espera de uma meméria. Nao mais uma continuidade retrospectiva, mas 0 colocar a descontinuidade a luz do dia. Para a hist6ria-memoria de anti- gamente, a verdadeira percepgdo do passado consistia em considerar que ele ndo era verdadeiramente passado. Um esforgo de lembranga poderia ressucita-lo; 0 pre- 18 Proy. Historia, Sdo Paulo, (10), dez. 1993 sente tomando-se, ele proprio, a sua maneira, um passado reconduzido, atualizado, conjurado enquanto presente por essa solda e por essa ancoragem. Sem diivida, para que haja um sentimento do passado, ¢ necessario que ocorra uma brecha entre 0 presente € o passado, que aparega um “antes’” e um “depois”. Mas trata-se menos de uma separagdo vivida no campo da diferenga radical do que um intervalo vivido no modo da filiagao a ser restabelecida. Os dois grandes temas de inteligibilidade da histéria, ao menos a partir dos Tempos modemos, progresso ¢ decadéncia, ambos exprimiam bem esse culto da continuidade, a certeza de saber a quem e ao que deviamos 0 que somos. Donde a imposigdo da idéia das “origens”, forma ja profana da narrativa mitolégica, mas que contribuia para dar a uma sociedade em via de laicizagdo nacional seu sentido ¢ sua necessidade do sagrado. Mais as origens cram grandes, mais clas nos engrandeciam. Porque veneravamos a nés mesmos através do passado. E esta relagdo que se quebrou. Da mesma forma que o futuro visivel, previsivel, manipulavel, balisado, projecdo do presente, tornou-se invisivel, impre- visivel, incontrolavel, chegamos, simetricamente, da id¢ia de um passado visivel a um passado invisivel; de um passado coeso a um passado que vivemos como rom- pimento; de uma historia que era procurada na continuidade de uma meméria a uma meméria que se projeta na descontinuidade de uma historia. Nao se falaré mais de “origens”, mas de “‘nascimento”’, O passado nos é dado como radicalmente outro, cle é esse mundo do qual estamos destigados para sempre. E colocando em evidéncia toda a extensdo que dele nos separa que nossa meméria confessa sua verdade, - como na operagaio que, de um golpe, a suprime Porque nao se deveria crer que 0 sentimento da descontinuidade se satisfaz com 0 vago ¢ 0 difuso da noite. Paradoxalmente, a distancia exige a reaproximagao que a conjura e Ihe da, ao mesmo tempo, sua vibracdo. Nunca se desejou de maneira {do sensual o peso da terra sobre as botas, a m4o do Diabo do ano mil, ¢ 0 fedor das cidades no século XVIII. Mas a alucinacao artificial do passado sé € pre- cisamente concebivel num regime de descontinuidade. Toda a dindmica de nossa relagdo com o passado reside nesse jogo sutil do impenetravel e¢ do abolido. No sentido inicial da palavra, trata-se de uma representacao radicalmente diferente daquela trazida pela antiga ressurreicdo. Tao integral quanto ela se quis, a ressur- reigdo implicava, com efeito, numa hierarquia da lembranga hdbil em ajeitar as som- bras e a luz para ordenar a perspectiva do passado sob o olhar de um presente finalizado. A perda de um principio explicativo tinico precipitou-nos num universo fragmentado. ao mesmo tempo em que promoveu todo objeto, seja o mais humilde, © mais improvavel. 0 mais inacessivel, 4 dignidade do mistério histérico. Nos sabiamos. antigamente, de quem éramos filhos ¢ hoje somos filhos de ninguem e Fro. Historia, Sao Paulo, (10), dez. 1993 dg todo mundo. Se ninguém sabe do que o passado é feito, uma inquieta incerteza transforma tudo em vestigio, indicio possivel, suspeita de historia com a qual con- taminamos a inocéncia das coisas. Nossa percepgdo do passado é a apropriagao veemente daquilo que sabemos nao mais nos pertencer. Ela exige a acomodagado precisa sobre um objeto perdido. A representacdo exclui o afresco, o fragmento, o quadro de conjunto; ela procede através de iluminagdo pontual, multiplicagado de tomadas seletivas, amostras significativas. Memoria intensamente retiniana e poderosamente televisual. Como ndo fazer a ligagdo, por exemplo, entre 0 famoso “retorno da narrativa” que pudemos notar nas mais