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Concepções da Infância e História

Social das Crianças no Brasil.


Contextos individuais, familiares,
sociais e políticos.

Prof.ª Dr.ª Sônia M. Gomes Sousa


História Social e Concepções
de Infância
Formação multicultural da sociedade brasileira e a pluralidade étnica da
população leva a diferentes concepções de infância.

Bibliografia ainda não contempla estudos sobre a forma como índios, negros e
caboclos educavam/educam suas crianças e concebem a infância.

Teorias sobre a infância:


Ótica do adulto

Idealizada

Visão fragmentária

Perdem a dimensão dos conflitos, crises e tensões vividos pelas


crianças em seu processo de desenvolvimento.
Problemática infantil tem uma identidade que perpassa todas as
classes sociais: a posição que a criança ocupa no mundo produtivo
adulto.

• Profundas diferenças no vir-a-ser de uma criança da burguesia ou


das camadas populares.
Infância
 Infante (origem latina) ausência de fala

 “Por não falar, a infância não se fala e não se falando, não ocupa a
primeira pessoa nos discursos que dela se ocupam. (...) Por isso é
sempre definida por fora”. (Lajolo, 1997, p.226)

 ECA – Art. 2o “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a


pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela
entre doze e dezoito anos de idade”.
Infância (Santos, 1996)
 Período do ciclo da vida que têm dimensões biológicas e culturais

 Vai do nascimento até a puberdade (0 a 12 anos ECA)

 Mudanças anatômicas, fisiológicas, psíquicas e sociais.

 Desenvolvimento biológico é universal, mas o recorte desse


continuum obedece às diferenças do ritmo fisiológico e varia de
indivíduo para indivíduo e de acordo com o sexo.

 Idade cronológica não constitui critério válido de maturação física


(tempo de duração porta conotações diferentes em diferentes
sociedades e culturas)

 Mais apropriado “infâncias”


Os Estudos de Philippe Ariès
 Ariès – Historiador francês ainda vivo

 História social da criança e da família (1960)

 Traça um quadro da criança/família em lenta transformação (velhos


diários, testamentos, igrejas, e túmulos, pinturas)
Século XI: crianças são adultos em
miniatura (expressões faciais, roupas e
forma do corpo)
 Século XII (+/-): a arte medieval “desconhecia” a infância

 O sentimento de infância surge na sensibilidade ocidental entre os


séculos XIII e XVIII e é através de temas metafísicos e religiosos
que a infância se introduz na iconografia medieval.

 Século XIII – não existem crianças caracterizadas por uma


expressão particular, e sim homens de tamanho reduzido
Surgimento de algumas figurações de
crianças
 o Menino Jesus ou Nossa Senhora

 Anjo

 a criança morta
Da iconografia religiosa da infância, surgiu uma
iconografia leiga nos séculos XV e XVI (criança
ainda não estava sozinha: idades da vida,
estações, sentidos etc.)
Cenas de gênero:

3. Na vida quotidiana as crianças estavam misturadas com os


adultos (trabalho, passeio, jogo)

5. Os pintores gostavam especialmente de representar a criança por


sua graça ou por seu pitoresco e se compraziam em sublinhar a
presença da criança dentro do grupo ou da multidão.
Século XV – o retrato e o puto

Século XVI – retrato da criança morta (sair do anonimato)

Século XVII:
 Multiplicam os retratos de crianças vivas;
 Nasce o sentimento de infância;
 Início do interesse pela criança;
 Retratos de crianças sozinhas e retratos de família em que a
criança era o centro;
 Registro da linguagem infantil.
Teses de Àries

 Criança/família passam a ocupar lugar central nas chamadas


sociedades industriais

 Ausência do sentimento de infância na Idade Média


Críticas
 Sua concepção de História e de mudança social

 Os fundamentos de suas evidências

 Metodologia empregada

 Tese da inexistência de uma consciência da natureza particular da


infância nas sociedades medievais

 Olhando o mundo da infância medieval com os olhos da


contemporaneidade e que não havia uma ausência do sentimento
de infância, mas uma compreensão própria, e portanto diferente, da
nossa visão contemporânea.
História da Infância no Brasil
Colônia (1500-1808)
 Crianças indígenas e órfãos portugueses

“Também andava por lá uma outra mulher, ela também nova, com um
menino ou uma menina atada com um pano – não sei é de que – aos
peitos, e no resto de seu corpo, não havia pano algum”. (Carta de
Pero Vaz de Caminha)

