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OBSERVACOES PARA UMA TEORIA GERAL DAS IDEOLOGIAS* Thomas Herbert ‘Comecemos por lembrar os resultados aos quais acreditamos ter chegado ao final do estudo precedente!. A proposicdo geral sobre a qual nos apoiamos é que tada ciéncia - Este texto, assinado Thomas Herbert, publicado originalmente nos Cahiers pour Fanalyse, n° 9, em 1967, tem uma relagio fundamental com os trabalhos que indo instaurar 0 territério da Andlise de Discurso da Escola Francesa, fundada por M. Pécheux. Estes trabalhos (de T, Herbert ¢ M. Pécheux), introduzinde a nogée de discurso, marcario uma diferenga com 6 estruturalisme, tal qual, pela introdugio da nogio de funcionamento (M. Pécheux, 1969) que permite aliar estrutura © acontecimento. Faz ainda parte desse desenvolvimento, uma outra claboragio da nogio de ideologia, marcada pela sua relago com a linguagem, conde esti pressuposta, por sua vee, a relago, eatre si, do marxismo, com a psicanélise € com a linguistica, a. Inés grandes regiGes te6ricas da virada do >éculo. Em M. Péchcux (1969) € de se notar, particularmente, a re- significagio que ele produz das nogées de metonimia e metifora - ji anunciadas neste texto que traduzimos de T. Herbert - através do trabalho do feito metaférico no dispositive analitico que procura construir, acentuando a importancia da hist6ria eda ideologia. Nele, metéfora ¢ ideologia ni so desvios, mas o cee mesmo do proceso de produgo de sentides. A “incompreensio” do que esta forma de anélise introduce como- critica (e como dificuldade) lem silenciade o ponto nodal em que se introduzem as consideragéies histérico- ideol6gicas. Dirfamos entéo, repetindo M. Pécheux (1975), que este € 0 ponto em que a lingoistica tem a ver Rua, Campinas, 1-63-89, 1995 64 Observagdes para uma teoria geral das ideologias qualquer que seja seu nivel atual de desenvolvimento ¢ seu lugar na estrutura teérica - € produzida por um trabalho de mutacio conceptual no interior de um campo conceptual ideol6gico em relagie ao qual ela toma uma distincia que Ihe da, num s6 movimento, 0 conhecimento das errincias anteriores e a garantia de sua prépria cientificidade. Nesse sentido, toda cigneia ¢ inicialmente ciéneia da ideologia da qual ela se destaca?, ‘Tinhamos por auiro lado constatado que o aparecimento de uma nova prt cientifica nae devia ser compreendido como 0 efeito de um toque de génio, de uma intuicdo originiria do real (Newton diante de sua famosa macieira), mas de um trabalho tedrico que chega - em certas circunsténcias que dizem respeito menos ao "valot” individual dos trabalhadores do que ao estado conjuntural do campo que se Ihes oferece = a vencer as resistencias ("obstdculos" na terminologia de Bachelard) que asseguravam & ideologia sua inviolabilidade, Isso nos havia conduzido a duas ordens de observagées: a) De um lado, convinha distinguir em uma ciéncia, qualquer que ela seja, 0 momento primeiro da *transformagio produtora” do objeto dessa ciéncia, pelo qual ela se di a palavra, ¢ © momento segundo da "reproduc metédica" de seu objeto, pelo qual ela explora, do interior, 0 seu discurse, para testar sua coeréncia. O primeiro. momento aparecia dominado por um trabalho de tipo "tedrico-conceptual", destinado a subverter o discurso ideolégico natural "dado". O segundo momento pode ser qualificade de "conceptual-experimental", na medida em que estabelece os fendmenos que essa citncia, produz (torna visiveis). Tinhamos com isso constatado que, para as disciplinas nas quais a fase “te6rico-conceptual” havia sido inconsideradamente recoberta pela pritica com a filosofia © com as cigncias das formagdes sociais, Ponto que no é um fecho, jf que a questo do sentido & uma questi aberta. Certamente, esse texto, dado o fato de que ele foi escrito em 1967, trag em si os tragos de um discurso marcado pela canjuntura disciplinar de entio, sem no entanto perder a forga teGrica do deslocamento de que € 0 sintoma (NDT). T +Reflextes sobre a situacio tedrica das cincias sociais ¢, especialmente, da psicologia social", Cahiers gour tAnalyse, 2, p. 174-203. ‘As notas de rodapé dio conta de certas crit passive, reparar os erros que elas apontam, 38-38 quais o texto primitive dava Iugar, ¢ tentam, tanto quanto Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 Thomas Herbert 65 "conceptual-experimental" - como 6, singularmente, o caso das "ciéncias sociais” -, 0 efeito de ruptura em telagio 2 ideologia nao havia sido produzido, ¢ que, conseqtientemente, a experimentagio reproduzia esta afirmando sua realidade ilusdria (efeito de "realizaeao do real"). ) De outro lado, tinhamos avangado a necessidade de discernir, dentre as resisténcias ao trabalho tedrico, formas diferenciais devidas & relagao que o dominio correspondente mantém com a estrutura da formacio social: de onde a distincio entre as ideologias de tipo "A", a propésito das quais se exerce uma resisténcia local (uma ideologia tenta se passar por uma ciéncia, produzir os efeitos dela ¢ recolher seus beneficios), © as ideologias de tipo "B", cuja resisténcia esti estruturalmente ligada a estrutura da sociedade como tal, onde elas desempenham © papel de cimento, E sobre esta duple forma da resisiéncia ideolégica que nos propomos retornar, para identificar, tio precisamente quanto possivel, as causas desta dualidade ¢ as -conseqiiéncias que ela implica. © trabalho anteriormente efetuado nos forneceu alguns esclarecimentos que podem servir de ponto de partida. As ideologias de tipo "A" apareceram no curso da ansilise como produtos derivados da pratica técnica emplirica (haviamos especialmente desenvolvido sobre este ponto © exemplo da Alquimia). As ideologias de tipo "B" se tevelaram como as condigées indispensdveis da prdtica politica, condighes que. se realizam sob forma de combinagées varidveis segundo as formagées sociais. Constata-se que essa diferenca remote a diferenga estrutural fundamental que constitui a esséncia de todo modo de producao, a saber, a diferenca entre forcas produtivas ¢ relagdes de producdéo. Mostraremos em seguida todas as conseqiiéncias dese ponto de partida, as quais, digamos desde ja, nJo consistem de modo algum numa interpretagio "economicista” dos mecanismos ideolégicos*, 3 Ao pé da letra, ¢ falso falar de uma “préticn técnica” oposta A *pritica politica”, ja que toda tec econdmica, politica ox ideol6gica, € um elemente dentro da estrutura de uma pritica. O que esti em jogo nfo &, pois, uma impassivel “pritiea técnica” oposia a uma “pritiea politica” de onde toda técnica estaria ausente: sio 08 efeitos diferenciais: produzidos pela dominincia do elemento técnico na estrutura "A" © pot seu Rea, Campinas, 1:63-89, 1995 66 Observagées para wine tearia geral das idealoxi Esta primeira