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Sa ns 9 GENEROS DE DISCURSO MUITO DIVERSOS 1. Duas espécies de géneros de discurso Vimos que toda atividade de linguagem pertence a um género de discurso. Porém, essa afirmagio muito geral esbarra em uma dificuldade: a diversidade das atividades verbais é muito grande. Evidentemente, uma conversa entre amigos 4 mesa de um bar é muito diferente de um didlo- go de Platio, ainda que se possa falar de “conversag3o” nos dois casos. O didlogo de Platao é uma criagao concebida e controlada do inicio ao fim por um autor, um texto escrito em fungao de uma temitica homo- génea, cujos protagonistas desempenham um papel preciso no ambito de uma dada doutrina, a qual € elaborada no interior de um campo filos6fi- co historicamente definido. Em contrapartida, a conversacao constitui uma atividade oral de temdtica muito instavel, negociada entre inter- locutores que tém uma vaga consciéncia de toda a interagio € nao podem planeja-la. Porém, nao € preciso recorrer a exemplos tio extremos para tomar consciéncia da especificidade das interagdes de tipo conversacional: ainda que uma entrevista na televisio seja uma interagio oral, cla esté muito longe de constituir uma troca espontinea. Somos, desse modo, levados DOMINIQUE MAINGUENEAU a propor uma distingao entre duas grandes espécies de géneros de discur- so, que chamaremos de géneros instituidos ¢ géneros conversacionais. Neste livro, analisamos apenas géneros instituidos, mas é preciso que estejamos bem conscientes do fato de que eles estao longe de dar conta da totalidade das atividades verbais. © Os géneros instituidos, que podem ser tanto orais quanto escritos, s&0 muito variados: o conselho de classe, a labia do camel, a entrevista, a dissertagao literaria, a consulta médica, o jornal etc. Sao os géneros que melhor correspondem a definicio do género de discurso como dispositivo de comunicagao verbal sécio-histo- ricamente definido. Seus participantes se inserem em um forma- to pré normalmente os mesmos durante 0 ato de comunicagio. Os estabelecido ¢ os papéis que desempenham permanecem parimetros que os caracterizam (os papéis dos “atores”, 0 mo- mento ¢ o lugar convenientes, o midium requerido etc.) resultam de uma estabilizacao de coergdes ligadas a atividades verbais que se exercem em situagdes sociais determinadas, Estao ligados as necessidades de uma época ¢ de um lugar determinados, e com cles desaparecem. * Os géneros conversacionais, por sua vez, nao se encontram es- treitamente ligados a lugares institucionais, a papéis a serem desempenhados pelos parceiros, a scripts relativamente estiveis. Sua composicio, sua temitica séo em geral muito vagas, ¢ seu formato se modifica continuamente: eles obedecem a fortes coergGes, que sao essencialmente Jocais: pode-se tratar de for- mulas de abertura da troca verbal (“bom dia”, “como vai?” etc.) ou de fechamento (“até a proxima”, “passe bem” etc.), mas também dos modos de encadeamento entre os diferentes turnos de fala. Enquanto nos géneros instituidos as coercdes si0 globais € essencialmente verticais, impostas pela natureza da atividade verbal na qual se esté engajado, nos géneros conversacionais predominam as coergées horizontais, isto é, as estratégias de ajustamento e de negocia¢ao entre os interlocutores. Nessas condigdes, compreende-se que as interagdes conversacionais [ANALISE DE TEXTOS DE COMUNICACAO Ww sejam dificilmente categorizaveis em géneros distintos, como ocorre com os géneros instituidos: indagar se uma conversa entre amigos diante de uma maquina distribuidora de café e uma conversa entre os mesmos individuos na rua pertencem ao mes- mo “género” nao é o mesmo que indagar se uma receita médica uma carta comercial so dois géneros instituidos distintos. No que diz respeito aos géneros institufdos, a identificagao dos gé- neros é relativamente intuitiva: os préprios usuarios tém cons- ciéncia de mudar de atividade verbal. Em contrapartida, a dis- tingdo entre diversos géneros conversacionais é, acima de tudo, assunto de pesquisadores, em fungio dos critérios escolhidos; dificilmente os usuarios serio capazes de distinguir diferentes géneros de conversa. Um erro a evitar seria considerar os géneros instituidos como sendo relativos a uma dada sociedade e, ao contrario, os géneros conversacionais como desconectados de uma histéria. Na realidade, os modos de conver- sar também variam hist6rica ¢ socialmente. 