recentes maneiras de se escrever a hist6ria e © poder total da imagem e do cinema na cultura contempordnea? Nar- rativa, na verdade, bem diferente da narrativa tradicional, fechada sobre si mesma € com seu recorte sincopado. Como nao ligar o respeito escrupuloso pelo documento de arquivo - colocar a propria pega sob seus olhos -, 0 particular avango da oralidade - citar os atores, fazer ouvir suas vozes -, A autenticidade do direto ao qual fomos habituados? Como nao ver , nesse gosto pelo cotidiano no passado, o tinico meio de nos restituir a lentidio dos dias e 0 sabor das coisas? E nessas biografias de andnimos, 0 meio de nos levar a apreender que as massas no se formam de maneira massificada. Como nao ler nessas bulas do passado que nos fornecem tantos estudos de micro-histéria, a vontade de igualar a historia que reconstruimos a histéria que vivemos? Memoria-espelho, dir-se-ia, se os espelhos nao refletissem a propria imagem, quando ao contrario, é a diferenga que procuramos ai descobrir; e no espetaculo dessa diferenga, o brilhar repentino de uma identidade impossivel de ser encontrada, Nao mais uma génese, mas o deciframento do que somos a luz do que ndo somos mai: Esta alquimia do essencial contribui de mancira bizarra, para fazer 0 exercicio da historia, cujo impulso brutal em direcdo ao futuro deveria tender a nos propor- cionar, o depositario dos segredos do presente. Alids, a operacdo traumatica realiza-se menos pela histéria do que pelo historiador. Estranho destino o seu. Seu papel era simples antigamente e seu lugar inscrito na sociedade: se fazer a palavra do passado e barqueiro do futuro. Nesse sentido, sua pessoa contava menos do que seu servico; cabia-lhe ser apenas uma transparéncia erudita, um veiculo de transmiss4o, um trago de unido o mais leve possivel entre a materialidade bruta da documentagdo e a inscrigéo na meméria. Em iltima instancia, uma auséncia obsessiva de objetividade. Da explosdo da historia-meméria emerge um novo personagem, pronto a confessar, diferentemente de seus predecessores, a ligacao estreita, intima e pessoal que ele mantém com seu sujeito. Ou melhor, a proclamé-lo, a aprofunda-lo e a fazer, no © obstaculo, mas a alavanca de sua compreensdo. Porque esse sujeito deve tudo a 20 Pro}. Histéria, So Paulo, (10), des. 1993 sua subjetividade, sua criagdo, sua recriacao. E cle o instrumento do metabolismo, que da sentido e vida a quem, em si e sem ele, nao teria nem sentido nem vida. Imaginemos uma sociedade intciramente absorvida pelo sentimento de sua propria historicidade; ela estaria impossibilitada de produzir historiadores. Vivendo integral- mente sob o signo do futuro, ela se contentaria de processos de grava¢ado automaticos de si mesma e se satisfaria com maquinas de se auto contabilizar, mandando de volta para um futuro indefinido a tarefa de se compreender a si mesma. Em con- trapartida, nossa sociedade, certamente arrancada de sua memoria pela amplitude de suas mudangas, mas ainda mais obcecada por se compreender historicamente, esta condenada a fazer do historiador um personagem cada vez mais central, porque nele se opera aquilo de que ela gostaria mas nao pode dispensar: 0 historiador é aquele que impede a historia de ser somente histéria. Da mesma forma que devemos 4 distancia panorimica o grande plano ¢ ao estranhamento definitive uma hiperveracidade artificial do passado, a mudanga do modo de percepeao reconduz obstinadamenrte o historiador aos objetos tradicionais dos quais ele se havia desviado, os usuais de nossa meméria nacional. Vejam-na novamente na soleira da casa natal, a velha morada nua, irreconhecivel. Com os mesmos méveis de familia, mas sob uma nova luz. Diante da mesma oficina, mas para uma outra obra. Na mesma pega, mas para um outro papel. A historiografia inevitavelmente ingressada em sua era epistemoldgica, fecha definitivamente a era da identidade, a memoria inelutavelmente tragada pela historia, ndo existe mais um homem-meméria, em si mesmo, mas um lugar de meméria. II]. Os