colocacio autoriza jé certas constatagdes no que concerne jt conjuntura tedtica atual, Diremos que uma tcoria geral das ideologias se torna a0 mesmo tempo possfvel e necesséria, no momento atual, em razio de uma série de elementos cuja origem hist6rica, o estatuto tedrico ¢ a importincia siio variiveis. Esses elementos so os seguintes: 1. O aparecimento escalonado de ciéncias ditas "da natureza", a propdsito das quais podemos identificar as fases de "transformagio produtora do objeto’, que efetua a ruptura em relacio a um campo ideolégico de tipo "A" (Tales, Galileu, Lavoisier), © os momentos de "reprodugio metédica". O conjunto do processo constitu uma série de “efeitos de conhecimento” de tipo cientifice. © aparecimento das condigdes de possibilidade de uma ciéncia das formagdes sociais cujo momento de "transformacio produtora” leva o nome de Marx. Ele se efetuou ao custo de um trabalho tedrico considerivel dirigido ao mesmo tempo &s transformagoes do proceso de producéo (cuja causa dominante reside na transformagio dos meios de trabalho, ef. Balibar*) © & autonomizacio progressiva do nivel juridico-politico, cf. Poulantzas®, que torna visivel a funeio de protecio-reforco que as diferentes formas da "ideologia” (no sentido marxista classico) exercem frente 2 instincia juridico-politica: assim, as camadas estratificadas das ideologias de tipo "B" cram ao menos indicadas como futuros objetos de cigncia, Elas se tornavam, por direito, visivei 3. O terceiro elemento ¢ muito mais recente, ¢ desempenha 0 papel de obstéculo ideolégico com respeito ao desenvolvimento da ciéncia das formacdes sociais; trata-se do conjunto mais ou menos teoricamente arliculade das “ciéncias sociais” que se colocam no lugar do processo que, por direito, teria podide se produzir © que elas, de fato, recalcaram macigamente. Pode-se dizer com efeito que a fase de "reproducio apagamento ma estratura “B* que devem ser tomados em conta, Acrescentemios que esses efeitos sio sempre efeitos na ideologia: veremos mais adiante 05 fantasmas tedricos que resultam disso, respectivamente em “A” em "B*. E, Balibar, “Sur tes concepts fondamentaux du matérialisme historique”, Lire le Capital, . 2, p. 187. $.N. Poulantzas, “Preliminaires i Tétude de Vhégémonie dans "Etat", Temps modernes, 1965, n° 234.¢ 235. Rua, Campinas, 1:63-89, 1995. 67 metédica" do objeto da ciéneia das formagdes sociais ndo aconmeceu no sentido estritamente cientifico do termo, ¢ isso se deve a0 imenso recalque da cientificidade do matcrialismo historico que se exerceu sobre ele, sempre do "exterior", ¢, muito freqiientemente, do "interior". Assim s¢ constiluiu pouco a pouco um arsenal ledrico- pritico de meios técnico-politicos com a finalidade de responder a uma "demanda"® que emanava da formagio social exisiente, visando a Ihe adaptar-readaptar as "relagdes sociais" reais. O conjunto desses meios tedricos € priticas constitui, em seu conjunio, uma "matéria prima" ideolégica que pode ¢ deve ser teoricamente transformada, Este wiltimo ponto é fundamental. Com efeite, se toda ciéncia € ciéncia de uma ideologia, a "ciéneia das ideologias" ndo pode escapar a esta lei. Ela ndo tem entio por objeto primeiro uma realidade que seria a ideologia sob suas diversas formas "naturais", mas uma feoria ideoldgica da ideologia. As "ciéneias sociais", em seu estado atual, produzem globalmente esta teoria, ¢ € esta sua maior "utilidade” teGrica. 1A dupla forma da ideologia Retomemos o exame da forma dupla que acreditamos identificar na ideologia: - A ideologia, enquanto referida av proceso de producdo, aparcee come © processo original pelo qual conceitos operatérios téenicos, tendo sua funcao primeira no proceso de trabalho, sio destacades de sua seqiiéneia operatéria € recombinados em um discurso original; nés mostramos anteriormente esse quiasma téenico-ideoligico a propésito da astronomia e da alquimia. Conviremos chamar efeizo de conhecimento ideoldgico de tipo "A" o efeite produzido por esta organizacio. - A outra face do process, a saber, as relacdes sociais de producao, permitem 2 ideologia a fungdo de um mecanismo que produz e conserva as diferencas atribuir necessdrias a0 funcionamento das relagées sociais de produgao nas sociedades de classe, ¢ antes de tudo a "diferenca” fundamental: trabalhador/ndo trabalhador, Pode-se entdo 5 0 coneei anribuida, de “demanda” é alids ele mesmo um elemento necessirio do arsenal, 0 & Fungo que the & Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 68 Observacées para uma teoria geral das ideologias dizer que a ideologia tem aqui por fungio fazer reconhecer aos agentes da produga lugar no interior dela: chamaremos efeito de conhecimento ideolégico de tipo efeito desse mecanismo. seu "BY 9 Desde ja diversos problemas se colocam: 1. A idcologia "A" ¢ descrita como uma reorganizagdo de elementos, a ideologia "B" como um mecanisme. Que garantias pode esta heterogeneidade produzir para afirmar sua validade? Nio podemos dizer que se ha reorganizagie de elementos (em "A"), deve haver um mecanismo reorganizador, e que se um mecanismo funciona (em "B"), ele se exerce necessariamente sobre elementos, quaisquer que sejam? 2. Por outro lado, criticar-se-ia facilmente estas duas “formas puras" da ideologi observando que "na realidade” encontramos sempre formas mistas. Por cxemplo, mostrar-se-ia a juste titulo que a ideologia alquimica ("A") teve também uma funcao politico-religiosa evidente, que os ritos religiosos contém entre outras coisas elementos mégicos derivados de processos téenicos etc.. Somos obrigados entio a dosar as esséncias para misturi-las, para obter uma mistura semelhante a esta ou aquela pritiea idcolégica "concreta? Responderemos de inicio & questo n° 2 (a questio precedente reeeberd por si mesma sun solucio no curso deste desenvolvimento). Admite-se facilmente que encontramos 0 “religioso", 0 "iéenico", 0 "juridico" em "A" como em "B", e que a diferenca nio repousa tanto sobre os elementos colocados em jogo quanto sobre a forma de sew agenciamento. Aqui intervém um deslocamento ao qual convém prestar a maior atengao: até agora, dissemos que as ideologias "A" tinham sua origem no campo técnico € as ideologias "B" no campo politico, Podiamos entao pensar que a natureza material do himus (\écnico ou politico) sobre 0 qual brotam os cogumelos ideol6gicos era suficiente para dar conta de sua forma © de suas propriedades. A partir do momento em que dizemos que os elementos do campo tém menos importincia que a forma de seu agenciamento, somos conduzidos a estudar as condigdes formats que regem a aparigdo dos objetos de tipo "A" © de tipo "B", dito de outro modo, as condigdes estruturalmente diferen Rue, Campinas, 1:63-89, 1995 Thomas Herbert ) produzem as duas