2. 0s diferentes modos de géneros instituidos Os géneros institufdos, como foi dito, so muito diversos: entre uma escritura de venda redigida por um tabeliio, um debate politico televi- sionado e uma coletinea de poesias, as diferengas s30, sob todos os as- pectos, consideraveis. E necessdrio, portanto, afinar um pouco mais essa categoria, distinguindo diversos tipos de géneros instituidos. O problema entdo consiste em saber segundo que critério subdividi-los. Hé uma grande quantidade de critérios para esse fim: a natureza do midium, a finalidade da atividade, o estatuto dos participantes, as marcas linguisticas etc. Tudo depende da perspectiva escolhida. Tomaremos aqui por critério a maneira pela qual se estabelece a relacao entre “cena genérica” ¢ “cenografia” (ver capitulo 7, item 2). Podemos, entio, distinguir quatro “modos” de géneros instituidos: 8 DOMINIQUE MAINGUENEAU Géneros de discurso a Géneros instituidos Géneros conversacionais “v.—=-"—*. Modo (1) Modo (2) Modo (3) Modo (4) * Modo (1): trata-se de géneros extremamente coercitivos, inclu- sive em sua formulagio: carta comercial, boletim meteorolégico, catélogo telefénico, trocas entre pilotos de aviao ¢ torre de con- trole, fichas administrativas, atos juridicos etc. Sio géneros nos quais os locutores so, a priori, substituiveis * Modo (2): um grande mimero de géneros segue rotinas, mas sem utilizar predominantemente formulas feitas. Esse € 0 caso, por exemplo, dos telejornais ou dos cursos na universidade: estio submetidos a especificagdes de base coercitivas, mas os locutores nao podem apenas copiar um texto que serviria de modelo. Em geral, sua cena genérica demanda de preferéncia tal ou qual ce- nografia. Porém, nada impede o locutor de se afastar de vez em quando daquilo que € esperado, de recorrer a cenografias mais originais. Comparemos 0 inicio de dois textos que pertencem ao mesmo género jornalistico, o fait divers, e que foram extraidos de dois jornais regionais distintos: (1) Encurralada no terceiro andar pelas chamas que subiam pelas escadas, Isabelle Sahut, trinta anos, entrou em desespero. Ela se matou saltando de uma janela do apartamento conjugado em que vivia no terceiro andar do imével da rua Beaurepaire, em Clermont-Ferrand. A jovem é uma das quatro vitimas do incéndio que destruiu na manha de sibado 0 edificio de quatro andares, totalizando onze apartamentos, em uma pequena rua do centro da cidade. Os corpos de Stéphane Froment, trinta anos, Marie Fernandez, vinte anos, ¢ Lucette Sarra, oitenta anos, foram encontrados carbonizados nos escombros pelos bombeires... (Le Courrier Picard, 25 de abril de1994) ANALISE DETEXTOS DE COMUNICAGAO. ns (2) “Manha de domingo, 8 horas, rua do Aérodrome em Niort. Ainda € noite. Um grupo de assaltantes, a bordo de um carro roubado, deixa a discoteca “Le Malibu”. E dé de cara com uma viatura de policia. Um dos policiais desce do vefculo. Imediatamente recebe um tiro. Ei-lo atingido, sem gravidade. O carro roubado continua seu caminho. Nao h outra saida a nao ser a pequena passagem em cascalho que conduz a rua do Aérodrome. Duzen- tos metros aproximadamente. Na extremidade da passagem, uma segunda viatura de policia faz uma barreira...” (Le Courrier de Ouest, 27 de dezembro de 2001) E certo que o texto (1) se contenta com as rotinas do género: sua cena de enunciagdo é a da maioria dos faits divers. Ao contririo, (2) se inspira claramente na escrita do romance policial: presente de narragio, frases sem subordinagao, muito curtas, algumas sem verbo. Porém, ambos respeitam as especificagdes de base do género: como é de regra, no inicio do texto ha referéncia ao cendrio € narragio dos eventos dramiaticos que motivaram 0 artigo. * Modo (3): nos géneros do modo (2) h4 uma cenografia rotinei- ra, esperada. Em contrapartida, para uma grande quantidade de géneros instituidos, o(s) autor(es) deve(m) inventar uma ceno- grafia original, porque a cena genérica, por natureza, ndo ¢ uma cenografia preferencial. Este € 0 caso das publicidades, das cang6es, dos programas de entretenimento na televisio etc. Se sabemos que um determinado texto é um cartaz publicitario, isso nao permite que possamos prever a cenografia presente em sua enunciagio. Para promover o mesmo produto — por exemplo, um