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SOUZA, Jessé. A Modernizacdo Seletiva: uma reinterpretagao do dilema brasileiro, Brasilia: Ed. UnB, 2000. 276 p. Arthur Oliveira Alfaix Assis* A mais verdadeira tarefa da critica completa-se quando o mesmo movimento que atua na radiografia de um edificio interpretativo est impregnado da positividade capaz de repor o vazio no horizonte através, da construedo de novos referenciais explicativos. O professor Jess Souza, em A Modernizagdo Seletiva: uma reinterpretagéo do dilema brasileiro cumpre-a. Ele coloca-se a ardua miss4o de propor revisdes em aspecios cristalizados e, muitas vezes equivocados, das nossas representagdes enquanto brasileiros sobre nés mesmos e sobre o Brasil. A dureza da jomada deriva do necessario enfrentamento de classicos do pensamento social brasileiro numa batalha argumentativa em que o rol dos adversarios € composto por nomes do calibre de um Sérgio Buarque de Holanda, de um Raimundo Faoro e de um Roberto DaMatta. A lata contra 0 que denomina de “sociologia da inautenticidade”, uma tradi¢ao que acumulou 20 longo dos tempos interpretagées acerca do desenvolvimento brasileiro em tomo de nogdes como as de heranga ibérica, personalismo e patrimonialismo, efetiva-se numa tentativa de pensar o Brasil como area envolvida, desde o século XIX, num processo de modemizago que aciona transformagdes substantivas as quais tém por resultado a insergio na sociedade brasileira do quadro valorativo caracteristico do Ocidente moderno. Essa tentativa éancorada nas obras de importantes intelectuais que se dedicaram ao estudo da génese da + Gracuado em Histéria pela UFG e mestrando em ilisterie na Universidade de Brasilia Historia Revista, 6 (1) : 227-235, jan.jun, 2001, 207 sociedade moderna, como Max Weber, Norbert Elias, Jiirgen Habermas, © Charles Taylor. O “caso brasileiro” & pensado a luz da nogao de seletividade. Tal nogao chama a atengao para o fato de os diferentes processos moderizadores atualizarem apenas aspectos parciais daquele conjunto de valores comumente associados 4 modernidade ocidental. Seletividade remete-nos também a idéia de multiplicidade das experiéncias modernizadoras, Nesse ponto, os casos de mademizagao so entendidos como variantes singulares de uma légica de desenvolvimento comum. ‘Toda modernizagao é seletiva na medida em que a distingao entre Logica de desenvolvimento ¢ dinmica de desenvolvimento permite visualizar que cada experiéneia conereta de modernizagio concentra-se em determinados aspectos do cabedal valorativo do Ocidente ¢ relega outros um segundo plano, Logica de desenvolvimento aqui quer reportar-se a uma estrutura formal ¢ universalizdvel capaz de conferir unidade as diferentes experiéncias modernas das diferentes areas do globo. Oniicleo da critica de Souza a tradigao interpretativa que tentou enxergar 0 tema do desenvolvimento brasileiro sob o prisma de uma modemizagio marcada pela superficialidade ¢ a percep¢io de que a anflise sociologica deve se preocupar em nao naturalizar a temética dos valores. Valores so sempre passiveis de reelaboragao em novos contextos, fato que impde a necessidade metodolégica de se considerar as formas de sua institucionalizago num determinado meio social. A conseqiiéncia dessa reflexfo é o apontamento Ge equivacos nas teses que afirmam que a heranga ibérica teria sido o trago marcante de nosso desenvolvimento. Essa heranga ibérica € muitas vezes situada na historia brasileira como um caracter maleéfico indelével que, em todas as épocas, aparece e reaparece sob novas formes, as quais na pritica funcionam como tintas que maquiam um desenvolvimento que corre na contra- diregdio da modernidade. O grande sistematizador dessa perspectiva que, de acordo com Souza provém de uma percepgio da senso comum, ¢ 0 historiador Sérgio Buarque de Holanda. Na verdade, o fundamento todo Ga andlise buarquiana é o de que as instituigdes brasileiras constroem-se em torno de bases personalistas legadas pela colonizag4o portuguesa. Tsso quer dizer que, para se restringir o exemplo ao ambito da politica, © exercicio do poder politico nao se faz a partir de principios impessoais, sencio a afetividade a regra decisiva para a participacao do individuo na esfera do Estado e em suas adjacéncias burocraticas. Ao lado dessa 228 SOUZA, Jessé, - Resenha: 4 modernizacdo seletiva: uma visio, caminha a tese que procura desvincular a dinamica do desenvolvimento brasileiro da lgica de