variedades. Vamos entio retomar a oposigio forgas produtivas/relacdes de producio, buscando nao a natureza do objeto ideolégico ‘engendrado, mas a forma de seu engendramento. - O processa de producdo se descreve como a combinagaa especifica do objeto (matéria prima), do instrumento e da forga de trabalho, armada de conceitos operatérios adequados. Vé-se por af mesmo que se opera o que chamamos anteriormente a realizacdo técnica do “reat” sob o controle de uma ideologia de forma técnica-empiriea que assegura o sentido do objeto produzido. Daremos ento a definigao seguinte: O efeito de conhecimento ideolégico "A" remete a forma empirista da ideologia, cujo ponto central é a produgao de um ajuste entre uma “significagao” ¢ a "realidade" que Ihe "corresponde ‘As relacdes sociais de producdo se deserevem como a lei imanente a uma formagio social dada, que atribui aos agentes da produgao o seu lugar em um sistema de lugares. ‘Tinhamos dito precedentemente que o instrumento de transformacio éa pritica politica tem a forma do discurso. Vamos precisar isto pela definigio seguinte: O efeito de conhecimento ideolégico "B" remete a forma especulativa-frasealdgica, cujo ponto central & a coeréncia das relagbes saciais de produgio no modelo de um discurso articulado que detém em transparéncia a lei de ajuste dos sujeitos entre si De onde © quadro seguinte: si, Designagao do efeito Hdeoldgico "A" lealégico de conhecimenio “origem do cfeito técnico politico forma da ideologia_| empirista especulativa £ claro que, se distinguimos a origem do efeito de sua forma, € para indicar que elas nao se superpéem automaticamente na mesma coluna; dito de outro mode, um dominio Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 70 Observagées para uma teoria geral das ideotogias ideol6gico € suscetivel de receber varias formas, 0 que corresponde a possibilidades de cruzamentas no quadro. Assim, para retomar 0 corpo de exemplos que temos uti podemos indicar as seguintes combinacées: zado desde o inicio, Origem do efeito Forma da Ideologia Exemplo tecnico empirista Ideologia vulgar das técnicas pré-lavoisianas tecnico especulal discurso alquimista politico especulativa discurso da filosofia tomista politico empirista cigncias sociais em seu estado atualmente dominante As observagées precedentes pedem uma preciso: elas colocam em evidéncia uma dupla forma da ideologia, que se pode caracterizar pela oposigao empirica/especulativa: esta oposigio € congruente com aquela que indica Althusser a propésito da dupla ilusio que, a cada passo, ameaca a teoria, Se © esbogo de andlise que acabamos de apresentar fundamentado ¢ constitui uma via fecunda a explorar, torna-se possivel mostrar teoricamente que esta dupla ameaca nao é um acidente tedrico de que a Teoria deveria idealmente - poder se preservar, mas © terreno mesmo de seu nascimento e de seu combate. Poderiamos, entio, nfo somente exibit as "faltas teéricas" que a ideologia produz no processo de conhecimento, mas também analisar os mecanismos que as produzem necessariamente sob sua dupla forma, segundo uma dominineia conjunturalmente definida: 0 passo em falso teérico nao seria entéo simplesmente um passo em false, uma falta por direito evitével contra a pureza tedrica, mas um efeito necessariamente implicado na estrutura da produgio teérica, como a historia desta parece bem o confirmar. Rua, Campinas, 1:63-89, 1995, Thomas Herbert aw 2. Semantica ¢ Sintaxe. Se retomamos as definicdes que acabam de ser dadas da Jorma emptrica ¢ da forma especulativa da ideologia, constatamos uma propriedade estrutural que ¢ sem ivida da maior importaneia, a saber, que a forma empirica concerne a relagao de uma significagio © de uma realidade, enquanto que a forma especulativa concerne a articulagio de significagdes entre si, sob a forma geral do discurso. Para usar termos importados da lingiiistica, diremos que a forma empirica da ideologia coloca em jogo uma funcdo semdntica ~ a coincidéncia do significante com o significado -, enquanto que sua forma especulativa coloca em jogo uma funcdio sintdtica - a conexao de significantes entre si. Ora, este & o lugar de colocar em evidéncia os desconhecimentos produzidos no nivel dessas duas fungdes no que chamamos teorias ideoldgicas da ideolog’ Em primeiro lugar, poderemos constatar que a idealogia empirica esta efetivamente fascinada pelo problema da realidade 4 qual o significante deve se ajustar: de onde a 4vel “funcio do real” atribuida ao homem, enquante produtor-distribuidor de jcages na superficie da “realidade" concebida como meio do animal humano, O homem €, nessa perspectiva, o animal ecoldgico que organiza seu meio, etiquetando-o com a ajuda de significagdes, o que conduz ao problema da "ancoragem" de significagies lade, que a psicologia tenta resolver em termos de aprendizagem e€ condicionamento, ao mesmo tempo que funda © recorte semantica das necessi jades ¢ das iensdes vitais do animal humano: o objetivo visado é a génese da significacdo no interior da relacio de co-naturalidade do organismo ao seu Umuvelt, © supde-se que a cia” € capaz de dar conta dessa pan-denominagio suscitada pelas necessidades que tendem a se satisfazer da maneira mais segura ¢ econémica possivel. Em segundo lugar, podemos mostrar que a ideologia especulativa designa, desconhecendo-a, a conexdo de significantes entre si: a dificuldade vem, em particular, da coexisténcia de dois efeitos a serem analisados conjuntamente, ¢ cuja conjuncao nio é bem discernida pela teoria ideolégica: trata-se do "efeito de sociedade" e do "efeito de Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 2 Observagdes para uma teoria geral das ideologias inguagem". Aquilo de que ela néo pode dar conta é 0 fato de que a funcao de reconhecimento de sujeitos entre si se assegura necessariamente sob a forma do discurso. ‘A teoria ideolégica especulativa da ideologia discerne bem a existéncia desse problema, mas no pode senio designi-lo © recobri-lo, enunciando que "o homem'" esta sempre implicado como elemento em um sistema de comunicagio de significagdes (Gestaltismo ¢ funcionalismo socioldgico) que desempenha © papel de um eddigo que controla as "interagées sociais" dos sujeitos entre si: "o homem” torna-se aqui o animal social, isto €,0 animal dotado de linguagem ¢ que se controla a si mesmo gracias & linguagem. A teoria ideolégico-especulativa da ideologia, em conseqiiéncia, consiste em considerar as "relagdes entre os sujeitos" como relagses "naturais" cuja natureza seria precisamente a natureza linglitstica do animal humano como animal social apto para intercambiar significagbes codificadas Resumamos em um quadro os diversos pontos constatados. Empirico Espectlativo homem como animal ecoldgico homem como animal social