 Imagem fragmentada da criança (“só pernas”)

 Surge, assim, encoberta e incompreendida, a primeira personagem


infantil da nossa história

 Perspectiva adulta (não americano)

 Apagamento da sexualidade (Lajolo, 1997, p. 230)


Representação infantil: criança mística

 Criança ser cheio de graça, inocência, beleza (olhar piedoso)

 Forte disciplina da Companhia de Jesus (o “muito mimo” devia ser


repudiado)
Crianças indígenas (órfãos portugueses)
 Retiradas do convívio dos seus e levadas a morar com os jesuítas nos colégios

 Sedução para romper com a cultura indígena

 “Meninos-língua”

 Tinham vida de adultos

 “Papel blanco”

 No lazer e festas a cultura indígena se impunha

 Enquanto pequenas se submetiam, maiores rompiam com os ensinamentos e


fugiam

 Puberdade (ruptura entre o ideal jesuítico e as realidades coloniais)


Fala dos Jesuítas sobre educação e
política

Fortemente arraigada na psicologia de fundamento moral e religioso

Autos-sacramentais alegóricos

“Gosto de sangue”

Não adaptação do índio à escravidão contribuiu para que o


negro fosse trazido da África para ser escravo nas terras
brasileiras.
Crianças das camadas médias e altas da
população
Direito do pai, morte dos filhos

 até o século XIX permaneceu prisioneira do papel social do filho

 a família colonial ignorava-a ou subestimava-a e privou-a de toda


expressão de afeição

 em uma estrutura social que favorecia o passado e o saber


acumulado que dera certo a criança sem ter vivido o bastante para
entender o passado e sem responsabilidade suficiente para
respeitar a experiência, o “párvulo” não merecia a mesma
consideração do adulto.
 Do ponto de vista da propriedade, a criança era um acessório
supérfluo, por isso o fenômeno da adultização precoce.

 O filho-criança, segundo o catolicismo colonial, era o resultado


inevitável da concupiscência humana (a criança enquanto ser
biológico e sentimental era desprezada pela religião)

 A mentalidade religiosa colonial colocou em segundo plano a vida


concreta e material das crianças, enquanto a vida sobrenatural era
valorizada: criança morta e anjo.
Filho
 Posição instrumental dentro da família.

 Posto à serviço do poder paterno.

 Passividade frente ao poder despótico dos pais.

 Castigos físicos extremamente brutais os faziam não duvidar da


prepotência paterna (Ex.: Infância – Graciliano Ramos)
Causas da mortalidade infantil
Um grande número deve-se a imprudência dos adultos:

 Escravas cuidavam das crianças

 As mães eram assistidas por parteiras inábeis

 Crianças eram levadas tardiamente aos médicos

 Vestiam-se mal e se alimentavam pior

 Prática de casamentos consangüíneos

 Atados a superstições e arcaísmos religiosos julgavam uma “felicidade” a morte


dos filhos

 Devido em grande parte ao afrouxamento dos laços afetivos entre pais e filhos
Casa dos Enjeitados, Casa da Roda, Casa
dos Expostos ou Roda
 Criada em 1738 por Romão Mattos Duarte

 Objetivo caritativo-assistencial de recolher as crianças


abandonadas e transformar a população pobre em classe
trabalhadora e afastá-la da perigosa camada envolvida na
prostituição e na vadiagem

 Fundada para proteger a honra da família colonial e a vida da


infância, obteve um efeito oposto, pois as pessoas puderam contar
com apoio seguro para as suas transgressões sexuais.

 Quem deixava as crianças na Roda: pessoas pobres , mulheres da


elite e senhores que abandonavam crianças escravas e alugavam
suas mães como amas-de-leite
 índice de mortalidade de 50% a 70%.

 as crianças permaneciam de um a dois meses até serem enviadas


a ‘criadeiras’ pagas pela Santa Casa.

 ficavam com as ‘criadeiras’ até sete anos e seriam encaminhados


para instituições onde ficariam até mais ou menos a idade de
quatorze anos.

 essa prática generalizou o aluguel e a compra de escravas para


amamentarem os filhos das famílias brancas.