desenvolvimento das instituigGes do Ocidente mociemo. De acordo com essa perspectiva, o Brasil é enearado como um lugar onde processos modemizadores conduzem a uma modernidade pirata na qual se preservam as velhas esséncias personalistas e patrimoniais sob 2 capa engomada de aparelhos normatives fabricados para nfo funcionar. Raimundo Faoro também 6 encarado como um ropresentante importante da “sociologia da inautenticidade”. Sua interpretag3o acerca do desenvolvimento brasileiro estrutura-se a partir da consideracao da categoria de patrimonialismo. O patrimonialismo seria justamente aquilo que marcaria o desenvolvimento pelo avesso das instituiedes politicas brasileiras. Faoro advoga que no Brasil, como desdobramento de um. processo que s¢ inicia com a centralizacao politica portuguesa na Baixa Idade Média, o Estado assume uma forma patrimonial tipica de sociedades tradicionais ou pré-modemas. A acreditar-se em Souza, a propria adaptago da nogo de patrimonialismo de Max Weber ao estudo do caso brasileiro ¢ equivocada, Faoro utilizaria-se da categoria de patrimonialismo de forma estatica e a-historica, Seu interesse seria o de captar a continuidade daqueles caracteres néio democriticos herdados de Portugal no Brasil de hoje e de sempre em torno da maxima dos “yinhos novos em odes velhos”. Os pressupostos dessa andlise seriam a condenacao liberal do Estado interventor ¢ a falsa suposig&io de que o processo de desenvolvimento dos Estados Unidos encamaria em si todas as caracteristicas da cultura ocidental, Como nosso autor pretende deixar claro na segunda parte do texto, que trata do estudo de casos coneretos de seletividade em processos modemizadores, a agio do Esiado enquanto propulsor da modemizacio no constitui uma caracteristica exclusiva do caso brasileiro. Muito pelo contritio, processos modernizadores em que os estados se pautaram pela nfo interferéncia constitue raras excegdes. Por outro lado, a andlise do tema do tema da excepeionalidade do desenvolvimento estadunidense permite visualizar um caso de modernizagio singularissimo no qual a unio centre motivagdes religiosas e civicas - fundada pelos primeiros habitantes europeus da Nova Inglaterra que estabeleceram a idéia de um contrato com Deus carregado de imperativos éticos a serem seguidos pelos contratantes do lado de ca - langa as bases de uma organizacao social que Historia Revista, 6 (1) 35, jan jun. 2001 229 no tem que lidar com o problema da ruptura com relagdo @ formas tradicionais sempre relutantes, uma vez que o contrato celebrado a caminho da América ja funda uma forma modema de organizagao social que se afirma como padriio. © patrimonialismo de Faoro € visto pois como fruto de uma percep¢do errénea de processo de modemizagao ocidental que the fecha os olhos ante a multiplicidade de experiéncias de desenvolvimento & faz-The afirmar o caso estadunidense como trazendo a modemnidade inteira dentro de si, Por deiras dessa percepgo encontra-se, como jé se apontou, uma posig&o politica liberal franeamente hostil a ago do Estado interventor @ que, por isso, concentra-se em procuri-la atravancando nosso desenvolvimento em todas as épocas, ‘A consirugdo de uma interpretagdo alternativa do desenvolvimento brasileiro leva Souza na diregdo da consideragao de um marco fundamental de ruptura com relago aos modelos tradicionais de exercicio da dominagtio politica e das atividades econdmicas. O marco € aquilo que denomina “Revolug4o modernizadora” da primeira metade do século XIX, caracterizada especialmente por duas inovagdes bésicas: a vinda da corte portuguesa que cria um Estado buroeratizado ¢ a abertura dos portos € seu concomitante estimulo a formacdo de um mercado competitive. A partir do século XTX, portanto, percebe-se no Brasil a penetrago das duas instituigdes fundamentais da modernidade ocidental. A importéneia delas ¢ ressaltada na medida em que Estado ¢ mercado so vistos como carregando pressupostos éticos imprescindiveis, sua plena concretizagdo ¢ que ndo se limitam a atuar nos planos politico ¢ econémico, provecando alteragdes gerais em todo o quadro social Desse modo, a anélise, por exemplo, da apropriago da esfera do mercado por uma racionalidade instrumental que subverte principios morais tradicionais em favor de uma eficiéncia cega se ndo sos caminhos da ampliagiio da lucratividade € recheada pela constatagio de que 2 implantagao do mereado far-se de tal maneira que promave um desenvolvimento paralelo de padrdes de conduta necessarios & sua manutengao. Isso quer dizer que a dinimica do mercado, muitas vezes percebida exclusivamente como 0 centro de um turbilhdo instrumentalizedor das agdes humanas, também colabora na institucionalizagao de uma cultura normativa capaz de regular as acdes através da exigéncia de um cédigo de ética o qual impoe certos limites as agSes ¢ transagdes no mercado € no mundo. 