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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Retor Ricardo Vials de Casto Vice retr Estudos sobre interacao: Paulo Raber Volo Das textos escolhidos Organizagao, apresentagéo ¢ tradusio Maria Claudia Coclho ed? uery EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Conselho Editorial Antonio Augusto Passos Videira Erick Felinto de Oliveira Flota Siissekind Italo Moriconi (presidente) Ivo Barbieri Liicia Maria Bastos Pereira das Neves ed? tery Rio de Janeiro 2013 7A Estudos sobre inearagh:toxos escolhidos ros conflitos de grandes impérios do que nas brigas de pivetes de rua. Fla é usada por governantes na manipulagao de partidos poli- ticos, assim como nas lutas competitivas em que trés elementos se confrontam: pot exemplo, um banqueiro muito poderoso, ou um industrial, ¢ dois competidores mais fracos cujos poderes, embora diferentes entre si s40 ambos prejudiciais ao primeiro. Nesse caso, 6 primeiro, para impedir que os outros dois se juntem contra ele, fard um acordo financeiro ou um azranjo de produgéo com o mais forte dos dois, que obterd vantagens consideriveis disso, enquan- to o mais fraco & destruido pelo acordo. Logo que isso ocorre, © segundo pode ser aniquilado, pois até aqui ele era o aliado do primeiro, mas agora jd ndo tem mais apoio ¢ serd arruinado pela desvalorizagio ou por outros métodos. A sociedade como interagdo simbélica Herbert Blumer A visio da sociedade humana como interacéo simbélica tem sido mais seguida do que formulada. Algumas afirmagées parciais desse ceor, em geral fragmentadas, podem ser encontra- das em trabalhos de diversos intelectuais proeminentes, alguns da propria sociologia, alguns de outras drcas, Entre os primeiros, podemos citar Charles Horton Cooley, W. I. Thomas, Robert E. Parks, E. W. Burgess, Florian Znaniecki, Ellsworth Faris e James ‘Mickel Williams. Entre os intelectuais de outras reas que nao a sociologia, podemos citar William James, John Dewey ¢ George Herbert Mead. Nenhum deles, em minha avaliagio, apresentou ‘uma descriggo sistematica da natureza da vida humana de grupo a partir do ponto de vista da interacio simbélica. Mead se destaca, entre eles, por ter exposto claramente as premissas fundamentals dessa abordagem; mas ele nfo desenvolveu suas implicagées me- todoldgicas para o estudo sociolégico. Os estudiosos que tentam. descrever a posigao da interacio simbélica podem facilmente tra- sar esbogos diferentes. © que pretendo apresentar deve ser visto como minha versio pessoal. Meu objetivo € expor as premissas 76 Estudos sobre inceraco: textos escohidos basicas desse ponto de vista ¢ desenvolver suas consequéncias me- todoldgicas para o estudo da vida humana de grupo. © termo “interagaio simbélica’ se refere, evidentemente, 2 na- tureza peculiar e caracterfstica da interacio que ocorre entre seres hu- ‘manos. Essa peculiaridade consiste no fato de que os seres humanos interpretam ou “definem” as ages uns dos outros, em vez de simples- ‘mente reagir a clas. Sua “reagio” nfo se da ditetamente as ages dos outros; 20 contratio, é baseada no significado atribuido a essas aghes. ‘Assim, a interacéo humana é mediada pelo uso de simmbolos, pela in- texpretaao ou pela atribuigao de significado &s agbes dos outros. Essa ediagio equivale & insergao de um processo de interpretagio entre 0 ‘estimulo e a resposta, no caso do comportamento humano. O simples reconhecimento de que os seres humanos inter- pretam as ages uns dos outros como meio de agir entre si tem permeado 0 pensamento e a obra de muitos estudiosos da con- dura humana ¢ da vida humaria de grupo. Entretanto, poucos dedicaram esforcos & andlise das implicagdes dessa interpretagao para a natureza do ser humano ou da associagfo humana. Em getal, contentam-se com 0 mero reconhecimento de que a “in- terpretagéo” deve ser captada pelo estudioso ou com a simples percepao de que os sfmbolos, como as normas ou os valores culturais, devem integrar suas andlises. Apenas George Herbert Mead, em minha avaliagao, tentou examinar as implicagées do ato de interprerar para a compreensio do ser humano, da a¢ao humana e da associagéo humana. Os