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[Yom Crete Ne furra ie HISTORIA E LINGUAGENS TEXTO, IMAGEM, ORALIDADE E. REPRESENTAGOES: Organizadores Antonio Herculano Lopes Monica Pimenta Velloso Sandra Jatahy Pesavento eeraas] a digbes CF CD Casa de Rul Barbosa © 2006 Antonio Herculano Lopes, Monica Pimenta Velloso ¢ Sandra Jatahy Pesavento Produgao editorial Debora Fleck Isadora Travassos Jorge Viveiros de Castro Marilia Garcia Valeska de Aguirre Revisdo Benjamin Albagli CIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ H579 dade e representagdes / organizadores imagem, oral ‘andra Jatahy Pesavento.- Hist6ria e linguagens : texto, nica Pimenta Velloso e S ‘Antonio Herculano Lopes, Mo! Rio de Janeiro : 7Letras, 2006 Inclui bibliografia ISBN 85-7577-262-7 1, Culeura - Brasil. 2. Culeura - Brasil - Historia. 3. Literatura € histéria. 4. Globalizasao. I, Lopes, Antonio Herculano. II. Velloso, Monica Pimenta. III. Pesavento, Sandra Jatahy, 1947-. CDD 306 06-1082. CDU 316.74 2006 Viveiros de Castro Editora Leda. R. Jardim Botinico 600 sl. 307 Rio de Janeiro RJ cep 2461-000 (21) 2540-0076 www.7letras.com.br / editora@7letras.com.br A“NOVA" HISTORIA CULTURAL EXISTE? Roger Chartier _Acaregoriade “nova histéria cultural” entrou no Jéxico.comum dos his: toriadores hd mais de uma dezena de anos, quando Lynn Hunt publicou, com este titulo, uma obra que reunia oi aios que apresentavam diferentes modelos ¢ exemplos desse novo modo histéria (HUNT, 1989). Nasua introducéo, sublinhava os trés tragos essenciais que davam coeréncia a traba- Thos axjos objetos (textos, imagens, rituais, etc.) eram muito diversificados. ) (Em primeiro lugar, bentrando a sua atengao sobre as linguagens, as re- \ presentagies as praticas)a nova histéria cultural propde um modo inédito de compreender as relagdes entre as formas simbélicas ¢ o mundo social. {A uma abordagem clissica, ligada & localizagio objetiva das divisoes ¢ das dife- rengas sociais,|ela opse a sua construgéo mével, instavel, conflitual, a partir das priticas sem discurso, das lutas de representagio ¢ dos efeitos performativos dos discursos._} SE Em seguida, a nova hist6ria cultural encontra modelos de inteligibilida- de ei vizinhos que até ai os historiadores tinham freqiientado pouco: de um lado os antropélogos; ¢ do outro, os criticos literdtios. As antigas aliangas, estabelecidas entre a histéria e as disciplinas amigas ou rivais, como eram a geografia, a psicologia ou a sociologia, sucederam-se assim novas proximida- des que obrigam os historiadores a ler de maneira menos diretamente docu- mental os textos ou as imagens ¢ a compreender nos seus significados simbé- Jicos os comportamentos individuais ou 0s ritos coletivos. ([Enfim, essa historia, que se faz mais de estudos de casos do que de teorizagao — global, levou os historiadores a refletir sobre as suas préprias praticas e, em par- ticular, sobre as escolhas conscientes ou as determinagées ignoradas que co- smandavam o seu modo de construir as narrativas ¢ as andlises histéricas. [Estas sio as trés caracteristicas fundamentais que definiam, para Lynn Hunt, uma nova pratica historiogréfica ]Afirmava assim a. a convergéncia entre pesquisas nascidas em contextos sensivelmente diferentes} fa saber, do lado americano, o uso, por virios historiadores, de conceitos € modelos baseados™ "Bos pabalhos de antropélogos (Victor Turner, Mary Douglas Clifford Geert} Joudo lado francés, as criticas dirigidas do interior da tradicéo dos Annales tanto as definigdes classicas da nogao de mentalidades como as certezas esta- 29 tisticas da “histéria serial do terceiro nivel” — o da cultura. a Necessé acrescentar (ainda que curiosamente a referencia esteja auisente do livrg dita do por Lynn Hunt) as propostas apresentadas na mesma altura quanto 20s efeitos