230 SOUZA, Jessé. - Resenha: A mademizaciio seletiva: wma O ponto central da tese de Souza ¢ que a “Revolugio modernizadora” transforma lentamente 0 panorama valorativo da sociedade brasileira jé que a insergo das instituigdes fundamentais torna unicamente passiveis de legitimidade aquelas condutas bascadas no estimulo para a agao racional. Esse proceso, ao contririo do que enfatiza uma determinada vertente do nosso pensamento social, nao culmina no estabelecimento de um dualismo essencial e peculiar a cultura brasileira baseado numa duplicag&o do eddigo valorativo que comporia uma equag%o na qual tipos diversos de espaco social estimulariam formas diversas de ag3o social. A mais notvel sistematizagdo da idéia de dualidade constitutiva como singularidade brasileira 6 a elaborada por Roberto DaMatta em toro da polaridade casa/tua. Essa dualidade deriva da disting&o entre individuo e pessoa. DaMatta é movido, do ponto de vista metodolégico, pela idéia de elaboragao de uma “gramatica social profunda” que pudesse explicar o Brasil. Essa gramatica deve, para ele, ser permeada por dois prinefpios: 0 da rua, regido pelos estimulos a acao nos moldes requeridos pelo Estado e pelo mercado; e 0 da casa, organizado a partir das relagSes de afetividade entre as pessoas. A esses dois principios organizadores de diferentes espagos sociais correspondem Giferentes tipos de sujeito. O individuo 6 o habitante da rua impessoal. Para ele é reservado o rigor da lei que pune na auséncia de uma subversio da ordem possivel pela insergo da casa na rua. De acordo com DaMatta, somente nesses casos em que a subversio dos principios equalizantes da rua, pela interferéncia do principio da afetividade constitutive da esfera da casa, € que seria possivel 0 reconhecimento social no Brasil, A essa estratégia de reconhecimento corresponde a formula do “Vocé sabe com quem estd falando?” capaz de estabelecer uma hierarquia na qual o individuo sem nome transforma-se em pessoa forma tipica do sujeito social na casa, DaMatta confere proeminéncia 4 casa como principio capaz de sobrepor-se a mua. A critica de Souza atua procurando demonstrar como a nao referéncia ao tema da estratificagao social impede a reflexdo de DaMatta sobre os critérios que possibilitariam a predominancia dos valores ligados a casa e 4 rua nas diferentes situagdes coneretas da vida social. A “gramética social” de DaMatta seria incompleta pois ela nao demonstra como os principios que seriam formadores da dualidade brasileira se articulam. Outro aspecto também duramente criticado no dualismo damattiano ¢ separagao entre pessoa e Historia Revista, 6 (1) : 227-235, jan.jun, 2001 231 individuo, Para Souza, trata-se nesse caso de uma distingdo invalida, uma vez que @ propria definigao de individuo ja engloba os tragos que DaMatta quis mosirar como exclusivos da “pessoa”. A ancora da critica aqui é a arqueologia da identidade moderna elaborada por Charles Taylor que demonstra como a estabilizagao da configuraedo valorativa ocidental pressupde uma nogo duplice de individuo a qual engloba tanto a dimenséio do“self-pontual”, o principio de indivicualidade ligado ao ideal de controle racional e que emana das transformagdes produzidas pelas necessidades de manutengiio do Estado e do mereado, quanto a dimensio do expressivismo, principio ligado aos sentimentos constitutives da vida intima que caracterizam o “self” na sua profundidade, A génese do individuo moderno descrita por Taylor permite visualizar que a oposicao entre mundo piblico ¢ mundo privado, ao contrario do que afirma DaMatta, ndo constitui uma singularidade brasileira, mas sim um trago marcante do proprio desenvolvimento do racionalismo modemo A montagem do novo quadro interpretative do Brasil por Jessé Souza deriva da sua leitura particular da obra de Gilberto Freyre. Nee esbarra com a preocupacao em destacar os aspectos singulares do eseravismo que no Brasil se estabelecera em tempos coloniais. Essa singularidade parece ir muito além daquele conjunto de avaliagdes que compdem as teorias da democracia racial