pontos essenciais de sua andlise sio tao perspicazes e profundos, e tZo importantes para 0 entendimento da vida humana de grupo, que gostaria de expd- clos, mesmo que brevemente, O ponto-chave da andlise de Mead € que o ser humano tem um self Essa ideia nfo deve ser posta de lado como esoté- rica ou passar despercebida como dbvia e, portanto, indigna de atengGo. Ao declarar que 0 ser humano tem um seif, Mead tem em mente, principalmente, que 0 ser humano pode ser objeto A socedase como iteragio sinbéica 77 das proprias ages, Ele pode agir em relagio a si mesmo assim como age em relagao aos outros. Cada um de nés tem familia- ridade com ages desse tipo, nas quais o ser humano se zanga consigo mesmo, repreende a si mesmo, se orgulha de si, diseute consigo mesmo, tenta estimular a prépria coragem, diz a si mesmo que deveria “fazer isso” ou no “fazer aquilo”, define objetivos para si mesmo, assume compromissos consigo mesmo ¢ planeja o que vai fazer. Que o ser humano age em relagio a si mesmo dessas ¢ de inimeras outras maneiras é uma questio de ficil observacio empirica. Para reconhecer que o ser humano pode agir em relacio a si mesmo, néo é preciso qualquer en- cantamento mistico. ‘Mead entende essa capacidade do ser humano de agir em relagio a si mesmo como 0 mecanismo central com o qual 0 ser humano encara e age com seu mundo, Esse mecanismo permite a0 ser humano fazer indicagdes para si mesmo das coisas 3 sua volta e, assim, orientar suas ages por aquilo que observa. Qual- quer coisa da qual um ser humano esteja consciente ¢ algo que cle esta indicando para si mesmo ~ o tique-taque de um rel6- ¢gio, uma batida na porta, a chegada de um amigo, a observacio feita por um colega, o reconhecimento de que tem uma tarefa a cumprir ou a percepgao de que esta resfriado. Inversamente, ‘qualquer coisa da qual ele nao esteja consciente é, ipso facto, algo ‘que nfo esté indicando para si mesmo. A vida consciente do ser humano, do momento em que acorda até a hora em que vai dormir, é um fluxo continuo de autoindicagdes — anotagdes s0- bre as coisas com as quais lida ¢ leva em consideragao. Isso nos dé, assim, uma imagem do ser humano como um organismo que se defronta com seu mundo com um mecanismo para fazer indicagdes para si mesmo. E. esse o mecanismo envolvido na in- texpretagio das ages dos outros. Interpretar as ages dos outros €apontar para si mesmo que a aco tem este ou aquele sentido, esea ou aquela nature i | 78 Ereudos sobre intaragto: taxeos exeshidee De acordo com Mead, a consequéncia de se fazer indicagées para si mesmo € da maior relevancia. Essa relevincia se d4 por duas razdes. Em primeiro lugar, indicar uma coisa ¢ retiré-la de seu ambiente, mantéla 2 parte, dar-lhe um significado ou, nos termos de Mead, transformé-la num objeto. Um objeto ~ isto é qualquer coisa que um individuo indique para si mesmo ~ € dife- rente de um estimulos em vez de ter uma qualidade intrinseca que age sobre o individuo e pode ser identificada separadamente dele, sua qualidade ou significado the é atribuido pelo individuo, © ob- jeto é um produto da disposicao do individuo para agir, ¢ nfo um estimulo anterior que suscita 0 ato. Em vez de um individuo cer- cado por um ambiente repleto de objetos preexistentes que atuam sobre ele ¢ suscitam seu comportamento, a imagem correta é que cle constréi seus objetos com base em sua atividade continua. Em qualquer um de seus intimeros atos — sejam menores, como se ves- tit, ou maiores, como se organizar para uma carreira profissional =, 0 individuo esté designando objetos diferentes para si mesmo, dando-lhes significado, julgando sua adequasio para sua ago ¢ tomando decisdes com base nesse julgamento. E isso que quer dizer “interpretacio” ou agir com base em simbolos. ‘A segunda implicagio importante do fato de que o set hu- ‘mano faz indicag6es para si mesmo € que sua aco é construtda, ¢ no uma mera descarga. Qualquer que seja a ago na qual esté envolvido, 0 ser humano procede apontando para si mesmo as coisas divergentes que devem ser levadas em conta no curso de sua agdo. Ele precisa observar o que quer fazer e como faz8-lo; precisa apontar para si mesmo as diversas