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20 Dilemas do Nordeste* Florestan Fernandes ‘Aos poucos, 0 governo atual retorna ao cocho. As bravatas da “modernizagao" e da "pés-modernizagao” so enterradas, uma a uma, com desenvoltura espan- tosa. 0 *arcaico” irrompe com forgae deita por terraas ilusdes de uma campanha eleitoral, na qual a midia se tornou, pela primeira vez, 0 veiculo de fabricagao do presidente. Depois de pularda boa {é para o bolso dos cidadaos, o candidate vitorioso sente-se cada vez mais livre para praticar um “neoliberalismo" rustico, de esséncia patrimonialista e retrégradal Apesar da aparéncia de realismo, a caracterizagao dos Dois Brasis de Jacques Lambert era simplista demais. © quadro global da periferia foi entendido com maior argicia por Gunnar Myrdal, em alguns de seus livros @ em especial em O Drama Asidtico(1). Busquei ir além de ambas posiges, em A Aevolupdo Burguesa no Brasil, examinando dialeticamente as artimanhas de uma classe dominante, que fez da condig#0 burguesa @ do espirito capitalista meios de autoprivilegiamento 7 Toute predunido, onnnalmeni, paraa Folge § Paulo,em271 1/90, porém no pubieage devido a alaragSes 2m programas do jonah Deputase focal pls PSP (0) LAMBERT. JO» Date MYROAL, 6. Aslan Drama: an inguey no poverty of naions. How York Desens de ine igre a Esa Kons exclusive @ fatores de articulagao entre 0 “arcaico’, 0 “moderno” @ 0 “ultramoderno” (2). Convertia-se a capitulagao ao capitalismo mundial em excelente negé- cio para essa classe ultraminoritéria. A satelitizagao do Nordeste, do Norte e do Centro- Oeste pelo eixo Rio-Sao Paulo e, mais tarde, pelo complexo financeiro que incorporou So Paulo aos dinamismos de exploragao externa e as formas oligo- polistas de capitalismo associado, selou a permanéncia de uma situago neocolonial naquela vasta regio do pais. As elites econdmicas, culturais ¢ politicas das classes dominantes dessa regiao fomentaram uma Propensao pseudopatridtica de “superagao do subde- senvolvimento”, através de incentivos fiscais e de uma enorme rede de intervengdes governamentais para eliminar os efeitos do “atraso econdmico, cultural e politico". Com a excegao tempordria da SUDENE, que marchou contra a corrente até o advento da ditadura militar, tais praticas visavamcriarmecanismoscartoriais de reprodugao do neocolonialismo, orientando para o exterior, para os capitalistas do Sul e para os privi- legiados da prépria regido verdadeiras modalidades ilicitas de transteréncia da riqueza, da cultura do poder. 0 desenvolvimento desigual do Nordeste, do Norte edo Centro-Oeste constitui um grande dilema nacional: pée em risco o equilibrio da Nagao; contribui para ) 80Uzh, 8, de. Caller tents atoms a S80 Paulo om Perspectiva, 7(2):20-21, abriVjunho 1993 incentivar a perpetuago de modelos daninhos de paternalismo, clientelismoemandonismo(impedindoaté © combate a fome, a multiplicagao de trabalho valor zado pelo mercado, @ expanséo da educagio, a formagao de democracia, etc.); e favorece o fortaleci mento de animosidades separatistas potencialmente dteis a uma eventual coreizagao do pais. Ora, essa gente do tope raramente encarou o desenvolvimento dosigual do modo objetivo © construtivo, dando priori- dade & auto-emancipagao e a integridade da Nagao como totalidade hist6rica, Ela o transformou na barreira psicologica da detesa agressiva de interesses espurios, situando em primeiro lugar o seu forte privilegiamento como “donos do poder” (no sentido empregado por Raymundo Faoro) (3). Eterrivel que os incentivos voltem a tona na politica oficial, atravésda sugestéo de um lider governista como Amaral Neito, encampada pelo senhor presidente Devemos vencer e superar o desenvolvimento desigual a todo custo. Porém, nao seguindo o velho esquema desmorelizado de alribulgéio de recursos piblicos @ individuos e firmas, que os drenam para fins destrutivos = egoisticos ou moramente particularistas. H4 dois eaminhos para fazer isso corretamente: ou pela via capitalista, como se fez, por exemplo, nos Estados Unidos, no caso do Tennesse Valley Authority, ou por téonicas sociais socialistas, impraticaveis emnosso pais na situagao existente, O que se pretende fazer constitul um acinte, um retorno grotesco a um pasado indese- javel. Por ai néo s6 jogaremos dinheiro e grandes esperangas fora, mas também consentiremos que a chamada “era Collor" consagre marchas a ré histéricas indignas e ealamitosas. 