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9 —Competéncia Consultiva dos Tribunais Internacionais: uma Perspectiva para o Mercosul' FRANCISCO REZEK? ima prova historica da inconveniéneia de deixar-se de atvibuir competéncia consultiva aos tribunais, ou quando menos ao tribunal de ciipul dentro de determinado sistema juridico, Identificam-se, por outro lado, formulas proprias de paises diversos, entre os quais o nosso, que tém a natureza da compe- téacia consultiva, embora ndo levem esse rétulo, So estes os temas do presente estudo que, 20 final, tratard também do modelo intemacional mais a notério e que, pela riqueza de sua ctOnica, poderia inspirar experiéneias novas: a competéncia consultiva da velha Corte da Haia, Em 1983, a Coite Suprema dos Estados Unidos da América defronta- vva-se com curioso caso de defesa, ante o Judicidrio, de um alegado dieito indi- vidual: um homem de raizes étnicas indianas, que ainda na infincia se estabele- cera com a fat no Quénia, leste da Africa, emigrou para os Estados Unidos ‘na juventude, como estudante. Ali terminou seus estudos e se fixou na Califérnia com um pequeno comércio de aparelhos elétricos. Um dia, pleiteando 0 direito rejeitado por forga da aplicagio de wu do passado, no direito americana, o chamado veto legislativa. Essa e) Imente, a negagao da estrutura funcio 76 Estudos: Direito Pablico adcral presidencialista, adotaram. Um poder colegiado elabora as leis, eleitos 08, us integrantes pelo povo; outro as executa, sob comando de alguém também ito pelo povo, € um terceiro ndo necessariamente envolvido no processo elei- oral, mas formado a base da carreira, da admissio ascensio pelo mérito tem a ‘errogativa de controle sobre a ago dos dois outros, em tfpico sistema de freios contrapesos. (0 que acontecia nos Estados Unidios antes dessa decisio de 1983 era al- 0 caro, Por comodidade, o Legislativo nao legislava sobre certas matérias, dan- (0. respeito delas uma carta branca ao Executivo, que, na falta de normas pre- eterminadas, tomava as atitudes ¢ os caminhos casuisticos que Ihe parecessem dequados sujeito, porém, a um veto que, também casuisticamente, ¢ sem outra aotivagio que o arbitrio politico, o Congresso se reservava o direito de exercer. tra algo singular, como se soasse por parte dio legislativo americano este recado: Ao legislo a tal ou qual respeito, no edito normas gerais; faga 0 governo o que he parecer melhor. Porém, na medida em que nio for de meu agrado © que for tito neste ou naquele caso concreto, vetarei a medida, Foi o que aconteceu nesse caso que marcou épaca. Certo dia 0 gover- 10 federal americano elaborou uma lista de estrangeiros que mereciam, por seus studos, por seu trabalho, por sua integragio na sociedade, permanecer no pi "or razées jamais explicadas, uma das casas do Congresso, induzida por uma co- nissio, por um parlamentar qualquer, resolveu velar cinco nomes, entre eles 0 de agdish Chadha, esse queniano de origem indiana que, a essa altura, nem tinha ria, porque esquecido pelas duas nagdes onde vivera a inffncia. notivel processo judiciirio, do género daquilo que cha .¢a, chegou enfim & Suprema Corte, figdo do poder e ass das proprias ¢ inconfundiveis. Noen m 1983, 0 gravissimo vicio de proce: idelo judicidrio nort izes ou tribunais m 0 direito na fall eas alguém bata as portas da indicar dade. Incidental- pe ne ad Competéncia Consultiva dos Tribunais Intemacionais: uma Perspectiva ut A histéria americana registra episédios notaveis nesse dominio, Em 1977, sob Jimmy Carter, os Estados Unidos deram continuidade & politica de aproximago com a Repiiblica Popular da China — iniciada anos antes com a vi sita de Richard Nixon a Chu En-Lai — e, atendendo as ponderagaes da Repibli- ca Popular, esftiaram suas relacdes com a China nacionalista, com Taiwan, Uma das consequéncias toi o fato de que a ala mais cadical do Partido Republicano ndo aprovou aquela politica. Quando Carter denunciou alguns tratados de alianga nnilitar com Taiwan, que pareciam de algum modo hostis a Repiiblica Popular, © Senador Barry Goldwater ¢ outros membros do Senado americano bateram as portas da Corte Suprema para discutir uma interessantissima questo ~ que no Brasil parece ressuscitar em nosso tempo: a de saber se num pais onde o Executi- vo depende do Congreso para celebrar tratados internacionais, ele dependeria também do Congresso para denunciar esses tratados. A questio se colocou desse modo ante a Corte Suprema, ¢ néo ha ditv da de que ela revestia superlativa importancia. Senadores contestam na Justiga 0 poder que o Presidente da Repiiblica diz ter para denunciartratados cuja celebra- ‘¢lo, no passado, dependeu da aprovaco do Senado, EntRo — fato extraordinario sob a ética dos brasileiros — a Corte Suprema diz que no dird nada; diz que nao € da competéncia judicidria resolver conflitos abstratos entre poderes; que estes resolvam a questio como thes parecer politicamente adequado, ja que isso no é uma questao jurisdiciondvel. Por qué? Porque nao ha ai um caso concreio