cognitivos produzidos pela reducao da escala de observacio, tal como a preconizavae a praticava a “microstoria” italiana {Ao designar sob uma me. ma nogao abordagens com tio variadas origens, o livro de Lynn Hunt daya visibilidade e unidade a um conjunto de mudangas que até af tinham Passado despercebidas — ou tinham sido mal percebidas. E assim que, cerca de ums década antes, a categoria de nova histéria cultural nao aparecia de forma algu. ma no exame de consciéncia historiogréfica proposto por Dominick LaCapra ¢ Steve Kaplan (LACAPRA; KAPLAN, 1982). , {A nova histéria cultural dos anos 1980 era claramente definida em opo- sigdo a postulados que até entao tinham governado a hist6ria das mentalida- des (LE GOFF, 1974). Em primeiro lugar, o objeto da histéria das mentalida- des € 0 oposto daquiele da histéria intelectual classica. As idéias, que resultam da elaboracao consciente de um espirito singular, opGe-se a mentalidade, sem- pre coletiva, que rege automaticamente 0 contetido impessoal dos pensamen- tos comuns. Tendo por objeto 0 coletivo, o automatico, o repetitivo, a histé- tia das mentalidades pode e deve tornar-se serial e estat{stica. Nisso, inscreve- se na heranga da hist6ria das economias, das populacGes ¢ das sociedades que, no horizonte da grande crise dos anos 1930, e em seguida no imediato pés- guerra, constituiu o dominio mais inovador da historiografia. Quando, nos anos 1960, a histéria das mentalidades define um novo campo de estudos, promissor € original, f4-lo retomando com freqiiéncia os métodos que asse- guraram os triunfos da histéria econémica e social: ou seja, as técnicas da es- tatistica regressiva € a andlise matematica de séries. Duas conseqiiéncias decorrem do primado concedido as séries, ¢ pot conseguinte ao estabelecimento e tratamento de dados homogéneos, repeti- dos ¢ compardveis, com intervalos temporais regulares. A primeira € 0 privilé gio dado as fontes mais numerosas, largamente representativas e disponiveis para um perfodo longo: por exemplo, os inventérios post-mortem, os testamen- tos, os catdlogos de bibliotecas, os arquivos judiciais, etc. A segunda consiste na tentativa de articular, de acordo com 0 modelo braudeliano das diferentes temporalidades (longa duraco, conjuntura, acontecimento), o tempo longo das mentalidades, que com freqiiéncia resistem & transformacao, com 0 tem- po curto dos abandonos brutais ou de r4pidas transferéncias de crencas ¢ de sensibilidade. 30 Una terceira caracteristica da histéria das mentalidades na sua idade de our procede da forma ambigua de pensar a sua relacdo com a sociedade, A pogio parece, efetivamente, destinada a apagar diferengas a fim de encontrar casegonias partilhadas por todos os membros de uma mesma epoca, Entre 08 pranicantes da histéria das mentalidades, Philippe Aris & sem diivida, quem mais fortemente se ligou a uma tal identificagio da nog&o com um sentimen= so comum. O reconhecimento dos arquétipos de civilizagio partilhados por tama sociedade inteira nio significa certamente a anulagiio de toda a diferenga entre os grupos sociais ou entre clérigos € laicos. Mas estas distdncias so sem= pee pensadas no interior de um processo de longa duragio que produz repre sentagoes € Comportamentos essencialmente comuns. Postulando assim a unidade fundamental (pelo menos tendencialmente) do inconsciente coleti- xo, Philippe Ariés lé os textos e as imagens, nio como manifestagdes de sin- gularidades individuais, mas para decifrar a expresso inconsciente de uma sensibilidade coletiva ou para encontrar o fundo vulgar de representagdes: comuns que era espontinea ¢ universalmente partilhado (ARIES, 1977), Para outros historiadores das mentalidades, mais diretamente inscritos ‘na heranga da histéria social, o essencial reside no né que liga as distincias