5 24 futura metrépoleindustrial, é significative que, em 1926, tena sido langado, em Recife - a capital m desenvolvida do Nordeste - 0 Manifesto Regionalistade Gilberto Freyze (5). © movimento de 1926 tem um sentido, de certa maneira, inverse aode 1922, pois, a0 contrario de exaltar a inovagio que atvalizaria a cultura brasileira em relagao ao exterior, procurou preservar nfo 86 a tradigao om geral, mas especificamente a de uma regi8o economicamente atrasada, O Manifesto Regionalista dasenvolve basicamente dols temas interligados: @ defesa da regiéo enquanto unidade de organizago nacional; e a conservagao dos valores regionais e tradicionais do Brasil, em geral, e do Nordeste, em particular Ao frisar a necessidade de uma articulagéo inter- regional, Freyre toca num ponto importante e alual, ou s0ja, como propiciar que ae diterengas regionais con- vivam no saio da unidade nacional, em um pais de dimensdes continentais como o Brasil. Esse tipo de preocupagao comparece também em trabalhos poste- Hieree dease autor. Numa conferéncia realizada em 1944, nos Estados Unidos, e sugestivamente intitulada “Unidade @ Diversidade, Nagao e Regio’, ele afirma que “Uma regido pode ser politicamente menos do que uma nag. Mas vitalmente e culturalmente & mais que uma nagio; 6 mais fundamantal que a nagdo como con digo de vida e como meio de expressao ou de criagao humana, Um fil6sofo, no legitimo sentido, tem que ser super ou supranacional; mas dificilmente ele pode ser supra-regional no sentido de ignorar ae condigéos regionais da vida, da experiéncia, da cultura, da arte e do pensamento que the cabe julgar ou analisar* (6) E justamente a uma conclusae semelhante que chegaram os modernistas a partir da segunda fase do movimento, quando se deram conta de que a tnica maneira de ser universal € ser nacional antes. Guardadas as proporges, o que Freyre esta afirmando € que 0 nico modo de ser nacional, num pais de dimensées como o Brasil, 6 ser primeiro regional Entretanto seu modo de argumentar 6, de certa maneira, 0 Inverso dos modernistas, |é que ndo esta alicergado numa atualizagao cultural através de valores modernos vindos do exterior, mas, ao contrério, na {© eacuiminaosaatia que o Movimento Regionals nd ol pubicago em 926, sin em 1952, cata om que Guberis Freyeprovaveimente er ecg, INOJOSA, J. Pa de Cal. io de Jaret, Ediora Moo-Di, 1678 ‘Oaulordoaanitesto tia que otontoollido en t926ne rine Congress Brasiovo de Rasionalsme realizado an Rec «pubicada tin primar esto 1962, Ver do Paulo em Perspectiva, 7(2):22-28, abriljunho 1993, critica aos maleficios do progresso ¢ da importagao de costumes 0 de valores estrangeiros. Assim, por exem- plo, ao analisar o Nordeste, ele afirma que essa regio estaria perdendo a consciéncia de seus valores hist6- ricos @ de suas possibilidades devido & padronizagaio decorrente da conquista industrial do mundo @ aos efeitos de influ8ncias semelhantes no Brasil. Poder-se-ia argumentar que podem ser feitas, pelo menos, duas leituras do Manifesto Regionalista. A pri- meira 0 consideraria um documento elaborado por um intelectual representante de uma aristocracia rural, que ve a ordem social passar por transtormagdes que colocam em xeque o padrao tradicional de dominagao. Sua reagao é de cunho tradicionalista e se assemelha & reagio aristocratica frente as mudancas decorrentes da urbanizagéo e da industrializagao @ que estavam vazadas numa critica & perda de valores comunitarios e da pureza cultural, que supostamente teriam existido no passado. Nessa linha de interpretagao, poder-se-ia dizer que, na defesa da regido, existe uma estratégia de quem vé as oligarquias nordestinas perderem, cada vez mais, 0 poder e, por esse motivo, procura opor ao poder cen- tral uma unido das periferias regionais. De modo seme- Ihante, poder-se-ia buscar na defesa intransigente das tradigdes e valores populares uma posi¢do saudosista, que tenta erigit uma cultura popular cristalizada na forma de simbolo de nacionalidade para contrapor a uma modernidade definida como estrangeira. ‘Semdescartarnenhum desses argumentos, umase- gunda leitura ressaltaria, entretanto, que, por tras da orientagaoconservadora do Manifesto, estdotemas que continuam sendo muito atuais no Brasil. E justamente nafuséiode umaperspectiva conservadoracomolevan- tamento de quest6es ainda nao resolvidas no Brasil que reside a originalidade do Manifesto Regionalista De