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4 5 LOCAIS DA CULTURA ‘Uma fronteia nto € 6 pote onde algo termina, mas, como os ‘gregos reconheceram, a fonteira € 0 ponto a panir do qual algo comera asefazer presente, Martin Heidegger, ‘Building, Dwelling, Thinking” YVIDAS NA FRONTEIRA: A ARTE ENTE DO PRES E 0 tropo dos nossos tempos colocar a questo da cultura a do além, Na virada do século, preocupa-nos me- nos a aniquilacio — a morte do autor — ou a epifania — 0 nascimento do “sujeito". Nossa existencia hoje é marcada por uma tenebrosa sensagio de sobrevivéncia, de viver nas fron- teiras do “presente”, para as quais nfo parece haver nome proprio além do atual e controvertido deslizamento do prefixo “pés": pés-modernismo, pds-colonialismo, pos-feminismo. © “além” nao é nem um novo horizonte, nem um abandono mas, neste fin de siecle, encon- sito em que espago e tempo se m para produzir figuras complexas de diferenga e iden- tidade, passado e presente, interior € exterior, inclusto e do pasado... Inicios e fins podem ser os mitos de sustenta; dos anos no meio do sécul tramo-nos no momento de cruz: exclusio. Isso porque ha uma sensagao de desorientagio, um. ttirbio de direcao, no “além”: um movimento exploratério incessante, que o termo francés au-dela capta tio bem — aqui e la, de todos os lados, fori/da, para lé € para ci para a frente € para (rds. fastamento das singularidades de “classe” ou “géne- ro" como categorias conceituais © organizacionais basicas resullou em uma consciéncia das posigdes do sujeito — de raga, género, geragio, local institucional, localidade geopolitica, orientagao sexual — que habitam qualquer pretensio a identidade no mundo moderno. © que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originarias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que sao produ- zidos na articulagio de diferengas culturais. Esses “entre-Iugares” fomecem o terreno para a elaboragao de estratégias de subjeti- vacio — singular ou coletiva — que dao inicio 2 novos signos de identidade € postos inovadores de colaboragio e contes: lagio, no ato de definir a propria idéia de sociedade. E na emergéncia dos intersticios — a sobreposigio ¢ o des- locamento de dominios da diferenga — que as experiéncias intersubjetivas € coletivas de nacdo [nationness|, 0 interesse comunitétio ou 0 valor cultural sio negociados. De que modo se formam sujeitos nos “entre-lugares”, nos excedentes da soma das “partes” da diferenga (geralmente expressas como raga/classe/género etc.)? De que modo chegam a ser formu- ladas estratégias de representagdo ou aquisigdo de pod [empowerment] no interior das pretensdes concorrentes de comunidades em que, apesar de histérias comuns de priva € discriminacao, 0 intercambio de valores, significados € prioridades pode nem sempre ser colaborativo € dialégico, podendo ser profundamente antagénico, conflituoso ¢ até incomensuravel? A forga dessas questées € corroborada pela “linguagem* recentes crises sociais cletonadas por histérias de dife- renga cultural. Conflitos no centro-sul de Los Angeles entre coreanos, americanos de origem mexicana e afro-americanos tém como foco 0 conceito de "desrespeito’"— termo forjado nas fronteiras da destituigao étnica que , a0 mesmo tempo, 0 signo da violencia racializada ¢ sintoma da vitimizacao soci Na esteira do caso de Os Versos Satdnicos na Gra-Bretanha, feministas negras e irlandesas, apesar de suas constitu diferentes, uniram-se em causa comum contra a “racializa da religiao" como © discurso dominante através do qual 0 Estado representa 05 conflitos e Iutas delas, por mais seculares ou mesmo “sexuais" que eles sejam. Os termos do embate cultural, seja através de antagonis- mo ou afiliagao, so produzidos performativamente. A re~ presentagio da diferenga nao deve ser lida apressadamente pmo © reflexo de tacos culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lapide fixa da tradigao. A articulagao social 20 da diferenea, da perspectiva da minoria, € uma negoci complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformacio histérica, © “direito” de se expressar 2 partir da periferia do poder ¢ do privilégio autorizados nio depende da persisténcia da tradigao; ele é alimentado pelo poder d: tradigdo de se reinscrever através das condigdes de contin. géncia e contraditoriedace que presidem sobre as vidas dos que es oria". © reconhecimento que a tradigz0 ‘outorga é uma forma parcial de identificagao. Ao reencenar 0 pasado, este introduz outras temporalidades culturais inco mensuriveis na invengao da tradi¢io, Esse proceso afasta qualquer acesso imediato 2 uma identidade original ou a uma tradicao “recebida". Os embates de fronteira acerca da dife: renga cultural 1m tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definigdes de tradicio © modernidade, fronteiras habituais entre © pUblico € 0 privado, 0 alto 0 baixo, assim como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento € progresso. Eu gostarin cle tragar formas ou estabelecer situagdes que este- jam como que abertas... Mew trabalho tem muifo a ver com un tipo de fluidez, um movimento de vaivém, sem aspirar a ne~ hum modo especifico ou essencial de ser? Assim escreve Renée Green, a artista afro-americana. Ela reflete sobre a necessidace de compreender a diferenca cultural como produgio de identidades minoritarias qu “fendem" — que em si j4 se acham divididas — no ato de se articular em um corpo coletive: © multiculturalismo nao reflete a complexidade da sitaga0 como eu a enfrento no dis a dia... f preciso que a pessoa saia de si mesma para de fato ver o que esti fazendo. Nao quero condenar gente bem intencionada e dizer Ccomo aquelss cami setas que slo vendidas nas calgadas) “EE coisa de negro, vor mio entenderia.” Para mim, isto é essencializar a negrura? © acesso ao poder politico € 0 crescimento da causa mult culturalista vém da colocagao de questées de solidariedade € comunidade em uma perspectiva intersticial. As diferencas sociais adas a experiéncia através de do sit implesmente a uma tradig20 cultural ja autenticada; elas so os signos da emergéncia da comunidade concebida como projeto — a0 mesmo tempo uma visio © uma construgio — que leva alguém para “além” de si para poder retornar, com um espirito icas do presente: de revisio € reconstrugio, as condigées pol Mesmo entao, é ainda uma luta pelo poder ente grupos diver $08 no interior dos grupos étnicos sobre 0 que esti sendo dito € quem diz o que, e quem esti representando quem. Afinal, que € uma comunidade? © que & uma comunidade negra? O que € uma comunidade de latinos? Tenho dificuldade em pen- sar nessas coisas todas como categorias monoliticas e fixas.