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a \w { tg ve Ss Come oh ur Com vista para o céu ~ Um jogo-da-velha feérico, tragado com fios de luz, este o meu horizonte. Preencho os espagos mas 0 resultado é sempre o mesmo. Me arrastando um pouco, chego até a grade, entao tudo se multiplica, o emaranhado de trilhos da ferrovia sob o pontilhao resulta num desafio muito mais complexo, nao me atrevo a joga-lo. ‘Tempos atrds vi um atropelamento. O velho calculou mal, ao atravessar suas tralhas diante do trem. Minha tinica diversao € assustar os garotos que passam por aqui, tocando seus tornozelos. a Certa vez, ao alcangar o ténis dum moleque deu pra ver a calcinha de sua mae. Nao tinha visto nada tao lindo, até entao. Nao passaram mais aqui, mae e filho. Ha uma pomba branca que sempre caga nas redondezas. Tento tocar sua penugem, pois vejo certa semelhanga coma calcinha daquela mulher, porém nao a alcango nunca. Em agosto esfria muito, mas tenho as chaminés da fabrica de doces para me aquecer — a fumaga do amendoim éa minha predileta. Enxergo cada coisa naquelas nuvens! As vezes seu cheiro é meu tinico alimento. Quando deito enxergo as estrelas. Ninguém as vé dangar sob este angulo, é o meu privilégio. O céu de setembro é minha manta, muito azul, ninguém me cobre como ele. Nessas noites eu dangaria, se pudesse, mas prefiro dormir. E quando a locomotiva apita, pressinto 0 tropel de elefantes dos sonhos se aproximando. 22 De peixes e urubus ~ Apenas um zumbido forte nos timpanos, a escuridao la embaixo, uma luz ténue em cima. E 0 siléncio. Movia os pés pra frente e pra tras, com dificuldade. Os miisculos da virilha tensionados pelo esforgo. Com os olhos cer- rados, mantinha o corpo inerte, em 6rbita de si mesmo. Tudo escuro até chegar ao limite, o pulmao prestes a estourar. E subir, dando pezadas furiosas, os brags esticados para 0 alto, em dire- cao a superficie. O ar nos pulmées, agudo. A luz. Viver d6i. Os reflexos luminosos, ziim, o sol disparando raios n’4- gua, ziim ziim, feito um Flash Gordon. La adiante, a ponte, os cro- mados dos carros sob o massacre do dia. E ondas, ondas. Do outro lado, uma faixa amarela de areia, nao mais que cem metros. Dava pra ver 0 tinico guarda-sol aberto, vermelho de coca-cola. Os maiés pretos das velhas. Nas tardes do passado nao havia chuva. 29 Ougamas bracadas. E ele: — Ta besta? — Por qué? — Ué, nao me ouviu chamar? — Nao. — Vem atrds de mim. —Oquée? — Vem. Cé vai ver. Ninguém nadava mais rapido que ele. Ou atirava de arco e flecha. Me ensinou a fazer papagaio e estilingue e fumar e roubar anzol no mercado e prender a cabega do pau pro mijo atingir o outro lado da rua e a cheirar limpa-tipos de maquina de escrever. Eu nunca tinha visto tanto urubu junto. — Que bicharada é essa? —E por causa dele ai. ‘Tava fundo demais, naquele trecho da represa. Uns qui- nhentos metros da margem. Meu ombro dofa. — Ele quem? — Olha 0 que o bicho vai fazer. O urubu voou rasante e deu uma bicada. A 4gua escure- ceu de repente. — Mas que... — Sangue. Aquela mancha preta ali é um morto boiando. Boa-noite. As principais noticias de hoje: depois da abertura ao puiblico dos arquivos do Servico Nacional de Informagao, 0 governo aceita falar sobre os locais de desova de presos politicos assas- sinados durante a repressdo. Assista entrevista exclusiva com delegado do DOPS respon- sdivel pelo sumico de centenas de corpos na represa de Juru- Mirim, em Avaré, interior de Sao Paulo. No préximo bloco, em apenas um minuto. O telefone. Atendo. Ougam, é ele: — TA vendo o Jornal Nacional? — Tou. Entao era isso. — Nao desconfiava, nao? — Sou meio alienado, cé sabe. — Eagora? — Agora, 0 qué? — Vamos contar tudo? A disputa com 0s urubus foi ardua. Enquanto ele dava bra- cadas vigorosas com a corda amarrada no pescogo, eu rodava 0 pedaco de pau no ar, afastando os monstrengos. Subir 0 corpo pe- los rochedos também nao foi mole. — Como td inchado. — Coitado. Era um rapaz de cabelo e barba compridos. Nao devia ter mais de trinta anos. O que mais nos impressionou foram os dedos dos pése das mos. Nao sobrara uma s6 unha que fosse — arrancadas. 31 — Eagora? A mesma pergunta, em dois tempos. Ele comegou a arrastar corpo pelas pernas, até chegar na areia. — Vamos enterrar. — Mas nao é melhor contar pra mae? — Nao. No final de semana seguinte, achamos outros dois. Um deles era uma moca muito bonita. Ela estava bastante machucada e usava uma trancinha de couro no tornozelo, com uma sereia de prata presa nela. Ele ficou calado 0 resto do més. Nossa rotina durou todo o verao. Até chegamos a escon- der umas pds num barracdo abandonado perto da represa, pra facilitar 0 trabalho. Depois nossa fam{lia mudou da cidade e nunca mais to- camos no assunto. Jé era hora. —Vocé ainda pensa naquela garota’ — Sim. Primeiro amor... Seu riso quase quieto se constrange um pouco, até o mur- mirio. Entao, 0 siléncio. Coloco devagar o fone no gancho, ainda com sua voz e o som da agua em meu ouvido. 32

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