brasileira, Souza encontra na obra de Freyre um escravismo que enseja, de fato, uma proximidade interracial, Entretanto, essa proximidade s6 se torna possivel mediada por um contexto em que o trago dominante & 0 sadomasoguisma social. Souza destaca 2 nogdo freyreana de sadomasoquismo por entender que ela é ume chave explicativa importante para a compreensio do Brasil Ela quer se reportar a um certo tipo de influéncia moura na estruturagao do escravismo brasileiro, O fundamental ¢ a real possibilidade de o filho do senhor com a escrava ser aceito como eutopeizado desde que aceitasse 0s valores da cultura do pai. Essa caracteristica instaura uma espécie de competicio interna na escravaria. A disputa pelos favores do senhor torna- se 0 {inico modo possivel de reconhecimento social. Um modo extremamente instvel, haja visto que nfo hi limitagdes externas, e muito menos internas, capazes de direcionar a escolha ao critério do merecimento, O que vale éa afetividade, a vontade erua do senhor a qual uma autoridade sem limites permite agir. Na aus€ncia de limites instaura-se um império dos desejos primérios que nao fornece possibilidades de reconhecimento SOUZA, Jessé. = Resenbe: A modernisagdo seletiva: wma daalteridade. O senhor de escravos assume o papel do sadico numa pega em que a perversiio do prazer num ritual de causar e receber dor di a Gnica. Ouvindo mais de perto 0 estardalhago dos chicotes a escravariano papel de masoquista internaliza a propria dominago na medida em que a boa interpretagao do papel pode Ihe render uma melhor posigado na hietarquia dos subordinados. A conseqiiéncia dessa identificagio dos escravos com os valores brancos, é a impossibilidade do estabelecimento de uma esfera identitéria propria que pudesse dar vaz3o as demandas especificas das camadas menos favorecidas ¢ viabilizasse assim a organizagdo destas na luta por melhores condigdes Qutro aspecto selecionado da obra de Freyre é a anilise da passagem do patriarcalismo rural ao urbano no Brasil do século XIX que Souza quer identificar 8 “Revolugio modernizadora” posta em funcionamento pela constituigao de Estado mercado. F justamente esse 0 momento da insergdo na sociedade brasileira da configuragaio valorativa tipica do Ocidente modema A urbanizac&o vai aos poucos dissolvendo os lacos personalistas e patriarcais 4 medida em que cria outras dimens6es de poder, as quais ganham forga quando as instituigdes fundamentais vio se desenvolvendo. A tudo isso corresponde a estabilizagéio de novas formas de ascensio e recanhecimento social. A transformacdo do panorama valorativo brasileiro abre espago para a penetragdo de um critério racional de distine2o social: 0 talento. Quando se instaura a “ansia por modemnizagao” enquanto valor caracteristico dessa nova fase, o sistema social comega a valorizar os individuos de acordo com sua participaco no processo de desenvolvimento da naco. Aqui, segundo Freyre, comeca a ganhar relevo a figura do mestico, subalterno em relagio 4 ordem anterior e, por isso mesmo, pronto a entrar de cabega em espagos onde o que passa a ser valorizado & 0 conhecimento ¢ o talento individuais, como no Estado, sedento por quadros burocriticos competentes, ou nas novas profissdes artesanais que ganham impulso com a formagao do mercado. As novas possibilidades de reconhecimento social do mestico s6 existem porque com relagdo aos novos valores que comegam a reger a organizago da sociedade brasileira, todos — senhores, mestigos escravos ~ encontram-se praticamente no mesmo patamar. O senhoriato muitas vezes tende até mesmo a assumir uma postura reativa no que diz respeito a adesio ao programa da modemidade, uma vez que os novos valores, & proporgo Historia Revista, 6 (1) : 227-235, jan.fiun. 2001 233 em que se iam institucionalizando, enxugavam-Ihes as fontes de fundamentagio de seu poder. Entretanto, a mesma modernizagdo que destréi principios tradicionais de organizagao social conserva tragos da antiga ordem. O reconhecimento do mestigo s6 ¢ possivel quando 0 talento dele requetido nas instincias do Estado ¢ do mercado alia-se a um embranquecimento da personalidade. Embranquecimento que associa, brancos e mestigos na vontade nacional de europeizacSo, mas que mantém 0 dado da superioridade branea ¢, por isso, impede outras possibilidades de organizagio no interior da saciedade de grupos portadores de reconhecimento. Afirmar, todavia, que no século XIX processa-se no Brasil uma “Revolugio modemizadora” néo