lugares de memoria, uma outra historia Os lugares de meméria pertencem a dois dominios, que a tornam interessante, mas também complexa: simples ¢ ambiguos, naturais ¢ artificiais, imediatamente oferecidos 4 mais sensivel experiéncia e, a0 mesmo tempo, sobressaindo da mais abstrata elaboracao. Sao lugares, com efeito nos tés sentidos da palavra, material, simb6lico ¢ funcional, simultaneamente, somente em graus diversos. Mesmo um lugar de aparén- cia puramente material, como um depésito de arquivos, sd é lugar de memoria se a imaginagdo 0 investe de uma aura simbélica. Mesmo um lugar puramente fun- cional, como um manual de aula, um testamento, uma associagao de antigos com- batentes, s6 entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto de siléncio, que parece 0 exemplo extremo de uma significagao simbdlica, € a0 mesmo Prop. Historia, Sdo Paulo, (10), dez. 1993 2r tempo 0 recorte material de uma unidade temporal ¢ serve, periodicamente, para uma chamada concentrada da lembranga. Os trés aspectos coexistem sempre. Trata-se de um lugar de meméria tao abstrato quanto a nogdo de geracdo? E material por seu conteido demografico; funcional por hipétese, pois garante, ao mesmo tempo, a cristalizacaéo da lembranga ¢ sua transmissdo; mas simbdlica por definigdo visto que caracteriza por um acontecimento ou uma experiéncia vividos por um pequeno numero uma maioria que deles nao participou. O que os constitui é um jogo da memoria e da histéria, uma interagao dos dois fatores que leva a sua sobredeterminacdo reciproca. Inicialmente, é preciso ter vontade de meméria. Se o principio dessa prioridade fosse abandonado, rapidamente derivar-se-ia de uma definigdo estreita, a mais rica em potencialidades, para uma definicao possivel, mais malcavel, susceptivel de admitir na categoria todo objeto digno de uma lembranga. Um pouco como as boas regmas da critica histérica de antigamente, que distinguiam sabiamente as “fontes diretas”’, isto é, aquelas que uma sociedade voluntariamente produziu para serem reproduzidas como tal - uma lei, uma obra de arte, por exemplo - ¢ a massa indefinida de “‘fontes indiretas”, isto € todos os testemunhos deixados por uma época sem duvidar de sua utilizagdo futura pelos historiadores. Na falta dessa intengdo de memoria os lugares de memoria serdo lugares de histéria. Em contrapartida, est claro que, se a histéria, o tempo, a mudanga nao inter- viessem, seria necessdrio se contentar com um simples historico dos memoriais. Lugares portanto, mas lugares mixtos, hibridos e mutantes, intimamente enlagados de vida ¢ de morte, de tempo e de eternidade; numa espiral do coletivo ¢ do indi- vidual, do prosaico e do sagrado, do imével e do mével. Andis de Moebius enrolados sobre si mesmos. Porque, se ¢ verdade que a razo fundamental de ser de um lugar de meméria é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial para - 0 ouro é a unica meméria do dinheiro - prender 0 maximo de sentido num minimo de sinais, é claro, e € isso que os torna apaixonantes: que os lugares de memoria so vivem de sua aptidao para a metamorfose, no incessante ressaltar de seus significados € no silvado imprevisivel de suas ramificagées. Dois exemplos, em registros diferentes. Veja-se 0 calendario revolucionirio: se é lugar de memoria, visto que, enquanto calendario, ele deveria fornecer os quadros a priori de toda memoria possivel e enquanto é revolucionario, ele se pro- poria , por sua nomenclatura e por sua simbologia, a “abrir um novo livro para a historia” como ambiciosamente diz seu organizador, e “transportar inteiramente os franceses para si mesmos”’, segundo um outro de seus relatores. E, nesse objetivo, Proj, Historia, So Paulo, (10), dez 1993 parar a historia no momento da Revolugdo, indexando o futuro dos meses, dos dias, dos séculos, ¢ dos anos sobre a imagem da epopéia revolucionaria. Titulos ja sufi- cientes! O que, no entanto, o constitui ainda mais como lugar de memoria, aos nossos olhos, sua derrota em se tornar aquilo que quiseram