* Se as perguntas de Renée Green abrem um espago interroga- rio, intersticial, entre o ato da representagio — quem? 0 qué onde? — e a propria presenga da comunidade, considere-se entao a intervengao criativa da artista dentro dese momento intervalar. A obra de Green, especifica do lugar “arqui- tetural”, Sites of Genealogy (Out of Site, The Institute of Contemporary Art, Long Island, Estado de Nova lorque), expoe ¢ desloca a logica bindria através dz qual identidades de diferenga sao freqdentemente construidas — negro/branco, eu/outro. Green cria uma metifora do proprio prédio do z de simplesmente usar o espago da galeria: Usei a arquitetura’ literalmente como referéacia, usando s6t80, © compartimento dz caldeira e 9 pogo da escada para fazer associagdes entre certas divisdes binarias como superior € inferior, efu e inferno. O pogo da escada tornou-se um espaso liminas, uma passagem entte as areas superior e inferior, sendo que cada uma delas recebeu placas referentes ao negro e ao branco! © poco da escada como espaco liminar, situado no meio das designagées de identidade, transforma-se no processo de in- teracio simbélica, 0 tecido de ligagdo que constr6i a diferen- a entre superior ¢ inferior, negro € branco. O ir ¢ vir do pogo da escada, 0 movimento temporal e a passagem que ele propicia, evita que as identidades a cada extremidade dele se estabelecam em polaridades primordiais. Essa passagem ntersticial entre identificagdes fixas abre a possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a di hierarquia suposta ou imposta renga sem uma 2 | Sempre transite: de 1a para ch entre designagdes raclais, designagdes da Fisica ou outras designacdes simbdlicas. Todas essas coisas se embaralham de alguma mancira Desenvolver uma genealogia cores € nito-cores funcionam é interessante para mia! “Além* significa distincia espacial, marca um progresso, Promete © futuro; no entanto, nossas sugestoes para ultra- passar a barreira ou o limite — proprio ato de ir além — stio Incognisciveis, irrepresentéveis, sem um retorno a0 "presente" que, no processo de repeticio, torna-se descon xo € deslocado, © imaginario da distancia espacial — viver de algum modo além da fronteira de nossos tempos — da relevo a diferengas sociais, temporais, que interrompem nossa nogio conspiratéria da contemporancidade cultural presente nto pode mais ser encarado simplesmente como uma ruptura ou um vinculo com o passado € © futuro, no mais uma presenca sincrOnica: nossa autopresenga mais ime: diata, nossa imagem piblica, vem a ser revelada por suas descontinuidades, suas desigualdades, suas minorias. Dife- rentemente da mio morta da hist6ria que conta as contas do tempo seqiiencial como um rosario, buscando estabelecer conexdes seriais, , confrontamo-nos agora com © que Walter Benjamin descreve como 2 explosio de um momento monidico desde o curso homogéneo da hist6ria, “estabclecendo uma concepgio do presente como 0 ‘tempo do agora””.” Se 0 jargao de nossos tempos — pés-modernidade, .6s-colonialidade, pos-feminisino — tem algum significado, este no est no uso populat do “pés" para indicar seqiienciali- dade — feminismo posterior — ou polaridade — antimoder- niismo, Esses termos que apontam insistentemente para o além s6 poderto incorporar a energia inquieta e revisionaria deste se transformarem o presente em um lugar expandido e ex-céntrico de experiéncia ¢ aquisicac de poder. Por exemplo, se 0 interesse no pés-modernismo limitar-se a uma celebracio da fragmentacao das “gr \des narrativas" do racionalismo p6s-iluminista, entio, apesar de toda a sua efervescéncia intelectual, ele permaneceré um empreendimento profun- damente provinciano, A significagio mais ampla da condigio pés-moderna reside ia de que os “limites” epistemol6gicos daquelas 23 idéias etnocéntrieas so também as fronteiras enunci de uma gama de outras vozes € historias dissonantes, até dis- sidentes — mulheres, colonizados, grupos minori portadores de sexualidades policiadas, Isto porque grafia do novo internacionalismo é a hist pés-colonial, as nasrativas da diéspora cultural ¢ politica, grandes deslocamentos sociais de comunidades camponesas € aborigenes, as poéticas do exilio, a prosa austera dos refugiados politicos ¢ econémicos. F nesse sentido que a fronteira se torna © lugar a partir do qual algo comega a se fazer presente em um movimento nao dissimilar ao da articulago ambulante, ambi- valente, do além que venho tracando: "Sempre, e sempre de modo diferente, a ponte acompanha os caminhos morosos ou apressados dos homens para [4 € para c4, de modo que eles possam alcangar outras margens... A ponte retine enquanto passagem que atravessa."* Os préprios conceitos de culturas nacionais homogéneas, ‘0 consensual ou contigua de tradicoes histéricas, ou comunidades étnicas “organicas" — enquanto base do comparativismo cultural —, estao em profunde proceso de redefinicio. O extremismo odioso do nacionalismo sérvio prova que a propria idéia de uma identidade nacional pura, “etnicamente purificada", s6 pode ser atingida por meio da morte, literal ¢ figurativa, dos complexos entrelagamentos da hist6ria e por meio das fronteiras culturalmente contingentes dla nacionalidade [nationbood] moderna. Gosto de pensar que, do lado de ca da psicose do fervor patriético, h4 uma evi- déncia esmagadora de uma nocio mais transnacional € translacional do hibridismo das comunidades imaginadas. 