produtor-distribuidor inscrido em um sistema de significagdes de significagdes "fungao do real” “fungao de reconhecimento” relacao significante-significado telacio significante-significante Examinemos rapidamente as conseqiiéncias que podemos tirar desse exame: a teoria nao esta totalmente desprovida nesse ponto; dispomos de referéncias que permitirio, no decorrer da reflexio, identificar a natureza ¢ a importincia dos "esquecimentos” que designam as resisténcias préprias a cada forma de ideologi 1. A propésito da ideologia de forma empirica, parece possivel enunciar que a resisténcia dominante diz respeito 4 compreensao da especificidade simbélica do animal Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 Thorias Herbert 73 humano: a pseudo-génese da ordem do simbdlico no interior da ordem biolégica traduz essa concepeo empirista da "relacio" entre o significante € © significado que 0 tema da "relacao de objeto" (cf. Melanie Klein, por exemplo) representa muito bem. A questio sem resposta é de que maneira a passagem progressiva da necessidade bioldgica A pulséo e ao fantasma € possivel em continuidade homogénea? Os _trabalhos epistemolégicos recentes da pesquisa freudiana mani 20 contrario, que nio ha génese do significante (o que anula a idéia da produgio-distribuicio de significantes icante-significado resulta de uma propria da ideologia empirista): a relagio sign propricdade da cadeia significante que produz, pelo jogo de uma necessaria polissemia’, 05 "pontos de ancoragem" pelos quais cla se fixa no significado. Dai resulta, ao mesmo tempo, que somente as relagdes de similaridade-diferenca entre os significantes permitem compreender como se opera a posicio do valor, da marca, no sentido lingiistico do termo: em uma palavra, € 0 efeito de similaridade metaférica que permite colocar corretamente o problema da "realidade exterior” ¢ da prova dessa realidade, nao a realidade que permitiria, a partir de uma ligagdo origindria © nio metafdrica com 0 “objeto real", edificar a posteriori as metiforas. II. Sobre o segundo ponto concemente a forma especulativa da ideologia, parece possivel mostrar que o esquecimento resulta de um desconhecimento da relagio existente entre aquilo que chamamas o efeito de linguagem (ou efeito significante) ¢ 0 efeito de sociedade: se o homem for pensado como © animal que se comunica com seus "semelhantes", niio compreenderemos jamais por que € precisamente pela forma geral do discurso que as dissimetrias, as dessemelhancas entre os agentes do sistema de produgio slo asseguradas, Uma referencia sera aqui esclarecedora N. Poulantzas* escrevew a respeito do cariter propriamente politico do Estado capitalista: "As relagdes humanas 74, Laplanche © S. Leclaite, Temps modernes, 196) 183, p: 112: "uDitemos que aquilo que impede umn termo de osci ‘sem cessar - em diregdo a um outro, no € sua ligacdo empirica a uma cois#, mas o fato de ‘que 6 lero nko & univoco, de que comporta wirss defnigtes; 0 conjunlo dos senlides b,c €1c,, que impede um voesbulo x de eseapar pela porta que Ihe abe o sentido a" N. Poulantzss, "étude de 'hégémonte dans "Bit", Temps modernes, 1965, n° 234, p. B73. Ruc, Campinas, 163-89, 1995 74 Observagdes para uma teoria geral das ideologias naturais fundadas em uma hierarquia de subordinacio econdmico-social dos produtores - ver o Estado escravocrata € feudal - sio substituidas pelas relagdes 'sociais’ de individuos automatizados, situados ne proceso de troca", Sob a condigio de considerar devidamente que o que importa aqui é a diferenca entre "relagdes naturais" ¢ "relagdes sociais', podemos ver de que natureza 0 discurso capitalista se separa; trata-se da "comunicacao imediata" do homem com o homem, sob a forma de sinais visiveis do controle € da direcao hierérquica, encarnados pelo chefe, principe ou senhior rodeado de signos de seu poder. Acrescentemos desde ji que ¢ em relagdo as relagdes sociais capitalistas que as relacGes feudais-escravocratas adquirem 0 valor de uma natureza: € evidente que esse cfeito retrospectivo nao implica que as relagGes humanas tenham sido alguma vez "naturais", visiveis a céu aberto, para deixar de sé-lo um dia, Somente a diferenga tem aqui um sentido e poderia nos esclarecer. E interessante constatar, a partir dessa andlise, que € precisamente no momento «1 que © nivel politico se autonomiza que a politica aparentemente ¢ apagada na teoria ideolégica especulativa, tomando a forma de um proceso de comunicacio codificada entre os agentes. Talvez seja preciso concluir que o Estado deve, para atingir os seus fins politicos, recalear a dimensio politica nas relagdes de influéncia ¢ de controle, isto é, regredir ideologicamente aos mitos da época feudal © que & entio esquecida, isto é, recaleado, na ideologia especulativa tal como n apresentamos? Em que aspectos a relagao entre “efeito de sociedade" © “efeito significante" nao é vista ou é mal vista? Ao que parece, isso reside na interpretacio da relagio do significante com o significante. Se, efetivamente, o "efeito de sociedade" for redutivel & comunicacao intersubjetiva com a ajuda de "eddiges" - qualquer que scja, por outro lado, 0 estatuto destes -, certamente podemos enunciar que toda sociedade f €, conecta significantes entre si, © que toda linguagem tem uma fungio s identificdvel, mas nao podemos enunciar a causalidade que produz esses efeitos. De onde a tentagao tedrica de considerar toda sociedade como um mero sistema em funcionamento, onde cada parte € um reflexo transformado do conjunto do sistem: discernimos aqui o recalque da instdncia politica no interior da ideologia especulativa, que é, entretanto, totalmente controlada por essa instinc: Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 Thomas Herbert 75 Se, pelo contrério, aplicamos & questo que nos ocupa © enunciado que J. Lacan formula para fins a) diferentes - a saber: "O significante representa sujeito para um outro significante" -, discernimos que a cadeia sintética dos significantes determina para o sujeito 0 seu lugar, identificando-o a um certo ponto da cadeia (0 significante, no qual ele se representa), ¢ que esse mecanismo de identificagio diferencial nao € outro senio o "efeito de sociedade", cujas dissimetrias encontram aqui sua causa. ‘Adiantaremos o termo de metonimia, com as conotagdes que ele recebe: na pesquisa epistemol6gica atwal (conexio do significante ao sign ante), para designar o efeita pelo qual os "sujeitas” sio pegos na organizagio sintatica anes que di a eles 0 estatuto de sujeito, no sentido juridico do termo, isto ¢, como suporte de direitos ¢ de deveres nos quais se opera a identificagao. Vemos que 0 processo metonimico pode dar conta a0 mesmo tempo da inscrigio dos sujeitos na estrutura sintatica ¢ do exquecimente