seus fundadores. Es- tivéssemos, ainda hoje, vivendo sob seu ritmo, ele teria se nos tomado tao familiar, como um calendario gregoriano, que teria perdido sua virtude de lugar de memoria. Ele teria se fundido a nossa paisagem memorial ¢ s6 serviria para compatibilizar todos os outros lugares de memoria imaginaveis. Mas sua derrota ndo é total: datas- chaves, acontecimentos emergem para sempre a ele ligados, Vendémiaire, Thermidor, Brumaire. E os motivos de memoria viram-se sobre si mesmos, duplicam-se em espelhos deformantes que sdo sua verdade. Nenhum lugar de memoria escapa aos seus arabescos fundadores. Tomemos, desta vez, 0 célebre caso Tour de la France par deux enfants: lugar de meméria igualmente indiscutivel, pois que. da mesma forma que o “Petit Lavisse”, formou a memoria de milhées de jovens Franceses, no tempo em que um ministro da instrugao publica podia tirar seu relégio de seu bolso para declarar de manhd, As oito horas € cinco minutos: “Todas as nossas criangas passam os Alpes.” Lugar de memoria, também, pois que inventdrio do que ¢ preciso saber sobre a Franca, nar- ragdo identificadora e viagem iniciadora. Mas as coisas se complicam: uma leitura atenta logo mostra que, desde o seu aparecimento, em 1877, Le Tour esteriotipa uma Franga que ndo existe mais ¢ que, nesse ano do 16 de maio, que vé a solidificagdo da Repiblica, tira sua sedugdo de um sutil encantamento pelo passado. Livro para criangas cujo sucesso se deve, em parte, a memoria dos adultos, como sempre. Eis para o montante da memoria, ¢ para o seu jusante? Trinta ¢ cinco anos apés sua publicagdo, quando a obra ainda reina as vésperas da guerra, ela é certamente lida como chamada, tradigao jd nostalgica: prova disso, apesar de seu remanejamento e de sua atualizacdo, a edi¢do antiga parece vender melhor do que a nova. Depois 0 livro fica mais raro, sé ¢ utilizado nos meios residuais, no fundo de campos distantes; ele € esquecido. Le Tour de la France torna-se aos poucos raridade, tesouro de s6tao, ou documento para os historiadores. Ele deixa a memoria coletiva para entrar na memoria historica, depois na memoria pedagogica. Para o seu centenario, em 1977, no momento em que Le Cheval d'Orgueil alcanga um milhdo de exemplares e quando a Franga giscardiana ¢ industrial, mas ja atingida pela crise econémica, descobre sua memoria oral € suas raizes camponesas, ele é reimpresso, e Le Tour entra no- vamente na memoria coletiva. ndo a mesma, enquanto espera novos esquecimentos € novas reincarnagées. O que patentcia essa vedete dos lugares da meméria, sua Pro}. Histor, Sie Paulo, (10), des 1998 intengao inicial ou o retomo sem fim dos ciclos de sua meméria? Evidentemente os dois: todos os lugares de meméria sdo objetos no abismo. Esse mesmo principio de duplo pertencimento que permite operar, na multi- plicidade dos lugares, uma hierarquia, uma delimitacdo de seu campo, um repertorio de suas escalas. Se vemos efetivamente as grandes categorias de objetos que sobres- saem do género - tudo o que vem do culto dos mortos, tudo que sobressai do pa- triménio. tudo 0 que administra a presenga do passado no presente -. esta portanto claro que alguns, que nao entram na estrita definigao. podem isso pretender e que. inversamente, muitos, a maior parte mesmo daqueles que dele fazem parte por principio, devem, de fato ser excluidos. O que constitui certos sitios pré-historicos. geograficos ou arqueolégicos em lugares. ¢ mesmo em lugares de destaque. € muitas vezes 0 que deveria precisamente lhes ser proibido, a auséncia absoluta de vontade de meméria, compensada pelo peso esmagador de que o tempo, a ciéncia, 0 sonho e a memoria dos homens os carregou. Em contrapartida, qualquer limite que tem a mesma importancia que o Rhin, ou o “Finistére”, esse “fim de terra”, as quais as célebres paginas de Michelet, por exemplo, deram seus titulos de nobreza. Toda constituigdo, todo tratado diplomatic s4o lugares de meméria, mas a constituigo de 1793, ndo da mesma forma que a de 1791, com a Declaragao