0 teatro contemporaneo do Sri Lanka representa © conflito mortal entre os timeis e os cingaleses através de referénci alegéricas & brutalidade do estado na Africa do Sul e na Am¢ Latina; 0 cinone anglo-celta da titeratura ¢ do cinema australia nos esta sendo reescrito do ponto de vista dos imperativos politicos e culturais dos aborigenes; os romances sulafricanos de Richard Rive, Bessie Head, Nadine Gordimer e John Coetzee so documentos de uma sociedade dividida pelos efeitos do apartheid, que convidam a comunidade intelectual interna- cional a meditar sobre os mundos desiguais, assimétricos, que existem em outras partes; Salman Rushdie escreve a historic grafia fabulosa da India e do Paquistio pés-independéncia 24 em Midnight's Children [Os Filhos da Meia-Noitel e Shame [vergonhal, s6 para lembrar-nos, em Os Versos Satanicos, que 0 olho mais fiel pode agora ser aquele da visio dupla do migrante; Beloved |Amadal, de Toni Morrison, revive o passado da escravidio ¢ seus rituais assassinos de possess: ¢ autopossessio a fim de projetar a fabula contemporinea da hist6ria de uma nuuilher, que é ao mesmo tempo a narrative de uma meméria afetiva, histérica de uma esfera piiblica emer gente, tanto de homens como de mulheres. © que é impressionante no “novo” internacionalismo & que © movimento do especifico ao geral, do material ao metaforico, € uma passagem suave de transi¢ao € transcendéncia. A i2 passagem" [middle passage] da cultura contemporinea, como no caso da propria escravidao, € um processo de deslocamento e disjungio que nao totaliza a experiéncia, Cada vyex mais, as culturas “nacionais" esto sendo produzidas a partir da perspectiva de minorias destituidas, O efeito mais significative desse proceso nao € a proliferagao de “histérias alternativas dos excluidos", que produziriam, segundo alguns, uma anarquia pluralista. O que meus exemplos mostram & uma base alterada para o estabelecimento de conexdes inter- nacionais. A moeda corrente do comparativismo critico, ou do juizo estético, nao é mais a soberania da cultura nacional, concebida, como propde Benedict Anderson, como uma ‘comunidade imaginada” com raizes em um “tempo vazio homogéneo” de moxlemidade € progresso. As grandes narrativas conectivas do capitalismo ¢ da classe dirigem os mecanismos de reprodugao social, mas nao fornecem, em si proprios, uma estratura fundamental para aqueles modos de identificagio cultural e afeto politico que se formam em torno de questées, de sexualidade, raga, feminism, 0 mundo de refugiados ou migrantes ou © destino social fatal da AIDS. © testemunho de meus exemplos representa uma revisio radical do préprio conceito de Comunidade humana. O que seria esse espago geopolitico, como realidade local ou trans- nacional, € 0 que se interroga e se reinaugura. O feminismo, na década de 90, encontra sua solidariedade tanto em narr libertérias como na dolorosa posi¢ao ética de uma escrava, a Sethe de Morrrison, em Amada, que é levada ao infanticidio. © corpo politico no pode mais contemplar a satide da nacao simplesmente como virtude civiea; ele precisa repensar a 2s questio dos direitos para toda a comunidade nacional ¢ internacional a partir da perspectiva da AIDS. A metrépole cocidental deve confrontar sua hist6ria pds-colonial, contacla pelo influxo de migrantes e refugiados do pés-guerra, como uma narrativa indigena ou nativa interna @ sua identidade nacional; a raza para isto fica evidente nas palavras gaguejadas, bébadas, de Mr. “Whisky” Sisodia de Os Versos ‘Satdnicos. “O problema dos ing-ingleses € que a his-is-t6ria deles se fez no além-mar, dai eles na-na-nao saberem o que ela significa."” A pés-colonialidade, por sua vez, um salutar lembrete das relagdes “neocoloniais” remanescentes no interior da “nova” ordem mundial e da divisto de trabalho multinacional. Tal perspectiva permite a autenticagao de histérias de explo- racao ¢ o desenvolvimento de estratégias de resisténcia. Alem disto, no entanto, a critica pés-colonial dé testemunho desses pafses ¢ comunidades — no norte € no sul, urbanos € turais — constituidos, se me permitem forjar a expresso, “de outro modo que nio a modernidade". Tais culturas de contra-modernidade p6s-colonial podem ser contingentes & modernidade, descontinuas ou em desacordo com ela, resis tentes a suas opressivas tecnologias assimilacionistas; porém, elas também poem em campo o hibridismo cultural de si condigdes fronteirigas para “traduzir", e portanto reinscrever, © imagindirio social tanto da metr6pole como da modemidade, Ougam Guillermo Gomez-Peaa, o artista performitico que vive, entre outros tempos € espacos, na fronteira entre México © Estados Unidos: ola América esta 6 2 voz de Gran Vato Charollero transmitindo dos deserios escaldantes de Nogales, Arizona zona de libre cogercio 2000 megaherz en todas direcciones voces esto comemorando © Dia do Trabalho em Seattle enquanto o Klan fz uma manifesta contra os mexicanos na Georgia fronia, 100% ironia’® Estar no “além’", portanto, € habitar um espaco intermédio, como qualquer diciondrio the diré. Mas residir “no além" ainda, como demonstrei, ser parte de um tempo revisionario, um retomo ao presente para redescrever nossa contempora- neidade cultural; reinscrever nossa comunalidade humana, hist6rica; tocar o futuro em seu lado de ca. Nesse sentido, entdo, 0 espago intermédio “além” torna-se um espago de intervengio no aqui € no agora. Lidar com tal invengio & intervengao, como demonstram Green € Gomez-Peita em suas obras distintas, requer uma nogio do novo que sintoniza com a estética hibrida chicana do rasquachismo, como descrita por Tomas Ybarra-Frausto: 2 utlizagao de recursos disponiveis para o sincretismo, 2 jus- taposiglo © a integraga0. Rasquachismo & uma sensibilidade sintonizada com as misturas e 2 confluéncla.. um deleite nz textura e superficies sensuais... manipulagto consclente de mmateriais ou iconografia... a combinacio de material jé existente fe vela satirica... a manipulagao de artefatos rasguache, cédigo sensibilidades de ambos os lados da fronteira.” © trabalho fronteirigo da cultura exige um encontro com “o novo" que nao seja parte do continuum de passado € pre- sente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradugao cultural. Essa arte no apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova 0 pasado, refigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova € interrompe a atuacio do presente. © “passado-presente” torna-se parte da necessidade, ¢ nao da nostalgia, de viver. Os objets trouvés de Pepon Osério, recolhidos na comunidade “nuyoricana” (porto-riquenha de Nova lorque) — as estatisticas de mortalidade infantil, ou 0 avango silencioso (€ silenciado) da AIDS na comunidade hispanica so transformados em alegorias barrocas da alienagio social. Mas nao € 0 drama elevado de nascimento € morte que atrai a imaginacdo espetacular de Os6rio. Ble & o grande celebrante do ato migratério da sobrevivéncia, us indo suas obras de midis-mista [mixed-medial para criar um espaco cultural hibrido que surge contingente e disjuntivamente na Inscrigo de signos da meméria cultural ¢ de lugares de atividade politica, La Cama (A Gama) transforma uma cama 27 el altamente decorada na cena primal das mem6: de infincia perdidas-e-achadas, no memorial a uma baba morta, Juana, na mise-en-scéne do erotismo do cotidiano “emigrante”. Sobrevivencia, para Os6rio, € operar nos intersticios de uma gama de priti co espeticulo da estatisti em performance. : 0 “espago” da instalagao, social, o tempo transitive do corpo Finalmente, 6 a arte fotogrifica de Alan Sekula que leva a condig2o fronteiriga da tradugao cultural a seu limite global em Fish Story (Historia de Peixes), seu projeto fotogritico sobre portos: “O porto é 0 lugar em que os bens materiais, aparecem em grande volume, em pleno fluxo de troca."