 Apesar das discussões sobre a imoralidade e a alta mortalidade


dos internados, no caso de São Paulo, a Roda sobreviveu até
1948.
Crítica dos higienistas
 Preocupavam-se com a conduta das famílias abastadas

 A estrutura sócio-econômica da família, o papel da mulher na casa


e a atitude do casal diante da vida dos filhos.

 Comportamento sexual do patriarca (prostituição doméstica e altos


índices de mortalidade infantil)

 Aluguel de escravas como amas de leite


História da Infância no Brasil
Império (1808-1889)
O lugar da criança negra no Brasil
escravocrata

Testemunha silenciosa de seu tempo:

 Quando escravo: fala pela rebelião, pela fuga, pelo suicídio, pelo
crime

 Quando libertável ou liberto, o ex-escravo fala: através daqueles


documentos que lhe restituíam a liberdade

 Analfabeto por vontade expressa da sociedade dominante


Duas idades de infância para escravos
 0 a 7, 8 anos (crioulinho, pardinho... geralmente sem desempenho de
atividades de tipo econômico)

 Nascido o escrava nenê é batizado sem muita demora

 Olhado como escravo em redução

 Aquisição das artimanhas que vão lhe permitir, o mais rápido possível,
tornar-se aquele escravo útil que dele se espera

 Iniciação aos comportamentos sociais no seu relacionamento com a


sociedade dos senhores e com a comunidade escrava

 O senhor forma idéia sobre as capacidades e caráter da criança

 Vai perceber o que são os castigos corporais


 7, 8 anos a 12 anos (deixam de ser crianças para entrar no mundo
dos adultos, mas na qualidade de aprendiz: moleque/moleca)

 Não terá mais o direito de acompanhar (brincando) sua mãe

 Se dá conta de sua condição inferior em relação principalmente às


crianças livres brancas

 Deverá prestar serviços regulares para fazer jus às despesas que


ocasiona a seu senhor

 As exigências dos senhores tornam-se precisas, indiscutíveis


(obediência, não mais à mãe, mas a seu senhor)
1850 – (decretado em 1831) o fim do tráfico anunciava o declínio da escravidão como
sistema de trabalho no Brasil.

1871 – Lei do ventre livre (28 de setembro de 1871)

 “Destruiu” a possibilidade de perpetuação do regime escravocrata através da


reprodução interna da população escrava

 trouxe um aumento no número do abandono de crianças negras (RJ)

 artigo 1o.

 não impede a reescravização dos filhos de escravos

 O efeitos da libertação dos naciturnos foi praticamente nula para a transformação do


sistema escravista no Brasil

1888 – Libertação dos escravos


Higienistas: protetores da infância branca
e abastada

 A apropriação médica da infância fez-se à revelia dos pais

 A idéia de nocividade do meio familiar pode ser tomada como o


grande trunfo médico na luta pela hegemonia educativa das
crianças.
A família nefasta
Essa imagem começou a difundir-se no século XIX através da
higiene

Chegou a ser preconizado o afastamento da criança da família,


pois a má influência do clima doméstico prejudicaria os benéficos
esforços da higiene (internatos e suas regras para visitas e convívio
familiar).

A idéia de nocividade familiar teve seu apogeu nas teses sobre


alienação mental (família = loucura = isolamento).

Na família higiênica, pais e filhos vão aprender a conservar a vida


para poder colocá-la a serviço da nação.
O cultivo da infância

 Concepção de criança = entidade físico - moral amorfa.

 Educação higiênica: instalação de hábitos (disciplina/


domesticação)

 Criança utilizada como instrumento de poder, contra os pais, em


favor do Estado
A infância “reduzida”
A higiene utilizou amplamente a tática de apropriar-se das crianças,
separando-as dos pais e, em seguida, devolveu-as às famílias convertidas
em soldados da saúde.

Semelhanças entre o aparelho disciplinar jesuítico e o dispositivo militar:

 Valorização e culto do corpo

 Promoção do desenvolvimento moral e espiritual através de exercícios

 Ordem preventiva

 Punição “terapêutica” (aceitação da culpa)

 Subjetividades produzidas: conformista ou delinqüente.


Por que os higienistas preocupavam-se com as
elites? E por que surgiu precisamente naquele
momento histórico?