dos direitos do homem, lugar fundador de meméria; ea paz de Nimégue, ndo da mesma forma que as duas extremidades da historia da Europa. a divisdio de Verdun e a conferéncia de Yalta. Na mistura, 6 a meméria que dita ¢ a histéria que escreve. E por isso que dois dominios merecem que nos detenhamos, os acontecimentos ¢ os livros de hist6ria. porque, nao sendo mixtos de memoria ¢ historia, mas os instrumentos, por excelén- cia, da meméria em histéria, permitem delimitar nitidamente 0 dominio. Toda grande obra histérica e 0 proprio género histérico néio sio uma forma de lugar da meméria? Todo grande acontecimento ¢ a propria nogao de acontecimento nao sao, por de- finicdio, lugares de meméria? As duas questées exigem uma resposta precisa. Entre os livros de historia so unicamente lugares de meméria aqueles que se fundam num remanejamento efetivo da meméria ou que constituem os breviarios pedagégicos. Os grandes momentos de fixagaio de uma nova meméria histérica nao sfo tao numerosos na Franca. No século XII, as Grandes Chroniques de France condensam a meméria dinistica e estabelecem 0 modelo de varios séculos de tra- balho histérico. E. no século XVI, durante as guerras de religido. a escola dita da “historia perfeita’ destroi a lenda das origens troianas da monarquia ¢ restabelece a antiguidade gaulesa: as Recherches de la France, de Etienne Pasquier (1599). constituem, na propria modemidade do titulo. uma ilustragdo emblematica. A ilus- 2 Prey, Histone, So Paulo, (10), dex. 1993 tragdo do fim da Restauragao introduz bruscamente a concepgdo moderna de histori: as Lettres sur Vhistoire de France, de Augustin Thierry (1820) constituindo o inicio ¢ sua publicacdo definitiva em volume, em 1827 coincidindo, proximo de alguns meses, com 0 verdadeiro primeiro livro de um ilustre debutante, 0 Précis Whistoire moderne de Michelet, e 0 comego do curso de Guizot sobre “‘a historia da civilizacao da Europa e da Franga”, Enfim, a historia nacional positiva cuja Revue historique representa o manifesto (1876) e cuja Histoire de France de Lavisse, em vinte ¢ sete volumes, constitui o monumento. O mesmo as memérias que, por seu proprio nome, poderiam parecer lugares de meméria; ou mesmo as autobiografias ou os jornais intimos. As Mémoires d’outre-tombe, a Vie de Henry Brulard, ou o Journal d’Amiel sdo lugares de meméria, nao porque sdo melhores ou maiores, mas porque eles complicam o simples exercicio da meméria com um jogo de interrogagdo sobre a propria memoria. Pode-se dizer 0 mesmo das Memérias de homens de Estado. De Sully a de Gaulle, do Testament de Richelieu ao Mémorial de Sainte-Heléne € a0 Journal de Poincaré, independentemente do valor desigual dos textos, 9 género tem suas constantes € suas especificidadcs: implica num saber de outras Memorias, num desdobramento do homem de escrita e do homem de acdo, na identificagao de um discurso individual com outro coletivo € na insergdo de uma razdo particular numa razdo de Estado: tantos motivos que obrigam, num panorama da meméria nacional, a considera-los como lugares. E os grandes acontecimentos? Somente dois tipos dentre cles sao relevantes, que ndo dependem, em nada, de seu tamanho. De um lado os acontecimentos, por vezes infimos, apenas notados no momento, mas aos quais, em contraste, 0 futuro retrospectivamente conferiu a grandiosidade das origens, a solenidade das rupturas inaugurais. De outro lado, os acontecimentos onde, no limite, nada acontece, mas que s4o imediatamente carregados de um sentido simbélico ¢ que sao eles proprios, no instante de seu desenvolvimento, sua propria comemoracdo antecipada.; a historia contemporanea, interposta pela midia, multiplicando todos os dias tentativas de nati- mortos. De um lado, por exemplo, a eleigdo de Hugo Capeto, incidente sem destaque mas ao qual uma posteridade de dez séculos terminada no cadafalco atribui um peso que ele ndo tinha na origem. De outro lado, 0 vagéo de Rethondes, o apertar a mao de Montoire ou a descida dos Champs Elysées na Liberacdo. O