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VILEM PLUSSER Ber temo, Enquanto uns se quixem que nunca tém tempo, outros sfirnam que a tené&ncia pa ra a dimimiq&o das horas, dos dias e dos anos de trabalho vai criando o pro~ Dlema do exeesso de tempo disponivel., FE os que se quéixam que nao tém tempo vivem geralmente em ei tuagao desenvolvida, (isto 6: em situagao que tende pa- rae diminui gio do ‘trabelho), enquanto a finioa Gisponibilidade em excesso dos que estio em aituagéo subdesenvolvida 6 o tempo. De duas umar ou o progresso dimimii o lezer,(e os profetas do tédio sao vitimes de uma curiosa #lusao que os engans), ou o térmo "ter tempo" tem pelo menos dois signifieados, (de for. ma que o caipira no bar da esyuina tem excesso de um tipo de tempo, e o turie te americuno procura matar um segundo tipo do tempo). 0 rropbeito destas con sideragoes 6 defender a segunda clternativa, Eo sou motivo 6 ester as an&li ses fenomenologicas do lazer s&0 feitas on situagio desenvolvida, Portanto ge realmente por quem ignora o lazer gigantesco do qual dispoe © subdesenvolvido. E tal ignorfncia toma as anflises insuficientes, A pergunta que se impoe 6 pois: que significa "ter tempo"? © caracterletico o fato de tendermos a dar respostas negativas, tipo: "Ter tempo significa no ter o que fazer, nao ter obrigagées,ndo ter tarefas". Como se ter tempo fosse uma caréncia a ser susrida, E, no entanto, sentimos nitidamente que a posse de tempo 6 liberdade. Pois a liberdade tex também cste aspecto negati Vo, ¢ tendemos também a dar respostcs negatives a vergunte “que significa ter liberdade?", Para sclienter este/fato, que a seguinte definigho seja propos’ ta: "Ter tenpo significa nio estar Coie uacinie Ocupado por quem ou por qué? A rigor: pelo tempo, Tem tenpo quem nao estt por ele ocupado, e quem nao ter tempo 6 poraue o tempo o occupa, Aparentemente 6 eata a relagio entre mim e o tempo: ou ele me tem, ou euo tenho. Ou ele toma posse de mim, eu mergulho nele, e ele me arrasts consigo. Ou eu o fago parar, sfim de manipulf-lo e sub meté-1o as minhes ordens,0u sou objeto do tempo, ou sou seu sujedto, ou sou agitadoy ou ajo. Ter tempo, pois, (e esta ser& a definigao com a quel tra- balharet doravante), 6 nio ser agitado, Mas tal definigao negativa exige que seja positivada, Que 6 isto que nio me agita quendo tenho tompo? Que & isto, pois, que transformel eq mou objeto 20 née ter permitido que o texpo me ocupe? Hm suma: quel o meu objeto quando tenho tempo? Uma resposte 6bvia seria dizer tudor. Com efeitot quendo tenho tempo tudo passa a ser virtualmente meu objeto. Ter tempo significa pole ter © mundo por objeto, ter um mindo objetivo, e nao ter tempé significa nao ter nenhum objeto. E isto 4mplica dizer que tempo 6 tudo, Naa esta resposte 6b vin com sua radical afirmacdo da identidade entre Serge Tempo nao ¢ mito in teressante. (Como, alits, nio o ¢ nerhuma afirmativa que contém a palevra "ti ao".) Nao 6 mito interessante, porque nao me diz nada quanto co meu objeto quando tenho tempo, Quem diztudoy nfo.diz nada, A resposta precisa ser es— pecificada, Uma posesvel chave para a especificagéo do objeto que tenho ao ter tempo 6 | fornecida pele gramftica da lingue portuguese. Que tel dizer que quando tenkc tempo tenho futuro, presente e paseedo? E ieto me permitiria dizer, cuigfy! newnette lon ene ' eal toe aed eat taeda eae alata a2 & ° VEN dP SS niio tem tempo, nado tem nem futuro, nem presente @ nem pag pedo, Nas quem ton tompo, pode ter ou futuro, ou presente, ou passado, ou dois dos trés, ou todos, Por exemplo: o caipire parado no bar ae esquina tem tempo no sentido de presente, mas nao tem nom passado nem futuro. & *pré-hist6rico", para felermos mais elegantenente. Eo turista emericano procura matar o tempo que tem porque este 6 un pasendo sem presente nem fu turo. 0 turista 6 "pbs-histtrico", para xecorrermos @ UR ‘térmo em voga. O lazer que ¢ o problema dos futurblogos ¢ pbs-histérico, ¢ pro-historico 6 o lazer do subéesenvolvido, E entre os dois lazeres hoveria a histéria, is to 6 une siimagio de falta de tempo. 0 homem histérico § ocupado pelo tem po, e 6 por isto que nao vive em mndo objetivo, nao tem objeto J& que ele | prbprio 6 objeto do tempo. 0 honem pré-histérico vivo no presente, ten | tempo apenas neste sentido, (o que & una descrigzo adequada de Ad&o no Pa- paiao © ao honem rhodesiano), Bo honem pos-histérico vive no passado, ¢ tem tempo apenas neste sentido, (o que & una descrigao adequada do telespeg tador, do tédio dos aposentados, © éa ressureigao das alnas), Un homem que tiveese terpo no sentido de passado, prosente @ futuro, seria o homex abso- into, @ quen tivesse tempo no sentido de futuro seria pelo menos um hon hist6rico livre. 0 homem que vive absolutemente 6 certancente un mito, mes o honem que vive no futuro, gue tem tenpo no sentido de ter futuro, seria o fdoal & ser perseguido. “Beta 6 una possivel interpretagao @a expreasao “ter tempo". Hao § mito béa, (enbora esteja inplicita em mite utopia, atuslmente em vo ga), © nao o € pelo soguinte: o tempo que tenho, (se 6 que o tenho ¢ que nao § ele quem me ten), no ¢ um texpo queiquer, mas ¢ o meu tempo. EB isto significa que a8 dnterpretagées historicistas do terpo, por grandiosas que gojem, nfo me dizen respeivo. 0 gue caracteriza o meu tempo sao suas Mni— tagdes severas, embora imprecisas. 0 meu presente 6 limitado pela situagio na qual me encontro, © exbors posse eu oxtender eosa situagdo viajando ov recebendo informagses externas por outros nétodos, 6 Pouce provivel que pos, ea janais presenciar Zenf6menos @istentes como o sao por exenplo a8 questoes de matexitica avangada ou de sgriculture ghanense. Estée exciuidos de meu presente, embora possam Ser contempor&neos mum sentido objetivante. © mey : futuro @ linitedo pela minha morte, e ombora 0 horizonte da morte nao seje fixo, & pouco provivel que sbranja 0 ano 2000, Por exeHP20+ wath excluido do men futuro, embora peje futurfvel, ¢ exbora possa eu influir nele, Eo nou passado esté Linitedo pelo meu noscinento, (on mete exetanente! pela minha nembria), e embora possa extender 0 passado eragas a truques como o Bt explicagoes causaie até profundidsdes hist6ricas, diol6gicas e cosnogéricas vertiginosrs, abranger& eutenticenente 4 neolitico ou o pitenantro- pos, por exemplo, isto significa que o que eaté féra do meu tempo, (como matoratioa avangada, 0 ano 2000 © o pitecantropos)+ nao me interessa no sen tido existoncial do térmo, (por exemplot 20 sentido kantieno), esbora posse: — VILEM FLUSSER a we interessar em teoria, Esta limitagdo existencial do meu tempo, (e do tem po lamsno "tout court"), faz com que cspeculagoes majestosss sSbre pré—histé pia, niotéria e pba-hietéria adquiram um colorido levenento obmice, inciuel— ve @ pré-ocupagaio dos futurblogoe com o lazer que ameaca e humani@ade Quem ten tempo 6 pois squele quem tem presente limitado