circunstincias que talvez sejam titeis para sua ago e aquelas que podem obstrui-las precisa levar emt consideragio as exigéncias, expectativas, proibigées e amea- gas & medida que surgem na situagao na qual esté agindo. Sua aso € construda passo a passo por meio desse processo de au- toindica¢ao. O individuo humano junta coisas diversas e guia sua aco levando-as em conta € interpretando sua relevancia para a ‘A sociedad come imaraco simbéia 79 agdo furura. Nao hé qualquer exemplo de aso consciente ao qual isso néo se aplique ( processo de construgio da ago por meio de indicagbes feitas para si mesmo no pode ser compreendido por meio das categotias psicoldgicas convencionais. O processo ¢ diferente nfo se resume Aquilo que costuma ser referido como 0 “ego” ~ da mesma forma como ¢ diferente de qualquer outra concepgio que entenda o selfem termos de montagem ou organizacio. A autoin- dicaco & um processo comunicativo mével no qual o individuo observa coisas, avalia-as, dé-lhes significado e decide agir com base esse significado. O ser humano se posiciona diante do mundo, cou diante dos “outros”, com esse processo, endo com um mero ‘ego. Além disso, o processo de autoindicagio ndo pode ser toma- do como parte das forcas, sejam externas ou internas, que se su- de agirem sobre o individuo para produzir seu comportamento. Presses ambientais, estimulos externos, impulsos orginicos, de- sejos, atitudes, sentimentos, ideias e ourras coisas semelhantes no recobrem ou explicam 0 processo de autoindicacio. Tal proceso ‘© posiciona diante dessas coisas na medida em que o individuo as aponta para si mesmo ¢ interpreta seu surgimento ou expressao, observando dada exigéncia social que lhe € feita, reconhecendo ‘uma ordem, notando que est faminto, percebendo que descja ‘comprat algo, tornando-se ciente de determinado sentimento, consciente de que nao gosta de comer em companhia de alguém a quem despreza ou de que esté pensando em fazer determinada coisa. Ao indicar essas coisas para si mesmo, 0 individuo se coloca diante delas e pode reagir a elas, aceitando-as, rejeitando-as ou transformando-as de acordo com 0 modo como as define ou in- tempreta, Seu comportamento, por consequéncia, no é um resul- tado de coisas como presses ambientais, estimulos, motivos, ati- tudes e ideias, mas, em ver disso, surge da forma como interpreta ¢ lida com essas coisas na ago que esté construindo. O processo de autoindicagéo pelo qual a ago humana ¢ formada nao pode | i 80 Estados sobre iteraio: textos esolidos ser explicado por fatores que antecedem 0 ato. Ele existe por si sé e deve ser aceito e estudado como tal. E por meio dele que 0 ser humano constréi sua agdo consciente. Ora, Mead reconhece que a formagio da agio pelo indivi- duo por um processo de autoindicagao sempre se d4 num contexto social, Isso & to vital para a compreensio da interagio simbélica que precisa ser cuidadosamente explicado. Basicamente, a aco em ‘grupo toma a forma de um encaixe entre linhas individuais de agio. Cada individuo alinha sua ag20 com a dos outros verificando o que esto fazendo ou pretendem fazer — isto é, entendendo o significado de seus atos. Para Mead, isso se faz. quando o individuo “assume o papel” dos outros — seja 0 papel de uma pessoa especifica ou o papel de um grupo (0 “outro generalizado” de Mead). Ao assumir esses papéis, 0 individuo busca determinar a intencio ou 0 objetivo dos atos dos outros. Ele forma e alinha sua ago com base nessa inter pretagio dos atos dos outros. E esse © modo fundamental pelo qual a aco de grupo ocorre na sociedade humana, Esses sf 0s tragos essenciais, em minha visio, da analise de Mead das bases da interacéo simbélica. Tais tragos pressupéem que a sociedade humana ¢ formada por individuos que tém selves (isto é, que fazem indicagées para si mesmos); que a acio indivi- dual é uma construgio e no uma descarga, sendo construtda pelo individuo por meio da observacio ¢ interpretagéo das caracteris- ticas das situagSes nas quais age; que a acio de grupo ou coletiva consiste no alinhamento das agdes individuais, realizado pela in- terprecagio ou consideragio, pelos individuos, das agées uns dos outros. Uma