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Michel de Certeau \a® Arig de fap Dados Internacionais de Catalogacio na Publicacio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Certeau, Michel de ‘Ainvengio do cotidiano: 1 artes de fazer / Michel de Certeau; tradugdo de Ephraim Ferreira Alves. ~ Petropolis, RI: Vozes, 1994 “Nova edigdo, estabelecidae apresentada por Luce Giard." ISBN 85:326.11486 1. Conduta de vida 2, Cultura 3. Vida ~ Habilidades bésicas 1 ‘Titulo cpp306.4 {indices para catélogo sistematico: 1. Artes de fazer: Cultura: Sociologia 306.4 2. Vida cotidiana: Cultura: Sociologia 306.4 cag an T Edisio y EDITORA (OZES Petropolis 2002 CAPITULO X A ECONOMIA ESCRITURISTICA “Somente palavras que andam, pasando de boca em boca, lendase cantos, no mbito de um pals, mantim vivo 0 pov" NPS. cRUNDTVIG! rafe de Grundtvig, poeta e profeta dinamarqués, cujos caminhos vao todos na direcdo da “palavra viva” (det tevende ord), Graal da oralidade, autoriza hoje, como o faziam antigamente as Musas, a busca de vozes perdidas e que voltam hoje a nossas sociedades “escrituristicas”. Procuro ouvir esses frdgeis efeitos de corpo na lingua, vozes miltiplas, afastadas pela triunfal conguista da economia que, a partir da “moderni dade” (séculos XVII e XVIII), se titularizou sob 0 nome de escritura, Meu tema é a oralidade, mas modificada por trés ou 221 quatro séculos de trabalho ocidental. Nés no acreditamos, como Grundtvig (ou Michelet), que, por trés das portas de nossas cidades, no préximo distante dos campos, existam vastas pastageens poéticas e “pagas” onde falem ainda os cantos, os mitos e o proliferante sussurro da folkelighed * (termo intradu- zivel porque o seut equivalente em nossa lingua, “popularida de”, foi também desvalorizado pelo uso que dele fizemos, enquanto ele é para “povo” o anélogo de “nacionalidade” para nagdo. Essas vozes nao se fazem mais ouvir, a néo ser dentro dos sistemas escrituristicos onde reaparecem. Elas circulam, bailando e pasando, no campo do outro, A instituigdo dos aparelhos escrituristicos da “disciplina” moderna indissocivel da “reprodugao” possibilitada pela im- prensa foi acompanhada pelo duplo isolamento do “Povo” (em relagio a “burguesia”) e da “voz” (em relagdo & escrita). Daf a cconvicgao que, longe, bem longe dos poderes econdmicos e administrativos, “o Povo fala”. Palavra ora sedutora ora peri- osa, tinica, perdida (malgrado violentas e breves irrupgdes), constituida em “Voz do povo” por sua prépria repressio, objeto de nostalgias, controles e sobretudo imensas campanhas que a rearticularam sobre a escritura por meio da escola. Hoje, “registrada” de todas as maneiras, normalizada, audivel em toda a parte, mas uma vez “gravada’, mediatizada pelo radio, pela televiséo ou pelo disco, e “depurada” pelas técnicas de stia difuséo, Onde ela mesma se infiltra, rufdo do corpo, tornase muitas vezes a imitagdo daquilo que a midia produz e reproduz dela - a cépia de seu artefato. Inditil portanto sair em busca dessa voz simultaneamente colonizada e mitificada por uma hist6ria ocidental recente. Nao existe alids voz “pura”, porque ela é sempre determinada por ‘um sistema (familial, social etc.) e codificada por uma recepcao. ‘Mesmo que as vozes de cada grupo componham uma paisagem sonora - um sitio sonoro - facilmente reconhecfvel, um dialeto = um sotaque - se destaca por seu tracado numa lingua, como um perfume; mesmo que uma voz particular se distinga entre mil por acariciar ou irritar 0 corpo que ouve, instrumento de misica tocado por essa mao invisivel, nao hé tampouco unici- 222 Oo ] dade entre os ruidos da presenca, cujo ato enunciador influen- cia uma lingua quando a fala. Devese por isso renunciar & ficedo que retine todos esses ruidos sob o sino de uma “Voz”, de “uma cultura prépria” - ou do grande Outro. A oralidade ia sobretudo como um desses fios de que se faz, na interminavel tapecaria ~ de uma economia escrituris- dessa economia, de sua implantagao histori- ca, de suas regras e instrumentos do seu éxito - enorme programa que vou substituir por uma histéria em quadrinhos! = que convém comecar para detectar insinuagdes vocais no grande livro de nossa lei. Eu gostaria de simplesmente dese- har a configuraco histérica criada entre nds pela disjun¢ao entre exeritura’e oralidade, para indicar alguns de seus efeitos € para destacar af alguns deslocamentos atuais que assumem a forma de tarefas. Referirse & escritura e a oralidade, quero precisar logo de saida, nao postula dois termos opostos, cuja contrariedade poderia ser superada por um terceiro, ou cuja hierarquizagéo se pudesse inverter. Nao se trata aqui de voltar a uma dessas “oposigdes metafisicas” (escritura x oralidade, lingua x palavra etc.), sobre as quais Jacques Derrida dizia com razéo que “tém como tiltima referencia (..) a presenga de um valor ou de um sentido que seria anterior a diferenca”.’ No pensamento que as {nstaura, essas antinomias postulam o princ{pio de uma origem tinica (uma arqueologia fundadora) ou de uma conciliagéo final (um conceito teleolégico), e portanto um discurso baseado nessa unidade referencial. Pelo contrario, sem que seja aqui o lugar para explicéo, suponho o plural como algo originério; que a diferenca é constituinte de seus termos; e que a lingua esté fadada a esconder indefinidamente por uma simbélica 0 trabalho estruturante da divisdo. Na perspectiva de uma antro- Pologia cultural, néo se poderia alids esquecer: 1) que essas “unidades” (por exemplo, escritura e oralida- de) sao 0 efeito de distingdes reciprocas dentro de configura. bes historicas sucessivas e imbricadas. 223 Sendo assim, ndo so isolveis dessas determinacdes his- téricas endo podem ser erigidas em categorias gerais; 2) que essas distingdes, uma vez. que se apresentam como a relagdo entre o estabelecimento de um campo (por exemplo, lingua) ou de um sistema (por exemplo, a escritura) e de outra parte aquilo que constitui como sua exterioridade ou seu resto (a palavra ou a oralidade), esses dois termos nao so iguais ou comparveis nem no que diz. respeito & sua coeréncia (a definigo de um pée o outro como indefinido) nem no que diz, respeito & sua operatividade (um produtivo, dominante e arti- culado, institui o outro numa posi¢ao de inércia, de dominado e de opaca resistencia). Portanto é impossivel supor que tenham funcionamentos homélogos mediante uma inverséo de sinais. A diferenca entre eles é quantitativa, sem escala comum. A pritica escrituristica as- Escrever: pratica mitica sumiu valor mitico nos ti “moderna” timos quatro séculos reor- ganizando aos poucos todos os dominios por onde se estendia a ambicao ocidental de fazer sua historia e, assim, fazer hist6ria, Entendo por mito um discurso fragmentado que se articula