acontecimento fun- dador ou 0 acontecimento espetdculo. Mas em nenhum caso 0 proprio acontecimento; admiti-lo dentro da nogdo significaria negar a especificidade. E, ao contrario, sua exclusio que a delimita: a meméria pendura-se em lugares, como a histéria em acontecimentos. Pro). Historia, So Paulo, (10), dez. 1993 2s Nada impede, em contrapartida, no interior do campo, que se imaginem todas as distribuigdes possiveis e todas as classificagdes necessarias. Desde os lugares mais naturais, oferecidos pela experiéncia concreta, como os cemitérios, os muscus. € os aniversarios, até os lugares mais intelectualmente elaborados, dos quais ninguém se privara; nao somente a nogao de geraciio, j4 evocada, de linhagem, de “regiao- memoria”. mas aquela de “‘partithas”, sobre as quais estdo fundadas todas as per- cepgdes do espaco francés, ou as de “paisagem como pintura”, imediatamente inteligivel, se pensamos particularmente em Corot ou em Sainte-Victoire de Cézanne. Se insistimos sobre 0 aspecto material dos lugares, cles proprios se dispdem num vasto degradé. Veja-se, primeiro, os portateis, no os menos importantes visto que © povo da memoria da um exemplo maior com as tabuas da lei; veja-se 0 topografico, que devem tudo a sua localizacao exata e a seu enraizamento ao solo: assim, por exemplo, todos os lugares turisticos, assim a Biblioteca nacional tao li igada ao hotel Mazarin quanto os Arquivos nacionais ao hotel Soubise. Veja-se os lugares monumentais, que no saberiamos confundir com os lugares arquiteturais. Os primei- Tos, estatuas ou monumentos aos mortos, conservam seu significado em sua existén- cia intrinseca; mesmo se sua localizagdo estd longe de ser indiferente, uma outra encontraria sua justificagdo sem alterar a deles. O mesmo ndo acontece com os conjuntos construidos pelo tempo, e que tiram sua significagdo das relagdes com- plexas entre seus elementos: espelhos do mundo ou de uma época, como a catedral de Chartres ou 0 palicio de Versalhes. Apegar-nos-emos, ao contrério 4 dominante funcional? Desdobrar-se-a 0 leque dos lugares nitidamente consagrados 4 manutengdo de uma experiéncia intrans- missivel ¢ que desaparecem com aqueles que 0 viveram, como as associagées de antigos combatentes, aqueles cuja razdo de ser, também passageira, é de ordem pedagogica, como os manuais, os diciondrios, os testamentos ou os “livros de razdo”” que, na época classica, os chefes de familia redigiam para 0 uso de seus descen- dentes. Seremos nés, enfim, mais sensiveis ao componente simbdlico? Oporemos. por exemplo, os lugares dominantes aos lugares dominados. Os primeiros, espetacu- lares € triunfantes, imponentes e geralmente impostos, quer por uma autoridade na- cional, quer por um corpo constituido. mas sempre de cima, tem, muitas vezes a frieza ou a solenidade das ceriménias oficiais. Mais nos deixamos levar do que vamos a eles. Os segundos sdo os lugares refiigio. 0 santuario das fidelidades espon- tneas e das peregrinagdes do siléncio. E 0 coragao vivo da memoria. De um lado © Sacré-Coeur, de outro, a peregrinagéio popular a Lourdes; de um lado, os funcrais nacionais de Paul Valéry. de outro, 0 enterro de Jean-Paul Sartre: de um lado a ceriménia fiinebre de De Gaulle em Notre Dame. de outro, 0 cemitério de Colombey. 2. Historia, Sdo Paula, (10h. dez. 1993 Poderiamos refinar infinitamente as classificagdes. Opor os lugares publicos aos lugares privados, os lugares de meméria puros, que esgotam inteiramente sua fungdo comemorativa - como os clogios fiinebres, Douaumont ou 0 muro dos Fe- derados -, ¢ aqueles cuja dimens4o de memoria € uma sO entre o feixe de suas significagées simbélicas, bandeira nacional, circuito de festa, peregrinagées, etc. O interesse desse esboco de tipologia ndo est4 nem em seu rigor nem em sua exaustao. Nem mesmo em sua riqueza evocadora. Mas no fato que ela seja possivel. Ela mostra que um fio invisivel liga objetos sem uma relagao evidente, ¢ que a reuniao sob 0 mesmo chefe do Pére-Lachaise e da Estatistica geral da Franca nao