® © porto ¢ o mercado de agdes tornam-se a paysage moralisé do mundo computadorizado e containerizado do comércio global. Todavia, o tempo-espago nao sincronico da “troca” € exploragto transnacionais es alegoria naval representado em uma [As coisas estio mais confusas agora, Um disco arranhado berra © hino nacional noruegués por um alto-falante da Casa do Marinheito, no penhasco acima do canal. © navio-containes, ao ser saudado, desfralda uma bandeira de conveniéncia das Bahamas. Ele fol construfde por coreanos que trabalham por longas horas nos estaleiros gigantes de Ulsan. A tripulagao mal paga e insuficiente poderia ser salvadorenha ou filipina. Ape- as © capitie ouve uma melodia familiar? A nostalgia nacionalista da Noruega nao consegue superar a babel no penhasco. © capitalismo transnacional € 0 empo- brecimento do Tezceiro Mundo certamente criam as cadcias de circunstincia que encarceram o8/as salvadorenhos/as ou filipinos/as. Em sua passagem cultural, aqui ¢ ali, como tabalhadores migrantes, parte da maciga diaspora economica € politica do mundo moderno, eles encarnam o “presente' benjaminiano: aquele momento que explode para fora do continuo da hist6ria. Essas condigdes de deslocamento cultural e discriminagio social — onde sobreviventes politicos tornam-se as melhores testemunhas hist6rieas — so o terreno sobre o qual Frantz Fanon, o psicanalista da Martinica que participou da revolugao argelina, situa uma instancia de aquisi¢io de poder: 28 No momento em que desejo, estou pedindo para ser levado em consideragao, No estou meramente aqui-e-agora, selado na soisitude. Sou # favor de outro lugar ¢ de outra coisa. Exijo que se leve em conta minha atividade negadora Igrifo meu) na medida em que persigo algo mais do que a vida, na medida em que de fato batalho pela criagio de um mundo humano — que € um mundo de reconhecimentos reciprocos. Eu deveria lembrar-me constantemente de que © verdadciro salto consiste em introduzir a Invengio dentto da existéncia No mundo em. que viajo, estou continuamente a criar-me. E 6 passando além da hipdtese hist6rica, instrumental, que iniciarei meu ciclo de liberdade.!* Mais uma vez, € 0 desejo de reconhecimento, “de outro lugar € de outra coisa", que leva 2 experiéncia da historia étese instrumental. Mais uma vez, € 0 espago da intervengio que emerge nos intersticios culturais que intro 0 ctiativa dentro da existéncia, E, uma Gltima vez, ha um retorno & encenagio da identidade como iteragio, cio do eu no mundo da viagem, o re-estabelecis to da comunidade fronteirica da migracao. O desejo de reco- nhecimento da presenga cultural como “atividade negadora de Fanon afina-se com minha ruptura da barreira do tempo de um “presente” culturalmente conluiado, VIDAS ESTRANHAS: A LITERATURA DO RECONHECIMENTO Fanon reconhece a importincia crucial, para os povos subor dinados, de afirmar suas t -s culturais nativas ¢ recupera suas hist6rias reprimidas. Mas ele esti consciente demais dos perigos da fixidex ¢ do fetichismo de identidacles no interior da calcificagio de culturas coloniais para recomendar que se lancem “raizes' no romanceiro celebratério do pasado ou na homogeneizacio da hist6ria do presente. A atividade negadora 6, de fato, a intervengio do “além” que estabelecs uma fronteira: uma ponte onde o “fazer-se presente” comega Porque capta algo do espirito de distanciamento que acompanh re-Jocaca0 do lar € do mundo — 0 esiranhamento [unbomeliness] — que & a condigao das iniciagdes extratervitoriais e intercul- turais. Estar estranho ao lar [unbomed] nao é estar sem-casa [bometessi; de modo ansilogo, nao se pode classificar 0 “estranho” 2 [unbomely] de forma simplista dentro da divisto familiar da vida social em esferas privada e piiblica. © momento estra- nho move-se sobre nés furtivamente, como nossa propria sombra, €, de repente, vemo-nos como a Isabel Archer de Henry James em Portratt of a Lady (Retrato de uma Damal, j tomando a medida de nossa habitacdo em um estado de “terror incrédulo”.** E & nesse ponto que, para Isabel, o mundo primeira | s¢ contrai ¢ depois se expande enormemente. Enquanto ela luta para sobreviver As aguas insondaveis, as torrentes impe- tuosas, James introduz-nos ao “estranhamento” inerente aquele rito de iniciagao extraterritorial e intercultural. Os recessos do espaco doméstico tornam-se os lugares das invasdes mais rintricadas da histéria. Nesse deslocamento, as fronteiras entre | casa e mundo se confundem e, estranhamente, o privado ¢ 0 * piblico tornam-se parte um do outro, forcando sobre nés uma ‘visio que 6 tao dividida quanto desnorteadora Embora o “estranho” seja uma condigao colonial pés-colonial paradigmética, tem uma ressonancia que pode ser ouvida distintamente — ainda que de forma erratica — em ficgdes que negociam os poderes da diferenga cultural em uma gama de lugares trans-hist6ricos. J4 quvimos 0 alarme estridente do “estranho” no momento em que Isabel Archer percebe que seu mundo foi reduzido a uma janela alta e banal, i a medida que sua casa de ficg2o se torna a casa da escuri- dao, a casa do siléncio, a casa da asfixia’."6 Se ouvirmos dessa forma o alarme no Palazzo Roccanera nos tiltimos anos da dé cada de 1870, ¢ entio, um pouco antes, em 1873, nas redonde- zas de Cincinnati, em casas murmurantes como o nimero 124 da Bluestone Road, ouviremos a linguagem indecifravel dos negros mortos e raivosos, a voz da Amada de Toni Morrison, “os pensamentos das mulheres do 124, pensamentos impronun- cidveis, ndo-pronunciados’.” Mais de um quarto de século depois, em 1905, Bengala esti em chamas com 0 movimento | Swadeshi ou Home Rule quando a “Bimala doméstica, pro- i duto do espago confinado”, como Tagore