sobre as praticas hete sgéneas de uma sociedade e que as articula simbolicamente, No. Ocidente moderno, ndo ha mais um discurso recebido que desempenhe esse papel, mas um movimento que é uma prati escrever. A origem nao é mais aquilo que se narra, mas 2 atividade multiforme e murmurante de produtos do texto e de produzir a sociedade como texto. O “progresso” € de tipo escrituristico, De modos os mais diversos, definese portanto pela oralidade (ou como oralidade) aquilo de que uma pratica “legitima” - cientifica, politica, escolar etc. - deve distinguirse. “Oral” 6 aquilo que nao contribui para o progresso; e, recipro- camente, “escrituristico” aquilo que se aparta do mundo magi- co das vozes e da tradigdo. Com tal separacdo se esboca uma fronteira (e uma frente) da cultura ocidental. Da mesma forma, também se poderiam ler, nos frontées da modernidade, inscri- ‘goes como: “Aqui, trabalhar € escrever” ou “Aqui s6 se com 224 preende aquilo que se escreve”, Esta a lei interna daquilo que se constituiu como “ocidental” Mas entio, 0 que ¢ escrever? Designo por escritura a atividade concreta que consiste, sobre um espago prdprio, a pagina, em construir um texto que tem poder sobre a exterio- lade da qual foi previamente isolado. Neste nivel elementar ha trés elementos decisivos. Primeiro, a pdgina em branco: um espago “proprio” cit- cunscreve um lugar de produgao para o sujeito. Trata-se de um lugar desenfeitigado das ambigtidades do mundo. Estabelece © afastamento e a distancia de um sujeito em relagéo a uma rea de atividades. Oferecese a uma operacéo parcial mas controlavel. Efetua-se um corte no cosmos tradicional, onde 0 sujeito era possuldo pelas vozes do mundo. Coloca-se uma superficie aut6noma sob o olhar do sujeito que assim dé a si mesmo 0 campo de um fazer proprio. Gesto cartesiano de um corte instaurador, com um lugar de escritura, do dominio (e isolamento) de um sujeito diante de um objeto, Diante de sua pagina em branco cada crianga ja se acha posta na posigéo do industrial ou do urbanista, ou do fildsofo cartesiano - aquela de ter que gerir 0 espaco, préprio e distinto, onde executar um querer proprio. Em segundo lugar, af se constr6i um fexto, Fragmentos ou materiais lingiisticos sao tratados (usinados, poder-se-ia dizer) neste espaco, segundo métodos explicitaveis e de modo a produzir uma ordem, Uma série de operagdes articuladas (gestuais e mentais) - literalmente € isto, escrever, - vai fragando na pagina as trajetdrias que desenham palavras, frases e, enfim, um sistema. Noutras palavras, na pagina em branco, uma prética itinerante, progressiva e regulamentada ~ uma caminhada - compde o artefato de um outro “mundo”, agora no recebido, mas fabricado. Q modelo de uma razdo produtora escrevese sobre o ndolugar da folha de papel. Sob formas iltiplas, este texto construido num espaco préprio é a utopi fundamental e generalizada do Ocidente moderno. Um terceiro elemento: esta construgdo néo é apenas um Jogo. Sem dtivida, em toda sociedade, o jogo é um teatro onde 225 TT se representa a formalidade das praticas, mas tem como condi- ‘cao de possibilidade 0 fato de ser distinto das préticas soci efetivas. Pelo contrario, o jogo escrituristico, producdo de um sistema, espago de formalizacao, tem como “sentido” remeter Arealidade de que se distinguiu em vista de mudd-la. Tem como alvo uma eficécia social. Atua sobre a sua exterioridade. © laboratério da escritura tem como fungao “estratégica”: ou fazer que uma informacao recebida da tradigao ou de fora se encontre af coligida, classificada, imbricada num sistema e, assim, transformada; ou fazer que as regras e os modelos elaborados neste lugar excepcional permitam agir sobre 0 meio e transforméo. A ilha da pdgina é um local de passagem onde se opera uma inversdo industrial: 0 que entra nela é um “recebido”, e 0 que sai dela é um “produto”. As coisas que_ centram na’ pagina so sinais de uma “passividade” do sujeito em face de uma tradigao; aquelas que saem dela so as marcas do seu poder de fabricar objetos. No final das contas, a empresa escrituristica transforma ou conserva dentro de si aquilo que recebe do seu meio circunstancial e cria dentro de si os instrumentos de uma apropriagao do espaco exterio Ela estoca aquilo que vai selecionando e se da os meios de uma expansio. Combinando o poder de acumular o passado e 0 de conformar a seus modelos a alteridade do universo, é capitalista e conquistadora. O laboratério cientifico e a indus- tria (que é, com razao, definida por Marx como “o livro” da “ciéncia”)* obedecem ao mesmo esquema. A cidade moderna também: é um espaco circunscrito onde se realizam a vontade de coligirestocar uma populacao exterior e a de conformar 0 campo a modelos urbanos. A prépria revolucao, esta idéia “moderna”, representa 0 projeto escrituristico no nivel de uma sociedade inteira que tem a ambicao de se constituir em pagina em branco com relagao 0 passado, de se escrever a si mesma (isto 6, produzirse como sistema préprio) e de refazer a histéria pelo modelo daquilo que fabric resso”). Serd apenas necessério que esta ambicao multiplique a operacdo escrituristica nos campos econémicos, administrativos ou politicos, para que se realize 0 226 eT projeto. Hoje, por uma inversdo que indica a ultrapassagem de um limiar nesse desenvolvimento, o sistema escrituristico anda automovelmente; ele se torna atto-mével e tecnocratico; muda 0 sujeitos que tinham o seu dominio em executores da maquina de escrever que os comanda e utiliza. Sociedade informatica, Portanto, com toda a razéo, nos iiltimos trés séculos aprender a escrever define a iniciagdo por exceléncia em uma sociedade capitalista e conquistadora. £ a sua prdtica inicidtica fundamental, Foi preciso sentir os efeitos inquietantes de um ‘Go prodigioso avango para que suspeitassemos ser a formagao da crianga moderna uma pratica escrituristica. Dessa pratica escriturante vou levar em conta apenas um exemplo, por seu valor mitico. E um dos raros mitos que a Sociedade ocidental moderna foi capaz de inventar (com efeito, ela substituiu por praticas os mitos das sociedades tradicio- nais): 0 Robinson Crusoé de Daniel Defoe. O romance combina os tres elementos que eu distinguia: a ilha que demarca um lugar proprio, a produgéo de um sistema de objetos por um sujeito senhor, e a transformacao de um mundo “natural”. 