pela situagio, passa do limitedo pele mentrie, e futuro Minitado pela morte, E quem nio tem tempo esth ocupsdo pela situagio, pela monérin e pela morte. ‘Ter tempo ¢ ter deiza do de ser scitado pela aitucglo, pela nentria e pela morte. Ter tempo mio 6 portent uma con@igao "natural" do honen, ¢ o homem no 6 um ente que, aparece do nada ou do fitero materno tendo tempo. Pelo contrhrio, o hhomem nesce ocu= pado pelo tempo, e se tem teripo, isto & reeuitado de uma conquieta deliberade @ penosa sue, A conguista consiste om assumir e manter une atitude antinntuy ral perante o tempo. Una atitude que nega eo tempo o direito de ocupar=me, que nega o direito de situagao, de menéria e de morte de me condicionarem. E que afirma 0 meu @ireito ée desprezfi-los e transformé-los em neus instrumen— tos. aApenss quem despreza a situagéo tem presente, Apenas quem despreza a nembria tem passado, Apenas quem despreza & morte tem futuro. Porque apenes tal pode ranipular presente, passado e futuro, Como ¢ possivel escumir-se tel atitade? J& que nascl ocupado por situagao, meméria e morte e condicio~ nado por eles? & possivel, dada a limitagao da situagéo, da meméria e da mor, te, © dada portento a abertura para euperé-1os em transcendéncia antinaturel ¢ anti-historicizante. ‘al transcendéneia 6 um lugar no qual me abrigo da agitagio natural e hist6rica, e a partir do qual posso passer @ egir e8bre * historia © natureza, & apenas a partir de tal transcendéncia que poseo ter tempo. No imanente estou sempre ocupado. © pois possivel ter tempo, na medida na qual ¢ possivel transcender @ situa edo, a menria e 6 morte, Nao se trata, no entanto, de alguma transcenééncis religiosa ou metafieica, ja que nao ee trata de trenscendéneia de um tempo ~ jabsoluto, Quem pudesse alcangar uma tal transcendéncia netafisica, nao teria tempo, mas a eternidade, Fora ter tempo, basta trenscender-ne a mim mano, ido hA necose4aade para visces religimsae para tanto, basta um pouco de iro- nia e auto-ironit, Basta into, e, no entanto, teto nfo @ tho fkeil, Nao 6 fheil, porque a ironia, como nao importa que transcendéncia, exige discipli- na © constente vigilincle e controle, Mal conquictei mou tempo, e j& ele vol te a ocupar-ne pelos mil fios pegagosos que me prendem a situagso, @ membria e A norte. § por isto que @ tao raro encontrar pesséae que tém tempo. Eos | que tm toxpo, Iutem para manté1o sob controle e a servigo dierianente. Tu- tan consigo mesmos. Porque o obstfculo a ser vencido Pere se ter tempo no 6 nem a situagdo, nem & memoria nem a morte, mes somos NOS meemos. Por isto nao @ 0 lazer que caracterize aquele quen tem tempo. Nem o caipira no bar da eaquina nen o turista americano tém tempo neste sentido. ambos eo ocupados por um tempo estagnado, embora por duas estagnagdes diferentest © caipira pelo presente estegnado, o turista pela mombria estagnada, smbos ttm tompo apenas no sentido de nao serem arrastados por cle, mas de nele se cael VILEM_FLUSSER efogarem pré= ou pos-histéricamente. Mas hi um segundo sentido do térmo "ter tempo", EB aste segundo sentido 6 aquele no qual o tempo se transforma em ob- Jeto humane, 1sto 6:0 homem que tem tempo tem a sua situaqio, e sua membria @ sua morte por objeto, Neste segundo sentido o singnimo de "ter tempo" 6 wviver", © quem nao tem tempo, nao vive, E pois para vivermos que devenos Inter contra née mesmos afim de termos tempo.

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