vez que meu objetivo é apresentar, e nao defender, a posicéo da interagio simbélica, néo tentarei, neste ensaio, susten- tar as trés premissas que acabo de indicar. Desejo apenas dizer que clas séo ficcis de verificar empiricamente. Nao conheco qualquer exemplo de ago humana de grupo ao qual todas nao se apliquem. Desafio 0 leitor a encontrar ou imaginar um tinico exemplo no qual nao se encaixem. ‘A sociadade como iteragiosimbolia 81 da socie- Queto agora apontar que as visbes sociolé, dade humana em geral divergem claramente das premissas que expus como subjacentes & interagio simbélica. De fato, a maior parte dessas vis6es, principalmente as que esto na moda hoje, nao ‘yeem ou tratam a sociedade humana como interacio simbélica ‘Comprometidas, da maneira como tendem a ser, com alguma for- ma de determinismo sociolégico, adotam imagens da sociedade humana, dos individuos ¢ da ago de grupo que néo combinam com as premissas da intera¢io simbélica. Gostaria de falar um pouco sobre as principais linhas de divergéncia. © pensamento sociolégico raramente reconhece ou trata as sociedades humanas como compostas pot individuos que tém ‘elves. Em ver. disso, assumem que os seres humanos sao apenas organismos com algum tipo de organizacio, ¢ que reagem a Forgas, aque atuam sobre eles. Em geral, embora no exclusivamente, es- sas forgas resicem na composiglo da sociedade, como no caso de “sistema social”, “estrutura social”, “cultura”, “posigéo de starus”, papel social”, “costume”, “instituiga0”, “representagio coletiva”, “siruagao social”, “notma social” e “valores”. O pressuposto é que © comportamento das pessoas como membros de uma sociedade é ‘uma expressdo do efeito que esses tipos de fatores ou forgas exer cem sobre elas, Essa é, obviamente, a posicéo légica necessaria- mente assumida quando o estudioso explica 0 comportamento das pessoas, ou fases de seu comportamento, em termos de um ow outro desses fatores sociais. Os individuos que compéem uma sociedade humana sio tratados como os meios pelos quais esses facores operam, ¢ a aco social desses individuos é vista como uma expresséo desses farores. Essa abordagem ou ponto de vista nega, ou 20 menos ignora, que os seres humanos tém selves ~ que eles agem fazendo indicagdes para si mesmos, Consequentemente, 0 self ndo entra no quadto por meio da introducio de itens como jimpulsos organicos, motivos, atitudes, sentimentos, fatores sociais internalizados ou componentes psicolégicos. Esses fatores psico- 82 Estudos sobre mteraio: eoxtosexeoidos logicos tém © mesmo status que os fatores sociais mencionados: sfo vistos como fatores que atuam sobre o individuo ¢ produzem sua ago, Eles nao fazem parte do processo de autoindicagio. O processo de autoindicagio se posiciona diante deles, assim como se posiciona diante dos fatores sociais que atuam sobre o ser hu- mano. Praticamente todas as concepg6es sociolégicas da socieda- de humana no reconhecem que os individuos que a compécm tém selves no sentido anteriormente descrito. Em conformidade com isso, essas concepges sociol6gicas io encaram as agGes sociais dos individuos na sociedade huma- nna como construidas por eles por meio de um processo de inter- pretagdo. Em vez disso, a agio é tratada como um produto de fatores que atuam sobre ¢ através dos individuos. O comporta- mento social das pessoas néo é visto como construido por elas por invermédio de uma interpretagio de objetos, situagSes ou ages dos outros. Se a “interpretagio” tem algum lugar, é como mera expresso de outros fatores (como os motives) que precedem 0 ato ¢, de forma coerente, desaparece como um fator auténomo. Em decorréncia disso, a asio social das pessoas € tratada como um fluxo direcionado para o exterior ou uma expressio de forcas que atuam sobre elas, € ndo como atos construides por pessoas por meio de suas interpretagSes das situages em que se encontram. Tais observag6es sugerem outra linha importante de dife- renga entre as visbes socioldgicas em geral ea posicio da interacéo simbélica. Esses dois conjuntos de visdes diferem quanto ao lugar cem que alojam a ago social. Na perspectiva da interacio simbé- lica, a agdo social esté situada