sabao em pé —, pode-se apresentar um homem de ciéncia explicando a composi¢io do produto, duas amigas falando a0 telefone, uma mae contando a um piblico invisivel os problemas que enfrenta na hora de lavar roupa etc. E certo que muitas vezes se criam habitos, mesmo em matéria de publicidade (as mensagens publicitérias para tal ou qual produto recorrem com frequéncia a cenografias vizinhas), mas faz: parte da natureza desses géneros estimular a criatividade, inovando sempre. Se as publicidades ou 120 DOMINIQUE MAINGUENEAU os programas de entretenimento tivessem uma cenografia previa- mente definida, teriam dificuldade em seduzir os consumidores. A criatividade se exerce, porém, em conformidade com o prees- tabelecido pela cena genérica: uma publicidade nao coloca em questdo 0 género ao qual ela pertence, cuja finalidade é claramen- te definida. A diferenga entre géncros do modo (2) ¢ (3) pode ser ilustrada pela comparacio entre uma cangio de variedades que se apresenta como uma carta (por exemplo, “O Desertor”, de Boris Vian) ¢ 0 programa cleitoral intitulado Carta a Todos os Franceses, de F. Mitterrand. Poder-se-ia pen- sar que lidamos com coisas semelhantes: seus autores, por raz6es diversas, escolheram apresentar um texto pertencente a um género (respectiva- mente, a can¢do ¢ 0 programa eleitoral) por intermédio de uma cenogra- fia epistolar. Porém, o autor de “O Desertor” foi obrigado a inventar uma cenografia: a priori, hé uma infinidade de cenografias que permitem tra- tar do tema da desercdo. Por sua vez, os que conceberam a Carta a Todos os Franceses afastaram-se deliberadamente da cenografia habitual do pro- grama cleitoral. * Modo (4): em alguns casos, a nogao de “género” é problematica quando é um autor singular, associado a uma biografia e uma experiéncia particulares, que se responsabiliza por encaixar um texto singular em um “género” que ele proprio define. Esse é um fendmeno muito frequente com 0s textos literrios ou filoséficos. Um escritor nao se contenta, com efeito, em se submeter a espe- cificagdes preestabelecidas prescritas por um género, uma vez que a literatura se insere precisamente neste tipo de atividades verbais cuja finalidade ¢ cujas formas de expressio sio essencialmente indeterminadas. O programa cleitoral é um género de discurso que corresponde a uma atividade verbal codificada, obrigatéria para os candidatos sérios, inscrita no conjunto de uma campanha eleitoral. Ainda que Mitterrand clabore uma cenografia original, seu texto permanece sendo um progra- [ANALISE DETEXTOS DE COMUNICAGAO. 121 ma eleitoral. O mesmo ocorre com as cang6es difundidas pelo radio ou pela televisio. Em contrapartida, o escritor que publica um romance sob a forma de cartas nao pode se contentar em apenas respeitar as especifi- cages de base impostas pelo género “romance”, a menos que se trate de subliteratura, como € o caso, por exemplo, de romances sentimentais em série. A obra que ele produz nao corresponde a uma atividade discursiva nitidamente delimitada no espago social. Enquanto um politico desen- volve um raciocinio estratégico, visando produzir um efeito limitado (um voto) e raciocinando em termos de meios e de fins, fildsofos definem 0 que entendem por Verdadeiro por intermédio da op¢ao que fazem pelo recurso a “géneros” como 0 “diélogo” (Platio) ou as “meditagdes” (Descartes). Para captar um piblico ¢ fazé-lo aderir a um universo de sentido que Ihe seja pessoal, o autor enquadra seu texto em um “género” que se harmonize com seu préprio contetido. A escolha de um tal “géne- ro” se faz em fungio de uma memoria. E em relagao a essa memoria que ‘os atos de categorizagio genérica assumem um sentido: se um escritor cristio dé o titulo de A Génese a um de seus livros, ele nao pode fazé-lo sem levar em conta o livro homénimo que figura na Biblia. Compreende-se que, nesse caso, seja necessirio utilizar as aspas para falar de “género”. Se digo que um certo texto pertence ao género “jornal” ou ao género “consulta médica”, trata-se de denominagdes que nao tém incidéncia sobre a atividade discursiva em si; mas a referida atividade discursiva existe independentemente de sua denominagio. Alids, muitos géneros de discurso instituidos nao possuem uma denomina¢io, ou entao possuem uma denominagdo vaga ou mesmo inexata. O nome, quando existe, permite acima de tudo