entre as manciras de pensar ¢ de sentir ¢ as diferencas sociais, Uma tal pers- pectiva organiza a classificagao dos fatos de mentalidade a partir das divisdes extabelecidas pela andlise da sociedade. Daf a sobreposigio entre as fronteiras sociais que separam grupos ou classes ¢ as que diferenciam mentalidades (MANDROU, 1961). Esse primado do recorte social sem diivida o trago mais nitido da dependéncia da histéria das mentalidades em telagdo & histéria so- Gal na tradicao francesa. Como explicar o sucesso, tanto entre historiadores como entre leitores, 2a Frangae fora da Franga, da histéria das mentalidades, nos anos 1960. 1970? Sem diivida porque uma tal abordagem permitia, na propria diversidade, a que se substitua a nocao de mentalidade ‘Cujo emprego depende diretamente dos con- iras de pensar, Unica, 32 O processo talvez fosse injusto dado que a histéria das mentalidades nao reteve ¢ aplicou apenas uma definigio globalizante da nogdo. Soube estar atenta as disting6es sociais que comandam, numa mesma sociedade, diferentes ma- neiras de pensar ¢ de sentir ou diversas vis6es do mundo, e nem sempre igno- row a presenga possivel, num mesmo individuo, de varias mentalidades, dis- tintas ou mesmo contraditérias. Porém, mesmo se excessiva, a critica conduzida contra a modalidade dominante da hist6ria cultural abriu caminho a novas maneiras de pensar as produces ¢ as préticas culturais. Do exterior ou do interior da tradicao dos Annales, essas novas perspectivas partilharam um cer- to ntimero de exigéncias: privilegiar os usos individuais em desfavor das dis- tribuig6es estatisticas; considerar, contra a suposta eficdcia dos modelos normas culturais, as modalidades especificas da sua apropriagao; conceber as FepresentacGes do mundo social como constitutivas das diferengas e das lutas que caracterizam as sociedades. Sao essas deslocagées, concretizadas no recor- te ena andlise dos objetos histéricos, que a categoria de nova histéria cultural pretendia designar e reunir em 1989, A HISTORIA CULTURAL: UMA DEFINICAO IMPOSSIVEL? Neste infcio do século XXI, como avaliar as trajetérias que marcaram a hist6ria cultural? Ainda que hoje se tenha tornado dominante, nao é tarefa fécil defini-ta na sua especificidade. Devemos fazé-lo a partir dos objetos e das Prdticas cujo estudo constituiria a especificidade dessa hist6ria? E grande o risco de nao se conseguir tragar uma fronteira segura e nitida entre a hist6ria cultu- ral c outras histérias: histéria das idéias, histéria da literatura, historia da arte, historia da educagio, histéria dos media, histéria das ciéncias, etc. Deveremos, desde logo, mudar de perspectiva e considerar que toda a histéria, qualquer que ela seja, econémica ou social, demografica ou politica, é cultural, ¢ isto, na medida em que todos os gestos, todos os comportamentos, todos os fend- menos, objetivamente mensurdveis, sio sempre resultado dos significados que 0s individuos atribuem as coisas, As palavras ¢ as ages? Nesta petspectiva, fundamentalmente antropolégica, 0 tisco é o de uma definigao imperialista da categoria que, a0 identificar-se com a propria histéria, conduz a sua dissolucao, Esta dificuldade tem a sua principal raz4o na multiplicidade de acepcdes do termo “cultura”. Elas podem ser esquematicamente distribu{das em duas familias de significagdes: a que designa as obras ¢ os gestos que, numa dada sociedade, se subtraem as urgéncias do quotidiano e se submetem a um jufzo estético ou intelectual; a que visa as préticas vulgares através das quais uma 33 comunidade, qualquer que ela seja, vive e reflete a sua relacdo com o mundo, com os outros ou com ela propria. A primeira ordem de significagées conduz a elaboragao da histéria dos textos, das obras ¢ das prdticas culturais como uma histéria de dimensio du- pla. E 0 