a descreve em The Home and the World (A Casa ¢ 0 Mundo], € despertada por “um continuo sub-tom de melodia, de baixo profundo... uma nota verdadciramente masculina, a nota do poder”. Bimala é possuida e arrancada para sempre da zenana, alojamento isolado das mulheres, enquanto atravessa a varanda fadada rumo ao mundo das questées ptiblicas — “para a margem de 30 la e 2 balsa havia parado de fazer a travessia”." Muito mais proximo de nossos tempos, na Africa do Sul contemporainea, fa, « heroina de Nadine Gordimer em My Son's Story (A Histéria de Meu Filhol, emana uma atmosfera paralisante a0 fazer de sua domesticidade reduzida o disfarce perfeito para o contrabando de armas: de repente a casa se trans- forma em outro mundo € © narrador observa que “E! se todos descobrissem ter entrado sem perceber em um: estranha, ¢ era a casa dela...” As especificidades historicas ¢ diversidades culturais que informam cada um cesses textos fariam de um argumento geralizante uma mera atitude; de qualquer modo, s6 tra Iharei em detathe com Morrison e Gordimer. Porém, 0 “estranho" fornece-nos de fato uma problematica "nao-continut dramatiza — na figura da mulher — a do estado civil ao tragar seu limite bastante paradoxal entre as esferas privada € puiblica, Se, para Freud, 0 unbeimlich € > “o nome para tudo o que deverla ter permanecido... seereto € oculto mas veio a luz", entdo a descrigao de Hannah Arendt dos dominios ptblico e privado é profundamente estranha: “E a distingio entre coisas que deveriam ser ocultas € coisas que deveriam ser mostradas”, escreve ela, que através de sua inversio na idade moderna, “revela como o oculto pode ser rico e miltiplo em situagées de intimidade" * Essa l6gica da inverstio, que girt em torno de uma negacho, 6a base das revelagdes € reinscrigdes profundas do momento de estranhamento, Isso porque 0 que estava “oculto do campo de visio" para Arendt, torna-se, em The Disorder of Women [A Desordem das Mulheres}, de Carole Pateman, a ‘esfera doméstica atributiva” que é esquecida nas distingdes teéricas das esferas privada e piiblica da sociedade civil. Tal esqueci= mento — ou recusa — cria uma incerteza no coragao do su: jeito generalizame da sociedade civil, comprometendo 0 “i dividuo”, que é © suporte de sua aspiragao universalista. Ao tomar visivel o esquecimento do momento “estranho” na so- ciedade civil, 0 feminismo especifiea a natureza patriarcal, ba~ seada na divisto dos generos, da sociedade civil ¢ perturba simetria entre puiblico ¢ privado, que € agora obscurecid: ou estranhamente duplicada, pela diferenga de géneros que nao se distribui de forma organizada entre o privado € 0 piblico, mas se torna perturbadoramente suplementar a eles. a Re Isto resulta em redesenhar 0 espaco doméstico como espaco das modernas técnicas normalizantes, pastoralizantes € indi vidualizantes do poder e da policia modernos: 0 pessoal-é-o politico, 0 mundo-na-casa © momento do estranho relaciona as ambivaléncias traumaticas de uma histGria pessoal, psiquica, as disjungOes mais amplas da existéncia politica. Beloved, a crianca assassinada por Sethe, sua propria mae, é uma repetigio endemoniada, extemporinea, da violenta histéria das mortes das criangas negras durante a escravidio em muitas partes do Sul, menos de uma década depois que o ntimero 124 da Bluestone Road tomou-se mal assombrado. (Entre 1882 € 1895, entre um tergo a metade da taxa de mortalidade negra anual compunba-se de criangas de menos de cinco anos de idade). Porém, a meméria do ato de infanticidio de Sethe emerge através de “buracos S coisas que os fugitivos nao diziam, as perguntas que eles nfo faziam... o inominado, o nao mencionado”.#" Enquanto construimos a narrativa do infanticidio através de Sethe, a mae escrava, que é também vitima de morte social, a propria base hist6- rica de nosso juizo ético € submetida a uma revisio radic: Tais formas de existéncia social e psiquica podem ser melhor representadas na ténue sobrevivéncia da propria linguagem literaria, que permite a meméria falar: enquanto a Fala consclente pode (ser) no maximo wma [sombra ecoando 4 Iuz silenciosa, dar testemunho Da verdade, nao €. W. H. Auden escreveu esses versos sobre os poderes dla potesis em The Cave of Making [A Caverna do Fazer), aspirando ser, como ele coloca, “um Goethe allintico menor". E € para uma intrigante sugestio na Giltima “Nota sobre a literatura mundial” de Goethe (1830) que me volto agora em busca de um método comparativo que falaria A condigdo “estranha” do mundo moderno. Goethe sugere que a possibilidade de uma literatura mundial surge da confustio cultural ocasionada por terriveis guerras € conflitos métuos. As nagdes nic poderiam retornar a sua vida estabelecida © independente sem pereeber que tinham aprendido muitas idéias © modos estrangeiras, que inconscientemeate adotaram, ¢ Vir a sentir aqui e ali necessidades espirituais e intelectuais antes nto reconhecidas. As referencias imediatas de Goethe sto, naturalmente, as guerras napoleOnicas € seu conceito de “sentimento de relagdes de boa vizinhanga” é profundamente eurocentrico, chegando no méximo a Inglaterra e a Franca. No entanto, como orientalista que leu Shakuntala aos dezessete anos € que escreve em sua autobiografia sobre o “informe e desconforme”™* deus-macaco Hanuman, as especulagdes de Goethe estto abertas a outra linha de pensamento. Que dizer da situagao cultur que “necessidades espirituais e intelectuais antes nao reco- nhecidas” emergem da imposicao de idéias “estrangeiras”, representagdes culturais e estruturas de poder? Goethe sugere que a ‘natureza interna de toda a nag: im como a de cada homem, funciona de forma inconsciente”.2 Quando isto 6 colocado paralelamente a sua idéia de que a vida cultural da nagao é vivida “inconscientemente”, pode haver entao a iéia de que a literatura mundial possa ser uma categoria emergente, prefigurativa, que se de uma forma de diss ¢ alteridade cultural onde termos nao consensuais de afiliagio podem ser estabeleciclos com base no trauma hist6rico, O estudo da literatura mundial poderia ser 0 estudo do modo™ elo qual as culturas se reconhecem através de suas projecdes “ Talvez, possamos agora sugerir que histérias transnacionais de migrantes, colonizados ou refuigiados poli- ticos — essas condigées de fronteira ¢ divisas — possam ser © terreno da literatura mundial, em lug de tradigdes nacionais, antes o tema central da literatura muito mais complexa da transmis: mundial. © centro de tal estucdo nao seria nem a “sober: de culturas nacionais nem o universalismo da cultura human: mas um foco sobre aqueles “cdeslocamentos sociais € culturais alos" que Morrison e Gordimer representam em suas ficgdes “estranhas’, Isso nos leva a pergumar: pode a perplexidade do mundo estranho, intrapessoal, levar a um tema internacional? 