dessa inscric¢ao pelo mecanisma de identificagao do sujeito ao conjunto da estrutura, permitindo a reproducao desta. Digamos brevemente que essa inserigio remete & instdincia econdmica das relagdes de producio, ¢ o esquecimento dessa inscrigdo & instancia politica: voltaremos mais adiante a este problema. Assinalemos igualmente que o uso que fazemos de instrumentos inicialmente constituidos pela psicandlise coloca o problema da relagao entre o inconsciente analitico €0 inconsciente social do recalque ideolégico, relagio que abordaremos ulteriormente. Este € 0 esbogo teérico que podemos atualmente tragar da forma ideolégica especulativa (= com dominincia politica), que ilustraremos pela descrigio que N. Poulantzas faz das ideologias: "Seu denominador politico comum (reside no fato) de provecar uma ‘identificacao’ do individuo, pela sua participacao real nessa comunidade apresentada como sua propria sociedade, a0 conjunto da sociedade ¢ sua integragao as relagdes de dominagio de classe". Resumamos o que foi apresentado no seguinte quadro: 9 Op. cit. Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 6 Observagaes para uma teoria geral das ideologias Forma da ideologia Forma empirica Forma especulativa "B” canceitos ideoldgicos “funcio do real” "fungio de nos quais a ideologia xe reflete “relacda de objeto” "comunicacdo-controle social” proceso processo melaférico proceso metonimico especifice de substituicio do de conexao do ignificante pelo significante ao significante domindncia feito com @eito com dominincia do efeito domininci ssintit seméntica indicagao dos conceitos tedricos destinados prova aum papel da realidade determinante Parece possivel, a partir dai, enunciar os dois principi 1. principio de duatidade, que implica que a ideologia funciona necessariamente segundo duas modalidades, das quais s6 uma € dominante no interior de uma forma deolégica dada: distinguiremos a domindneia metaférica semdntica onde © clemento diferencial ¢ pertinente (a ideologia se apresenta entio como um sistema de sinais que permitem selecionar os valores ¢ identificé-los), e a domindncia metonimica sintética ‘onde o operador de conexio € pertinente (a ideologia assume entio a forma de um sistema de operacdes sobre os elementos, sistema simbélico que tem a forma geral do te6rico). Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 Thomas Herbert 1 2. O principio de desigualdade, que implica a impossibilidade de colocar a existéncia de formas "A" fora da existéncia de formas "B". Disso resulta a seguinte série de proposigées: I) Nao existe a ideologia "A" em estado puro. Il) Toda ideologia "A" deve passar em seu desenvolvimento por uma forma "B": nivel do tedrico especulativo, que tem um efeito de dominancia sintitica secundaria. Til) Uma ologia "A" opée em sua forma "B" uma resisténcia sintitica que a “transformagao produtora do objeto” tem por efeito vencer. A ciéneia correspondente produzida se torna a sintaxe do dominio de "A" considerado: somente ha ciéncia quando se exerce uma domindneta sintética de tipo espectfico, definida pela ciéneia considerada. IV) Uma ideologia "B" pode aparecer na estrutura social sob a forma “A* (dominancia semantica secundaria) sem deixar de funcionar sob a forma "B". V) As ideologias "B" funcionam segundo uma domindneia sintética primdria, que op6e uma resisténcia especifica (estruturalmente diferente da resisténcia derivada de tipo "A") a transformacdo-producio de seu objeto. Apliquemos esses resultados ao problema das ciéncias sociais: dissemos is se revelaram, em sua forma atual, como a aplicagio anieriormente que as ciéncias soc’ de formas técnicas a uma ideologia das relagdes soci: Podemos dizer agora, com mais ptecisio, que as "ciéncias sociais" tratam os efeitos ideolégicas "3" (politico- especulativos) com a ajuda de estruturas formais de tipo "A" (técnico-empiric pritica empirica de "realizagio do real" permite recalcar a determinagao politica que sustenta, entretanto, o conjunto de seu edificio técnico-politico ¢ produz uma domindncia sinuitica primdria que as torna particularmente resistentes a uma transformagio produtora de seu objeto. 3. Sinais e Diseursos Acabamos de mostrar que a ideologia pode funcionar segundo duas modalidades, sendo uma dominante no interior de uma formagio ideolégica particular dada: ‘Rua, Campinas, :63-89, 1995 8 Observagées para uma teoria gerat das ideologias . Na dominineia metaférico-semintica, a ideologia podera ser descrita como um sistema de marcas: diremos que 0 homem como animal metaf6rico marca sua po um sistema de sinais que balizam seu "comportamento”, isto é, © conjunto dos gestos de falas efetudveis. Citemos, a titulo de exemplos, oposices marcadas do género possivel/impossivel, acessivel/nao acessivel, autorizado/proibi conveniente/inconveniente etc., que correspondem a portas suscetiveis de se abrirem ou se fecharem, propriedades inscritas em objetos empiricos que designam 0 que se pode esperar deles. Nesse sentido, a dominancia semintica é evidente, na medida em que a sintaxe minimal que encadeia os sinais se apresenta como uma concatenagio elementar de gestos ¢ de falas que tém imediatamente sua prépria normatividade: vamos convir falar aqui de ideologia como sistema de sinalizagio. 2. Na dominancia sintitico-metonimica, ao contrario, a ideologia é fundamentalmente um sistema de operagGes. Sem diivida as operagbes exigem uma semintica residual, saida de uma forma "A", mas esta no tem a mesma fungio que no sistema de sinalizagio: ela se torna aqui a materia prima de uma construgio que incorpora os semantemas que encontra. E isto que N. Poulantzas viu bem quando escreveu: "As ideologias consistem em estruturas reais que, entretanto, na medida em que se referem & relagio dos homens com suas condigdes de existéncia, nio constituem a simples expressio = da ordem significante/significado, simbolo/realidade - desta relagio, mas seu investimento imagindrio"'®. Em oposicao aos gestos € falas que derivam do nivel semintico, dizemos que as "estruturas reais" (os micleos consirutores da ideologia de forma "B") instituigdes ¢ os discursos. Dai a oposi¢ao que se segue: Ideologia de forma metaférico-semintica 10 Op.cit., p. B86 Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 Thomas Herbert 79 Esta oposiedi indica a diregav que se deve explorar para aprender a diferenca entre 0 comportamento ideolégico ¢ 0 discurso ideolégico. As diversas formas referiveis da ideologia podem, nessas condiges, ser construfdas Por VariagSes sobre © modelo seguinte: a. Nivel semintico fornecendo o recorte fundamental da "realidade" em elementos sintagmiticos minimos separaveis. b, Nivel sintitico contendo as leis de combinagio dos elementos sintagmiticos, sob a forma de um repertério de operadores suscetiveis de produzir combinagdes. ¢. Nivel retérico suscetivel de produzir efeitos de conhecimento ideolégico da forma "A" © "B", por meio da metaféra e da metonfmia. A combinagdo variada dessas diferentes insténcias permite dar conta da diferenga ¢ da relacio existente entre © comportamento. religioso ritual ¢ © discurso. religioso (ou teologia), entre o ‘comportamento moral pritico ¢ a teoria moral et © ponto importante aqui € que os comportamentos econémicos, politicos, morais, religiosos etc. se metaforizam entre si (isto €, se emprestam elementos uns aos outros), enquanto que o discurso teGrico metonimiza as formas especulativas especificas da politica, da moral e da teologia: torna-se assim necessério tracar o sistema dos processos horizontais (metonimia) ¢ verticais (metiforas) que dao conta dos deslocamentos da ideologia. Seja o quadro que segu m, Economia A, ~—— B, M ¢ Vom Politica A, ~— B, Merit: 4 om Ideologia A,—B. Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 80 Observagées para wna teoria geral das ideologias As flechas horizontais (de B para A) designam os processos metonimicos pelos quais uma sintaxe organiza os elementos semanticos do nivel correspondente; as. flechas verticais designam os deslocamentos metaféricos do material semantico colocado em jogo na estrutura. Podemos desde entéo expor os resultados adquiridos até aqui por meio do esquema geral abaixo: 1)Economia Proceso de produgio —_Relages sociais de produgio m Ay —— Bj t [M, 2) Politica Organ | iscurso da produgdo | politico nobis Ay—> By t | My 3) Ideologia Sinalizacio —| ideolégica | ‘ m; —_ especulativa gro Bs Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 Thomas Herbert 81 Comentemos esie esquema: Encontramos na linha 1) semantemas que pertencem a zona A, do processo de produgao; tratam-se de marcas especificas que definem, para um modo de produgao definido, o carater "empiricamente dado" de certas matérias primas, de certos instramentos, de um certo estatuto da forga de trabalho. E preciso observar que, se nossas anilises precedentes sao exatas, os elementos semanticos nao existem nunca em estado isolado, mas s6 funcionam no interior de um sistema de natureza sintatica (no sentido definido mais acima) que se localiza na zona B, das relages de produgio: assinalemos certos operadores sintiticos como a lei de repartigao dos instrumentos de producao (setor 1) © a lei de reparti¢ao dos objetos de consumo (setor II); ¢ claro que a existéncia do modo de produgao econdmico resulta da aplicacio de B, sobre A, (efeito metonimico, m,, notado B, -* Aj). O deslocamento metaférico M, "faz cair" certos elementos do sistema B, -* A, em A;, onde eles se tornam elementos seménticos separdveis: por exemplo, em uma formagio social de estrutura capitalista, "chefe de empresa", "controle de produgio", "salério do trabalho fornecido", "operdrio", "contrato de trabalho” sio fragmentos do sistema B, + A, que tomam um sentido nove ao nivel do campo semintico A2 da organizagio da producio na empresa (lugar efetivo das relagdes de comunicagio-controle-gestéo, colocande em jogo uma marcagao do espago social da ‘empresa, uma distribuicdo dos sinais sociais). Esses elementos sao, simuliancamente, o objeto do efeito metonimico m,, pelo qual as significagGes de "diregio da empresa", "salério", "retribuigio do trabalho fornecido", “contrato de trabalho" tc, sao reorganizados segundo uma sintaxe diferente B, a saber, o grupo de operadores juridicos que estio na base dos cddigos, leis ¢ instituigées legais proprias a uma formacio social determinada, e que constituem 0 que se poderia chamar sua axiomitica juridico-politica. Citaremos, a este respeito, os operadores juridicos de avaliagio, de comparagio, de igualizagio - mdo isso necessitando precisées suplementares que exigem trabalhos posteriares. ‘A passagem para a linha 3) se efetua por um novo deslocamento metaforico M, efetuado em relacio ao sistema juridico-politico By — Ag: desse sistema "cae!" termos Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 82 Observagées para uma teoria geral das ideologias isolados (por exemplo "o justo” e “o injusto", "o conveniente" etc.) que constituem 0 campo semantico de sinalizacao ideolégica A; sobre o qual se exerce a pritica ideolégica especulativa B3. A aplicagio B,; — A, determina assim o aparecimenta das formas tedricas especulativas do juridico, do moral, do teoldgico ete. reorganizando na sintaxe By propria 4 teoria especulativa os elementos semanticos A, (gestos e palavras de significacéo moral, religiosa etc.)!. Este esbogo nao pretende realizar @ trabalho que deve incidir sobre esta importante questio do sistema de deslocamentos, mas simplesmente indicar a forma que ela é suseetivel de tomar: em particular, é importante constatar que a ideologia nao pode ser considerada simplesmente como uma regido assinalavel em uma formagio social - a linha 3) do esquema -, mas que é preciso alribuir & base da formacdo social uma funcéo na estrutura da ideologia, sem que no entanto essa base seja o lugar em que se possa identificar uma causalidade produtora qualquer: se nossa anélise tem um sentido, a forma da i pions. se encontra também ao nivel da instdncia da economia, e nao somente na regio. dos "objetos” (gesto © palavras, instituigdes © discursos) ideolégicos, regiie concebida como a "cultura" da sociedade considerada, ou de uma classe no interior desta. E pois teoricamente impossivel considerar a ideologia como uma "consciéneia de grupo", uma representacio de mundo, um bloco de idéias vailidas para uma sociedade ou uma classe, e que tender impor como um “todo” que o funcionalismo poder apreender. Antes devemos descrevé-la em termos de processos que atravessam a formagio social segundo um estilo suscetivel de variagées estruturais. Tentemos expor os Componentes desse processo, para identificar a natureza de seu funcionamento: o de dualidade, enunciado mais acima, ser-nos-4 ainda uma vez. util; mostraremos 11.0 defeito maior dessa apresentagio ¢ simular uma génese, por "quédas” sucessivas de um nivel em outro, ‘quando nio hé, de fato, forma originéria da ideotogia, suscetivel de engendrar uma forma desenvolvida em um auto lugar da estrutura. apenas preciso reter a dupla diregio (vertical e horizontal) das relagdes inter- elementos, ¢ as conseqiséncias que podem resultar daf para a andlise estruiural da ideologia em uma formagio social Rua, Campinas, 1:63-89, 1995, Thomas Herbert 83 que 0 processo ideolégico deve ser compreendido como a combinacio do efeito metaforieo com o metonimico. Oefeito metaférico consiste em um deslocamento de significacoes que desempenham um papel no "sistema de base” (primirio econémico): assim, a lei econdmica que dé a0 agente