fato, o Manifesto suscita uma série de questes que s&o recorrentes em nossa histéria: estado unitario versus federagao, nagao versus regido, unidade versus diversidade, nacional versus estrangeiro, popularversus erudito, tradig&io versus modernidade. Continuamos discutindo a formulagao de modelos Para organizar a nagio, sendo que esse debate acaba, inevitavelmente, passando pola discussdo do que é nacional (e portanto auténtico para uns, mas atrasado paraoutros) ¢0 que é estrangeiro(ousela, espuriopara uns, mas moderno para outros). Em outras palavras, continuamos girando om torno da questo da identidade nacional, que 6 reposta e reatualizada A medida que novos contextos sao criados. A década de 30, no Brasil, Jonge de aumentar 0 poder das regiSes, fez crescer a forgacentralizadora do 23 Estado nacional. Adorrota da Revolugao Constituciona- lista de 1932 6 um marco nesse proceso. A tendéncia centralizadora acentua-se com a implantacao da ditadu- a do Estado Novo. E significativo que a constituigao que marcou seu inicio tenha suprimido as bandeiras estaduais. Menos de um més apés a implantagao do Estado Novo, em 1987, Vargas mandou realizar a ceriménia da queima as bandeiras estaduais na Esplanada do Rusell, no Rio doJaneiro. Nesse ato, que marca, simbolicamente, uma maiorunificag&o do pais eumonfraquecimentodo poder regional © estadual, foram hasteadas vinte © uma bandeitas nacionais em substituigao &s estaduais, que foram incineradas numa grande pira erguida no mefo da praga, ao som do Hino Nacional tocado por varias bandas e cantado por milhares de colegiais, sob a regéncia de Heitor Villa Lobos, figura de destaque da semana modernistade 1922. Aceriménia da queimadas bandeiras marca, no sentido ideolégico, 0 enfraqueci- mento do poder regional e estadual, podendo ser considerada um ritual de unificagao da nagao sob a égide do Estado. © Rilo Grande do Sul, por ser 0 estado mais meridional do Brasil, mantém uma relagao peculiar com © pais. Constituindo-se num territério de fronteira, sua relagao com o pais caracteriza-se pola tensao entre autonomia e integrago. As peculiaridades do Rio Grande do Sul contribuem para a construgso de uma sérle de representagdes ao seu redor, que acabam adquirindo uma forga quase mitica que as projeta até nossos dias e as tazem informar a agao e criar préticas no presente. Apesar da diversidade interna do Estado (a ponto de um autor falar em “doze Rio Grandes")(7),atradigao € @ historiogratia regional tendem a representar seu habitante através de um Gnico tipo social: 0 gadicho, © cavaleiro e pedo de estancia da regiao sudoeste do Rio Grande do Sul. Embora brasileiro, ele seria muito istinto de outros tipos sociais do pais, guardando as vezes mais proximidade com seu homonimo da Argen- tina e do Uruguai. Na construgao social da identidade do gaticho brasileiro, hd uma referéncia constante a {BARBOSA LESSA, LC. Os Dore Rio Grandes. Pots Alegre. SAMMIG, 1081 aavcna, a subarea clonal #2 subarea rlosgrancanse cna. Ver AZEVEDO, 7, Galichos,Nolasce Anropslogia Socal. Sis, Tipagrtis ava, Aig Grande, imagem » coneiénea, Os Brasileiros: ertudos 20 (@) GouLant, Js. A Formagio We Rio Grands Go Sul, Pavia Alege, Maxine (0) core contiton no Rio Grande do Su, Ver (00) LOVE, JL. O Regionalisme Gaucho, Sse Paulo, Potspecvs, 1975 24 elementos que evocamum pasado glorioso, noqual se foriou sua figura @ cuja exisiéncia seria marcada pola Vida em vastos campos, a presenca do cavalo, a fronteira cisplatina, a virlidade e a bravura do homem 0 entrentar 0 inimigo ou as forgas da netureza, a lealdade, a honra, ete. No processo de glorficagao do gaticho, que faz parte da construgso social de sua identidade, torna-se necessério distingui-lo de seu homOnimo de outros paises. Assim, em 1927, procurande tragar as aproxi- mages entre © gaucho rio-grandense ¢ © gadcho platino, Jorge Salis Goulart afirmou que “O ‘gadcho malo’ é uma crlagdo da pampa platina. Esse tipo ‘sul generis’ que briga tho-somente pelo gosto de brigar, etemo inimigo da sociedade © da justiga, guerrairo indomavel e aventureiro, dominado pelo vicio do jogo @ pelo amor da luta cruenta, heréi andnimo do Pampa, 6 peculiac as populagdes castethanas. O rio-grandense no. € sdbrlo, é ordeiro, embora nunca tema afrontar © inimigo para quo soja mantida a sua organizagao social. A longa série de fatos cruentos que a historia do Prata registra é completamente alhela & histéria