33 Se estamos buscando uma “mundializacao" da literatura entlo talvez ela esteja em um ato eritico que tenta compreender através do qual a lite a especificidade histérica, usando a incerteza mediinica, ciamento estético, ou os signos obscuros do mundo do espirito, o sublime € 0 subliminar. Como criaturas literarias ¢ mais politicos, devemos nos preocupar com a compreensio da agao humana € do mundo social como um momento em que algo esid fora de controle, mas néo fora da possibitidade de organizagao. Este ato de escrever o mundo, de tomar a wabitaco, é captado magicamente na deseri¢ao que Morrison faz de sua casa de ficgio — a arte como “a presenga totalmente apreendida de uma assombragio"™ da Lida como ima salidade soc o truque de magi ura conspira com dista medida de sua em que descreve a relagao da ante 1, minha traduglo da frase de Morrison se uma declaragao sobre a respons critico. Iss0 porque © critico deve tentar apreender totalmente € assumir a responsabilidade pelos passados nao ditos, nao representados, que assombram © presente hist6rico. abilidacle politica do Nossa tarefa, entretanto, continua sendo mostrar como a intervengao histérica se transforma através do proceso significante, como o evento histérico € representado em um discurso de algum modo fora de controle, Isto esta de acordo a sugestio de Hannah Arendt de que 0 autor da aio I pode ser o inaugurador de seu significado singular, agente, ele ou éla nao podem controlar seu resultado. Nao € apenas o que a casa da ficgd0 contém ou “controla” enguemto contetido. © que é igualmente importante 6 a metaforacidade das casas da meméria racial que tanto Morrison como Gordimer constroem — os sujeitos da narrativa que murmuram ou resmungam como no niimero 124 da Bluestone Road, ou mantém um siléncio contide como em um subtrbio “cinzento” da Cidade do Cabo. ‘Cada uma das casas em A Histéria de Meu Filho, de Gordimer, esti investida com um segredo especifico ou uma conspi uma inquietagao estranha. A casa no gueto € a casa do espitito de conluio das pessoas de cor (coloureds) em suas relacoes antagonica com 0s negros; a casa da mentira € a casa do adultério de Sonny; ha ainda a casa silenciosa da camuflagem Fo revolucionéria de Aila; ha também a casa noturna de Will, 0 narradot, que escreve sobre a narrativa que mapeia a fenix erguendo-se em seu lar, enquanto as palavras tm de se tornar cinzas em sua boca. Porém, cada casa “estranha” demarca um deslocamento histérico mais profundo. E esta € a condicao de se ‘de cor" na Africa do Sul, ou, como descreve Will, "a meio caminho entre... ser nfo definido — e era a propria falta de definigio que nunca poderia ser questionada, apenas observada como um tabu, algo que ninguém jamais confessaria, mesmo respeit ssa casa ce origens raciais © culturais a meio «: une as origens diaspéricas “intervalares" do sui-afticano de core transforma-se no simbolo da disjuntiva ¢ deslocada vida cotidiana da luta pela libertagao: “Como tantos outros desse tipo, cujas familias estao fragmentadas na diaspora do exilio, em codinomes, em atividades secretas, pessoas para quem uma casa ¢ Iagos reais sto coisa para os que virto depois." Privado € ptiblico, pasado € presente, 0 psiquico ¢ 0 social desenvolvem uma intimidade intersticial. E uma inti- midade que questiona as divisdes bindrias através das quais essas esferas da experiéncia social sto freqiientemente opostas espacialmente, Essas esferas da vida sii ligads s de uma temporalidade intervalar que toma ¢ medida de habitar em casa, ao mesmo tempo em que produz uma imagem do mundo da hist6ria. Este € 0 momento de distancia estética que d ma dupla face que, como 0 sujeito sulali de cor, representa um hibridismo, u tum sujeito que habita a borda de uma realidad 2 narra na diferenga “interior, | ptervalar". J E a inscrigao dessa existéncia fronteiziga habita uma quie- tude do tempo ¢ uma estranheza de enquadramento que cr iscursiva na encruzilhada entre hist6ria ¢ litera tura, unindo a casa © © mundo. a timagem” Essa estranha quietude & visivel no retrato de Alla. Seu marido Sonny, ja em decade: in politica, cujo caso com a amante branca revolucionéria estava suspenso, faz sua primeira visita a esposa na prisdo. A carcereira afasta-se, 0 policial desaparece e, aos poucos, Ailn emerge como uma presenga estranha, do lado oposto do marido € do fitho: 8 ‘mas através da beleza familiar havia uma vivida estranheza...£ra ‘como se alguina experigncia singular tivesse visto nela, como Jum pintor vé em seu modelo, 0 gue cla era, 0 que estava Ii 1a ser descoberto, Em Lusaka, em segredo, na pristo — sa 18 onde — ela havia posado para o feteato de sua face Eles tiveram de reconbecé-ta lo se emoldura em um momento politico climatico que € também um evento histérico emerge; um “eu contingente — "uma experiéncia singular ... sabe-se ld onde, ou o que havia para ser descoberto”. Eles tiveram de reco nhecé-la, mas o gue reconhecem nela? As palavras niio falardo ¢ o siléncio congela-se em imagens do apartheid: carteiras de identidade, provas forjadas pela policia, fotografias para fichas de presidio, os retratos reticu- lados de terroristas na imprensa. Naturalmente, Aila julgada, nem pretende julgar. Sua vinganga € muito mais sibia e mais completa, Em seu siléncio ela se torna o “totem” nao-dito do tabu da pessoa sul-afticana de cor. Ela expde 0 mundo estranho, o mundo ‘a meio caminho entre..., nao defi- nido” das pessoas de cor, como o “lugar e tempo distorcidos em que cles — todos eles — Sonny, Aila, Hannah — vivian". © silencio que obstinadamente segue a morada de Aila transforma-se agora em uma imagem dos “intersticios", o hibri dismo intervalar da historia da sexualidade ¢ da raga A necessidade do que eu fiz — Bla colocou © contorne exterior de cada mio, dedos estendidos € juntos, como uma moldura dos dois lados das folhas de testemunho diante dela. E ela se colocou diante dele, para ser julgada por ele A face oculta de Aila, 0 contorno externo de cada mao, esses