6 0 romance da escritura. Aligs, em Defoe, o despertar de Robinson para o trabalho capitalista e conquistador de escrever a sua ilha se inaugura com a decisio de escrever o diério, de garantirse assim um espaco de dominio sobre o tempo e sobre as coisas, ede constituirse assim, com a pagina em branco, uma prim itha para af produzir 0 seu querer. Nao € de se admirar entio que desde Rousseau, que queria apenas este livro para seu Emilio, Robinson tenha sido ao mesmo tempo a personagem recomendada aos educadores “modernos” de futuros técnicos sem voz. € 0 sonho das criangas que desejam criar um mundo sem pi Analisando esse escrever, prética mitica moderna, néo quero negar em absoluto aquilo que todos nés lhe devemos, Particularmente nés, mais ou menos funciondrios, portanto ceriancas, profissionais e beneficiérios da escritura numa socie- dade que nela vai haurir sua forga. Gostaria até de destacar ainda dois dos seus aspectos que precisarao o alcance dessa 227 forga, Relacionamse com o meu tema pois aa resneto 8 ai ‘a perda de uma Jagio que a escritura tem com al Tdemtficadora e, de outro lado, a um nove tratamento da lingua pelo sujeito locutor. | Nao se poderia superestimar a relagho fundamental 2 Ocidente com aquela que foi durante muitos séculosa Escritu por exceléncia, a Biblia. Simplificando a historia Ge ae um artefato, sabendo que um modelo nao se aval ae a provas, mas pelos efeitos que produz ma reiageo), eee dizer que antes do periodo “moderno”, portanto at pant XVEXVIL, essa Escritura fala. O texto sagrado é te vor, a (primeiro sentido de: Ee en are cet iizer” do Deus que espera do leit », Serer our” do qual depende rn razdes analisadas em outra instancia, : scobrindo aos poucos que essa Palavra nao se ouv eae ela foi alterada nas corrupgdes do texto Deal See da histéria. Nao se pode a ete a ao de um destinatdrio que trabalho - histérico, eet eee ee eae rt , A-voz hoje alterada ou exti ta genio Palavra cosmoldgica, que se percebe nae ‘mais: ela nao atravessa a distancia das eras. Dea lugares fundados por uma palavra, perderam-se as fe am que se julgava que elas recebiam de uma palavra. Es =n guardar o luto. Agora, a identidade depende de = Lar a de uma iniciativa interminavel (ou do desapedo® - corte) qi essa perda torna necessarias. Mede-se o ser pelo fazer. ‘Aescritura, com isso, fica progressivamente abalada. Outra escritura vai aos poucos se impondo sob formas cienticas eruditas ou politicas: ela nao é mais 0 que fala, eead S fabrica. Ligada ainda Aquilo que desaparece, rH livic ada em face daquilo que se afasta como um passado mas ser eso origem, esta nova escritura deve ser uma pratica, a eS ae indefinida de uma identidade mantida apenas por ‘ pa ‘uma empreitada sempre relativa ao que de outro se ofer 228 seu avanco, na medida em que a voz prépria de uma cultura crista se Ihe torna o outro e onde a presenga que Ihe era dada no significante (€ a prépria definigao da voz) se muda em pasado. A conquista capitalista escrituristica se articula nesta Perda e no gigantesco esforgo das sociedades “modernas” para se redefinirem sem essa voz. A tarefa revoluciondria é apenas um dos seus efeitos principais. Ela é indissocivel da mensagem ue, até entdo, significara sempre para as outras civilizagdes o seu fim (nenhuma delas sobrevivera & morte dos seus deuses): “Nossos deuses nao falam mais - Deus esta morto!” Ao mesmo tempo em que a escritura se modificava, trans- formouse também a relagao com a linguagem. Uma nao vai sem a outra, mas devese sublinhar igualmente este segundo aspecto, para perceber depois a forma sob a qual a palavra, hoje, retorna. Outro apanhado histérico pode sugeri-lo. A virada da modernidade se caracteriza em primeiro lugar, no século XVII, pela desvalorizacéo do enunciado e pela concen- tracdo sobre o ato de enunciar, a enunciagio. Quando se tinha certeza quanto ao locutor (“Deus fala no mundo"), a atencao se voltava para o ato de decodificar os Seus enunciados, os “mistérios" do mundo. Mas quando essa certeza fica perturbada com as instituigdes politicas e religiosas que lhe davam garantia, erguntase pela possibilidade de achar substitutos para 0 unico locutor: Quem falaré? E a quem? Com o desaparecimento do Primeiro Locutor surge 0 problema da comunicagio, ou seja, de uma linguagem que se deve fazer e nao mais somente ouvir, No oceano da linguagem progressivamente disseminado, mun- do sem margens e sem ancoras (é duvidoso, e logo improvavel, que um Unico sujeito se aproprie dele para fazéo falar), cada discurso particular atesta a auséncia do lugar que, no passado, era atribuido ao individuo pela organizacao de um cosmos e, Portanto, a necessidade de cortar para si um lugar por uma ‘maneira prépria de tratar um departamento da lingua, Noutros termos, pelo fato de perder seu lugar, o individuo nasce como sweito. O lugar que Ihe era outrora fixado por uma lingua cosmolégica, ouvida como “vocagao” e colocagéo numa ordem do mundo, torna-se agora um “nada”, uma espécie de vacuo, 229 que obriga o sujeito a apoderarse de um espago, colocar-se a si mesmo como um produtor de escritura. Devido a esse isolamento do sujeito, a linguagem se obje- tiva, tormandose um campo que se deve lavrar endo mais, decifrar, uma natureza desordenada que se ha de cultivar. A ideologia dominante se muda em técnica, tendo por programa essencial fazer uma linguagem e nao mais [éla. A prépria linguagem deve ser agora fabricada, “escrita”. Construir uma ciéncia e construir uma lingua é, para Condillac, 0 mesmo trabalho, bem como estabelecer a revolugdo é, para os homens de 1790, forjar e impor um francés nacional.” Isso implica um afastamento do corpo vivido (tradicional e individual) e, por- tanto, também de tudo aquilo que, no povo, continua ligado a terra, ao lugar, a oralidade ou as tarefas nao verbais. O dominio da linguagem garante e isola um novo poder, “burgués”, 0 poder de fazer a histéria fabricando linguagens. Este poder, essencialmente es¢ iristico, nao contesta apenas o privilégio do “nascimento”, ou seja, da nobreza: ele define o cédigo da ppromogéo sécio-econémica e domina, controla ou seleciona segundo suas normas todos aqueles que ndo possuem esse dominio da linguagem. A escritura se torna um principio de hierarquizacao social que privilegia, ontem o burgués, hoje ° tecnocrata. Ela funciona como a lei de uma educagéo organi- zada pela classe dominante que pode fazer da linguagem (etérica ou matemética) o seu instrumento de produgao. Ainda aqui Robinson esclarece uma situa¢do: o sujeito da escritura é 0 senhor, ¢ 0 trabalhador que usa outra ferramenta, além da linguagem: serd Sexta-Feira. Esta_mutagao_histérica Inscrigées da lei no corpo nao transforma toda a or- ganizacio que estrutura uma_sociedade pela es critura, Inaugura um outro modo de uséla. Um novo modo de usar a linguagem. Um funcionamento diferente. Devese pois relacionar a sua instauragio com o trabalho, quase imemorial, que se esforca por colocar o corpo (social e/ou individual) sob allei de uma escritura, Esse trabalho precedeu a figura histérica 230 assumida pela escritura na modernidade. E lhe sobreviverd. Ele se imbrica nela e a determina como