do Rio Grande do Sul...) O gaucho platino é um redelado contra a sociedade © as leis que a dominam, O eausi- Iho que chega & suprema governanga nao visa o bem piblico porque ele 0 néo compreende. Todas as prer- rogativas esiéo na sua personalidade de autocrata tude e bronco. O rio-grandense 6 ocontrario. Em[18]35_ ele se rebela para dar & sua terra um governo mais seguro, mais de acordo com as necessidades do seu povo” (8). E interessante notar que, & época em que essas afiemagdes foramfeitas, a Revolugao Farroupilna(1895- 1245) estava completando quase cemanoseasguerras, do Prata j4 haviam cessado hd muito. O que tinha acontecido recentemente no Rio Grande do Sul eram contltos internos de indole extremamente sangrenta e cruel (9), Assim, de 1893 a 1895, o Estado esteve mergulhado na Revolugao Federalista, a guerra civil mais eruenta da historia do Brasil, na qual morteram de dez a doze mil pessoas, numa populagao de um mithao de habitantes (10). Em 1929 houve um novo conflito interno entre os mesmos grupos envolvidos na Revo- lupo Federalista, que terminou com um pacto que previa a impossibilidade de 0 presidente do Estado “eleger-se" novamente, Nessa época, os caudilhos eram figuras centrais nos contltes e politicas do Estado, Pode, portanto, parecer estranho falar-se, naquela época, sobre 0 cardter ordeiro e a indole pacitica do gaticho brasileiro, quando acabava-se de viver momen tos marcados por extrema belicosidade. Do mesmo modo, chama a atengio a preocupacde constante de parte da historiogratia gadcha no sentido de frisar, a partir daquela época, 0 carter néo-separatisia da Rovolugdo Farroupitha, apesar desta ter proclamaca a Repiiblica Rlo-Grandense. Essa preocupagao jd existia, 6 vordade, por ocasio do préprio movimento, que teve origem na insatistagio de estancieiros em relagéo & excessiva centralizagdo politica imposta pelo governo central e no sentimento que a provincia era explorada economicamente polo resto do Brasil, Em 20 de setembro de 1935, data em que secome- morou 0 centendrlo da Revolugao Farroupilna, numa sessio civiea promovida no Rio de Janeiro pelo governo do Distrito Federal, um doputado federal pelo Rio Grande do Sul pronunciou um veemente discurso. no qual alirmou que, para os farrapos, a revolugao “era o anseio de sua brasilidade; era 0 sentir do patriotismo gaucho; era a confisado de que (...) eles queriam mos- trar que eram brasileiros, que queriam viver, dentro da comunhéo brasileira, ligados pela Federagao dos Esta- dos. Ninguém poderd obscurecer essa verdade brllhan- te" Assegurando queosrebeldes“Ioram, principalmente © acima de tudo, brasileires",ele conclulu: “O meu brasileiro Rio Grande... Foi, pelo Brasil que lutamos, ontem, lutamos, hoje, @ lutaremos, amanha” (11). Mais do que uma omissdo escandalosa em relagéo a0 que estava ocorrendo, o que se nota nos escritos, desses intelectuais, quando insistem no nao-separatis- mo da Revolugao Farroupitha e nas diferengas essen- ciais entre © gaucho brasileiro © 0 platino, é uma tentativa de afirmar a brasilidade do Rio Grande do Sul @ de seus habitantes. Embora atualmente isso possa parecer supértlue, convém lembrar que boa parte doles estava escrevendo antes ou logo depois de 1990, quando ainda no havia se consolidado a integragao econémica e politica do pais. Um dostemascentrais da intelectualidage, naquela época, era o da formagao da nacionalidade eda integragdo nacional, A Revolugdo de 1990, na medida que significou um processo erescente de centralizagaa econémica e politica, acentuov aidéia de unidade nacional e atribuiu ao Estado essa tarefa. E preciso, portanto, nao s6 alirmar a brasilidade Jo gaticho, mas também enfatizar seus tragos positives, mesmo que para isto seja necessario maquilar a realidade, passando por cima dos elementos que poderiam, eventualmente, ser considerados “bérvaros Estes deveriam ser “exportados” para 0 outro lado da frontoira: 0 Prata ‘Sio Paulo em Perspectiva, 7(2):22-28, abriljunho 1993 As peculiaridades da relagao entre 0 Rio Grande do Sule o Brasil icam evidenciadas de forma simbélicana bandeira do Estado que @ formada por trés faixas coloridas: umaverde, uma amarela(ambas evocandoas cores da bandeira nacional) © no moio uma faixa vermetha, denotando o sangue que foi derramado na histéria do Estado. No centro desta faixa vermelha, que simboliza de forma tZo veemente a quota de sacrificio paga por seus habitantes ao intograrom