pequenos gestos através dos quais ela fala, descrevem uma outra dimensio do *habitar” no mando social. Aila, como mulher de cor, define uma fronteira que esti ao mesmo tempo dentro € fora, o estar de fora de alguém que, na verdade, esti dentro. A quietude que a cerca, as lacunas em sua histéria, sua hesitagao © paixio que falam entre 0 eu e seus atos — estes sio momentos em que o privado € © piiblico se tocam em contingéncia. Eles no transformam simplesmente 9 contetido de idéias politicas; o proprio “luga 36 politico é falado — a esfera publica mesma, toma-se uma experigneia de liminaridade que, nas palavras de Sonny, ques- tiona 0 que significa falar “a partir do centro da vida". A preocupacio politica central do romance — até a emer géncia de Aila — concentra-se na “perda de absolutos", 0 descongelar da guerra fria, © medio de que "se nao pudermos oferecer o velho paraiso socialista em troca deste inferno capitalista, teremos nos A ligho ensinada por Aila requer um movimento de afast mento de um mundo concebido em termos binérios, de uma nogio das aspirages do povo esbogada apenas em preto & branco. Requer tinda umn deslocamento da atengio do politico nado traidores de nossos irmaos”. como pritica pedagégica, ideol6gica, da politica como neces- sidade vital no cotidiano — a politica como performatividade. Aila nos leva ao mundo estranho onde, escreve Gordimer, as banalidades sto encenadas — a agitagao em torno de nasci- mentos, casamentos, questdes de familia com seus rituais de sobrevivéncia associados a comida vestuario.* Mas € preci samente nessas banalidades que o estranho se movimenta, quando a violencia de uma sociedade racializada se volta de modo mais resistente para os detalhes da vida: onde voce pode ou no se sentar, como voce pode ou no viver, 0 que vocé pode ou nao aprender, quem vocé pode ou nao amar Entre o ato banal de liberdade € sua negagio histérica surge 9 silencio: “Aila emanava uma atmosfera trangiilizante; falatGrio da despedida cessou. Era como se cada um desco- brisse que havia entrado sem perceber em uma casa estranha, € era a dela; ela estava 14." Na imobilidade de Aila, de obscura necessidade, vislum- bramos 0 que Emmanuel Levinas descreveu magicamente como a existéncia crepuscular da imagem estética —a imagem da arte como “o proprio evento do obscurecer, uma descida Para a noite, uma invasio da sombra”.” A *completude” do estético, © distanciar do mundo na imagem, nio & exatamente uma atividade transcendental. A imagem — ou a atividade metaf6rica, “ficcional", do discurso — tornard visivel “uma inerrupeo do tempo por um movimento que se desenrola do lado de ca do tempo, em seus intersticios" A complexidade desta afirmago se torna mais clara quando eu os lembrar da imobilicadle do tempo através do qual Aila sub-repticia € 2 subversivamente interrompe a presenga continua da atividade politica, usando seu papel intersticial, seu mundo doméstico, tanto para “obscurecer” seu papel politico quanto para articuld-lo melhor. Ou, como em Amada, a erupgio continua de “lingua- * da meméria escrava obscurece a narrativa idio para articular 0 nao-dito: aquele discurso fantasmagérico que entra no mundo do 124 “pelo fade de fora” de modo a revelar o mundo transicional das conse- qiiéncias da escravidio na década de 1870, suas faces privada € pablica, seu passado histrico € sua narrativa presente, A imagem estética descortina um tempo ético de narrag3o porque, escreve Levinas, “o mundo real aparece na image como se estivesse entre parénteses".” Como os contomos externos das mios de Aila segurando seu enigmitico teste- munho, como © numero 124 da Bluestone Road, que € uma presenga totalmente apreendida, assombrada por linguagens indecifraveis, a perspectiva parentética de Levinas é também Jo ética, Ela efetua uma “extermalidade do interior” como a propria posigo enunciativa do sujeito histérico narrativo, “introduzindo no amago da subjetividade uma referéncia radical € andrquica para o outro que, na verdade, constitul a interloridade do sujeito”.” Nao € estranho que as metiforas de Levinas para essa singular “obscuridade” da ima gem venham daqueles lugares estranhos de Dickens — aque- les internatos poeitentos, a luz pilida dos escritérios londri- nos, as escuras, midas lojinhas de roupa de segunda mao? Para Levinas, a “arte-magica” do romance contemporaineo reside em sua maneira de "ver a interioricade a partir do exterior”, ¢ € este posicionamento ético-estético que nos leva de volta, finalmente, 4 comunidade do “estranho”, as famosas linhas niciais de Amada: “O 124 era malévolo. AS mulheres da casa © sabiam e também as criangas. te © mais a fundo E Toni Morrison quem leva mais a esse projeto ético e estético de “ver a interioridade 2 partir do exterior” — diretamente no ato de Beloved nomear seu desejo de identidade: “Quero que vocé me toque no meu lado de dentro e me chame pelo meu nome." Hé uma razto Obvia pela qual um fantasma desejaria ser percebido assim. O que & mais obscuro — e mais pertinente — é como um desejo tio intimo ¢ interior pode fornecer tuma “paisagem interior” [énscape] 38 da meméria da escravidio. Para Morrison, € precisamente 0 significado das fronteiras list6ricas € discursivas da escravidao que esto em foco. A violéncia racial € invocada através de datas hist6ricas — 1876, por exemplo — mas Morrison € um pouco apressada no que diz respeito as acontecimentos indo rapida- mente pelo “verdadeito significado da Lei dos Fugitivos, da Taxa de Assentamento, os Caminhos de Deus, 0 antiescrava- gismo, a alforria, 0 voto pela cor cla pele”. O que deve ser suportado € o conhecimento da diivida que vem dos dezoito anos de desaprovacao € vida solitiria de Sethe, seu banimento no mundo “estranho” do niimero 124 da Bluestone Road, como parla de sua comunidade pés-escravidio, O que finalmente faz. dos pensamentos das mulheres do 124 *pensamentos nio- pronuncifveis a serem ndo-ditos” € a compreensio de que as vitimas da violéncia sto clas mesmas “recepticulos de signifi- cados": elas S40 as vitimas de medos projetados, ansiedades ¢ 1¢5 que nao se originam dentco do oprimido € nao as, nderao ao circulo da dor. O prurido de emancipagzo vem com o conhecimento de que a crenga da supremacia racial “de que sob cada pele escura havia uma selva" foi uma crenga que . espalhou-se, tocou cada perpetrador do mito racista, enlouqueceu-os com suas proprias