uma arqueologia continua a qual nao sabemos mais que nome nem que estatuto dar, Aquilo que ai se joga diz respeito a relacdo do direito com 0 corpo - corpo, ele mesmo, definido, circunscrito, articulado pelo que o escreve. ‘Nao ha direito que nao se escreva sobre corpos. Ele domina 0 corpo. A prépria idéia de um individuo isolavel do grupo se instaurou com a necessidade, sentida pela justica penal, de corpos que devem ser marcados por um castigo e, pelo direito matrimonial, de corpos que se devem marcar com um preco ‘has transagées entre coletividades. Do nascimento ao luto, o direito se “apodera” dos corpos para fazé-los seu texto. Median- te toda sorte de iniciagdes (ritual, escolar, etc.), ele os transfor- ma em tébuas da lei, em quadros vivos das regras e dos costumes, em atores do teatro organizado por uma ordem social. E até para Kant e Hegel, nao hd direito sem pena de morte, ou seja, sem que, em casos extremos, o corpo assinale Por sua destruigdo o absoluto da letra e da norma. Afirmagao discutivel. Seja como for, sempre é verdade que a lei se escreve sobre os corpos. Ela se grava nos pergaminhos feitos com a pele dos seus stiitos. Ela os articula em um corpo juridico, Com eles faz o seu livro. Essas escrituras efetuam duas opera es complementares: gracas a elas, os seres vivos so “postos num texto’, transformados em significantes das regras (6 uma contextualiza¢4o) e, por outro lado, a razdo ou o Logos de uma sociedade “se faz carne” (trata-se de uma encarnagao). Hi toda uma tradigdo para contélo: a pele do empregado € o pergaminho onde a mao do patrdo escreve. Assim fala Dromio, o escravo, a seu senhor Antifolo de Efeso em The Comedy of Errors: “Ifthe skin were parchment and the blows you gave were ink...” Shakespeare indicava deste modo o lugar primordial da escritura e a relacdo de dominio que a lei mantém com o seu stidito pelo gesto de “Ihe fazer a pele”. Todo poder, inclusive 0 do direito, se traga primeiramente em cima das costas de seus sujeitos. O saber faz 0 mesmo. Assim a ciéncia etnolégica ocidental se escreve no espaco que 0 corpo 231 do outro Ihe oferece. Poder-se-ia portanto supor que os perga- minhos e os papéis so colocados no lugar de nossa pele e que, substituindo-a durante os periodos felizes, formam em torno dela uma vala protetora. Os livros sdo apenas as metéforas do corpo, Mas nos tempos de crise, o papel nao basta para a lei, e ela se escreve de novo nos corpos. O texto impresso remete a tudo aquilo que se imprime sobre o nosso corpo, marca-o (com ferro em brasa) com o Nome e com a Lei, altera-o enfim com dor e/ou prazer para fazer dele um simbolo do Outro, um dito, um chamado, um nomeado, A cena livresca representa a experiéncia, tanto social como amorosa, de sero escrito daquilo que no se pode identificar: “Meu corpo sera apenas 0 texto que tu escreves sobre ele, significante indecifravel para qual- quer outro que no tu. Mas o que és tu, Lei, que mudas 0 corpo em teu sinal?” O sofrimento de ser escrito pela lei do grupo vem estranhamente acompanhado por um prazer, 0 de ser reconhecido (mas nao se sabe por quem), de se tornar uma palavra identificavel e legivel numa lingua social, de ser muda- do em fragmento de um texto andnimo, de ser inscrito numa simbélica sem dono e sem autor. Cada impresso repete essa ambivalente experiéncia do corpo escrito pela lei do outro. Conforme os casos, ele é a sua metéfora longinqua e gasta que no atua mais na escritura encarnada, ou entéo éa sua meméria viva quando a leitura toca no corpo as cicatrizes do texto desconhecido que ai se acha impresso ha muito tempo.” Para que a lei se escreva sobre 0s corpos, deve haver um aparelho que mediatize a relacéo de uma com os outros, Desde os instrumentos de escarificagao, de tatuagem e da iniciago primitiva até aos instrumentos da justica, existem instrumentos ara trabalhar 0 corpo. Ontem, o punhal de sflex ou a agulha. Hoje, a aparelhagem que vai desde o cassetete do policial até as algemas e a0 box do acusado. Esses instrumentos compdem uma série de objetos destinados a gravar a forca da lei sobre 0 seu siidito, tatué-lo para fazer dele uma demonstracdo da regra, produzir uma “cépia” que torne a norma legivel. Essa série forma um ponto intermediério: ela debrua o direito (ela o arma) visa a care (para marcécla), Fronteira ofensiva, ela organiza, I: separa o texto e 0 corpo mas também os 232 articula, permitindo os gestos i que fardo da “ficgao” modelo teproduzido e realizado pelo corpo. “3! ® Essa, panéplia de instrumentos Para escrever pode ser isolada. & posta em reserva nos depésitos ou nos museus. Pode ser colecionada, antes ou depois do uso. Fica Id, a espera ou como residuo. Essas coisas duras sio utilizdveis em corpos que estao ainda longe, desconhecidos, e podem ser usadas_ oe mente a servico de outras leis, diferentes daquelas que permi. tiram a sua ‘aplicacéo”, Esses objetos feitos para apertar, endireitar, cortar, abrir ou encerrar corpos se expdem em vitrinas fantasticas: ferros ou acos brilhantes, madeiras com- pactas, cifras sélidas e abstratas alinhadas como caracteres de imprensa, instrumentos curvos ou direitos, envolventes ou contundentes, que esbocam os movimentos de uma justi suspensa € moldam jé partes de corpos que se hio de reel ‘mas ainda estio ausentes. Entre as leis que mudam e seres vivos que vao passando, as galerias desses instrumentos esta- veis pontuam o espaco, formam redes de nervuras, remetendo: de um lado ao corpo simbdlico e, do outro, aos seres de carne € 0880. Por mais disseminada que ‘seja (como os ossos de um esqueleto), essa pandplia desenha em Pontos fixos as relagoes gntre ease corposiguamente mets. Em pas destacadas a maquina de escrever - 0 sis ai 2 eis miguia de esrever da Ll ~o sistema mesince de una Essa maquinaria tran De um corpo ao outro 08 corpos we, corpo social, Ela faz esses coFpo: i de uma le, Una outra maguinaia vem omarse aes paninis tbo méaio ou igo eno mals ric, rapeutica” individual e ndo coleti aueela trata sedistingue do grupo, Depols de esstao use Muito tempo apenas um “membro” - brago, perna ou cabega 5 da unidade social, ou lugar de cruzamento de forgas ou ‘espiritos” césmicos, foi lentamente se destacando como uma totalidade com suas enfermidades, seus equilibrios, desvios anormalidades préprios. Foi necesséria uma longa hist6ria, dos 233 séculos XV ao XVII, para que esse corpo individual fosse “jsolado”, da mesma maneira como se “isola” um corpo em quimica ou em microfisica: para que entio se tornasse a tunidade bsica de uma sociedade, apés um tempo de transigao ‘onde aparecia como uma miniaturizagéo da ordem politica ou celeste ~ um “microcosmo”.” Ocorre uma mudanga dos postu- lados sécio-culturais, quando a unidade de referéncia progres- sivamente deixa de ser 0 corpo social para tornar-se 0 corpo individual, e quando o reino de uma politica juridica comeca a ser sucedido pelo reino de uma politica médica, da represen- taco, da gestao-e do bem-estar dos individuos. corte individualista e médico circunscreve um espago “corporal” proprio onde se deve poder analisar uma combina- toria de elementos e as leis de seus intercdmbios. Dos séculos XVII ao XVIII, a idéia de uma fisica dos corpos em movimento neste corpo habita a medicina,’ antes que esse modelo cientifico seja substituldo, no século XIX, pela referéncia termodinémica e quimica, Sonho de uma mecdnica de elementos distintos, cuja forca € transmitida por pulsdes, presses, modificagbes de equilibrios e manobras de todo 0 tipo. trabalho do corpo: uma complexa maquinaria de bombas, de tubos, de filtros, de alavancas, onde circulam licores e ha drgaos que se correspon- dem."