ves do das earacteristicas que a mentalidade judi te-americana entende ne- cessirias para configurar o caso concrete. Vir que esse grau de concre- tude que certos sistemas exigem para que a Justiga fale, produz efeitos colaterais estranhos; no minimo, uma deplorivel lentido na definigao de questdes juridicas elementares & de importincia capital Sabemos que @ competéncia cor a parece ter sitlo desenvolvida, mas nfo é verdade e que, de semetha no pl ss diversas nagbes, ndo se conl outra roupagem, sem o rétulo de competéncia c io é realmente um poder do Estado, 105 de governo em nome da lei, e mes- igo, Sistemas dife v8 Estudos: Direito Pablico de uma [ei elaborada pelo parlamento. Em sistemas inspirados, sugestivamente, pelo modelo norte-americano, o modelo do Judicisrio poder, que controla os de- ‘mais poderes em nome do equilibrio constitucional, desenvolvew-se, a variado titulo e sob variada forma, algo que vem a ser a negagao da tendéncia restricio- nista do Judiciério americano, que exige o caso conereto para poder dizer o dir to, Sie figuras que, em pais como o Brasil, se conhecem como deviaraiérias de constituctonalidade, de ineonstitucionalidade, ¢ coisas do género. Isto é, por sua natureza, uma variante da competéncia consultiva. Ndo hé ai um contencioso for- nem réu, Hi uma liturgia que faz crer que alguém esta acionan- 0, que faz cret que alguém se defence daquela ago, e que o Judi decide um conilito, quando, na realidade, o que se esté propondo a Justiga uma tese juridica, ¢ 0 que se Ihe pede € que diga se & correta ou ndo aque tese As diferengas sto cosméticas. Num caso tipico de competéncia con- sultiva, como o da Corte de Haia, 0 consulente (a Assembleia Geral das Nagdes Unidas ou outra instituigdo congénere, nunca um Estado) formula uma pergunta: O governo da Malisia tem ou ndo 0 dever de garantir a imunidade & Jurisdi¢ao local de certo funciondrio da ONU? Ouainda: Quais os efeitos juridicos da cons- trugdo, pelo Estado de Israel, ce um muro em territbrio palestino? No caso das variantes domésticas, nlo se faz uma pergunt a-se alguma coisa, mas com a consciéncia prévia de que a Justiga vai dizer sim ou nfo aquela tese. Em vez de ‘ormular comodamente « perguata, o autor da declaratéria de inconstitucionali- dade desenvolve uma tese com 0 objetivo de vé-la confirmada e a consciéncia de que pode suceder 0 contra. ‘Sao variantes Gteis da competéncia consultiva, que conhecemos, ¢ que tém sido para nds de extraordindria serventia. Nao se esperam anos até que a voz mais alta da pirdmide judiciéria se pronuncie sobre a sanidade Carta da Repiiblica, de certo produto do poupa da singular imperatividade de que 56 incidentalment nos de um caso conereto se pi cextenso, no interesse de todos o: nagens do caso e dentro dos contor- to. no que ele tem de mais grantes da sociedade, ndo apenas dos perso- I depurar o direito em sin- produgio, sem que se tenha de esperar muito ‘ado por inconstitucionalidade, para Competéneia Consultiva dos Tribunais Internaciooais: uma Perspectiva 179 tenaria: a da antiga Corte Permanente de Justica Intemacional, que sucumbiu com a Liga das Nagdes no inicio da segunda grande guerra, ressuscitou em 1945, j4 no ‘quadro das Nagdes Unidas, com 0 nome de Corte Internucional de Justiga, ¢ que até hoje exerce jurisdigdo contenciosa entre Estados soberanos ~ s6 entre Estados so- beranos -, ao lado de uma competéncia consultiva nfo aberta diretamente Aqueles. Em diversos momentos, na hist6ria da Corte da Haia, veio & mesa sob a roupagem formal do contencioso alguma coisa que mais parecia uma con: ta, Algo pouco comum, senfo inexistente, nos tribunais intemos: aquelas situa- des em que dois paises foram juntos 4 Corte. Nao formularam em comum uma pergunta, s6 implicitamente o fizeram, cada um deles sustentando sua tese em. tomo da questio juridica. O que daa semethante contencioso os ares da consul- ta € 0 fato de niio se identificarem autor e réu. Duas soberanias chegam juntas ¢ questionam o tribunal sobre 0 que € 0 direito internacional aaquele ponto espe- cifico. Como quer que seja, é incalculavel a utiidade da competéa em sentido proprio, instaurada desde as nascentes da Corte da Heia no primeiro pés-guerra. E € algo singular porque os Estados soberanos, que t8m acesso a Cor- te no contencioso, ndo o tém para formular consulta. ‘0 Conselho Econémico e Social, ¢ outras organizagées internacionais ~ néo Es- tados — nominalmente autorizadas a tanto pela Assembleia-Geral da ONU. Com base nessa norma a Assembleia Geral, mediante resolugdes sucessivas, autori- zou, em cardter permanente, todas as organizagdes do sistema das Nagdes Uni- das, como a Unesco, 2 OIT, a FAO. No entanto, o consulente por exceléncia tem sido a Assembleia Geral, embora algumas consultas de grande importincia ja te nham sido feitas pelo Conselho Econdmico e Soc idade do sistema permite a Corte que diga o direito internacional as em que o contencioso é impossivel; em circunstancias onde &

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