em individuos que agem, os quais cencaixam suas respectivas linhas de agiio entre si por meio de um processo de interpretacio; a'acio de grupo é a ago coletiva desses individuos. Em oposicdo a essa visio, as concep¢es sociolégicas getalmente alojam a ago social na ago da sociedade ou em al- guma unidade social. Hi incontéveis exemplos disso. Deixem-me citar alguns. Algumas concepgées, ao tratar as sociedades ou os ‘A sociedad como iearackosimbslca 83, grupos humanos como “sistemas sociais”, encaraim a ago de gru- po como expresso de um sistema, seja em estado de equiltbrio ou num esforgo para alcancé-lo. Ou, entio, a agdo de grupo € concebida como expressio das “fungSes” de uma sociedade ou de um grupo. Ou, ainda, & vista como expressao, voltada para 0 exterior, de elementos alojados na sociedade ou no grupo, como cxigncias culturais, propésitos socitais, valores sociais ou tens6es institucionais. Essas concepgles tipicas ignoram ou bloqueiam uma visio da vida de grupo ou da aco de grupo como composta por agdes coletivas ou concatenadas de individuos que buscam dar conta de suas situagdes de vida. Quando sio minimamente reco- hecidos, os esforgos das pessoas para deseavolver atos coletivos para dar conta das siruagées sf0 inclufdos no jogo de forsas subja- centes ou transcendentes alojadas na sociedade ou em suas partes. Os individuos que compéem a sociedade ou o grupo se transfor- ‘mam em “vefculos” ou em meios para a expresso dessas forgass ¢ 0 comportamento interpretativo pelo qual as pessoas formam suas agées é visto como meto elo imposto no jogo dessas Forgas. "Esa indicagéo das linhas de divergéncia deveria ajudar a cexclarecer a posicio da interagio simbdlica. No restante desta dis- cusséo, gostaria de esbocar de forma mais completa o modo como ‘sociedade humana surge em termos de interagio simbélica e apontar algumas implicages mecodol6gicas ‘A sociedade humana deve sr vista como consistindo de pesso- as que agem, ea vida da sociedade, como consistindo de suas agbes. ‘As unidades aruantes podem ser individuos separados, coletividades cujos membros estio agindo juntos numa busca comum ou oxgani- zagées agindo por delegagao. Exemplos para cada uma dessas pos- sibilidades: consumidores individuais num mercado, um grupo de teatro ou uma equipe de missiondrios, ¢ uma corporacio de negécios ‘ut uma associacio profissional nacional. Néo hé qualquer atividade capiticamente observvel numa sociedade humana que nao brote de alguma unidade de ago. Essa aflzmagio banal precisa ser enfatiza- | ‘84 Estudos sobre inoraco: textos escohidos da diante da pritica comum dos socidlogos de reduzir a sociedade humana a unidades sociais que nao agem ~ por exemplo, as classes sociais na sociedade moderna. Evidentemente, hé outras formas de ver a sociedade humana que no em termos das unidades de agzo que a compéem, Desejo apenas apontar que, no que di respeito a atividades concretas ou empiticas, a sociedade humana deve necessa- slamente ser vista em termos das unidades de ago que a formam. Eu acrescentaria, ainda, que qualquer modelo da sociedade humana que pretenda ser uma aniliserealisca tem de sespeitare ser coerente com 6 reconhecimento empirico de que a sociedade humana consiste de unidades de ago. Respeito semelhante precisa ser mostrado em relacio as condigées nas quais essas unidades agem. Uma condicio bésica é que a aco tem lugar e diz respeito a uma situagao. Qualquer que seja a unidade de ago ~ um individuo, uma famtlia, uma escola, uma igreja, uma empresa, um sindicato, uma legislatura etc. -, toda agio specifica se forma a luz da situagio na qual ocorre. Isso nos leva a0 reconhecimento de uma segunda condigio bésica, a saber, que a aco ¢ formada ou construida pela interpretagéo da situagio. A unidade de ago tem necessariamente de identificar as coisas que deve levar em conta (tarefas, oportunidades, obstécu- los, meios, exigéncias, desconfortos, perigos etc.); tem de avalié- clos de alguma maneita ¢ tomar decis6es com base nessa avaliagio, Esse comportamento interpretative pode ter lugar no individuo que orienta a propria ago, numa coletividade de individuos que agem de forma coordenada ou em “agentes” que atuam em nome de um grupo ou de uma organizacio. A vida de grupo consiste em unidades de ago que desenvolvem atos para dar conta das situa- Bes nas quais si0 colocadas. Em geral, a maior parte das sicuagées encontradas pelas pes- soas em dada sociedade é definida ou “estruturada” por elas da mesma maneira. Por meio de interaces prévias, as pessoas desen- volvem e adquirem entendimentos ou definigées comuns quanto Asotindade como interac simbsice 85, ‘a como agir nesta ou naquela situagio, Essas definigbes comuns ppermitem que as pessoas ajam de maneira semelhante, O compor- tamento repetitivo comum das pessoas em tais situagSes no deve iludir 0 estudioso, fazendo-o crer que nao hé qualquer processo interpretativo em jogos a0 contririo, embora fixas, as ages dos participantes sio construfdas por eles por meio de um processo de interpretacio, Uma vex. que definigdes prontas e comumen- te accitas estio disponiveis, as pessoas nao precisam fazer muito esforco para guiar ¢ organizar scus atos. Entretanto, hé muitas utras situages que podem nio estar definidas de forma univoca pelos participants. Quando isso acontece, as linhas de ag4o nfo se encaixam prontamente ¢ a agfo coletiva fica travada. E preciso, ‘entao, desenvolver interpreragdes ¢ chegar a uma conciliagéo efe- tiva entre os participantes. No caso dessas situagées “indefinidas”, & necessério investigar e estudar o proceso emergente de defini- ‘¢lo que € acionado. Na medida em que socidlogos ou estudiosos da sociedade humana estejam preocupados com o comportamento das unida- des de ago, a posicio da interagao simbélica exige que captem 60 processo de interpretacéo pelo qual essas unidades constroem ‘suas ages. Nao se deve captar esse processo voltando meramente a atengio para as condig6es que 0 antecedem. Essas condigoes antecedentes sfo titeis para a compreensio do processo na medida ‘em que fazem parte dele, mas, conforme j4 apontado, elas néo 0 constituem, Também néo é possivel capté-lo pela simples inferén- cia de sua natureza a partir da agio evidente que é seu produto. ara captar © processo, o estudioso precisa assumir 0 papel da tunidade de acio cujo comportamento esté estudando. Uma vex que a interpretagéo é feita pela unidade de agio em termos de objetos designados e avaliados, significados atribuidos e decisses tomadas, 0 processo precisa ser observado do ponto de vista da unidade de aco. E 0 reconhecimento desse fato que torna 0 tra- balho de pesquisa de intclectuais como R. E, Parke W. I. Thomas 86 Exeudoe sobre interagic:taxtorexcolhidor ‘Go notével. Tentar captar o processo interpretativo & distancia, como um assim chamado observador “objetivo” e se recusando a assumir o papel da unidade de aco, é se artiscar a0 pior tipo de subjetivismo ~ é provavel que o observador objetivo complete 0 processo de interpretagdo com as préprias conjecturas, em vez de capté-lo da forma como ele se dé na experiéncia da unidade de aco que o utiliza. Evidencemente, de modo geral os sociélogos néo estudam a sociedade humana em termos de suas unidades de aco. Ao contratio, tendem a encarar a sociedade humana em termos de cestrutura ou organizagéo e a tratar a agio social como uma ex- pressio de tal estrutura ou organizagio. Assim, o estudioso fica na dependéncia de categorias estrururais como sistema social, cultu- +3, normas, valores, estratificagao social, posigbes de status, papsis sociais ¢ organizacao institucional. Essas categorias sio utilizadas tanto para analisar a sociedade humana quanto para explicar a ado social que nela tem lugar. Hi outros interesses centrais dos socidlogos que giram em torno desse tema bésico da organizacio. ‘Uma linha de investigacio vé a organizacéo em termos das fun- Ges que se supe que ela desempenhe, Outra vertente é o estudo da organizagio societal como um sistema em busca de equilfrio; aqui, o estudioso procura detectar mecanismos inerentes a0 siste- ma, Uma terceira abordagem é a identificacio de forcas que agem sobre a organizagéo para produzir mudangas; aqui, 0 estudioso busca, principalmente por meio do estudo comparativo, isolar uma relagio entre fatores causais ¢ resultados estruturais. Essas