Você está na página 1de 22
Ernest RENAN “QUE E UMA NACAO?” Tradugdo de Samuel Titan Jr.* Nora INTRODUTORIA por Angela Alonso** e Samuel Titan Jr. . O documento que apresentamos a seguir ¢ 0 texto de uma Conferéncia pronunciada por Emest Renan (1823-1892) em 11 de margo de 1882, na Sorbonne, O tom confiante e algo pomposo de “Que é uma nagio?” permite entrever algo do publicista que, além de estudioso das linguas ¢ povos semiticos (Histoire du peuple d ‘Israél, 1887-1893), bidgrafo de Jesus (Vie de Jésus, 1863) € historiador do cristianismo (L 'église chrétienne, 1879), encarava a sie a seus pares académicos como um dos altos foros (ou “indivi- dualidades”, como gostava de dizer) da nagao francesa, A partirde 1851, Renan € colaborador assiduo na Revue des deux mondes, & dois volumes de ensaios contemporaneos merecem destaque: Questions de moraleet de politique (| 868) e Laréforme intellectuelle et morale de la France (1871), este ultimo parcialmente redigido quando ainda corria a guerra franco-prussiana de 1870/71. “Que é uma nacio?” é um texto marcado pela simultinea lapidaridade e ambigilidade de suas proposigdes. A recusa das teorias raciais da época, apercepcao da vida humana organizadaem bases nacionais como um modo de sociabilidade especifico, que pouco deve pureza das estirpes étnico-lingiisticas—tudoisso deve Trapucio + Mestrando em Te: FFLCH-USP. Li ** Doutoranda do Curso de Pos-Graduagao em Sociologia da FFLCH-USP ¢ Pesquisadora do CEDRAP. 184 Plural; Sociologia, USP, S, Paulo, 4:154-175, 1.sem. 1997 Que é uma nagio? Emest Renan forgosamente despertar o interesse de cientistas sociais contempo- rancos, atentos a construgdo das identidades sociais. Desse ponto de vista, é facil ver Renan como precursor. cil demais, talvez. Pois os mesmos tragos que tornam Renan interessante aos nossos olhos séo outros tantos indices de suas raizes histéricas no pensamento oitocentista. Repare-se que, tendo recusado explicagées raciais, lingiiisticas, religiosas e geo- gréficas para fendmenomodemo da Nagiio-Estado, Renan parece cair numa petigao de principio: a vida nacional deriva de uma vontade de viver como nagdo. “Possuir as glorias comuns do passado ea vontade comum do presente; ter feito grandes coisasem conjunto, querer fazé-las outras vezes mais — eis ai as condigdes essenciais para formar um povo.” Mas por que afinal a gldria pas- sada ¢ a vontade presente devem tomar o rumo da nacionalidade? Ha que buscar a verdadeira resposta na tradigiio liberal da primeira metade do século XIX, para quem a Nagio-Estado “termi- nava por ser, na verdade, a unidade ‘natural’ de desenvolvimento da sociedade burguesa, moderna, liberal e progressista”* (Hobsbawm, A Era do Capital). Seu expoente mais barulhento foi certamente o italiano Giuseppe Mazzini, que em 1857 projetara uma Europa composta de 11 grandes nages, “viaveis” do ponto de vista do progresso burgués — um mapa bem diferente daquele que, sob a égide de Woodrow Wilson, surgiria do Tratado de Versathes (27 nagdes européias). Algo assim parece estar por tris da nogiio de “progresso” que Renan vez por outra menciona na conferéncia de 1882. E todos esses elementos se discernem facilmente em La réforme intellectuelle et morale, onde ainda figura um outro (e decisivo) limite da visio renaniana: a idéia de nacionalidade niio deve estender-se além das fronteiras européias. Na Africa ¢ no Oriente, a nogio de raga volta a imperar; ougamo-lo: “A coloniza- ‘gio em larga escala é uma necessidade politica de primeira ordem. (... Se as conquistas sobre ragas iguais devem ser lamentadas, a regenerago de ragas inferiores ou bastardas faz parte da ordem providencial da humanidade. (...) A natureza fez uma raga de trabalhadores, a raga chinesa, de uma habilidade manual maravilho- Plural; Sociologia, USP, §, Paulo, 4: 154-175, 1.sem, 1997 158 sae sem quase nenhum sentimento (... lavradores: sejamos bons e humanos para com eles, ¢ tudo estara bem; a raga européia é uma raga de soldados; reduzam essa raga a trabalhar na ergastula como os negros ¢ os chineses, e cla se revoltara” (La réforme...). Ora, boa parte da “agitagao” social desde finais do século passado, na Europa como no futuro Terceiro Mundo, tem derivado justamente da radicalizago das propostas nacionalistas, seja por- ‘que suas palavras de ordem so adotadas por movimentos de forte carter de classe (na China, na Africa), seja porque insatisfacoes tribais ou étnicas veem-se obrigadas a adotar essa retorica a fim dé fazer frente aos Estados imperiais, coloniais ou p6s-coloniais (como no caso dos confitos nos Balcas ¢ no Céuicaso). Sobre isso, Renan tem pouco a dizer. Comoexplicar, entao,o sabor“antropolégico”, “moderno” de nossa conferéncia? Talvez a partir de um erro de perspectiva nosso. Vale entdo perguntar: quais as razdes estratégicas, propria- mente politicas,do texto de Renan? Sugerimos, apenas sugerimos, a seguinte resposta: a hipotese “culturalista”, somada percepgfio de quao manobraveis as fidelidades e lealdades soci especial o sentimento patristico —, parecem fornecer a Renan os principios supremos de uma engenharia social capaz de deter os avangos da democracia e do socialismo. Tudo acabaré bem com as bengdos de um saudavel esquecimento, mesmo que improvisado. De fato, no livro de 1871, Renan via 0 par nacionalismo enropeu/ expansionismo colonial como a grande saida para a ordem social ‘metropolitana, arrufada pela Comunade Paris:“Umanagao que nio coloniza esta irrevogavelmente condenada ao socialismo, a guerra do rico edo pobre. A conquista de um pals de raga inferior por uma raga superior, que ai se estabelece para governar, nao tem nada de chocante.(...) Entrends, ohomem do povo é quase sempreum nobre desclassificado; sua mio pesada foi feita antes para manejar a espada que a ferramenta servil. Mais que trabalhar, ele prefere combater, voltar a seu estado original. Regere imperio populos, eis ai nossa vocagao” (Le réforme...). Programa que a Terceira Repé- Aracanegraéumaragade Que é uma nagao? saneere s Ernest Renan is — em 136 Plural: Sociologia, USP, S. Paulo, 4:15: 175, Lsem. 1997 Que é uma nagao? Emest Renan blica no deixou de cumprir a risca, com a consolidagao do dominio francés na Africa e no Oriente. Nada disso, é claro, tira o interesse da conferéncia que se |é emseguida—se¢ que noo tornamaior. Masa experiénciahistorica desde 1882—duas guerras mundiais, travadas grandementeem solo europeu, somadas a mais de um século de manipulagdes, atrocida- des, “erros” e “esquecimentos” historicos com fins bem definidos ~desautoriza qualquer leitura embevecida do manifesto nacionalis- tae “culturalista” do nosso autor. PARA LER MAIS: RENAN, Ernest. Oewvres completes, Ov. (Pa- ris: Calman-Lévy, 1947-1961) . Qu’est-cequ une nation? (Paris: Presses Pocket, 1992) HOBSBAWM, Eric. 4 Era do Capital, 1848- 1875 (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982) . AErados Impérios, 1875-1914 (Rio de Janeiro: Paz ¢ Terra, 1988) . Nagées ¢ Nacionalismo desde 1780 (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991) ANDERSON, Benedict . Nagdo ¢ Consciéncia tica, 1989) Ernest RENAN “Que f UMA NAcAO?” Proponho-me analisar com os senhores uma nogao que, aparentemente clara, presta-se aos mais perigosos mal-entendidos. ‘As formas da sociedade humana so as mais variadas: grandes aglomeragdes de homens na China, no Egito ou, antes ainda, na tribos como as dos hebreus e arabes; cidades como Atenas e Esparta; regides unidas a maneira do Império Carolingio; Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 4: 154-175, sem. 1997 157 comunidades sem patria, mantidas por lagos religiosos, como acon- Que ¢ uma nagio? tece com israclitas ¢ parsis; nagdes como a Franga, a Inglaterrae a Pest Renan maioria das modemnas autonomias européias; confederagdes como a suiga e a americana; parentescos como os de raga ou antes de lingua, estabelecidos entre os diferentes ramos de germanicos ou eslavos—eisaqui alguns modos de agrupamento, todos eles existen- tes ou registrados, quenao poderiamos confundir sem os mais sérios inconvenientes. A época da Revolugdo Francesa, acreditava-se que asinstituigdes de pequenas cidades independentes, taiscomo Esparta € Roma, poderiam servir as nossas nagdes de trinta a quarenta milhdes de almas, Hoje em dia, comete-se erro mais grave: confun- de-searaga com anagao, eatribui-se a grupos etnogrificos, ou antes lingiiisticos, uma soberania analoga 4 dos povos realmente existen- tes. Tratemos de alcangar maior preciso nestas questdes dific nas quais a menor confusio inicial sobre o sentido dos termos pode acabar por produzir os erros mais funestos. Faremos algo de delica- do, quase uma vivisecgao: trataremos os vivos tal como em geral se tratam os mortos. Para tanto usaremos da frieza, da imparcialidade mais absoluta. Desde o fim do Império Romano ou, melhor dizendo, desde o desmembramento do império de Carlos Magno, a Buropa ociden- tal édividida em nagées, dentre as quais algumas, em certas épocas, procuraram exercer uma hegemonia sobre as outras, sem jamais logré-lo de maneira duradoura. O que nao puderam fazer Carlos V, Luis XIV e Napoledo |, provavelmente ninguém mais fardno