de producio sua posicao no proceso de produgio € recalcado e travestido em outras cadeias significantes que tém por efeito ao mesmo tempo significar esta posigao 0 sujeito-agente de producio, sem que ele possa escapar dai, e de Ihe dissimular que essa posigio Ihe é atribuida. Em outros termos, o efeito metaférico produz as significagées deslocando-as. O efeito metonimico, enquanto articulagao horizontal dos elementos ideolégicos segundo uma estrutura sintitica, produz uma racionalizago-autonomizacio de cada nivel estrutural considerado, que aparece entio como dotado de "coeréncia interna". Assim se produz a identificagio do sujeito com as estruturas politica e ideoldgica que constituem a to diz ¢ faz (normas que ele enuncia e pratica): ‘a pela qual se constitui a "consciéncia de ser em situagio", para empregar um vocdbulo fenomenolégico, dissimula ao agente sua posigao na estrutura, Indiquemos, de passagem, que esta ilusio subjetiva comtém nela a fungao essencial do Teconhecimento-desconhecimento do processo ideolégico: ela o entretém ela propria com a ajuda do que chamaremos © par das formas ideolégicas da garantia, que remete & alternancia das dominantes: a) A garantia "empirica" (forma A) permite a ideologia refletir 0 "dado" nos "fatos" Assim, € colocado em jogo o sistema percepcao-consciéncia que garante que vemos bem 0 que vemos; a seguranca de que o significado esti bem “atrés" do significante é aqui o ponto essencial: estamos na ordem do que é "dado em pessoa", do fato como fato acabado, da visio do sujeito "por seus préprios olhos", do espeticulo visto "da primeira fila" ete. b) A garantia "especulativa" (de forma B) permite A ideologia refletit-se pelo suporte do outro, enquanto discurso refletido, Aqui sao colocados em jogo os mecanismos da crenga comunicada, 0 "quase-dado" do testemunho, do relato - da prova e do mito que Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 84 Observacées para uma teoria geral das ideologias identifica as subjet nelas. Podemos, entio, cnunciar que todo sujeito empiricamente encontrado em uma formacao sacial sustenta os efeitos ideolégicos de que ele € o "Trager", € guarda tracos indeléveis dele, a saber: 1. O grupo semantico das normas enunciadas e praticadas que marcam seu "meio" € definem a forma de suas estruturas comportamentais (gestos ¢ palavras) que uma ctologia humana permite repertoriar. 2. O grupo sintitico da fraseologia ideoldgica ¢ das estraturs suas palavras ¢ gestos tomam lugar a titulo de elementos. E claro que esta cartograt suscetivel de identificar ¢ localizar as estruturas comportamentais de uma parle, e sua matriz fraseoldgica e institucional, de outra, deriva de uma pritica sociolégica atualmente realizivel sob certas imperativas que, na falta de serem respeitadas, conduzem a enquete sociolégica a reproduzir especularmente a ideologia da qual ela pretende mostrar © mecanismo. Se, com efeito, nos contentamos em repertoriar as normas enunciadas ¢ praticadas, para classificd-las em tabelas de freqiiéncia, reforcamos pura simplesmente a garantia empirica da ideotogia. Se, como 0 faz as vezes a sociologia elissica, interrogamos sistematicamente a diferenca entre os enunciados ¢ as priticas © a diferenca entre a fraseologia estruturas institucionais, produzimos o conhecimento do desnivel entre os comportamentos conscientes dos sujeitos ¢ as condigées desses comportamentos (fraseologia e instituigdes) mas arriscamos fazer dessas condigées a verdade dos idades ao discurso que elas pronunciam - isto é, que se pronunciam institucionais nas quais comportamentos conscientes, © que conduz finalmente a reforcar a garantia especulativa © sujeito que age e fala se banha em sistemas fraseolégico-institucionais que ele nao vé, porque ele est conscientemente centrado sobre seus proprios gestos ¢ palavras, ¢ que no entanto The impdem, na tealidade, seus gestos ¢ palavras. Isto é 0 mesmo que dizer que cada sistema @ por definicio a lei inconsciente produtora de efeitos conscientes: esquecemos por ai que os sistemas fraseolégicos institucior io eles proprios produzidos pelos processos ideolégicos que atravessam a formacao social: em outros Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 Thomas Herbert a5 termos, diremos, empregando a distingo que Cl. Lévi-Strauss estebelece entre lei e regra, que se confunde assim o pré-consciente da regra sintitica imanente a um sistema fraseoldgico-institucional dado com o inconsciente da lei estrutural que estabelece as proprias regras, Retomando as notagées utilizadas no esquema geral acima, escreveremos as oposigdes seguintes: Lei inconsciente Regras Comportamentos (articulagdes pré-conscientes conscientes entre mi, m2, m3, (Bre Bs) (At Aze As) Mi ¢ M2) Resulta daf que se a atribuicdo do lugar feita a um sujeito por uma formacio social dada resulta dos mecanismos da lei inconsciente, ndo é a "tomada de consciéncia" das regras pré-conscientes que poderd “liberti-lo" de sua "“alienagao social”, O descentramento obtide pelo sujeito ao qual se faz "tomar consciéncia" da situagao" (cf. todas as ideologias da "consciéncia de classe") concerne apenas ao pré-consciente social que permanecia até entio "ndo-visto" © o mecanismo da Lei - pelo qual 0 sujeito, ao mesmo tempo, se "vé" atribuir seu lugar ¢ é atingido pela cegueira sobre o proceso de atribuigio - nio € absolutamente posto em causa. E, pois, claro que uma anilise das formas de existéncia ideolégicas sustentadas pelos sujeitos "concretos" de uma formagao social dada implica algo bem diferente que a pura observacao de seu dizer ¢ de seu fazer, ¢ deve tentar remontar alé ao mecanismo em que se elaboram as formas de existéncia da individualidade subjetiva nas quais, precisamente, esse mecanismo se dissimula, Desse ponto de vista, a tarefa essencial do materialismo- hist6rico é, parece, localizar B, (as relacdes sociais de producio) e demonstrar que nio se trata de uma regra pré-consciente, a mesmo titulo que B, eB, mas de um sistema de operadores que pertencem ao dominio da Lei inconsciente, conjuntamente com o grupo M,, M3, my, m,, m3. Acrescentemos, para terminar, que o uso feito aqui do termo inconsciente nio é apenas metafdrico face ao sistema conceptual freudiano: com a Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 86 Observagdes para uma teoria gerat das ideologias condicio de se reconhecer que o inconsciente nao é nem individual nem coletivo, mas estrutural, é possivel tomar o inconsciente freudiano como um efeito especifico da lei inconsciente no sentido em que a entendemos, em que a reprodugdo dos processes ideoldgicos comportaria a titulo essencial © momento da reprodugao em cada sujeito humano da operacio de. imposicao-dissimulacio, através do "dito", do "rumor" ou da "Jenda” familiar: assim se realizaria a exigéncia estruturalmente necessaria, inscrita na lei, da reprodugio do homem como forca de trabalho, problema que Freud nao “deixou de lado" totalmente, j4 que ele escreve: "Do ponto de vista da educagio, a sociedade considera como uma das suas tarefas essenciais frear © instinto sexual quando ele se manifesta como vontade de procriacdo, de limiti-lo, de submeté-lo a uma vontade individual se inclinando a uma vontade social. A base sobre a qual repousa a sociedade humana é, em diltima andlise, de natureza econdmica: nao possuindo meios suficientes de subsisténcia para permitir a seus membros viver sem trabalhar, a sociedade é obrigada a limitar o nimero de seus membros ¢ desviar sua energia da atividade sexual para o trabalho" !?, 4. Variagao ¢ Mutagio Ideolégica ‘Acabamos de ver como os mecanismos da ideologia instituem os sujeitos humanos no lugar que thes € atribufdo, dissimulando-Ihes o fato de que se trata de uma instituicao: a ideologia € pois necessariamente vivida como uma condi¢io natural, que as garantias empfrica e especulativa vém assegurar. Como 6, a partir de entio, possivel pensar o feito de conhecimento teérico pelo qual a ideologia pode-se tornar visivel? Como se pode “sair” da ideologia e produzir a cientificidade do dominio recoberto? Estas questdes concernem a0 mesmo tempo formas da ideologia, a propésito das quais nds acreditamos necessério formular ‘istingSes: é claro que a teoria nao libera do mesmo modo do efeito "A" e do efeito "B". duas 12 Freud, introduction a fa Psychanalyse, Payot, Paris, 1962, p. 291. Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 Thomas Herbert 87 Por outro lado, nao encontramos jamais o ideolégico como tal, mas formagdes ideolégicas especificas que diferem segundo seu lugar na formacio social: 0 que poderfamos chamar as diferentes combinacées ideolégicas de que uma formacao social € capaz. Enfim, a forma das diferentes combinagGes nao ¢ definida de uma vez por todas, 0 contrério, ela muda constantemente, para responder ao comando social. Vemos assim aparecerem constantemente formacdes “alipicas", desviantes em relacdo a formagao dominante para uma combinagio dada: todo 0 problema, quanto a isto, é identificar a natureza do deslocamento. Pode ser (e € 0 caso freqiientemente) que este deslocamento seja exigido pelas prdprias condicées de manutengio da combinagio ideoldgica. Poderfamos entao dizer que ela muda para nio mudar; as formas atipicas derivadas, que chamaremos variagées de uma combinagio ideolégica, sio, o mais das vezes, recuperiveis pelo processo ideolégico dominante. HA entretanto casos em que a formagio produzida é recalcada mais ou menos intensamente: € assim por exemplo com certos efeitos politicos, com certos efeitos estéticos, ¢ com certos efeitos de conhecimento cientifico no sentido estrito do termo. Escolhemos chamar mutacao ideol6gica tais efeitos nao recuperdveis pela ideologia dominante no setor considerado. © problema ¢ agora saber como podemos identificar uma mutagao ideolgica © as condigées is quais cla deve responder para produzir um objeto dotado de um estatuto tedrico original - & claro que ha distingdes que se impdem, quanto a isto, segundo o lugar estrutural coneernido pela mutagio. Podemos dizer que G. Bachelard, entre outros epistemGlogos, forneceu a teoria os meios de identificar a mutaco ideoldgica nas ciéncias da natureza (dominio A, com dominancia sintatica secundaria, segundo nossa terminologia): 0 que acontece com o caso das regiées ideolégicas com dominincia sintitica priméria? Em qué certos resultados obtidos a propdsite dos dominios ideolégicos técnico-empiricos sio utilizdveis em outro lugar? Estas sio questdes is quais sera preciso responder um dia, © que podemos dizer desde ja ¢ que a mutacio resulta sempre de um deslocamento, de uma "mexida" no sistema de garantias. Tudo se passa como Se a brusca superposicio, em um mesmo lugar do espaco ideolégico, de varias formas de recorte e de articulacio no congmuentes tivessem como efeito "dar a ver” abjetos que eram alé entio invisiveis, Rua, Campinas, 63-89, 1995 88 ‘Observagaes para tine teoria gerat das ideologias tendo o estatuto do insélito face a ideologia dominante no ponto considerado, Tudo se passa entio como se o aparecimento desses abjetos desencadeasse uma «1 istemas. de garantias, (que definem normalmente a admissibilidade ou inadmissibilidade dos objetos) ¢, conseqientemente, um enfraquecimento da resisténcia ideologiea nesse ponto. Como essa superposi¢io vem se produzir? Indicaremos aqui simplesmente uma diregio de pesquisa, falando da mobilidade do ideolégico como tal: parece que © conccito de "pessoa deslocada” é aqui fundamental para dar conta do fato que um sujeite pode, repentinamente, ver € compreender outra coisa que nio aquilo que the é "dado" compreender ¢ ver. Nesse caso, resta saber como a lei estrutural de uma formagio social dada produz sujeitos “deslocados” que ela nfo pode recuperar enquanto tais. Acrescentemos, para terminar, que, por razGes que expusemos, a mutagio ideoldgica tem sempre 0 estatuto de um discurso delirante para a ideologia dominante no ponto considerado (isto parece vilido tanto para as mutagdes cientificas quanto estéticas ou politicas). Devemos, assim, nos colocar a questio de saber como o efeito de conhecimento (cientifice) ¢ 0 efeito estético ou politico homdloges podem se diferenciar das normas de admissibilidade, isto é, do sistema de garantias que asseguram a ideologia de sua inviolabilidade. Parece que © critério suscetivel de fazé-lo ¢ a possibilidade de instaurar, no lugar preciso do espaco ideolégico concernido, um dispositive a0 mesmo tempo instrumental (respondendo a garantia empirica) ¢ institucional (respondendo a garantia especulativa) suscetivel de produzir novas formas de admissibilidade que permitirio apreender de maneira adequada os novos efeitos produzidos!>, Isto mostra bem que toda forma de conhecimento ndo-ideolégica se desenvolve em e contra um elemento ideolégico. Isto significa, por outro lado, que no podemos nem empreender um didlogo especulativo com o primeiro interlocutor encontrado, nem experimentar em nao importa que condicSes, mas que uma mutagio ideolégica impbe, cla propria, o ponto de parada a partir do qual ela se verifica ou se anula. E bem isto que 15 Este ponto deve ser desenvolvido sob a forma de uma teoria da experimentacso. Rua, Campinas, 1:63-89, 1995 Thomas Herbert 89 a histéria das ciéncias e a histéria politica, na forma conjuntural de seu desenvolvimento, parecem, uma ¢ outra, reafirmar cada dia. Setembro de 1967. Tradugio: Carolina M. R. Zuccolillo, Eni P. Orlandi e José H. Nunes Rua, Campinas, 1:63-89, 1995

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