significa equiparar o caso brasileiro as experiéncias modernizadoras que se desenrolaram nos paises mais ricos Parece inegdvel que do ponto de vista do desenvolvimento de um sistema democratico justo ¢ de uma sociedade menos marcada por desigualdades em escala astrondmica estamos, sem querer postular qualquer etapismo, bem distante deles. Essa constatagio faz Souza retomar, a0 final do texto, ao tema da seletividade dos processos modemizadores de maneira a buscar localizar 0s critérios que no caso brasileiro presidem a “institucionalizagao do acesso diferencial aos bens culturais”. E justamente a consideragao. desse tema a apoteose da interpretago proposta por nosso autor. Para ele, a reflexiio sobre as formas de acesso a bens materiais e simbélicos conclui-se quando a anélise do bindmio tradigao/modemidade no Brasil chega a afirmagio de uma muptura e de uma continuidade fundamentais ‘A ruptura dé-se no processo mesmo de implantagao das instituigées basicas da modemidade, o Estado ¢ mercado, as quais foream uma mudanga valorativa de peso na dirego da impessoalidade, A continuidade reside na percepgiio da heranga escravista como fonte constante de empecithos a nossa plena democratizagio. A forma moura do escravismo brasileito instaura uma via de mio tmica para o reconhecimento social, haja visto que o escravo s6 pode ser reconhecido & medida que adere 4 cultura do pai, Esse tipo de caminho para o reconhecimento mina na base as tentativas de organizagao dos excluidos enquanto grupo requerendo espago nas decisdes politicas. O mecanismo mantenedor da exclusdo hoje é 0 mesmo dos tempos de ontem. A cooptagao individual de membros subalternos identificados ao projeto modemizador retira os talentos da subalternidade eimpede aos excluidos a elaboragio de formas de auto-estima necessarias SOUZA, Jessé. - Resenha: A modernizagda seletiva: urna a sua organizacdo coletiva. A novidade no contexto do Brasil moderno dos séculos XIX ¢ XX € que o critério eseravista que dirige 0 acesso a bens culturais tem que lidar com normas que a implantacdo do Estado e do mercado comegam a impor como mecanismos limitadores da agao arbitearia, A propria implantago das méquinas e da relago social a elas subjacente esvazia 0 sentido da polaridade senhor/escravo que deixava pouco espago social & camada dos homens livres ¢ pobres. Parte desses €a que vai vivenciar uma ampliago das possibilidades de ascensio social nos moldes jé referidos. A outra parte deles e a antiga escravaria serio mantidos na exclusto, impedidos de acessar as benesses materiais ¢ simbélicas que a modemizagao sem ditvida traz. Incapazes de identifi se em um grupo cuja agin coletiva poderia minorar as préprias agruras, esses homens ¢ mulheres sao vitimas de uma fragmentacdo da consciéncia que inviabiliza a reflexdo e, por eonseguinte, a aco racional no mundo, As implicagGes trazidas pela reinterpretagio que faz, Jessé Souza acerea do desenvolvimento brasileiro, para além de se resumirem 4 esfera académica, podem ser facilmente transpostas ao cotidiano das préticas soviais. A ineficicia de uma série de politicas piblicas levadas a cabo no Brasil de hoje pode ser decorréncia da tentativa de solucionar os problemas errados. Se nos dispusermos a aceitar a anélise de Souza, elas esto dirigidas aos problemas errados porque a nossa auto-imagem deriva de uma nogdo que aficma que em nosso pais toda modemizacao perceptivel 6 inauténtica e ineficaz, assim como peneiras levantadas para tapar o sol mal conseguem projetar no cho o fino arame. Mostrar como tal nogiio & imprecisa e, mnitas vezes, equivocada ¢ 0 primeiro passo de uma andlise interessada em definir melhor o significado de nossa experiéneia historica cenquanto sociedade. Considerar 0 Brasil moderno nao exclui do horizonte © dado de que essa modemidade constitui-se na periferia capitalista a partir das bases heterodoxas do escravismo. Jessé Souza e a sua modemizagio seletiva, langando polémicas, questionando tradigdes fundando novas interpretagdes, parecem incorporar esse programa analitico ‘© qual nao impée uma necessaria oposicZo entre modernidade e periferia. Esto, entretanto, em certo sentido, muito mais proximos do que pensam de determinadas obras que tanto criticam. Uma proximidade possibilitada pelo uso de um mesmo material de construgao: o escasso barro eterno no qual 0s eldssicos so moldados Histirie Revisia, 6 (1) jon jun. 2001 238

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