é0 en contro surrealista do guarda chuva e do ferro de passar. Ha uma rede articulada dessas identidades diferentes, uma organizagao inconsciente da meméria coletiva que nos cabe tornar consciente de si mesma. Os lugares sdo nosso momento de histéria nacional, Uma caracteristica simples, mas deci ., os coloca radicalmente a parte de todos os tipos de hist6ria, antigos ¢ novos, aos quais estamos habituados. Todas as aproximagées histricas ¢ cientificas da meméria, sejam elas dirigidas a da nagao ou a das mentalidades sociais, tinham a ver com a realia, com as préprias coisas cuja realidade em sua maior vivacidade clas se esforgavam por apreender. Diferen- temente de todos os objetos da histéria, os lugares de memoria ndo tem referentes na realidade. Ou melhor, eles sdo, eles mesmos, scu prprio referente, sinais que devolvem a si mesmos, sinais em estado puro. Nao que ndo tenham contetdo, pre- senga fisica ou histéria; ao contrario. Mas 0 que os faz lugares de meméria é aquilo pelo que, exatamente , eles escapam da histéria. Templum: recorte no indeterminado do profano - espago ou tempo, espago e tempo - de um circulo no interior do qual tudo conta, tudo simboliza, tudo significa. Nesse sentido, o lugar de meméria é um lugar duplo; um lugar de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua iden- tidade, e recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extensdo de suas significagées. E 0 que faz sua historia a mais banal e a menos comum. Assuntos evidentes, material 0 mais classico, fontes disponiveis, os métodos menos sofisticados. Teriamos a impresséo de retornar 4 historia de anteontem. Mas trata-se de outra coisa. Esses objetos sé so apreensiveis na empiria a mais imediata, mas 0 meca- nismo, a trama esta em outro lugar, inapto para se exprimir nas categorias da historia tradicional. Critica historica tornada toda histéria critica, e no somente de seus proprios instrumentos de trabalho. Despertada de si mesma para viver no segundo grau. Historia puramente transferencial que, como a guerra, é uma arte de execugao, feita da felicidade fragil da relagdo com 0 objeto refrescado ¢ do envolvimento do Proj. Historia, Sdo Paulo, (10), dez. 1993 27 historiador com seu sujeito. Uma historia que s6 repousa, afinal das contas, sobre ‘© que ela mobiliza, um laco firme, impalpavel, apenas dizivel, o que permanece em nés de apego camal desenraizavel a esses simbolos, no entanto, j4 murchos. Re- vivéncia de uma historia 4 moda Michelet, que faz invencivelmente pensar nesse acordar do luto do amor do qual Proust falou t40 bem, esse momento quando a influéncia obsessiva da paixdo se levanta, enfim, mas quando a verdadeira tristeza € de ndo mais sofrer daquilo que nos fez tanto sofrer e que s6 passamos a com- preender com as razGes da cabega e mais 0 irracional do coracdo. Referéncia bem literaria. Deve-se lamenté-la ou, a0 contrario, justificd-la com- pletamente? Ela a conserva uma vez mais da €poca. A meméria, com efeito, sé conheceu duas formas de legitimidade: histérica ou literiria. Elas foram, alias, exercidas paralelamente mas, até hoje, separadamente. A fronteira hoje desaparece © sobre a morte quase simulténea da hist6ria-meméria e da historia-ficgdo, nasce um tipo de histéria que deve seu prestigio ¢ sua legitimidade 4 sua nova relagdo com o passado, um outro passado. A histéria é nosso imaginario de substituicao. Renascimento do romance histérico, moda do documento Personalizado, revitali- zagao li-teraria do drama hist6rico, sucesso da narrativa de histéria oral, como seriam explicados sendo como a etapa da ficgdo enfraquecida? O interesse pelos lugares onde se ancora, se condensa e se exprime 0 capital esgotado de nossa memoria coletiva ressalta dessa sensibilidade. Histéria, profundidade de uma época arrancada de sua profundidade, rornance verdadeiro de uma €poca sem romance verdadeiro. Meméria, promovida ao centro da histéria: é 0 luto manifesto da literatura. 28 Proj. Historia, Sdo Paulo, (10), dez. 1993

Você também pode gostar