° A identificacao das pecas e de seus jogos permite que sejam substituidos por elementos artificiais aqueles que se deterioram ou apresentam algum defeito, eaté construir corpos autématos. O corpo se repara. Educase, Até mesmo se fabrica. ‘A panéplia dos instrumentos ortopédicos e dos instrumentos para intervencdo prolifera portanto, & medida que, daqui em iante, o homem se torna capaz de decompor e reparar, cortar, substituir, tirar, acrescentar, corrigir ou endireitar. A rede desses instrumentos se complexifica e se estende. Até hoje esta funcionando, apesar da passagem para uma medicina quimica e para modelos cibernéticos. Milhares de laminas afiadas e sutis se ajustam as infinitas possibilidades que Ihes oferece a meca- nizagao do corpo. Mas a sua proliferagao por acaso modificou o seu funcio- namento? Mudando de servico, passando da ‘aplicagao” do 234 direito & de uma medicina cinirgica e ortopédica, 0 aparelho dos instrumentos mantém a fungao de marcar ou conformar os corpos em nome de uma lei. Se o corpus textual (cientifico, ideolégico e mitoldgico) se transforma, se os corpos se tornam sempre mais aut6nomos em face do cosmos e assumem a figura de montagens mecdnicas, a tarefa de articular o primeiro com ‘08 outros continua de pé, sem dtivida exorbitada pela multipli- cagio das intervengoes possiveis, mas sempre definida pela escritura de um texto sobre os corpos pela encarnagao de um saber. Estabilidade da instrumentagao. Estranha inércia funcio- nal desses instrumentos, no entanto sempre ativos para cortar, apertar, modelar as carnes interminavelmente oferecidas a uma, criagio destinada a fazé-los corpos em uma sociedade. Uma necessidade (destino?) parece indicada por esses objetos de aco e niquel: aquela que introduza lei na carne pelo ‘ago e que néo autoriza ou nao reconhece como corpos, numa cultura, a no ser as carnes escritas pelo instrumento. Mesmo quando a ideologia médica se inverte lentamente, no inicio do século XIX, quando, de modo geral, uma terapéutica de extra- bes (0 mal € um excesso ~ algo a mais ou algo demasiado ~ que se deve arrancar do corpo pela sangria, a purga etc.) é substitufda por uma terapéutica de acréscimos (0 mal é uma falta, um déficit, que se deve suprir por drogas, apoios etc.), a aparelhagem da utensilidade continua exercendo o seu papel de escrever sobre o novo texto do saber social em vez do antigo, assim como a grade de ferro da Coldnia penal & sempre idéntica, mesmo que se possa trocar o papel normativo que ela arava sobre o corpo do supliciado. Sem divida, a méquina mitica de Kafka assume, no decor. rer dos tempos, formas menos violentas - e talvez menos capazes de provocar o tiltimo clardo de prazer que a testemu- nha da Col6nia percebia no olhar dos moribundos feridos pela escritura do Outro. Ao menos a anélise do sistema permite detectar as variantes e os regimes da méquina que faz dos corpos a gravura de um texto, e interrogarse sobre o olho ao qual se destina esta escritura ilegivel em seus suportes. 235 Do movimento que, no sé- Aparelhos de encarnagéo culo XVII, deportou os Re- formadores puritanos bem como os juristas para o sa- ber de médicos justamente denominados Physicians," de- preendese uma grande ambicZo: consiste em refazer a historia a partir de um texto. Que as Escrituras fornegam, no seio de uma sociedade corrompida e de uma Igreja em decadéncia, 0 ‘modelo para se reformar tanto uma como a outra, eis 0 mito da Reforma, Volta as origens, nao apenas as origens do Ociden- te cristo, mas & do universo, para uma génese que da corpo ao Logos ¢ o encarna de maneira que de novo, mas diferente- mente, ele “se faga carne”. As variantes desse mito se encon- tram por toda a parte, nesse tempo de Renascenga, com a convicedo, ora utdpica, ora filoséfica ou cientifica, politica ou religiosa, que existe uma Razao capaz de instaurar ou restaurar um mundo, é que nao se trata mais de ler os segredos de uma ordem ou de um Autor escondido, mas de produzir uma ordem para escrevéla no corpo de uma sociedade selvagem ou depravada. A escritura adquire um direito sobre a histéria, em vista de corrigila, domesticéa ou educéla.”” Ela se torna poder nas mos de uma “burguesia” que coloca a instrumentalidade da letra no lugar do privilégio do nascimento, ligado 4 hipétese de que o mundo dado é razao. Faz-se ciéncia e politica, com a certeza, logo transformada em postulado “esclarecido” ou revolucionario, de que a teoria deve transformar a natureza inscrevendose nela. Ela se faz violencia, cortando e arrancando na irracionalidade de povos supersticiosos ou de regides enfei- tigadas. A imprensa representa essa articulacao do texto no corpo mediante a escritura. A ordem pensada ~ 0-texto concebido - se produz em corpos - 0s livros - que a repetem, formando calgamentos e caminhos, redes dé racionalidade através da incoeréncia do universo. O proceso vai se multiplicar. Ele é ainda apenas a metéfora das técnicas, melhor taylorizadas, que transformarao os prdprios seres vivos em impressos da ordem. Mas a idéia fundamental ja se acha presente neste logos que se faz livros e nesses livros que, como imagina o Século das Luzes, irdo refazer a historia. E essa idéia poderia ter também como simbolo as “constituicdes” que se vdo multiplicando, do século XVIII ao século XIX: dio ao texto 0 estatuto de ser “aplicdvel” sobre 0s corpos puiblicos ou privados, de defini-os ¢ encontrar assim a sua efetividade. Essa grande paixio mitica e reformadora funciona a partir de trés termos que.a caracterizam: de uma parte, um modelo ou “ficgdo”, isto é, um texto; de outra parte, os instrumentos de sua aplicagio ou de sua escritura, isto €, instrumentos, enfim, 0 material que é ao mesmo tempo suporte e encarnagéo do modelo, isto é, uma natureza, essencialmente uma carne quéa escritura transforma em corpo. Por meio de instrumen- tos, conformar