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avowo7 A Civiizaglodesafids pelo Antropoceno| Sociotio Sociofilo A Civilizagao desafiada pelo Antropoceno janeiro 29, 2017 por blogdosociofilo Por Bruno Latour Publicado no Le Monde, 16.03.2015. Traducdo de André Magnelli e Rafael Damasceno A Civilizagao Desafiada pelo Antropoceno Admiramos no Museu do Quai-Branly[1] 0s maravilhosos restos de muiltiplas culturas que desapareceram para sempre. Nés as observamos hoje de uma forma completamente diferente. Por que? E porque, a partir de agora, sio as culturas as quais pertencem os visitantes que parecem ameagadas de desaparecimento. Kis que muda, entao, o olhar, uma vez. que aparece agora uma espécie de conivéncia um pouco tragica entre os visitantes contemporaneos e os povos antigos. Ou antes, 6 a nogdo de cultura, como estando separada da natureza, que parece mais incerta. A imprensa nos lembra todos os dias, com efeito, que nés deveriamos dirigir nossos olhares em diregéo a um conjunto de seres - os ventos, os mares, os céus, os furacdes, as sementes, as genealogias, as montanhas ou os vulcées -, que encontramos mencionados a todo momento no texto das manchetes, que nos explicam as pecas a descobrir nas vitrines. Nao podemos deixar entao de dizer a nés mesmos: “Olha, eles também buscavam, pelo desvio destas obras admiraveis, entrar em relaco com estas forcas cuja presenga pesa de novo sobre nés”. Se eles estavam desmunidos diante delas, nés também o estamos aparentemente. Este sentimento de conivéncia se acentua ainda mais se visitamos em Lyon 0 novo Museu das Confluéncias.[2] No fim desta ponte de sedimento, ndo ha somente a Sane e o Rhéne, que se reuinem, mas - 0 que é mais raro — as colegdes ditas etnograficas e as ditas cientificas e técnicas. Nas mesmas salas, lado a lado, descobrimos as mais estranhas espécies que a evolugao dos vivos pablogdcscciofla. wordpress com2017I0129le-civikzacao-desafada-pelo-atropocenal 10 swowao17 [ACivizagéo dessa peo Artropoceno| Sociotio deixou nas rochas e os mais estranhos objetos que os exploradores e missionarios trouxeram de suas expedigGes a estes povos que o império da modernizacao estava em vias de fazer desaparecer. Ainda ha dez anos, uma tal justaposicao teria parecido, sendo escandalosa, ao menos superficial, estética. Ela teria divertido. Ora, nao sorrimos mais de forma alguma. Comparamos. Ponderamos. Aprendemos. E que os visitantes que se amontoam se tornaram, ha pouco tempo, e em grande ntimero, os contempordneos do que os gedlogos propGem chamar © Antropoceno — a época da Terra da qual eles dizem, trazendo argumentos bastante pesados, que é 0 humano que a modela com mais amplitude. E eis ai o suficiente para mudar o olhar sobre os tempos antigos. Se podiamos olhar com uma nostalgia divertida os tracos daqueles que tinham medo de que o céu caisse sobre suas cabecas, observamos, a partir de agora, com uma espécie de humildade compartilhada, os futuros tragos destes que sabem que podem, com efeito, fazer o céu cair sobre as cabecas. Alids, os visitantes podem testar esta inversdo de olhar passando na “camara das maravilhas”, que 6 uma reconstituicdo meticulosa de um gabinete de curiosidades que um rico colecionador tinha podido reunir na virada da revolucao cientifica. Tudo ai esta, com efeito, misturado: as maravilhas da natureza, da mitologia, das culturas e das técnicas. Mas esse gabinete do século XVI reage sobre o museu do século XXI, Nao se trata mais de se maravilhar, mas de compartilhar uma situagao onde tudo se mistura de novo e onde é preciso tentar sair dai - para evitar desaparecer. Dai a atengdo um pouco inquieta das multidées que afluem para as ciéncias e que um dia souberam se distinguir do resto da cultura, mas que se acham nela de novo mergulhadas. A experiéncia ¢ bastante perturbadora: passamos de um gabinete de curiosidades em que tudo se misturava a um gabinete de um novo género em que é preciso de novo tudo compor. Entre os dois, um longo paréntese que nos parece, a partir de ento, muito antigo, quando as ciéncias e os mitos andavam a maior parte do caminho como sendo distintos sem jamais se cruzar — pensava-se Essa exigéncia de compor tudo de novo, nés jamais a experimentamos melhor, nos dias de hoje, do que com a negociagao sobre o clima que acontecerd [aconteceu] em dezembro de 2015, em Paris. Esta conferéncia (COP21) parece tao enigmatica quanto as salas do Museu das Confluéncias. Ao falarmos de redugdo de CO2, estamos falando certamente de ciéncia; mas quando se fala em “dividir 0 fardo” entre os paises que sao desenvolvidos e aqueles que clamam pelo desenvolvimento, eis que nés mergulhamos nas questdes de justiga e responsabilidade histérica; mas nos ¢ dito ~ © que complica ainda mais as coisas — que ha vinte anos os Estados discutem e nao chegam a nada, e que seria necessario um acordo de responsabilidade individual e cidada. Mas como? Com qual forca? Com quais repertérios afetivos, intelectuais, quais instrumentos? Com quais conhecimentos nés supomos estar a altura de tais questoes? Ao colocar-nos sob a injungdo do Antropoceno, nos é afirmado que é necessério compor as questées de natureza e cultura, os resultados das ciéncias e as exigéncias éticas e politicas, mas nada nos é dito sobre como afrontar essas misturas, sobre como confrontar esses desafios ou nos equipar para superd-los. O conhecimento por si s6, é aro, nao é suficiente. O consenso dos pesquisadores nao desencadeou uma acio decisiva. Quanto mais eles sabem, mais hesitamos e evitamos agir. Trata-se ent&o de outra coisa. Trata-se de uma outra maneira de ocupar a Terra e de se reconectar a essas forgas das quais se ocupavam as culturas antigas e que nés ndo sabemos como considerar hoje em dia. Entdo as ciéncias aparecem com toda a sua forca antropoldgica: essa capacidade inata de fazer falar as coisas que nos cercam e de torné-las perceptiveis aos nossos olhos por meio de instrumentos, modelos, cenarios, assembleias e disciplinas académicas. Ainda ¢ necessdrio poder torné-las compativeis com os outros dispositivos politicos, no caso, os humanos. Se chegdssemos a juntar os pablogdcscciofla. wordpress com2017I0129le-civikzacao-desafada-pelo-atropocenal 20 avowo7 A Civiizaglodesafids pelo Antropoceno| Sociotio recursos da arte as ciéncias, nés comesariamos a ter um pouco de esperanga. O Antropoceno entao deixaria de ser a descoberta um pouco desesperadora de que os humanos se tornaram uma forca geolégica, para ser o indicio de uma composicao completamente diferente: a de uma civilizacao possivel. [1] Ver o site do Musée du Quai-Branly [2] Ver o site do Musée des Confluences Categoria : Uncategorized Blog no WordPress.com. pablogdcscciofla. wordpress com2017I0129le-civikzacao-desafada-pelo-atropocenal a8

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