que prope Carl Schorske: O historiador procura localizar e interpretar 0 artefato temporalmente num campo em que duas linhas se cruzam, Uma é vertical, ou diacrénica, € nela ele estabelece a relacio de um texto ou sistema de pensamento com expresses anteriores da mesma drea de atividade cultural (pintura, politica, etc.). A outra € horizontal ou sincrénica, € nessa ele afirma a relaca0 do contetido do objeto intelectual com o que se manifesta em outras ‘drcas ou aspectos da cultura no mesmo momento. (SCHORSKE, 1979, p. xxi-xxii), ‘Trata-se, por conseguinte, de pensar cada produgio cultural ao mesmo tempo na histéria de um género, da disciplina ou do campo em que se inscre- ve € nas suas relagdes com as outras criag6es estéticas ou intelectuais e as ou- tras prdticas culturais que lhe séo contempordneas. Estas uiltimas remetem para a segunda familia de definigées de cultura. Ela apéia-se fortemente sobre a acepcao que a antropologia simbdlica confere & nogao — ¢ em particular Clifford Geertz: O conceito de cultura ao qual me filio [...] denota um padrao de significados historica- mente transmitido que toma corpo em simbolos, um sistema de concepgées herdadas, expressas em formas simbélicas, através do qual os homens comunicam, perpetuam ¢ desenvolvem seu conhecimento e atitudes a respeito da vida. (GEERTZ, 1973, p. 89). A cultura de uma comunidade ser4, portanto, a totalidade das lingua- gens e das ag6es simbélicas que lhe sio préprias. Daf aatengao que os historia- dores inspirados pela antropologia prestam as manifestag6es coletivas nas quais um sistema cultural se enuncia de forma paroxistica: rituais de -violéncia, ritos de passagem, festas carnavalescas, etc. (DAVIS, 1975; DARNTON, 1982). REPRESENTACOES COMUNS E OBRAS SINGULARES De acordo com as suas diferentes herangas e tradicées, a nova histéria cultural privilegiou objetos, dominios e métodos diferentes. Seria impossivel fazer o seu inventério. Sem dtivida mais pertinente é a identificacao de algu- ‘mas questdes comuns a estas abordagens tao diversas. Um primeiro desafio diz respeito 4 articulacao necessdria entre as obras singulares e as representa- ges comuns. A questio essencial que aqui se coloca éa do processo pelo qual 08 leitores, os espectadores ou os ouvintes dio sentido aos textos de que se 34 apropriam. A interrogacao levou a uma reagdo contra o estrito formalismo da nouvelle critique ou do new criticism, de todas as abordagens que quiseram pensar a producao da significagao como constru(da na relacdo entre os leito- Tes € 0S textos. O projeto assumiu formas diversas no seio da hist6ria literdria, centrando aatengio, seja na relacao dialégica entre as propostas das obras ¢ as categorias cestéticas e interpretativas dos seus publicos (JAUSS, 1974); seja sobre a interac4o dindmica entre o texto € 0 seu leitor, entendido numa perspectiva fenome- nolégica (ISER, 1976); seja sobre as transagGes que ocorrem entre as proprias obras e os discursos ou as priticas vulgares que s40, a0 mesmo tempo, as ma- trizes da criagdo estética eas condig6es da sua inteligibilidade (GREENBLATT, 1988). Abordagens semelhantes obrigaram ao afastamento em face de todas as leituras estruturalistas ou semidticas que remetiam o sentido das obras exclu- sivamente para o funcionamento automitico e impessoal da linguagem, mas se tornaram, por sua vez, 0 alvo das criticas da nova histéria cultural. Por um lado, elas consideram freqiientemente os textos como existindo em si mes- mos, independentemente dos objetos ¢ vozes que os transmitem, enquanto que uma leitura culcural das obras relembra que as formas que as dao a ler, a ouvir ou a ver, também participam na construcao do seu sentido. Dai a im- portancia reconquistada pelas disciplinas ligadas a descri¢ao rigorosa dos ob- jetos escritos que sustentam