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O ARQUIVO OU 0 INDICIO DE UMA FALTA. Henry Rousso Desde 0 surgimento, no século XIX, do método critico e do historiador profissional, a questo do "arquivo" néo mais deixou de ocupar um lugar central nos debates historiogréficos, A evolupio da historia, que se tomou uma disciplina que recorre aos métodos das ciéncias sociais, especialmente a entrevista, ¢ 0 surgimento recente de uma "histéria do tempo presente", que implica a confrontagao direta e o didlogo permanente com os vestigios vivos do passado- a meméria dos atores -, modificaram. de alguma maneira 0 debate classico sobre a nogtio de “arquivo”. A isso veio se somar uma mudanga sadical no plano epistemolgico, com o aparecimenta, nos itimas frinta anos, de paradigmas que negam 4 historia sua pretensio de captar o real, definindo-a como - ¢ as vezes reduzindo-a a - uma narrativa subjetiva, na qual o estabelecimento da prova, portanto 0 uso do arquivo, ndo constitul mais a base na qual ela pode Jegitimamente se epoiar. Mas, ao mesmo tempo, 0 desejo cada vez mais explicito na opinido publica de uma histéria "positiva’, baseada cm provas irrefutiveis, especialmente para periodos ou acontecimentos trigicos do século XX, tem incessantemente acuado os historiadores, obrigando-os a uma abordagem cada vez mais prudente dos arquivos, remetendo-os mais uma vez a uma pergunta ancestral e contudo incontomavel: como chegar & verdade do pasado, se é que isso € possivel? Basta ver a vigor dos debates recentes, seu cariter itracional, carregado de ideologia, ou até mesmo de fantasies, sobre os arquivos contemporiineos, sua inacessibilidade real ou presumida, a expectativa em relagdo a eles, para compreender que o problema ultrapassa o meio dos arquivistas, dos conservadores ou dos historiadores tem a ver hoje en dia com o espago piblico mais amplo. Isso fica especialmente claro em relagao & histéria da Segunda Guerra Mundial ou a do sistema soviético, cuja queda acarretou um siibito acesso (ainda assim limitado) a jazidas documentais que durante décades se acrediou estarem cenierradas para todo 0 sempre nas gaveias secretas das burocracies totalitéries. Em outras palavras, exatamente no momento em Nota: Esta radusto € de Dore Roche. Rovista Estudos Histiricos, Rio de Janeiro, n. 17, 1996 que toda uma corrente intelectual, inscria na "pés-modemidade", demunciava 2 possibilidade de uma restituigio objetiva do passado, beseada em vestigios tangiveis, a demanda social por uma historia que diga a verdade, que exija uma maior "transparén cada vez mais premente. Besa tenstio contemporines nem por isso relega & feira de antiguidades as questées tradicionais suscitadas pelo uso de arquivos. Ao comtrério, essas questies podem permitir, num certo sentido, em relago aos arquivos mais recentes, tomou-se reenquadrar os termos do debate. A utlizacdo de um "arquivo" pelos historiadores sé pode ser compreendida sob a luz da nogo de "fonte". Chamaremos de “fontes" todos 0s vestigios do pasado que os homens eo tempo conservaram, vohuntariamente ou no - sejam eles originals ou reconstituidos, minerais, escritos, sonoros, fotogréficos, audiovisuais, ov até mesmo, daqui para 2 frente, "virtuais" (contanto, nesse caso, que tenham sido gravados em uma mena) -, € que 0 historiador, de maneira consciente, deliberada e -~——justificdvel, decidecrigir-em_clementos_comprobatériosda_informacio afm de reconstitnie wma __ seqiiéncia particular do passado, de analisé-la ou de restitut-la a seus contemporineos sob a forma de ‘uma namrativa, em suma, de uma escrita dotada de uma coeréneia interna e refutvel, portanto de uma intelighbilidade ciensfica Se admitirmos essa definigo inicial, 0 "amquivo" no sentido comum do termo, isto & 0 documento conservado e depois exumado para fins de comprovacdo, para estabelecer a materialidade de um "fato histérico” ou de ums aco, no passa de um elemento de informagdo entre outros. A ificuldade consiste entio em distinguir as fontes - os vestigios - umas das outras, a fim de determinar aquelas que pennitem uma abordagem racional do passado. Isso implica uma escolha das fontes mais pertinentes, nfo por elas mesmas, mas em fungo das perguntas que 0 cbservador se faz previamente Se tomammos duas das fontes mais comuns da histéria do tempo presente - o testemumho oral ¢ 0 documento escrito obtido nos fimdos de arguivos piiblicos ou privados -, poderemos ilustrar @ natureza, dos problemas encontrados