a Federagao, hum brasSoque contém, entreoutras coisas, canhes, langas, baionetas e duas frases: “Liberdade, Igualdade, Humanidade® (0 lema dos farrapos) e “Republica Rio- Grandense, Vinte de Setembro de 1835", lembrando, constantemente, que, embora o Rio Grande do Sul faga parte do Brasil, j4 foi uma republica independente, sendo que o episédio deve ficar bem presente na meméria (12). O Estado, neste século, esteve envolvido numa sé- rie de revoltas e movimentos que teriam um carater “pedagégico", através do qual interveio na politica nacional para dar-lhe outro rumo, Assim, a *Coluna Prestes’, que fol um dos marcos do tenentismo, comegou em 1924 em Santo Angelo, na regido das MissOes (fronteira com a Argentina), com 0 jovem ito do Exército Nacional, Luiz Carlos Prestes, posteriormente secretario-geral do Partido Comunista Brasileiro. A marcha da Coluna Prestes durou mais de dois anos, indo até o Nordeste (através do Paraguai) para, voltando por Golds e Mato Grosso, terminar na Bolivia num percurso de mais de vinte © cinco mil quilémetros, A Revolucdo de 1930, movimento que teve origem no descontentamento das oligarquias peritéricas e que colocou Getilio Vargas no poder, também comegou no Rio Grande do Sul. 0 movimento conseguiu fazer os politicos estaduais esqueceram suas clivagens internas em face do problema externo Em 1961, quando o Presidente Jénio Quadros re- nunciou e houve uma tentativa de nao permitir que seu vice, 0 gaécho Joao Goulart, assumisse a Presidéacia, toi novamente no Rio Grande do Sul que ocorreu uma resisténcia vitoriosa, denominada de “Legalidade". O golpe de 1964, embora nao tonha se originado no Rio Grande do Sul, nao se concretizaria sem a adesao do entao Ill Exercito, com sede em Porto Alegre, e que sempre teve 0 maior contingente de soldados do Brasil. Dos cinco generais que governaram o pais de 1964 a 1985, trés eram gadichos. Porém, se essos episédios signiticam a intervencao do Rio Grande do Sulna politicanacionalcomo objetivo de corrigir os seus rumos, é interessante ofatode que, freqdentemente, seus habitantes continuom se quoixan- 25 do de que o Estado nao lucrou nada com sua Intervengaio. Novamente, oEstadoestariaperdendocom © seu relacionamento com o Brasil. Assim, por ocasiéo do sesquicentendrio da Revolugao Farroupilha, o entéio Ministro da Agricultura e depois Governador do Rio Grande do Sul afirmou que “Nossa marginalizagao na vida politica nacional tem causas préximas e remotas. ‘As proximas so bem conhecidas: muitas de nossas liderangas estiveram, nos tltimos vinte e poucos anos, intimamente associadas ao regime que se foi. O des- crédito que cobriu o regime passado se estendeu naturalmente a parcelas do liderangas rio-grandenses. Mais grave que isso foi, contudo, 0 fato de tais lide- rangas terem participado da alta administragao federal sem disporem de um projeto articulado de defesa e estimulo ao desenvolvimento do Rio Grande. Recebe- mos 0 descrédito e nao ampliamos nossa faixa de patticipagao no processo nacional de decisées. (...) A forma pela qual o Rio Grande participa da vida nacional esté ancorada em dificuldades que vém de longa data. Refiro-mo a manoira tradicional de insergao do Rio Grande na politica nacional. Nossa participagaio na vida politica tem oscilado entre dois extremos. De um lado, a tendéncia a uma certa exclusao, a0 iso- lamento, de outro, a participagao periférica no sistema de poder central. Com a rovolugao de 30 nossos mo- thores quadros politicos e administrativos emigraram para 0 centro do pais e ocuparam posicdes de desta- que na administragao federal. O projeto de moderni Zagao que se implantou a partir dai, entretanto, nfo contemplava o Rio Grande com uma posigaodestacada, equivalents & nossa contribui¢go para a direcdo da maquina estatal” (13). Osesquicentendrioda Revolugao Farroupitha foi um marco amplamente comemorado. Entretanto, diferente- mente do que tinha ocorrido cinqienta anos antes, foram frisadas as diferengas do Estado em relagdo ao Brasil e néio & Argentina ou ao Uruguai. Isso tem de ser ‘compreendido em fungdo de varios fatores. Em primeiro lugar, devido ao fato de o Brasil estar fortemente integrado do ponto de vista econdmico, politico, de transportes, de redes de comunicagao de massa, ete Nesse sentido, a integragao nacional ocorreu de forma muito clara. No hé mais, portanto, necessidade de entatizar 0 quanto o Rio Grande do Sul pertence ao Brasil. Ao contrario, em 1985, 0 Estado, a semelhanga do que ocorrera 150 anos antes, estava “de mal" com © Brasil, pois se considerava injustigado e com sous brios feridos. (Go) SIMON, F-MarginaiaeSo politica do Ria Grande. Zero Hora. Porto Aes. 20 de seiombro de 1985, Suplemento “asrape”. 