os textos: a paleografia, a codicologia, a biblio- grafia (MCKENZIE, 1986; PETRUCCI, 1995). Daf também a atengao prestada a historicidade primeira dos textos, aquela que lhes vem do cruzamento entre as categorias de fixacao, de designacio e de classificagao dos discursos préprios de um tempo e de um lugar ea sua materialidade, entendida como a modali- dade da sua inscrigao sobre a pdgina, ou da sua distribuigao no objeto escrito (DE GRAZIA; STALLYBRASS, 1993). Por outro lado, as abordagens criticas que consideraram a leitura como uma “ecepg0” ou uma “resposta” universalizaram implicitamente o proces- so de leitura, tomando-o como um ato sempre semelhante cujas circunstan- cias e modalidades concretas no teriam importincia. Contra um tal apaga- mento da historicidade do leitor, € bom lembrar que também a leitura tem uma hist6ria (¢ uma sociologia) ¢ que a significagao dos textos depende das capacidades, das convengdes ¢ das praticas de leitura préprias 4s comunidades que constituem, na sincronia ou na diacronia, os seus diferentes piiblicos (CAVALLO; CHARTIER, 1995; BOUZA, 1999). A “sociologia dos textos”, en- tendida 4 maneira de D. F McKenzie, tem, pois, por objeto o estudo das 3 modalidades de publicagao, de disseminagao ¢ de apropriagio dos textos, Considera o “mundo do texto” como um mundo de objetos e de performance, ¢0 “mundo do leitor” como o da “comunidade de interpretacao” (FISH, 1980) & qual pertence ¢ que define um mesmo conjunto de competéncias, de nor. mas e de usos. a . Apoiada na tradicio bibliogréfica, a “sociologia dos textos” coloca a t6. nica sobre a materialidade do texto e a historicidade do leitor com uma dupla intengao. Trata-se, por um lado, de identificar os efeitos produzidos sobre o estatuto, a classificacdo ¢ a percep¢ao de uma obra através das transformacées da sua forma manuscrita ou impressa. Por outro lado, trata-se de mostrar que as modalidades préprias da publicacao dos textos antes do século XVIII péem em questao a estabilidade ¢ a pertinéncia das categorias que a critica associa es- pontaneamente a literatura: tais como as de “obra”, “autor”, “personagem’, etc, Essa dupla atengao é fundamento da definicao de dominios de investi- ga¢ao préprios a uma abordagem cultural das obras (0 que nao quer dizer que sejam especfficas a tal ou tal disciplina constitufda): ou seja, as variagoes his- t6ricas dos critérios que definem a “literatura”; as modalidades e os instrumen- tos de constituigao de repertérios de obras candnicas; os efeitos das restricoes exercidas pelo mecenato, os patronos, a academia ou o mercado sobre a cria- $40 literdria; ou ainda a andlise dos diversos atores (copistas, editores, tipégra- fos, revisores, etc.) ¢ das diferentes operagées implicadas no processo de pu- blicacao dos textos. Produzidas numa ordem especifica, as obras fogem dela e assumem asua existéncia, sendo investidas por significagdes que lhes atribuem, Por vezes a longo prazo, os seus diferentes ptiblicos. Assim, 0 que é necessério pensar éa articulagao paradoxal entre uma diferenca — aquela pela qual todas as socieda- des, em modalidades varidveis, separaram um dominio particular de produ- ges, de experiéncias e de prazeres — ¢ dependéncias — aquelas que tornam a invengao estética ou intelectual possivel e inteligivel, quando essa invengao € inscrita no mundo social no sistema simbélico dos seus leitores ou especta- dores (CHARTIER, 1998). O cruzamento inédito de abordagens durante muito fempo estranhas entre si (a critica textual, a histéria do livro, a sociologia cul- tural), mas reunidas pelo projeto da historia cultural, enfrenta também um desafio fundamental: o de compreender como as apropriagoes particulares € inventivas dos leitores singulares (ou dos espectadores) dependem, globalmen- te, dos efeitos de