identificar um género de discurso: basta que os usuarios entrem em acordo acerca do que designam termos como “telejornal”, “proceso”, “conferéncia” etc. Em contrapartida, se digo que um filésofo ou um escritor chamou de “meditagio” ou “confissio” um de seus textos, essa denominagio é constitutiva do sentido da obra: a obra nao poderia existir sem essa denominagio, uma vez que esta con- tribui de maneira decisiva para a sua interpretagio; ela nado poderia ser substituida por um sinénimo — “conversa¢o” nao é 0 mesmo que “did- logo” ou “bate-papo”. O género que serve de etiqueta conferida pelo or) DOMINIQUE MAINGUENEAU autor a seu texto caracteriza tio somente uma parte reduzida de sua realidade comunicativa: dizer que um texto é uma “meditacio” no me permite determinar em que campo ele intervém, por que canal ele passa, de que modo ele é consumido, qual a sua organizagao textual, sua exten- sdo etc. Com efeito, Descartes escreveu um tratado de filosofia que ele apresentou como sendo uma série de “meditacdes” (cenografia). Os tipos de textos com os quais lidamos neste livro — textos rela- cionados a imprensa ¢ A publicidade — nao dizem respeito a esses géne- ros do modo (4). Trata-se, com efeito, de textos que respondem a expec- tativas precisas, que cumprem uma fungao social relativamente bem delimitada. Dificilmente eles podem se afastar de quadros preestabelecidos ¢ desestabilizar seu puiblico. 3. As trés espécies de etiquetas Na maior parte do tempo, as produces textuais ndo sdo associadas auma “etiqueta” que explicite a que género elas pertencem. Um panfle- to politico, por exemplo, nao se designa explicitamente como tal (nao est escrito em sua parte superior: “panfleto politico”), mas se contenta em se mostrar como panfleto para ser assim reconhecido pelos usuarios. Nos jornais, hd muitas etiquetas para as rubricas (“noticias do mundo”, “como estar4 0 tempo”, “programas de cinema” etc.), mas com frequén- cia no se trata de géneros propriamente ditos. Acontece, porém, de encontrarmos as vezes uma etiqueta junto a um texto — especialmente em um titulo ou subtitulo: “aforismas”, “meditac30”, “propostas”, “pon- to de vista” etc. Essas etiquetas genéricas que 0s autores atribuem a seus textos podem recobrir realidades muito diversas. A priori, uma etiqueta pode dizer respeito principalmente as propriedades formas do texto, a sua interpre- ta¢éo ou a ambos. No que diz respeito as etiquetas que se referem ao modo de orga- nizacao do texto, o caso mais interessante é 0 que denominamos hiper- géneros. Trata-se de categorizagdes como “didlogo”, “carta”, “ensaio”, ANALISE DE TEXTOS DE COMUNICAGAO. 123 “diario”, “carné” etc., que, de algum modo, permitem formatar o texto, mas nao dizem nada, ou dizem muito pouco, acerca de seu funcionamen- to preciso. Com efeito, o hipergénero nao é, propriamente falando, um género de discurso, um dispositivo de comunicag3o historicamente defi- nido, mas um tipo de organizagao textual de coergdes pobres, relativa- mente estavel com o decorrer dos séculos, no interior do qual podem-se desenvolver variadas encenagdes da palavra. O diélogo, que, no ocidente, permitiu etiquetar os mais diversos textos durante aproximadamente dois mil quinhentos anos, é um bom exemplo de hipergénero: basta que duas pessoas conversem para que possamos falar de “didlogo”. Do mesmo modo, basta que coloquemos uma data no comego de fragmentos de texto € que organizemos esses fragmentos em ordem cronoldégica para que possamos conferir ao conjunto assim formado 0 estatuto de “diario O didlogo, assim como a carta ou o didrio, podem acolher os mais diver- sos contetidos. Nos anos 1950-1960, 0 escritor F. Mauriac escreveu um célebre “bloco de notas” em revistas — L’Express e, depois, 0 Figaro Littéraire. A ctiqueta “bloco de notas” é um bom exemplo de hipergénero, muito pouco coercitivo. Na Franga, durante a campanha presidencial de 2002, 0 jornal Le Monde publicou uma série de reportagens sobre diversos as- pectos da campanha: retratos dos eleitores, descrigdes de reunides poli- ticas etc. Essas reportagens eram organizadas sob a etiqueta “carné de campanha”. A etiqueta “carné” é muito vaga; ela apenas explicita que um jornalista evoca o que ele presenciou de maneira pessoal. No interior dessa categoria tao pouco coercitiva podemos incluir textos com temas € tonalidades muito