pelos historiadores diante de seu material usual. testemuriho colhido a posteriori, por sua propria natureza, é uma das caracteristicas da histéria do tempo presente. Ele leva & criagdo de uma fonte singular na medida em que destinada desde © inicio seja a formar um arquivo, no sentido de conservar - eis aqui a meméria de tal individuo ou de tal gTupo -, seja a alimentar uma pesquisa especifica. Nos dois casos, essa fonte esti intrinsecamente ligada 0 questionamento preciso do arquivista ou do historiador, voltada para um acontecimento, um individuo, um determinado proceso histirico, e entra em sinergia ou em oposigo com o discurso do ator assim erigido em "testermunha”. Revista Estudos Histérices, Rio de Janeiro, n, 17, 1996 documento escrito (carta, circular, auto etz:) proveniente de um findo de arquivo foi por sua vvez produzido por instinubes ou individuos singulares, tendo em vista nao uma utilizagao ulterior, e sim, na maioria das vezes, um objetivo imediato, esponténeo ou no, sem a consciéncia da historicidade, do cardter de "fonte” que poderia vir a assumir mais tarde. E quase um trufsmo lembrar que um vestigio do passado raramente ¢ o resultado de uma operaso constiente, capaz de se pensar enquanto vestigio, © iio enquanto aco inserts no seu tempo, e portanto capaz de antecipar o olhar que lengardo sobre ele as geragdes futuras, ainda que as vezes exista em alguns atores a vontade de deixar rastros de sua passagem. Mas mesmo que alguns homens, pequenos ou grandes, tentem escrever em vida uma parte de sua hist6ria e influir sobre as narrativas futuras, raras so as iniciativas desse género que resistem & alteridade do tempo ou do olbar dos descendentes, tanto assim que as narrativas do passado, mesmo de natureza mitica ou legendéria, nfo podem hoje se livrar completamente da critica, ela prépria conseqiiéncia da afirmagdo de uma histéria com pretensio cientifica que modificou singularmente, 20 menos nas sociedades ocidentais, Ieigas e seculares, a abordagem que uma coletividade faz de seu passaio. A diferenga de estamto entre essas duas fontes salta imediatamente aos olhos. Elas nfo sio produzidas na mesma hora: uma é contempordnea dos fatos, a outra posterior; elas nfo tém as mesmas condigdes de abundincia, ja que nenhuma pesquisa oral, mesmo sistemitica, pode rivalizar com a ‘massa de documentos de todo tipo produzidos pelo mais insignificante organismo, sobretudo piblico: elas no tém as mesmas finalidades: uma é de carrer memorial, pretende ser um vestigio induzido, consciente € voluntério do pasado; a outra é funcional antes de ser vestigio, tanto é verdade que ninguém pode prever com certeza se este ou aquele documento ser conservado ou nfo, ¢ por quanto ‘tempo. ‘A esta altura, poder-se-ia crer que 0 que pretendemos é, por caminhos tortuosos, opor mais uma vez 0 testemunho oral e 0 arquivo escrito, e levantar a questo, banal e recorrente, de sua respectiva confiabilidade, 2 fim de determinar qual dos dois teria mais valor para 0 conhecimento objetivo do passado. Ora, ainda que se trate af de um debate real, nfo € esse 0 nosso objetivo. Ao contrério, queremos menos sublinhar as diferengas que evidenciar as caracteristicas comuns a toda fonte histérica e, dessa forma, convidar 4 reflexo nao sobre o método histirico e as técnicas do historiador, ‘as antes sobre os préprios fumdamentos da atividade historiadora, ~ Um testemunho cothido ou um documento conservado s6 deixam de ser vestigios do passado para se tomarem "fontes histéricas" no momento em que um observador decide erigt-los como tas. Toda fonte & uma fonte “inventada", assim como todo "individuo histérico", no sentido em que falava ‘Max Weber, ¢ uma construgao, um tipo ideal. A "narrativa histérica” comega com o estabelecimento de Revista Estados Histéricos, Rio de Janciro,m.17, 1996 4 un corpus coerente, inteligivel sob o ponto de vista de uma investigacio precisa, ¢ no sob o ponto de ‘visu de um passado que se pretenderia simplesmente restituir em sua verdade reeéndita, Em outras palavras, a constiuigao da narrative néo é a etapa final - o liv de histéria - a que se chega depois de acumulada 2 documentacio; ¢ intrinseca a0 priprio procedimento daquele que interroga 0 passado. A narrativa comoga com as hipéteses, a formulagao das perguntas € o estabelecimento de um corpus, uma cperagdo fundamental de selego que no pode ser desvinculada do objetivo final, mesmo que resultado posse estar muito distante das intuigdes