futuro. A formagao de um novo Império Romano ou de um novo Império Carolingio tornou-se uma impossibilidade. A divisio da Europa € tao avangada que umatentativa de dominagao universal nao deixaria de levar rapidamente a uma coalizio capaz de reconduzir a nagao ambiciosa a seus limites naturais. Uma espécie de equilibrio encon- tra-se estabelecido por um bom tempo. Ainda por centenas de anos —e por mais aventuras a que se deixem levar—a Franga, a Inglaterra, 138 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 4154-175, sem, 1997 Que é uma nagto? a Alemanha e a Russia sero individualidades historicas, peas kEmest Renan essenciais de um tabuleiro, cujas casas variam incessantemente de importancia ¢ dimensao, sem entretanto jamais se confundirem. Entendidas desta maneira, asnagdes sdo algo de muitonovo na historia. A Antiguidade nao as conheceu: o Egito, a China, a antiga Caldéia nao foram absolutamente nagdes. Eram rebanhos conduzidos por algum filho do Sol ou dos Céus. Nao houve cidadios egipcios, como no houve cidadaos chineses. A Antigui- dade classica teve repablicas ¢ monarquias municipais, confedera- Ges de repiiblicas locais assim como impérios, mas ndoteve nagdes no sentido em que ascompreendemos. Atenas, Esparta, Sidon, Tiro so pequenos centros de admiravel patriotismo, mas sdo cidades de territério relativamente restrito. Antes de suaabsorcaopelolmpério Romano, aGilia, a Espanha ca Italia eram conjuntos de povoagées, muitas vezes coligadas, mas sem instituigdes centrais, sem dinasti- as. Nem mesmo o Império Assirio, o Império Persa ou o império de Alexandre foram patrias, Néio houve jamais patriotas assirios; 0 Império Persaera um vasto feudo. Nenhuma nagiio tem suas origens ligadas colossal aventura de Alexandre, de resto tao rica de conseqiiéncias para a histéria geral da civilizagao. O Império Romano esteve muito mais perto de ser uma patria. Como contrapartida pelo enorme beneficio do fim das guerras, a dominagao romana, de inicio tao dura, foi logo bem- quista. © Império foi uma grande associagiio, um sinénimo de ordem, de pazede civilizagdo. Emscus ultimos tempos houve, entre 08 espiritos elevados, entre os bispos esclarecidos ¢ entre os letrados, um verdadeiro aprego pela paz romana, oposta a0 caos ameagador da barbarie, Mas um império doze vezes maior que a Franga atual nao teria como formar um estado na acepgao moderna dotermo. A cisiode Oriente e Ocidente era inevitavel. Nao tiveram sucesso as tentativas de formar um império gaulés no século III. Foi a invasdo germanica que introduziu o principio que, mais tarde, serviu de base a existéncia das nacionalidades. Pois afinal que fizeram os povos germfinicos, das grandes invasdes as dttimas conquistas normandas no século X? Pouco Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 4: 154-175, sem. 1997 1s9 alteraram a composi¢ao racial, mas impuseram dinastias ¢ aristo- Que € uma nacho? cracias militares a regides mais ou menos consideraveisdoImpério mes" Rentr Romano, que entiio tomavam 0 nome de seus invasores. Dai a existéncia de uma Franga, de uma Burgindia, de uma Lombardia e, mais tarde, de uma Normandia. O rapido predominio que obteve 0 Império Franco reconstr6i por um momentoa unidade do Ocidente, mas esse império se fragmenta rapidamente por volta da metade do séeulo IX. © tratado de Verdun! traga divisbes por principio imutaveis, e desde entio.a Franga,a Alemanha, a Inglaterra, ltdlia 1 Tratado de Verdun (843). watado que © Espanha encaminham-se, ainda que por vias tortas e através de sTeeamone de Caos Magno vido mil percalgos, & plena existéncia nacional, tal como a vemos — {raie tae Cale, . expandir-se hoje em dia, ‘Oque caracteriza, afinal, esses diferentes Estados? A fusdo * Clévis | GSES1D) rei franco aus, 20 das populagées que os compdem. Nesses paises que acabamos de hamey Sus SOumoris ¢ converters enumerar n&o ha nada de andlogo ao que se vé na Turquia, onde o um dos fundadores de Franga, Alatco: turco, oeslavo,o grego, oarménio, ofrabe, osirioeacurdo sdotao © "so au sound osu de diferentes entre si quanto 0 eram nos tempos da conquista. Duas —_burindio (na do século V).Albuino circunstancias essenciais contribuiram para tanto. Primeiramente, ‘i lombardo (meados do século VN: ; \ " Rollon:chefenormando que. aps iderat ofatode os povos germanicosterem adotadoocristianismotdologo Sais de ataques no teres hanets (a tiveram contatos mais permanentes com os povos gregos¢ latinos. _partir de 910), converte-se ao cristianis- Quando veneedor e vencido sto da mesma religido, ou antes, _ Ma

Você também pode gostar