9.22. 26 Chama a atengao 0 fato de como sao recorrentes 0s temas que ocupam os gaUchos em periodos tao diversos. Hé uma constante evocagaoe atualizagaodas peculiaridades do Estado eda fragilidade de sua relagho com o resto do Brasil. O Rio Grande do Sul pode ser visto como um estado onde o regionalismo 6 constan- temente reposto em novas situagbes histéricas, econd- micasepoliticas. Apesarde asconjunturasserem novas a roupagem dos discursos se modernizar, o substrato basico sobre o qual estes discursos repousam é surpreendentemente semelhante. Nosse sentido, poder- se-ia afirmar que 0 gauchismo é um caso bem-sucedido de regionalismo, pois consegue veicular reivindicages politicas que seriam comuns a todo um estado. A continuidade © a vigéncia desse discurso regionalista indicam que as significagées produzidas por ele t¢m uma forte adequacao as representagdes da entidade gaiicha, No final dos anos 70, tornou-se lugarcomum afirmar que as tradig6es gaiichas estavammorrendo. Aprofecia no se concretizou, sendo que toda a década de 80 foi, na verdade, fortemente marcada pelo renascimento do gauchismo. Embora seja hoje predominantemente ur- bano e integrado ao Brasil, 0 Rio Grande do Sul tem experimentado um renascimento das tradigdes gauichas, que muitos supunham definitivamente mortas ou restri- tas a bolsdes de sobrevivéncia cultural. Este proceso éresponsavel pela existéncia de, aproximadamente, mil centros de tradig6es gauchas filiados a0 Movimento Tradicionalista Gadcho, que reivindica a posigao de maiormovimento de cultura popular do mundo ocidental, com mais de dois milhdes de participantes, mais do quarenta festivals de misica nativista, envolvendo um publico de aproximadamente um milhdo de pessoas, & varios rodeios. Esse crescente interesse pelas coisas gauchas também ajuda a explicar 0 consumo de pro- dutos culturaisvoltadosatematicas gauichas: programas. de televisdo e radio, colunas jornalisticas, revistas e jornais especializados, editoras, livros, livrariase feiras de livros regionais, publicidade com referéncia direta aos valores gatichos, bailes, conjuntos musicais, cantores e discos, restaurantes tipicos com shows de masicas e dangas gauchas, lojas e roupas gauchescas, etc. Trata-se de um mercado de bens materiais e sim- bélicos de dimensées muito significativas, que mo- vimenta grande nimero de pessoas o recursos e que, pelo visto, esta em expansao. Embora sempre houvesse consumo de produtos culturais gaiichos, este era bem menor e estava mais concentrade no campo ou nas camadas populares suburbanas e urbanas de origem rural. A novidade 6 constituida pelos jovens das cidades, em boa parte de classe média, que recentemente passaram a tomar mate, vestir bombachas ¢ curtir musica gadcha, habitos que perderam 0 estigma de grossura. Considerando que aproximadamente 75% da populapao do Rio Grande do Sul vivem em situagao urbana, este mercado concentra- seem cidades e é formado, em boa parte, por pessoas sem vivéncias rurais. Nadécada de 80, aidentidade gaticha transformou- se num mével de disputas, caractorizado por intensas polémicas (14). Embora procurando posicionar-se em ‘campos opostos, os principais contendores - tradiciona- fistase nativistas- no tundo estavam girando em torno do mesmo campo semantico: a figura do gaticho, modo de construi-la, os eritérios para definit sua autenticidade, as instancias de sua legitimidade e consagragao, etc. Os primeiros e mais antigos atores do gauchismo - 08 tradicionalistas - se constituem em um movimento organizado (Movimento Tradicionalista Gaucho) (15) @ atento a tudo que diz respeito aos bens simbélicos do Rio Grande do Sul, sobre os quais procuramexercerseu controle e orientagao. Fazem parte, deste movimento, intelectuais com produgao escrita, ocupando posigses importantes em lugares estratégicos. Para eles, é fun- damental demarcar quais s4o 0s “verdadeiros” valores gauchos, dai a necessidade de se erigirem em guardiaes da tradigaio. Manter a distingdo entre 0 Rio Grande do Sul @ 0 resto do Brasil seria uma forma de preservar a identidade cultural do Estado. Por isso, um elemento recorrente