do infcio. Isso no significa que 0 vestigio ndio enceme uma verdade intrinseca, ou que o real seria inacessivel, mas induz 2 nfo pensarmos a "fonte" fora da pergunta © do olhar do historiador que, como um cineasta que desloca seus reletores e suas objetivas 0 longo dos planos, vai esclarecer de maneira parcial uma seqiiéncia do passado, vai, ele também, cviar um vestigio, deixar uma marca, uma mediago. Simplificando, é raro que dois historiadores que se fazem amesmna pergunta sobre um mesmo acontecimento ou um mesmo periodo estabelegam corpus —-——-idénticos_e_construam_seu(s)_fato(S) da_mesma_maneisa.o_quendo_dimimii em nada, se seu procedimento for rigoroso, a conficbilidade de seu trabalho Escrito, oral ou filmado, o arquivo € sempre o produto de uma linguagem prépria, que emana de individuos singulares ainda que possa exprimir o ponto de vista de um coletivo (adiministragdo, empresa, partido politica etc.). Ora, éclaro que essa lingua e essa escrita devem ser decodificadas ¢ analisadas, ‘Mas, mais que de uma simples "critica interna", para retamar o vocabulério artodoxo, trata-se ai de uma forma particular de sensibilidade a alteridade, de "um errar através das palavras alheias", para retomnar a feliz expressdo de Arlette Farge. E esse encontro entre duas subjetividads 0 que importa, mais que o terreno sobre o qual ele se dé ou o tipo de rastro que o toma possivel através do tempo. [esse sentido, muitas vezes esquecemos que muitos arquivos escrtos no passam eles proprios de testemunhos contempordneos ou posteriores acs fatos, dotados de um componente irredutivel de subjetividade © de interpretago que sua condigo de “arquivo” absolutamente nao reduz: é o caso dos autos policais - para tomar apenas um exemplo entre os arquivos ditos "sensive sto apenas o resultado de transcrigdes escritas e conservades de depoimentos orais que foram objeto de uma mediagSo, de uma narrativa, a qual no pode sendo alterar a declaragio original feita pelo ator ou a testemunba interrogada. A escrita, a impressfio, portanto a possibilidade de um documento resistir ao tempo ¢ acabar um dia sobre a mesa do historiador no conferem a esse vestigio particular uma verdade suplementar diante de todas as outras marcas do pasado: existem mentiras gravadas no mnmore e verdades perdidas para sempre. que mites vezes Arlette Farge, Le godt de Varchive, Sexi, 1989, p, 147. Revista Estudos Histricos, Rio de Janeiro, n.17, 1996 Da mesma forma, todo depoimento ou todo documento exige, para ser significative, uma recontextualizapo - especialmente no easo do arquivo escrito - que implica que sejam examinadas séries mais ou menos completas para se compreender a légica, no tempo € no espago, do ator ou da instituigao que produziu este ou aquele documento. E um tanto incémodo lembrar algo tio Sbvio, mas esse é um problema capital na mediatizago (no sentido jomalistico do termo) cada vez mais freqiiente hoje em dia de certos documentos histérieos, obtidos ao acaso de uma pesquisa ou de uma "revelago" espontinea: ndo apenas esses procedimentos levam a sentidos equivocados, ¢ até mesmo a eros graves de interpretagdo, como fazem crer que a verdade de um acontecimento decorreria da Jeitura priméria e imediata de um documento que se supSe ser decisivo, comprobatério e definitive. Esses procedimentos bastante conhecidos (lembremos novamente dos arquivos de Vichy ou da KGB) tém 0 efeito de arrastar os historiadores para um terreno que se acreditava estar abandonado hé muito tempo, o de um positivismo rasteiro, estranho a qualquer construgo ou questionamento, quando a evolucao da disciplina_voltou definitivamente as costas para essas concepetes ultrapassadas, E essa tensfo entre uma histéria que procura se sitar em niveis de elaboragao cada vez mais sofisticados (as vezes até demais) ¢ uma expectativa da opinizo péblica (¢ de alguns membros da academia) por provas deGinitivas que toma hoje 0 trabalho do historiador e o debate sobre os arquivos tio complexos: tivemos imimeros exemplos com a histéria do Genocidio, uma escrita em si mesma drdua, que foi acompanhada de uma demanda, até mesmo de uma presséo, para que se enffentasse as iniiativas negacionistas situando-se no terreno exclusivo da prova material, como o demonstram por exemplo os debates em tomo do Livro de Jean-Claude Pressac sobre os foros crematérios de Auschwitz? Poderiamos retomar o mesmo argumento a propésito dos arquivos soviéticos, que, segundo nos dizem alguns