sentido visados pelas préprias obras, dos usos e das significa- g6es impostas pelas formas da sua publicacao e circulagio, ¢ das competéncias, 36 categorias e representagées que dominam a relagao que cada comunidade tem com essas obras. O ERUDITO E 0 POPULAR Uma segunda questo que mobilizou a nova histéria cultural é a das re- lagées entre cultura popular e cultura erudita. Pode-se reduzir os modos de conceber essas relagdes a dois grandes modelos de descrico ¢ de interpreta- sao. O primeiro, desejoso de abolir todas as formas de etnocentrismo cultu- ral, trata a cultura popular como um sistema simbdlico coerente e auténomo, que se organiza segundo uma légica estranha e irredutivel & légica da cultura letrada. O segundo, preocupado em fazer ver a existéncia das relagées de do- minagio e das desigualdades do mundo social, compreende a cultura popular a partir das suas dependéncias e das suas caréncias face 4 cultura dos domi- nantes. De um lado, por conseguinte, a cultura popular é pensada como um sistema simbélico auténomo, independente, fechado sobre si mesmo; do outro, cla é inteiramente definida pela sua distancia face & legitimidade cultural. Os historiadores oscilaram durante muito tempo entre estas duas pers- pectivas, como demonstram, a0 mesmo tempo, os trabalhos sobre a religiao oua literatura, tidas como especificamente populares, e a construcao de uma oposigao, reiterada a0 longo do tempo, entre a idade de ouro de uma cultura popular livre e vigorosa e os tempos de censuras e de constrangimentos que a condenam e a desmantelam. Os trabalhos de histria cultural levaram a recusar tais distingdes tio ca- teg6ricas. Para comesar, é claro que o esquema que opde esplendor e miséria da cultura popular nao é adequado & Idade Moderna. Encontramo-lo nos medievalistas que designam o século XIII como o tempo de uma aculturacio cristd, que destruiu as tradigdes da cultura popular laica dos séculos XI e X11. Caracteriza, igualmente, a oscilagéo que faz passarem entre 1870 ¢ 1914 as sociedades ocidentais de uma cultura tradicional, camponesa e popular, para uma cultura nacional homogénea, unificada, aberta. E um tal contraste dis- tinguiria no século XX a cultura de massas imposta pelos novos media de uma cultura oral, comunitdria e criadora. O destino historiogréfico da cultura po- Pular é, assim, o de estar sempre abafada, mas também sempre renascendo. O verdadeiro problema nio é, pois, datar o desaparecimento irremedidvel de uma cultura dominada, por exemplo, em 1600 ou 1650 (BURKE, 1978), mas com- Preender como, em cada €poca, se tecem relagdes complexas entre formas 37 impostas, mais ou menos restritivas, € identidades salvaguardadas, mais ou menos alteradas. A forca dos modelos culturais dominantes no anula 0 espago prdéprio da sua recepgio. Existe sempre uma distincia entre a norma ¢o vivido, o dogma a crenca, os mandamentos € os comportamentos. E nessa distancia que se insinuam reformulagées € desvios, apropriagées ¢ resisténcias (CERTEAU, 1980). Pelo contrério, a imposi¢ao de disciplinas inéditas, 0 inculcar de novas submissdes, a definigio de novas regras de comportamento devem sempre compor ou negociar com representagdes enraizadas e tradigées partilhadas, E, pois, intitil querer identificar a cultura, a religido ou a literatura “popular” a partir de praticas, de crengas ou de textos que Ihes seriam espectficos. Uma tal constatagio levou a considerar, globalmente, os mecanismos que levam a interiorizagio, pelos dominados, da sua prépria inferioridade ou ilegitimida- de, as légicas gracas As quais uma cultura dominada chega a preservar alguma parte da sua coeréncia simbélica. A ligao vale tanto para o confronto entre os clé- rigos e as populagées rurais na velha Europa (GINZBURG, 1976) como para as relagdes entre vencidos e vencedores