um corpo aquilo que Ihe define um discurso social, tal € 0 movimento. Parte de uma idéia normativa veiculada por um cédigo de intercambios econémicos ou pelas variantes dela, apresentadas nos relatos do legendério comum enas criagdes do saber. No comeco, hd uma ficgio determinada Por um sistema “simbélico” que tem forca de lei, portanto uma epresentagao (um teatro) ou uma fébula (ou um “dito") do corpo. Isto é, um corpo colocado como o significante (o termo) de um contrato, Essa imagem discursiva deve informar um “real” desconhecido, outrora designado como “carne”. Da ficgdo ao desconhecido que the dard corpo, a passagem se efetua por instrumentos que se multiplicam e diversificam pelas istencias imprevisiveis do corpo a (con)formar. Torna-se Necesséria uma fragmentagio indefinida da aparelhagem para ajustar e aplicar cada um desses ditos e/ou saberes do corpo, inodelos unificadores, & opaca realidade carnal cuja complexa organizacao se revela no decorrer das interveng6es resistindo- the. Entre o instrumento e a carne, existe portanto um jogo que se traduz de um lado por uma mudanga na ficgéo (uma corregdo do saber) e, do outro, pelo grito, dor inarticulével, impensado da diferenga corporal. Produtos de um artesanato, e mais tarde de uma inddstria, os instrumentos se propagam em tomo das imagens que server e que séo os centros vazios, 08 puros significantes da comunicacéo social, “nadas” - e representam, em bruto, os ‘saberes astuciosos, as sinuosidades cortantes, as astticias per- faradoras, 0s giros incisores que séo necessérios e produzidos para a penetracao no corpo labirintico. Desde modo, tornam-se 0 vocabuladrio metélico dos conhecimentos que trazem dessas viagens. Sao os ntimeros de um saber experimental conquista- do pela dor dos corpos que se vao transformando em gravuras ce mapas dessas conquistas. De todos esses instrumentos, heréis imputresciveis, as carnes dilaceradas ou aumentadas, decom- postas ou recompostas, narram as faganhas. Para o tempo de uma vida ou de uma moda, elas ilustram as agbes do instru- mento, Sao 0s seus relatos humanos, ambulantes e passageiros. Mas os aparelhos tém valor instrumental se, e somente se, ‘uma “natureza” supostamente exterior ao modelo, se uma “matéria” se distingue das operagdes informadoras e reforma- doras. Tornase necessério um exterior a essa escritura. Nao se dando uma separacdo entre o texto a gravar e.0 corpo que 0 historiciza, o sistema deixa de funcionar. Ora, sio 0s instrumen tos que colocam essa diferenca. Marcam a cesura sem a qual tudo se torna escritura dispersa, combinatéria indefinida de ficgdes e simulacros ou entao, ao contrério, um continuum de forgas naturais, de pulsdes libidinais e de fluxos instintuais, Operadores da escritura, os instrumentos so igualmente seus defensores. Protegem o privilégio que a circunscreve e a distingue do corpo a educar. As suas redes mantém, face & instancia textual de que so 0s executantes, um referencial ontolégico - ou um “real” ~ que informam, Mas essa barreira se esboroa aos pouguinhos. Os instrumentos cedem aos pou- cos, perdendo importancia e espago, tornando-se quase anacr6- nicos na ordem contemporanea onde a escritura e a maquinaria, finalmente confundidas, se tornam, elas mesmas, as modalizagdes aleatérias das matrizes programaticas demar- cadas por um c6digo genético," e onde, de realidade “carnal”, ontem submetida a escritura, nao resta quem sabe sendo o grito ~ de dor ou de prazer - voz incongruente na indefinida combinatéria de simulagdes. 238 i teenieeetimtieenenisses | De fato, ao perder a sua capacidade (mitica) de organizar © pensdvel, o sistema ternario do texto, do instrumento e do corpo fica na clandestinidade. Sobrevive, embora ilicito a0 olhar de uma cientificidade cibernética. Parcelar e fragmenté- rio, ele se empilha sobre muitos outros. Configuracdes episte- molégicas jamais séo substituidas pelo aparecimento de ordens novas; elas se estratificam para formar o tufo de um presente. Do sistema do instrumento sempre se encontram reliquias e bolsas, assim como esses meios-soldos que, depois de terem simbolizado um regime e uma conquista imperial, ainda conti- nuam constituindo redes e miicleos através da Franca da Restauracdo. Os instrumentos assumem ares folk. Nem por isso deixam de compor os meiossoldos deixados pelo falecido império da mecdnica. Essas populagées de instrumentos osci- lam entre o estatuto de ruinas memordveis e uma intensa atividade cotidiana. Formam uma classe intermedidria de obje- tos j4 aposentados (€ 0 museu) e ainda trabalhando (sua operatividade em uma grande multiplicidade de empregos secundarios)."* Desse trabalho de formigueiro, existem mil terrenos, desde os banheiros até os laboratérios mais ricos, desde os saldes de beleza até as salas de operagio. Filhos de uma outra época, eles pululam no entanto no seio da nossa, gadgets ou bisturis informadores de corpos. Duas operagées pri A maquinaria da racterizam as suas interven representacdo goes. Uma visa em primeiro lugar tirar do corpo um ele- mento demais, enfermo ou inestético, ou entao acrescentar 30 corpo o que Ihe falta. Os instrumentos se distinguem assim conforme a agio que efetuam: cortar, arrancar, extrair, tirar etc. ou inserir, colocar, colar, cobrir, reunir, coser, articular etc. ~ sem falar daqueles que substituem érgaos que faltam ou se deterioraram valvulas e reguladores cardiacos, proteses de articulagdes, pinos implantados no femur, iris artificiais, subs- titutos de ossos ete. Do lado de fora ou de dentro, corrigem um excesso ou um déficit, mas em relacdo a qué? Como acontece no caso de 239 depilar uma perna ou pintar cflios, de cortar ou implantar cabelos, essa atividade de extracdo ou de acréscimo remete a ‘um cédigo. Mantém os corpos submetidos a uma norma. Deste ponto de vista, até as roupas podem passar por instrumentos, gracas aos quais uma lei social se assegura dos corpos e de seus membros, regula-os e os exerce por mudangas de moda como em manobras militares. 