historiadores, devem ser objeto de um exame sistemitico ¢ exaustivo, independente de qualquer grade de leitura, sob o pretexto ‘um tanto estranho da "urgéncia’, partindo a priori do principio de que esses arquivos vao provocar uma Tevolugo no conhecimento do mundo comunista, ¢ quem sabe até de toda a histéria do século XX? Finalmente, o testemunho assim como o arquivo dito escrito revelam por sua propria existncia uma falta, idéia esta tomada emprestada 2 Michel de Certeau. © vestigio 6, por definigdo, 0 indicio daquilo que foi isremediavelmente perdido: de um lado, por sua propria definig&o, 0 vestigio é a marca de alguma coisa que foi, que passou, € deixou apenas 0 sinal de sua passagem; de outro, esse vestigio que chega até nés é, de maneirs implicita, um indicio de tudo aquilo que nao deixou lembranga e pura e simplesmente desapareceu... sem deixar vestigio - todos os arquivistas sabem que perto de nove -an-Claude Pressac, Les erématoires d’duschwite. La machinerie du meurtre de masse, CNRS Eiitions, 1993. ° Ver principalmente Simone Courtois ¢« ahordagem mais reconfortante em termos intelectuais de Nicolas Revista Estudos Histiricos, Rio de Janeiro, n, 17, 1996 6 décimos dos documentos sto destuidos para um décimo conservado. Que historiador um dia nfo foi tomado de desespero diante da tarefa que o espera e dos miles de documentos a serem lidos, para, no dia seguinte, ser tomado de vertigem diante de tudo o que jamais poderd saber, de tudo o que nunca serd nem "Imemsria", nem "historia"? Pastindo destas obsevagdes um tanto sumiérias, podemos nos prevenir contra 0 fetichismo do documento, tio difundido em nossos dias, e que caminha lado 2 lado om a obsesso, igualmente suspeita, de uma transparéncia absoluta - uma palavra que é aliés problemética, pois tomar alguma coisa transparente ¢ também tomi-la invisfvel... Nerfhum documenta jamais falou por si sé: este & sem Giwvida 0 cliché mais dificil de combater e o mais difundido, sobretudo no que se refere aos arquivos ditos "sensiveis". Existe um abismo entre aquilo que o autor de um documento pade ou quis dizer, a realidade que esse documento exprime e a interpretacdo que os historiadores que se sucederiio em sua Jeitura faro mais tarde: € um abismo irremedidvel, que deve estar sempre presente na consciéncia pois iala_a_distinciarredutivel-que-nos_separa dc ado,_cssa"terra_estrangeira"‘ © trabalho do___ historiador € por definigo uma operapdo seletiva, que depende do que foi efetivamente conservado, depende da sua capacidade pessoal e se inscreve num contexto particular. Enfim, ¢ isto é a meu ver cssencial, nenhuma pesquisa oral conduzida por um historiador, nenfuum trabalho de seleeSo de arquivos pode ser feito sem um minimo de questionamentos e de hipSteses prévias, mas tampouco - e e este é um diJema seal - deve se fechar & surpresa da descoberta. B preciso, portanto, deixar os caminhos conhecidos, olhar para aquilo que nfo se pretendia ‘er @ priori, como expressiva imagem de Arlette Farge’ Evidentemente isso significa que 0 historiador ou 0 arquivista devem poder ter acesso ao maior mimero possivel de fontes - € aqui se encaixa o debate sobre o fechamento & consulta de certos arquivos, sobre as "derrogagdes", em suma, sobre as condigdes nas quais se exerce a pritica profissional da histéria -, mas significa também que nenhum debate sobre a escrita da historia ou sobre a relagio com o arquivo pode se furtar a esta pergunta temivel: qual é a pergunta para a qual o historiador procura uma resposta e quais so as fontes mais pertinentes para responder a ela? © acesso aos arguivos, por mais liberal e amplo que seja, nos da ipso facto a chave “erante”, para retomar a do passado? Inversamente, a auséncia de documentos ou a impossibilidade de acesso a eles nos privam realmente de toda forma de conhecimento sobre este ou aquele aspecto da Histéria? Acessiveis ou fechados, os arquivos so 0 sintoma de uma falta, ea tarefa do historiador consiste tanto em tentar “David Lowenthal, The pest is ¢ foreign couniry, Cambridge University Press, 1985, * aztette Farge, op. cit. p88, ‘Revista Estudos Historicns, Rio de Faneiro, n, 17, 1996 a 7 supri-la, em se inscrever num proceso de conhecimento, quanto em tentar exprimi-la de maneira inteligivel, a fim de reduzir 0 méximo possivel a estranheza do passado. (Recebido para publicagiio em maio de 1996) ‘Revista Estudos Histdricas, Rio de Janeiro, n, 17, 1996

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