no mundo colonial (GRUZINSKI, 1988). DISCURSOS E PRATICAS Um outro desafio langado 3 histéria cultural, quaisquer que sejam as suas abordagens e objetos, diz respeito & articulagio entre praticas e discursos. O colocar em questio as antigas certezas tomou a forma do linguistic turn, que se baseia em duas idéias essenciais: a linguagem é um sistema de signos cujas relagées produzem a partir delas préprias significagdes multiplas e instdveis, fora de qualquer intengio ou de qualquer controle subjetivos; a “realidade” no € uma referencia objetiva, exterior ao discurso, mas é sempre construida nna e pela linguagem. Uma tal perspectiva considera que os interesses sociais nunca sio uma realidade preexistente, mas so sempre o resultado de uma construcao simbélica ¢ lingiiistica, ¢ considera que toda a prética, qualquer que ela seja, estd situada na ordem do discurso (BAKER, 1990). Contra esses postulados, muitos lembraram que, se as priticas antigas no sdo na maior parte das vezes acessiveis sendo através de textos que as pretendi- am representar ou organizar, prescrever ou proscrever, tal no implica por isso afirmar a identidade das duas légicas: a que governa a produso e a recepso dos discursos ¢ a que regula comportamentos € agdes. Para pensar essa irredutibilidade da experiéncia ao discurso, da Iégica pritica 2 légica 38 logocéntrica, os historiadores encontraram apoio na distingao proposta por Foucault entre “formagées discursivas” e “sistemas nao. discursivos” (FOUCAULT, 1969) ou aquela estabelecida por Bourdieu entre “sentido pratico” e “razio escolistica” (BOURDIEU, 1997), Tais distingSes levam a ter cuidado contra um uso incontrolado da no- gio de “texto”, com freqiiéncia indevidamente aplicada a praticas cujos pro- cessos nio sio de modo nenhum parecidos com as estratégias que governam as enunciados dos discursos. Por outro lado, elas levam a pensar que a cons- trugio de interesses pelas linguagens dispontveis num dado tempo ¢ ela pré- pria limitada pela desigualdade de recursos (materiais, lingiilsticos ¢ conceituais) de que os individuos dispoem. As propriedades e as posig&es so- ciais que caracterizam, nas suas distancias, os diferentes grupos sociais, nao sio apenas um efeito dos discursos. Designam, igualmente, as suas condig6es de possibilidade, O objeto fundamental de uma histéria que visa reconhecer a maneira pela qual os atores sociais dao sentido as suas prdticas e aos seus enunciados situa-se, portanto, na tensdo entre, de um lado, as capacidades inventivas dos individuos ou das comunidades e, do outro, as restrigdes e as convenges que limitam — com mais ou menos forga segundo as posicées que ocupam nas telagbes de dominagao ~ 0 que lhes é posstvel pensar, dizer e fazer. A consta- tagio vale para as obras eruditas e as criagdes estéticas, sempre inscritas nas herangas € nas referéncias que as tornam concebfveis, comunicéveis ¢ com- preensiveis. Vale, igualmente, para todas as praticas vulgares, disseminadas, silenciosas, que inventam o quotidiano. a partir de uma tal constatagio que se deve compreender a releitura, pelos historiadores, dos classicos das ciéncias sociais (Elias, Weber, Durkheim, Mauss, Halbwachs) ¢ a importancia de um conceito como o de “representa- io”, que, por si s6, quase chegou a designar a nova histéria cultural. Esta nogdo permite, com efeito, ligar estreitamente as posigGes e relagées sociais com 0 modo como individuos e grupos se concebem e concebem os outros. As te- presentag6es coletivas, definidas 4 maneira da sociologia durkheimiana, in- corporam nos individuos, sob a forma de esquemas de classificagao € juizo, as préprias divis6es do mundo social. Sao elas que suportam as diferentes moda- lidades de exibigao de identidade social ou de forga politica, tal como os sig- Nos, os comportamentos € os ritos os dao a ver ¢ crer. Enfim, as representa- g6es coletivas e simbélicas encontram na existéncia de representantes, indivi- duais ou coletivos, concretos ou abstratos, as garantias da sua estabilidade eda sua continuidade. 