0 automével, como um esparti- Iho, também os molda e os conforma a um modelo postural. E tum instrumento ortopédico e ortopraxico. Os alimentos sele- cionados por tradigdes e vendidos nos mercados de uma sociedade modelam igualmente os corpos mediante a nutrigdo; impdemhes uma forma e um tOnus que tém valor de uma carteira de identidade. Os culos, 0 cigarro, os sapatos etc. refazem, & sua maneira, o “retrato” fisico... Onde se acha 0 limite da maquinaria pela qual uma sociedade se representa por gente viva e dela faz as, suas representagdes? Onde é que para o aparelho disciplinar™® que desloca e corrige, acrescenta 6u tira nesses corpos, maledveis sob a instrumenteio de um semntimero de leis? Na verdade, eles s6 se tornam corpos raas & sua conformagao a esses c6digos. Pois onde é que ha, @ quando, algo do corpo que nao seja escrito refeito, cultivado, identificado pelos instrumentos de uma simbélica social? Tal vez, na fronteira extrema dessas escrituras incansdveis, ou furando-as com lapsos, exista somente o grito: ele escapa, escapaihes. Do primeiro grito até o tiltimo, alguma coisa de outro irrompe com ele, que seria sua diferenga em face do corpo, uma diferenca ora in-fans e mal educada, intolerdvel na crianga, a pessoa possessa, 0 louco ou o doente ~ uma falta de “compostura’, como os berros do bebé em Jeanne Dielman ou © grito do viceconsul na India Song. Esta primeira operagio de retirar ou acrescentar algo néo 6 sendo 0 corolério de outra, mais geral, que consiste em fazer. os corpos dizerem o cédigo. Como se viu, esse trabalho “yealiza” uma lingua social (no sentido ingles do termo), dhe efetividade. Tarefa imensa de “maquinar” os corpos para que * Filmes da autora, respetvamente, de Chantal Akerman e Marguerite Duras wen, 240 soletrem uma ordem."* A economia liberal nao é menos eficaz Que 0 totalitarismo para efetuar essa articulagao da lei pelos corpos. Ela procede apenas segundo outros métodos. Em vez de esmagar os grupos para marcé-los com o ferro tinico de um 86 poder, atomiza-os inicialmente e depois multiplica as redes estreitas dos intercambios que conformam unidades indivi duais as regras (ou as “modas”) dos contratos s6cio-econémicos e culturais. Tanto neste como naquele caso, podese perguntar or que isso funciona. Que desejo ou que necessidade nos leva assim a fazer de nossos corpos os emblemas de uma lei identificadora? As hipéteses que tentam responder a essa pergunta mostram de outro modo a forga dos lacos que os instrumentos estabelecem entre nossas “naturezas" in-fantis e as discursividades sociais. Uma credibilidade do discurso ¢ em primeiro lugar aquilo que faz. os crentes se moverem. Ela produz praticantes, Fazer crer é fazer fazer. Mas por curiosa circularidade a capacidade de fazer se mover ~ de escrever € maquinar 0s corpos - é precisamente 0 que faz crer. Como a lei é jé aplicada com e sobre corpos, “encarnados” em praticas fisicas, ela pode com isso ganhar credibilidade e fazer crer que esté falando em nome do “real”. Ela ganha fiabilidade ao dizer: “Este texto vos é ditado pela prépria Realidade”. Acredita-se entdo naquilo que se supde real, mas este “real” é atribuido ao discurso por uma tenga que Ihe dé um corpo sobre o qual recai o peso da lei. A lei deve sem cessar “avancar” sobre 0 corpo, um capital de encarnagéo, para assim se fazer crer e praticar. Ela se inscreve ortanto gracas ao que dela j se acha inscrito: sio as testemu- nhas, os mértires ou exemplos que a tornam digna de crédito ara outros. Assim se impde ao stidito da lei: “Os antigos a Praticaram’, ou “outros assim acreditaram e fizeram”, ou ainda: “Tu mesmo, tu levas jé no teu corpo a minha assinatura’, Noutras palavras, 0 discurso normativo s6 “anda” se jé se houver tornado um relafo, um texto articulado em cima do real ¢ falando em seu nome, isto é, uma ei historiada e historicizada, harrada por corpos, Sua fixaggo em um relato é 0 dado Pressuposto para que produza ainda relato fazendo-se acredi 241 tar. E 0 instrumento assegura precisamente a passagem do discurso ao relato por intervengdes que encarnam a lei em Ihe conformando corpos, e Ihe valem assim o crédito de serrelatada pelo préprio real. Da iniciagdo & tortura, toda ortodoxia social se utiliza de instrumentos para atribuir-se a forma de uma historia e produzir a credibilidade ligada a um discurso articu- lado por corpos. Uma outra dinamica completa a primeira e nela se imbrica, aquela que leva os vivos a tornar-se sinais, a encontrar num discurso o meio de transformar-se em uma unidade de sentido, em uma identidade. Desta carne opaca e dispersa, desta vida exorbitante e confusa, passar enfim limpidez de uma palavra, tornar-se um fragmento da lingué em, um s6 nome, legivel por outros, citével: esta paixdo habita © asceta armado de instrumentos para combater a prépria came, ou 0 fildsofo que faz a mestna coisa com a linguagem, “até perder corpo”, como dizia Hegel. Mas seja Id quem for a sua testemunha, com fome de ter ou ser enfim um nome, de ser chamado, de se metamorfosear em um difo, ao preco até da vida, Esta intextuacdo do corpo responde & encarnagéo da lei; servelhe de apoio, parece até que a fundamenta, em todo 0 caso Ihe serve. Pois a lei joga com o corpo: “Dé-me o teu corpo ¢ eu te darei sentido, doute um nome e te fago uma palavra de meu discurso”, As duas problemdticas se apéiam, e talvez.a lei nao tivesse poder algum se ndo se apoiasse no ‘obscuro desejo de trocar a carne por um corpo glorioso, de ser escrito, ainda que mortalmente, e mudado em uma palavra reconhecida. Aqui ainda, a esta paixdo de ser um sinal somente se opde ao grito, o desvio ou éxtase, revolta ou fuga daquilo que do corpo escapa a lei do nomeado, Talvez toda experiéncia, que nao é grito de prazer ou de dor, seja coligida pela instituicao. Toda experiéncia que nao é deslocada ou desfeita por esse éxtase é captada pelo “amor do censor”,” coligida ¢ utilizada pelo discurso da lei, Ela & canalizada e instrumentada. & escrita pelo sistema social. Por_ 0, seria necessdrio procurar, do lado dos gritos, aquilo que nao € “refeito” pela ordem da instrumentalidade escrituristica. 242 TT A inauguragéo de uma nova pratica escriturist ca, marcada no céu do ; séct i lardade lboriosa de Robinson Crusoé: podese ents far a sua generalizagéo assim como é representads pene méquinas fantéstcas cujas figuras vo aparecer, por lth des anos de 1910-1914, nas obras de Alfred Jarry (O Supermachy. 1902; 0 Doutor Faustroll, 1911), Raymond Roussel (Impr, $0es da Africa, 1910; Locus Solus, 1914), Marcel Duchamp (Le Grand Verre: A casada desnudada mmo, 1911-1925), Franz Kafka (A Col6nia Penal, 1914) ete mitos que falam do encerramento nas operagdes de uma As “mdquinas celibatarias” nunca a nao ser a si mesma. $6 ha saidas er Ges, j Pintadas, espelhos de vidro. Sé hé brechas eo escritos. Sio comédias de desnudamentos e tortura, relatos ‘autématos” de desfolhamentos de sentidos, estragos teaten de rostos decompostos. Essas produgoes tem um ar fantasticg. ‘do pela indecisdo de_um real que mostrariam nas fronteirae da linguagem, mas pela relacéo entre os dispositivos produ. Fomanescas ou ic6nicas narram que nao existe, para a escritura, hem entrada nem safda, mas somente o intermindvel jogo de suas fabricagdes, O mito diz 0 ndolugar do acontecimento ou lum acontecimento que néo tem lugar - se todo acontecimons € uma entrada ou uma saida. A maquina produtora de lingua- ‘gem é lavada da historia, limpa das ot i a ab-soluta e sem relagSo com o outro “celibata E uma “ficgdo tedrica”, tomando 0 termo i de Freud que, id em 1900, esbogava una conéce de maguing celibataria, fabricadora de sonhos - avangando de dia e, de noite, recuando™, Bla se escreve numa lingua sem terrae sem corpo, com todo o repertério de um exlio fatal ou de um Exacta impossivel. A méquina solitéria faz funcionar 0 Eros do morto, mas esse ritual deluto (ndo hé outro) é uma comédia no timule do(a) ausente. Nao existe morte no campo das operagdes 243 Set ieee nce eee graficas ¢ lingifsticas. O “suplicio” da separacgo ou do assas- sinio do corpo continua sendo liters Ferindo, torturando, matando, desenrolase no interior da pégina. © celibato é escrituristico. As personagens transformadas em cilindros, tim- panos, devastagdes e molas reunidos e pintados no “vidro” onde a sua representacao em perspectiva se mistura com os objetos situados por tras (o vidro é uma janela) e & frente (o vidro é um espelho) ndo representam somente, no painting. glass-mirror que €A Casada desnudada de Duchamp instalada na biblioteca da casa de campo de Miss Dreier,”” a disseminagio do tema da pintura, mas 0 logro da comunicagio que é prometida pela transparéncia do vidro, Tragicomédia da lingua- gem: ser uma mistura de efeitos dticos, pois esses elementos ‘do so coerentes nem unidos. O olhar casual dos espectadores osassocia, mas ndo os articula. “Desnudada” por uma defecgao mecanicamente organizada, a casada jamais se casa com um real ou com um sentido. Certamente, apenas uma erdtica, desejo do outro ausente, é capaz de fazer andar o aparelho produtor, mas ela visa algo que jamais estard /d e que torna obsessivo o olhar do espectador apreendido por seu Duplo que se agita no meio das coisas oferecidas/recusadas no espelho de vidro. O espectador ai se vé disperso no meio do inapreensfvel. A figura pintada no vidro de Marcel Duchamp ¢ a ilusdo de ética desnudada para e por voyeurs que serao sempre celibatarios. A visdo indexa e engana a comunicagdo ausente. Outras maquinas celibatarias funcio- nam do mesmo modo, identificando o sexo com sua imagem mecénica, e a sexualidade com uma ilusdo de ética. Assim, em Os dias ¢ as noites, de Alfred Jarry, hd uma inscrigdo no alto da muralha de vidro que circula a ilha da nereida, mulher cercada de vidro no meio de um cenério militar; ela fala “daquele que beija com paixo o seu Duplo através do vidro": “O vidro se anima num ponto e se torna sexo, eo ser eaimagem se amam através da muralha””". Nessa “ilha de vidro librica”, uma maquinaria fabrica em cada ponto beijado um sexo que nao passa de um ersatz. Assim, em As dez mil milhas, hé uma vidraca separando a mulher fechada no vagio dos homens de bicicleta, que apostam corrida com o trem. a4 Essas tragicomédias, fragmentos de mitos, reconhecem que impossivel a comunicagio se a lingua 6 0 mesmo tempo a promessa ¢ o fantasma. Uma postica, mais uma vez, veio antes da teoria. Mais tarde, a reflexdo avangou nessa direcao, Em Lacan, a categoria da “lalingua” relaciona efetivamente o falar a impossibilidade de se unir sexualmente (“Nio ha relacao sexual”), € a prépria possibilidade da linguagem & impossi dade da comunicagéo que se supde produzir. O lingtista acrescenta: “Assim como a linguagem do fildsofo é o lugar do imposstvel do conhecimento miituo, também lalingua é o lugar do impossivel da relacao sexual”. Entre desejantes, sé resta a possibilidade de amar a lingua que substtui sua comunicagao, E € justamente um modelo de lingua que é fornecido pela ‘méquina, feta de pecas diferenciadas e combinadas (como todo enunciado) e desenvolvendo, pelo jogo dos mecanismos, a Logica de um narcisismo celibatirio, " “Tratase de esgotar o sentido das palavras, de jogar com elas até violentéslas em seus atributos mais secretos, pronunciar enfim 0 divércio total entre o termo e 0 contetido expressivo que estamos habituados a the reconhecer”.” Agora, 0 impor- tante no é mais o dito (um conteiido) nem o dizer (um ato), mas a transformacao, e a invengio de dispositivos, ainda insuspeitos, que permitem multiplicar as transformagdes.* __ Acabousse portanto o tempo em que o “real” parecia vir até o texto para ser af manufaturado e exportado. Acabouse 0 tempo em que a escritura parecia fazer amor com a violencia das coisas e alojé-as na ordem de uma razio. O verismo lidava com o aparente, teatro de um verossimil. Depois de Zola, vem Jarry, Roussel, Duchamp etc., ou seja, vém as “ficgdes teéricas” do outro impossivel e da escritura entregue a seus proprios mecanismos ou a suas eregdes solitirias, O texto representa a sua propria morte e zomba dela. A essa escritura, cadaver de ssuma beleza, néo se liga mais nenhum respeito. Ela é apenas © ilusério sacramento do real, espaco de risadas contra os postulados de ontem, Ai se desdobra o trabalho irdnico e meticuloso do luto. 245, ‘Acham-se agora comprometidas as pecasmestras da escri tura conquistadora de Defoe: a pégina em branco é agora apenas um vidro onde a representacdo € atrafda por aquilo que ‘exclufa; o texto escrito, fechado em si mesmo, perde o referente que 0 autorizava; a utilidade expansionista se inverte em “estéril gratuidade” do Don Juan celibatério ou do “vitivo”, sem outra geragio que nao a simbolizante, sem mulher e sem natureza, sem 0 outro. A escritura é aqui “ilhainscrigao”, Locus Solus, “colénia penal” - sonho laborioso, ocupado pelo impos- sivel ao qual ou do qual acredita “falar’ Por esse desnudamento do mito moderno da escritura, a maquina celibataria se torna, mediante a derrisio, blasfema, Ela combate a ambigio ocidental de articular no texto_a realidade das coisas e reforméla. Ela subtrai a aparéncia de ser (de contetido, de sentido) que era 0 segredo sagrado da Biblia, mudada por quatro séculos de escritura burguesa em poder da letra e do niimero, Talvez este antimito ainda se ache a frente de nossa histéria, mesmo que jé encontre muitas confirmagées com a erosio das certezas cientificas, co “tédio” em massa dos escolarizados ou com. a progressiva metaforizacio dos discursos administrativos. Talvez ele esteja ‘simplesmente colocado “ao lado” de uma tecnocratizagao ga: lopante, como um paradoxo indicativo, uma pedrinha branca. 246 CAPITULO XI CITACOES DE VOZES Vos. Nampa figas* 6. cossarz, Orationes t Carmina, iors! Robinson Crusoé ja indicava como é que uma falha se introduz em seu império escrturistico, Durante algum tempo, seu empreendimento 6 com efeito interrompido, e habitado, or um ausente que volta ao terreno da ilha. Tratase da ‘impressao (print) de um pé descalgo de homem na areia da Praia”. Instabilidade da demarcagao: a fronteira cede ao estran- Seiro. Nas margens da pgina, o rastro de um invisivel fantasma * "Vor. fugitive mint 247

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