vtias perspectivas ¢ interesses sociolégicos, hoje tio firmemente posicionados, deixam de lado as unidades de agio de uma socie- dade e ignoram o processo inverpretativo pelo qual essas unidades constroem suas ages, Essas respectivas preocupagées, com a organizacio, por um lado, e com as unidades de agio, por outro, definem a diferenga essencial entre as visdes convencionais da sociedade humana ea ‘A seciedade como iteragio sinbélicn 87 vyisfo implicita na interagdo simbélica. Esta dltima reconhece a presenca da organizacéo na sociedade humana ¢ respeita sua im- portincia, Entretanto, vé ¢ trata a organizagio de forma diferente. Essa diferenca gira em torno de dois pontos principais. Em pri meito lugar, do ponto de vista da interagéo simbélica, a organiza- (fo de uma sociedade humana é a moldura no interior da qual a aso social ocorre, ¢ nao o determinante dessa acio. Em segundo lugar, essa organizagao e suas mudangas sio 0 produto da ativida- de das unidades de aco, e no de “forgas” que as desconsideram. E preciso explicar brevemente cada um desses dois pontos princi- pais de divergéncia para podermos compreender melhor 0 que éa sociedade humana em termos de interaco simbdlica. Do ponto de vista da interacdo simbdlica, a organizagio social € uma moldura no interior da qual as unidades de ago desenvalvem suas ages. Os tragos estruturais, como “cultura”, “sistemas sociais”, “estratificagio social” ou “papéis sociais", defi- nem as condig6es para sua ago, mas nfo a determinam. As pesso- as — isto é, as unidades de acdo — no agem em relagio & cultura, 2} estrutura social ou a coisas semelhantes; elas agem em relagio a situages. A organizacio social sé entra na aco na medida em que modela as situagées nas quais as pessoas agem, ¢ na medida em que fornece conjuntos fixos de simbolos utilizados por elas para interpretar as situag6es. Essas duas formas de influéncia da organi- a¢io social so importantes. No caso de sociedades estabelecidas « estveis, como tribos primitivas isoladas ¢ comunidades campo- ‘esas, a influéncia com certeza & profunda, No caso das socieda- ‘des humanas, em particular das sociedades modernas, nas quais jorram torrentes de situagSes novas e as velhas situagSes se tornam jnstaveis, a influéncia da organizagéo diminui. E preciso ter em ‘mente que o elemento mais importante diante de uma unidade de agio nas situagdes € a agdo das outras unidades. Na sociedade moderna, com seu entrecruzamento crescente das linhas de agio, écomum que surjam situacbes nas quais as ages dos participantes 38 Estudos sobre inmeragio: textos escohidos no esto previamence regularizadas e padronizadas. Nesse sen- tido, a organizagio social existente no molda as situag6es. De forma correspondente, os simbolos ou ferramentas de interpreta io usados pelas unidades de ago nessas situagées podem variar ¢ mudar consideravelmente. Por essas razées, a aco social pode ir além, ou se afastar, da organizacio existente em qualquer uma de suas dimens6es estruturais. A organizagio de uma sociedade humana nao deve ser identificada com o processo de interpretacéo uusado por suas unidades de ago; embora ela afete esse proceso, ino o contém ou recobre. Talver a consequéncia mais notivel de se encazar a socieda- de humana como organizacio seja negligenciar o papel das uni- dades de ago na mudanga social. O procedimento convencional dos sociélogos é: (a) identificar a sociedade humana (ou alguma de suas partes) em termos de uma forma estabelecida ou organiza- a; (b) identificar algum fator ou condicéo de mudanga que esteja agindo sobre a sociedade humana ou sobre essa sua parte; ¢ (©) identificar a nova forma assumida pela sociedade em decorrén- cia da atuagio do fator de mudanca. Essas observagGes permitem ao estudioso formular proposigées com a finalidade de mostrar que determinado fator de mudanga, agindo sobre determinada forma organizada, tem como resultado determinada nova forma organizada, Hé imtimeros exemplos dessas proposigées, das mais banais &s mais refinadas, como, por exemplo, que uma depresséo econémica aumenta a solidariedade nas familias de trabalhadores ou que a industrializagao substitu as familias extensas