no discurso tradicionalista 6 a referéncia & ameaga que pairaria sobre a integridade gaticha, As ameagas & integridade gaiicha viriam de fora, através da massificagdo e da inirodugao de costumes “alienigenas" disseminados pelos melos de comunica- dio de massa, e de dentro, através das deturpagdes de *maus" tradicionalistas, do uso inadequado da indu- mentéria por grupos artisticos, das aberragdes nas coreografias das dangas gauchas, etc, Dai a necessi- dade imperiosade definiro queécerto eo queserrado, ou do qua 6 auténtico © o que é espirio. Os tradicio- nalistas esto constantemente preocupados em de- marcar fronteiras, separando 0 puro do impuro. Assim sendo, todo 0 cuidado 6 pouco para frear o que 8 cha- ‘LIVEN, RIG. Aconstugso soci! da lomtidade gadeha. A Parte @@ Ted: 2 alvesidade cultural no Bratithagso (Capitals V), Pedpola, Voces (18) OLIVEN.A.G.embuceadot Parte Tod (08) ARAUIO, R.Sob 0 Signo da Cangio, Uma ansliee das fstvsienativiates Gn Pes-Gradvedo om Antiopoloia Social da UFROS. Polo Ange, 1907 doc ovinenioTrasicionlstaésho sd Cullral na Brash Nagao (Capiaio ‘S80 Paulo em Perspectiva, 7(2):22-28, abriljunho 1993 mado de “atropelonadescaracterizagaodaculturae dos costumes”. Toda essa preocupagao se traduzna busca de normas @ na elaboragao de documentos que pro- curam tragar diretrizes. Freqdentemente, os tradicionalistas atribuem a sio renascimento da cultura gatcha. O Movimento Tradicio- nalista Gaticho, entretanto, nao consegue controlar todas as expressdes culturais do Rio Grande do Sul, nem disseminar hegemonicamente suas mensagens. Atualmente, oxisiom diferentes formas de ser gaticho que nao passam necessariamente pelos Centros de Tradigdes Gauchas. O mercado de bens simbélicos gauchos ampliou-se, sendo que novos atores passaram a disputar seus segmentos. © outro grupo de contendores na polémica sobre 0 gauchismo & formado basicamente por miisicos @ jornalistas que se denominam nativistas e que nao aceitam 0 controle do Movimento Tradicionalista Gal- cho, a cujos membros clos apolidaram de “aiatolés da tradi¢ao", acusando-os de “patronagem cultural" e de “patrulhamento folcl6rico”. Os festivais de musica transformam-se em arena, na qual essas divergéncias aparecem de forma mais nitida. Nestes ha uma disputa constante entre tradici- onalistas e nativistas, sendo que estes consideram seu estilo 0 oposto dos primeiros, que é rotulado como “cultura do nheco-nheco”, Isto , pobre de recursos, calcada apenas no acordeom e sem a utilizagao de recursos sletrénicos, bem como presa aos temas sur- rados do passado. Ja os tradicionalistas invocam sua auloridade que seria decorrente de terem sido eles os criadores dos primeiros festivais © precursores do renascimento das coisas gatichas. Essas diferengas, apesar de gerarem acalorados debates, ndo sao, entretanto, to profundas, ja que tradicionalistas ¢ nativistas giram em torno da mesma tematica, Segundo uma pesquisa sobre os festivais, observa- se que esse debate se trava entre pessoas urbanas de classe média intelectualizada. Analisando a origem social de uma amostra de compositores dos mais importantes lestivais de misica do Rio Grande do Sul, Araujo mostrou que somente 20% deles viveram 0 cotidiano do campo em sua infancia ou adolascéncia. ‘A maioria nasceu e cresceu em cidades. Como estas eram predominantemente do interior, @ com frequéncia da regiéio do Pampa, isto é invocado como justificativa de conhecimento da vida campeira. No que diz respeito a origem familiar, 0s compositores, em sua maioria, provem de grupos possuidores de algum capital eco- nomico e cultural, o que acaba refletindo-se no fato de que 85% deles tiveram passagem por algum curso universitario. Apenas 15% vivem de musica (16). 7 Em que pesem as polémicas, as diferengas entre ‘tradicionalistas e nativistas estaonoestilo. Os primeiros assumem quase deliberadamente uma posi¢éo mais conservadora e pouca elaborada, ao passo que os segundos seriam mais progressistas @ inovadores, pretendendo fazer uma ponte entre 0 passado © 0 presente do Rio Grande do Sul. O que oles tem om comum, além da preocupagao com as raizes gaiichas, 6 0 fato de disputarem o mesmo mercado de bens simbdlicos e utilizarem instancias de consagragae como 08 festivais de musica, o debate jornalistico, etc. A primeira vista, pode parecer estranho esse re- nascimento do gauchismo na virada do século, quando © Brasil j4 se encontra bastante integrado