Necessidades intrínsecas ao próprio poder médico

Objetivos políticos do Estado:


 questões populacionais

 substituição da mão-de-obra escrava

 incentivo a imigração

 autodefesa das camadas dominantes (maior número de negros do


que de brancos)
História da Infância no Brasil
República
(1889 até a atualidade)
1889 (Proclamação da República)

 Novos discursos e novas direções seriam trilhadas

 Médicos e juristas colocaram-se à frente das batalhas em prol da


infância pobre

 Um longo processo de transformação das crianças desvalidas e


abandonadas em menores abandonados e delinqüentes, iniciado
nos anos finais do Império, seria concretizado nos primeiros trinta
anos da República Velha.
Menor

 Até o século XIX, a palavra menor – como sinônimo de criança,


adolescente ou jovem – era usada para assinalar os limites etários
que impediam as pessoas de ter direito à emancipação paterna ou
assumir responsabilidades civis ou canônicas

 A partir de 1920 até hoje em dia a palavra passou a referir e indicar


a criança em relação à situação de abandono, marginalidade, além
de definir sua condição civil e jurídica e os direitos que lhe
correspondem
 Não era o filho “de família” sujeito à autoridade paterna ou o órfão
devidamente tutelado, mas a criança/adolescente abandonado
tanto material como moralmente

 Principais responsáveis: decomposição da família e dissolução do


poder paterno

 Lugar natural era a rua (lugar do crime)

 Vítima

 A expressão “menor” já fazia parte do vocabulário judicial do


Império e também da mídia
Década de 1920
 1921 – lei orçamentária 4.242 de 5/1 que autorizou o Serviço de
Assistência e Proteção à Infância Abandonada
 1927 – código de Menores

Década de 1930
 Constituição de 1934
Década de 1940
 1940 – Decreto lei 2.848 - 18 anos como marco que separa a
menoridade da responsabilidade penal
 1946 – Constituição: 18 anos para a aptidão ao trabalho noturno
 

Década de 1960
 1964 – Política Nacional do Bem-Estar do Menor
 1965 – Criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor e
FEBMs
Década de 1970
 Enfrentamento da questão do Menor
 1978 – Ano Internacional da Criança
 

Década de 1980
 Articulação política de setores sociais sensibilizados com a questão
da infância brasileira
 Criação do MNMMR
 

Década de 1990
 Promulgação do ECA
Infância e a Cultura da
Contemporaneidade: encontros e
desencontros
 Novos aspectos da nossa realidade social e material:
 O consumo em massa
 O viver em uma grande cidade
 A solidão na multidão
 A expansão da comunicação pela mídia

 A tecnificação e a informatização do nosso cotidiano


Modificam-se:

 As condições em que a criança convive com os outros e


constrói seu mundo interno e o mundo das suas
relações sociais

 O modo como a criança é afetada pela realidade


material e social da contemporaneidade
Questões da Infância na
Contemporaneidade:

 A criança parte de uma família. Mas de qual família?

 Novos parâmetros para a relação entre adultos e crianças (relações


contraditórias)

 Relações tradicionais – (educador e educando; experiente e não-


experiente; ser maduro e ser imaturo)

 Relações atuais – crianças/adolescentes/adultos passam a circular


em espaços cada vez mais diferenciados e compartimentalizados
(novas socialidades: rua, casa, shopping)
 Os novos tempos (outras condições de história e cultura) em que a
criança está inserida produzem uma infância diferente daquela do
início do século XX

 Crescimento paralelo da mídia para crianças (livros, quadrinhos,


cinema e televisão) e da indústria de jogos e bonecas e de cadeias
de lojas especializadas em brinquedos infantis;

 Marketing determina o “design” dos brinquedos e a repercussão


que esse fato tem sobre a atual forma da criança brincar;
 Publicidade busca atingir amplas audiências infantis utilizando a TV
de forma absoluta e desenvolve assim novas abordagens
publicitárias (bonecos-personagens);

 Como numa linha de produção, a criança desde muito cedo é


colocada num mercado ávido por consumo que a espera com
novidades sempre “mais recentes” (ética);

 Brinquedos “fazem de tudo”, transformando a criança em


espectador passivo;
 O espaço da “liberdade”, espontaneidade, descompromisso na
infância, parece cada vez se estreitando mais. A questão da
“competição” é forte e bem estimulada;

 Cultura do regulamento: disciplinar e planejar as massas, acena


com normas a serem seguidas, que são devidamente reforçadas
pela intervenção da mídia, com suas promessas de bem-estar e
prazer.

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