variados, escritos por diversos autores. Pode também acontecer de a etiqueta se referir principalmente & maneira pela qual o leitor deva ler o text “palavra de cidadio”, “/a mare au canard” ,** “sem censura”. Nesse caso, pode-se falar de “enquadramento interpretativo”, uma vez que 0 que est4 : “devaneio”, “passeando”,* * No original “en flanant”, rubrica recorrente em textos versando sobre turismo. (IN.T.) ** Rubrica que compde as paginas 2 ¢ 3 do jornal satirico Le Canard Enchainé ¢ que veicula fatos (indiscretos, em geral) a que se teve acesso de forma oficiosa, além de artigos sobre a atualida- de politica. (N.T.) 124 DOMINIQUE MAINGUENEAU em questo é 0 modo de enquadramento do texto, ¢ nao 0 seu modo de organizagao. Pode-se mesmo considerar 0 caso em que a etiqueta esco- Ihida se distancia de forma flagrante do conteiido do texto, de modo a provocar um certo efeito. Por exemplo, se uma série de artigos sobre produtos de beleza € introduzida pela etiqueta “deveres de férias”, isso déa entender que, assim como os deveres de casa possibilitam aos alunos um bom desempenho escolar, a leitura de bons conselhos em matéria de cosméticos permite melhorar sua satide e sua aparéncia para retomar 0 trabalho em boas condi Entre o hipergénero, que busca acima de tudo formatar 0 texto, € a etiqueta de “enquadramento interpretativo”, a fronteira nao € nitida; trata-se, antes, de uma questo de predominancia de um sobre 0 outro. Um termo como “carné” permite formatar textos, mas ele também con- tribui para enquadré-los em uma interpretagio: um carné pretende ser 0 relato de fatos anedéticos feito de forma subjetiva. Quando a etiqueta remete simultaneamente a propriedades da or- ganizagao textual ¢ a0 contetido, lidamos com classes genealégicas.: Em. teoria literaria, o termo se refere aos géneros que se constroem por se- melhanga mais ou menos acentuada com uma obra que serve de modelo implicito. Se a Encida, do poeta romano Virgilio, € considerada como sendo uma epopeia, é porque ela se assemelha, por sua forma ¢ seu con- tetido, a Iliada € A Odisseia de Homero, tidas como epopeias por exce- léncia no mundo ocidental. Diferentemente dos géneros estreitamente ligados as praticas de uma determinada época ¢ de uma determinada sociedade, as etiquetas das classes genealégicas tem necessariamente um pano de fundo histérico ¢ se apoiam em uma meméria coletiva. Pode-se imaginar, por exemplo, que os criadores de um novo pro- grama de televisio decidam intitulé-lo “bowillon de culture”,* retomando o nome de um célebre programa cultural de Bernard Pivot. Haveria nu- 1. Nosio tomada de empréstimo a J.-M. Schaeffer, Qu’est-Ce Quan Genre Littéraire?, Paris: Seuil, 1989. * Sindnimo de “milicu de culture”: em portugues, “meio de cultura”, expressio que designa uma ambiéncia que reproduz as condigdes mais proximas possiveis das naturais para a pesquisa de bactérias. (N-T:) ANALISE DE TEXTOS DE COMUNICACAO 125 merosas semelhangas com esse programa anterior tanto no plano da or- ganizacio textual quanto do contetido. Af teriamos o inicio de uma classe genealdgica, um novo “géncro” televisivo, o “bouillon de culture”, que eventualmente permitiria dar nome a uma série de programas que se caracterizassem por tal filiag3o. O problema com essas classes genealogi- cas é a inexisténcia de crit ios objetivos que permitam decidir até que ponto seria lfcito afirmar que um texto pertence a referida classe. Entre os “enquadramentos”, os “hipergéneros” e as “classes genea- légicas”, nao existem fronteiras impermedveis: trata-se, antes, de situagdes de predominancia. No que diz respeito a muitas etiquetas genéricas, é dificil decidir se lidamos com uma mera formatagio (hipergénero), com um esclarecimento da significagdo da obra (enquadramento interpretati- vo) ou com a inscric¢do em uma cadeia de semelhangas com um texto- modelo (classe genealdgica). Constata-se, porém, que essas zonas de criatividade genérica sao limitadas: em geral, elas sio partes de um géne- ro estavel de discurso, como, por exemplo, um artigo de jornal (¢ no 0 proprio jornal). O usudrio sente, com efeito, a necessidade de saber com que género de discurso ele est4 lidando, mas sera de menor importancia para ele saber que etiqueta seré atribuida a cada uma das partes que com- poem esse género.

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