inverdades, sendlo enfim expulsa do ntimero 124 da Bluestone Road, Mas antes desta emancipagio das ideologias do senhor, Morrison insiste no penoso reposicionamento ético da mae escrava, que precisa ser o lugar enunciatério para ver a inte= rioridade do mundo escravo a partir de fora — quando o “lado de fora” € 0 retorno em forma de espirito da crianga que ela assassinara, 0 duplo de si mesma, pois “ela é 0 iso eu sou aquele que 1i eu vejo seu roste que € o meu". Qual poderia ser a ética do infanticidio? Que conhecimento historico retorna a Sethe através da distancia estética ou do “obscurecer” do evento, na forma fantasmal de Beloved, sua filha morta? Em seu belo relato sobre as formas de resistencia escrava em Within the Plantation Housebold [No Interior da Casa de uma Plantation], Elizabeth Fox-Genovese considera que 0 assassinato, a automutilagio ¢ o infanticidio sto a dinami psicoldgica profunda de toda resisténcia. E sua opiniaio que » “esas formas extremas capturavam a €ss da mulher escrava ncia da autodefinigao “ Além disso, vemos como esse ato trigico € intimo de violéncia executado como parte de uma luta para fazer recuar as fronteiras do mundo escravo. Diferente- mente dos atos de confrontagao contra o senhor ou 0 feitor que eram resolvidos dentro do contexto doméstico, o infanticidio era reconhecido como um ato contra o sistema ¢, pelo menos, reconhecia a posigao legal da escrava na esfera publica. O infanticidio era visto como um ato contra a propriedade do senhor — contra seu luicro extra — ¢ talvez isto, conclui Fox-Genovese, “levasse algumas das mais desesperadas sentir que, ao matar uma crianga que amavam, estariam de certo modo restaurando sua posse sobre ela”. Através da morte e do retorno de Beloved, é precisamente tal recuperagao que ocorre: a mae escrava retomando, atra da presenga da crianga, 0 direito de posse sobre si mesma, Esse conhecimento vem como uma espécie de auto-amor que é também o amor do "outro": Eros ¢ Agape juntos. £ um amor ético no sentido levinasiano de que a “interioridade” do sujeito habitada pela “referéncia radical e anarquica ao outro”. Esse conhecimento é visivel naqueles capitulos intrigantes' que se sobrepdem, onde Sethe, Beloved ¢ Denver praticam uma ceriménia em forma de fuga, reivindicando ¢ nomeando através de subjetividades entrecruzadas € intersticiais “Beloved, ela |é) minha filha’; “Beloved 6 minha irma"; “Eu sou Beloved ¢ ela € minha.” As mulheres falam em linguas a partir do “entre-tugar entre uma € outra", que € um espaco da comunidade. Elas exploram uma realidade “interpessoal": uma realidade social que aparece dentro da imagem postica como que entre parénteses — esteticamente distanciada, contida ¢, todavia, historicamente emoldurada, & dificil transmitir 0 ritmo € o improviso desses capitulos, mas é impossivel nao es a cura da hist6ria, uma comunidade recuperada na vert construgio de um nome, Podemos finalmente nos perguntar: Quem € Beloved? Agora compreendemos: ela é a filha que retorna para Sethe para que sua mente nao fique mais desabrigada, 0 Quem € Beloved? Agora podemos dizer: ela € a irma que retorna a D trazendo a esperanga do retorno de seu pai, 0 fugitivo que morreu ao tentar escapar Quem € Belovee? Agora sabemos: ela € a filha feita de amor assassino que volta para amar, odiar ¢ libertar-se. Suas palavras sto quebradas ‘como as pessoas linchadas com seus pescogos quebrados; si0 desencarnadas como as criangas mortas que perderam suas fitas de cabelo, Mas no hit divida quanto ao que suas pala vras dizem a0 erguer-se de entre os mortos apesar de sua sintaxe perdida e sua presenga fragmentada: Meu rasto estd vindo tenho de (2-10 useo 0 encontro estou amando tanto @ meu rosto quero @ encontra estou amando tanto © meu rosto meu fosto escuso est perto de mim quero o encontro.” BUSCANDO O ENCONTRO Finalizar, como fiz, com 9 ninho da fénix, ¢ nao sua pira, de outra forn Morrison descreven 0 mundo hist6rico, forgosamente entrando na casa di arte ¢ da ficgio de modo a invadis, alarmar, dividir ¢ desapropriar, elas também demonstram a compulsio con- tempordnea de ir além, de transformar © presente no “pés", ‘ou, como eu disse anteriormente, tocar 0 lado de ca do futuro. Tanto a identidade intervalar de Aila como as vidas duplas «le Betoved afiemam as fronteiras da existéncia gente © intersticial da cultura. Nesse sentido, elas se aproxi- mam do caminho entre polaridades raciais de Renée Green da hist6ria migrante dos ingleses, escrita por Rushdie nas ma de Osério ocalizado entre 0 , Fetornar ao meu in{cio no além. Se Gordimer € margens dos versos satanicos, ou da — A Cama — um lugar de residéncia, | “estranhamento" da migragao e 0 barroco préprio do attista metropolitan, nova-iorquino/porto-riquenho, a Q ial encontra 0 do a natureza piiblica do evento 50% siléncio da palavra, pode ela perder sua compostura e fecha- mento hist6ricos? Nese ponto, farfamos bem em recordar 0 insight de Walter Benjamin sobre a dialética despedagada da modernidade: “A ambigiidade € a aparéncia figurativa do dialético, a lei do dialético paralisada."* Para Benjamin, essa paralisia € a Utopia; para os que vive, como eu descrevi, de outra forma” que no a modernidade, mas nao fora del © momento utdpico nao € o horizonte de esperanga obrigatsrio. ‘erminei esta argumentagao com a mulher emoldurada — a Aila de Gordimer — e a mulher renomeada —a Beloved de Morrison — porque nas casas de ambas irromperam grandes eventos mundiais — a escravidao € o apartheid —e seu acon- tecimento foi transformado, por meio daquela obscuridade peculiar 4 arte, em uma segunda vinds Embora Morrison insistentemente repita no fim de Amada, que “Esta nao é uma historia para passar adiante”, ela o faz apenas a fim de gravar o evento nos recdnditos mais profundo: de nossa amnésia, de nossa inconsciéncia. Quando a visibili- dade histérica ja se apagou, quando o presente do indicativo do testemunho perde o poder de capturar, ai os deslocamentos da meméria ¢ as indiregdes da arte nos oferecem a imagem de nossi sobrevivéncia psiquica. Viver no mundo estranho, encontrar suas ambivaléncias ¢ ambighidades encenadas na casa da ficgi0, ou encontrar sua separagio € divisao repre: sentadas na obra de arte, € também afirmar um profundo desejo de solidariedade social: "Estou buscando 0 encontro, quero 0 encontro... quero 0 encontro."

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