do ponto de vista politico, econémico, cultural, de transportes e de comunicagsio de massa. Acrescente centralizagao oco- némica, politica e administrativae odesenvolvimentode sofisticadas redes de comunicacdo sao frequentemen- te considerados responsavels pelo enfraquecimento do poder regional e pelo aprofundamento de um processo de homogensizagao © padronizagao dos hébitos © atitudes da populagao. Apesar - ou talvez por causa - dessa crescente centralizagao, observam-se atualmente no Brasil tendéncias contrdrias a este processo, que se manifestam através da aficmagao de identidades regio- nais, das quais 0 Rio Grande do Sul é um exemplo expressive. © culto & tradigao, longe de ser anacronico, esta articulade com a modernidade @ © progresso. A evo- cago da tradigio manifesta-se freqilentemente em épocas de processos de mudanga social, tais como a transig&o de um tipo para outro de sociedade, crises, perda de poder econdmico e/ou politico, etc. © Rio Grande do Sul ¢ um exemplo expressivo dosse fenémono. Significativamente, 0 gauchismo ga- nha forga outra vez quando o Rio Grande do Sul, Es- tado com um passado fortemente rural, mas cuja Populagaio em sua maioria ja é urbana, sente que per de cada vez mais a importancia que desempenha no Brasi Se 0 gauchismo reedita a tradigao © a vida rural, elo 0 faz num estado urbanizado que se quer moderno. Pode parecer curioso que esse movimento lance mao de valores rurais ¢ do passado quando o Rio Grande do Sul 6 predominantemente urbano e bastante in- dustrializado. Isso leva alguns @ considerar o fendme- no como um mero modismo passageiro ou como uma ideologia anacrénica, mas curlosamente eficaz. Entre- tanto, pola extensdo © duragdio do fendmeno, 6 dificil rotuld-lo como modismo ou como ideologia ultrapas- sada. Em que pese 0 aspecto de moda que a publici- dade 6 capaz de imprimir a qualquer fendmeno, esse 28 6 bem mais duradouro que outras ondas. Da mesma forma, embora haja um nimero considerdvel de intelectuais apontando 0 aspecto ideoldgico e reacio- nério da vofta a um tempo idilico que ou nao existiu ou que nao existe mais, essa dendncia também nao re~ solve @ questo. Nesse sentido, por exemplo, fica dificil explicar por que um estado no qual uma ideologi conservadora seria hegemdnica tem uma tradigao politica oposicionista, sendo considerado a unidade federativa mais politizada do Brasil. Ocorre que o fendmeno esté longe de arrefecer © corresponde a uma tendéncia que se verificouno Brasil ultimamente. Com a abertura politica que comegou no final da década de 70, observou-se umintenso processo de constituigao de novos atores politicos ¢ de constru- 40 do novas identidades sociais. Tendo em vista que identidades so representagées formuladas em oposi- 40 ou contraste a outras identidades, o que se busca so justamente as diferengas. Assim, a construgdo dessas identidades passa pela elaboragao de tragos da cultura brasileira, que sao apropriados e usados como sinais diacriticos, isto é, que conferem uma marca de distingao a diferentes grupos socials. Pode-se estabelecer um paralelo entre o que se es- 4 ocorrendo atualmente no Rio Grande do Sule o que aconteceu como movimento modernista que comecou em $40 Paulo. Os inielectuais da semanade 1922, num primeiro momento, enfatizaram ¢ questéo da atualiza- gfe artistico-cultural do Brasil. Mas, apartirda segunda fase do movimento, os modernistas se deram conta que 86 chegariam ao universal através do nacional @ 0 ataque ao passadismo fol substituido pela énfase na elaboragéo de uma cultura nacional, ocorrendo uma redescoborta do Brasil pelos brasileiros. ‘Oque se verifica no Rio Grande do Sul parece estar indicandoque, atualmente, para osgauchos sésechega a0 nacional através do regional, ou seja, s6 6 possive! ser brasileiro sendo gaucho antes. Aidentidade gaucha € atualmente reposta enquanto expressao de uma distingao cultural em um pais que tem dificuldade de aceitar a diversidade cultural e onde os meios de co- municagao de massa buscam homogeneizar a socieda- de culturalmente. Quando se protende comparar o Rio Grande do Sul a0 resto do pais, apontando diferengas @ construindo uma identidade social, € quase inevitavel que este processo lance mao do passado rural do Estado e da figura do gaticho, por serem estes os elementos emblematicos que permitom ser utilizados como sinais distintivos. 5

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