por familias nucleares. Minha preocupagio aqui nao é com a validade dessas proposicbes, mas com a posigéo metodolégica que pressupdem. Essencialmente, essas proposigées ignoram 0 papel do compor- tamento interpretativo das unidades de acéo em dado exemplo de mudanga, ou entio encaram 0 comportamento interpretativo como coagido pelo fator de mudanca. Gostaria de enfatizar que qualquer linha de mudanga social, uma vez que envolve mudan- ‘A sociedade como inceragio simblien 89 gas na ago humana, € necessariamente mediada pela interpre- tacéo por parte das pessoas afetadas pela mudanca — a mudanga aparece sob a forma de novas situagBes nas quais as pessoas vém de construir novas formas de ago. Além disso, em consondncia com o que jé foi dito, as interpretagdes das novas situagbes nao so predeterminadas por condicées que as antecedem, mas dependem daquilo que é levado em conta e avaliado nas situagbes reais nas quais 0 comportamento se forma. As variagdes de interpretagio podem ocorrer prontamente quando unidades de acio diferentes celegem objetos diferentes na situago, ou attibuem pesos difere tes 20s objetos que observam, ou redinem os objetos em padres diferentes, Ao formular proposic6es de mudanca social, seria pru- dente reconhecer que qualquer linha dessas mudangas é mediada por unidades de agio que interpretam as situagSes com as quais se deparam, ‘Os estudiosos da sociedade humana terdo de encarat a ques- ‘Ho quanto a se sua preocupagio com categorias de estrutura € organizagao pode ser compatibilizada com 0 processo interpre tative pelo qual os seres humanos, individual e coletivamente, agem na sociedade humana. E tal discrepancia que flagela esses estudiosos em seus esforgos para chegar a proposigées cientificas do tipo formulado nas ciéncias fisicas e biolégicas. Além disso, é também essa discrepancia a maior responsdvel por sua dificul- dade em encaixar proposigées hipotéticas com novos arranjos de dados empiricos. Fé esforgos, evidentemente, para superar essas falhas por meio da invencio de novas categorias estruturais, da formulagao de novas hipéteses estruturais, do desenvolvimento de técnicas mais refinadas de pesquisa e mesmo da formulagio de novas modelos metodolégicos de natureza escrutural. Esses esfor- gos continuam a ignorar ou a nao dar explicagGes satisfatdrias para (0 processo interpretativo pelo qual as pessoas agem, individual e coletivamente, em sociedade, E permanece a questao de saber se a sociedade humana ou 2 ago social podem ser analisadas de forma 90 Escudos sobre nceracto: textos escobidos bem-sucedida por meio de modelos que se recusam a reconhecer 0s seres humanos tais como sao, a saber, como pessoas que cons- troem a aco individual e coletiva por intermédio de uma inter- pretagio das situages com as quais se deparam. As boas pessoas e 0 trabalho sujo” Everett C, Hughes [.-] uma seita € 0 nticleo e o fermen- to de toda multidio... Estudar uma multidio ¢ julgar com base naquilo que se vé no paleo; estudar a seita é julgar com base naquilo que se vé nos bastidores. Scipio Sighele. Prychologie des sects. Paris, 1898, pp. 62, 63 € 65. ‘Conferéncia publica proferida na McGill Universry, logo apés longa visica & Alemana Ocidentl, em 1948. Em francés no original: “[.] une scr est le noe ele leven de toute foul Enudier a foule Cost jugcr un drame d'aprés ce qu'on voi sur la snes éeuir secze cles le juger apres ce qu’on voit dans les coulis”. (N. do T) ssa € uma das muitas passagens sublinhadas por Robert E. Park em seu exem- plas, que agora etd comigo, da obra clésica de Sighele sobre sets politica. His inimeras referencias a esa obra na Inradugto a eincia da socilogia de Patk e Burgess (Chicego: University of Chicago Pres, 1969 (192i), De fato,hé mais atengo devotala 20 comportamento fandtico politico e religioso nesse texto de Park e Burgess do que em qualquer outra obra socoligca neste pas. discus sfo de Sighele se baseiaprincipalmente no movimento anarquista de sua época Desde entdo, tem havido movimentes fendtcos. A Organizasio do Exército Secreto (Serer Army Organization) da Argélia & apenas o mais recente

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