39 Nestes ultimos anos, 0s trabalhos de histéria cultural fizeram largo uso dessa tripla acepgao de representacio. Hé duas razbes essenciais para isso, De um lado, o recuo da violéncia entre os individuos que caracteriza as socieda. des ocidentais entre a Idade Média ¢ 0 século XVIII, e que decorre do confis- co (pelo menos tendencial) pelo estado do uso legitimo da forga, substituin ‘os confrontos diretos, brutais e sangrentos pelas luras que tém as representa- es como instrumento ¢ desafio (ELIAS, 1939). Por outro lado, aautoridade de um poder ou a dominagao de um grupo dependem do crédito concedido ou recusado as representagdes que esse grupo propoe de si mesmo, A nova histéria culeural propés assim a histéria politica ¢ & histéria social que se tra- tassem as relagdes de poder como relagdes de forgas simbélicas, como a histé- ria da aceitagao ou da rejeigao pelos dominados das representagdes que visam assegurar € perpetuar a sua sujei¢ao. ‘A atencio prestada a violéncia simbélica, que pressupde que quem a so- fre contribui para a sua eficdcia pela interiorizacao da sua legitimidade (BOURDIEU, 1989), transformou profundamente a compreensio de varias realidades essenciais, a saber: 0 exercicio da autoridade, baseada na adesio aos signos, ritos e imagens que a mostram e produzem a obediéncia (MARIN, 1981; BOUZA, 1999); a construgio de identidades sociais ou religiosas, situada nas tensdes entre as representagdes impostas pelos poderes ou as ortodoxias € a consciéncia de pertencimento de cada comunidade (GINZBURG, 1966; GEREMEK, 1980); ou, ainda, as relagdes entre os sexos, pensadas como o in- calcar, pelas representagGes ¢ pelas praticas, da dominacio masculina e como afirmagao de uma identidade feminina propria, enunciada com ou sem con- sentimento, pela apropriacao ou a recusa dos modelos impostos (DUBY; PERROT, 1990-92; SCOTT, 1996; BOURDIEU, 1998). A reflexao sobre a definigao de identidades sexuais, que Lynn Hunt refe- ria em 1989 como um dos tragos originais da nova historia cultural, constitui uma ilustragao exemplar da exigéncia que est presente hoje em toda a pritica hist6rica: compreender, ao mesmo tempo, como as representagbes € 0s dis- cursos constroem relages de dominagao e como eles préprios sao dependen- tesde recursos desiguais e de interesses contrérios, que separam aqueles cujo poder € legitimado daqueles de que essas representacées € discursos assegu- ram (ou devem assegurar) a submissio. A coeréncia da nova histéria cultural seré to forte como o proclamava Lynn Hunt? A diversidade dos objetos da investigacao, das perspectivas merodolégicas e das referéncias tedricas que conduziram, nestes ultimos dez os, a hist6ria cultural, qualquer que sejaa definicéo que dela se dé, permite- 40 nos ter duvidas, Seria muito arriscado juntar numa mesma categoria os traba- thos mencionados neste breve ensaio, que fica, no entanto, é um conjunto de quest6es e de exigéncias partilhadas independentemente de fronteiras, Neste sentido, a nova histéria cultural nao é, ou j4 nao é, definida pela unidade da sua abordagem, mas pelo espago de intercimbio e de debates constru{do en- tre os historiadores que tém como identidade comum a sua recusa de reduzir os fendmenos histéricos a uma sé das suas dimensdes, e que se afastaram tan- to das ilus6es do /inguistic turn como das herangas redutoras que postulavam ou o primado do politico ou o poder absoluto do social. BIBLIOGRAFIA As obras sao citadas na lingua e com a data da sua primeira edicao: ARIES, Philippe. 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