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SAIR DA GRANDE NOITE ENSAIO SOBRE A AFRICA DESCOLONIZADA Saba Mbauian A descolonizagao africana nao tera sido apenas um aco a superficie, o sinal acidente tumultuoso, um e: de um futuro a subtrair-se? No presente ensaio critico Achille Mbembe demonstra que ~ para la da destrui¢4o que muito afectaram o continer as independéncias - novas sociedades emergem, con cretizando a sua sintese a partir da reconsti distribuigao das diferengas entre si e os outros ¢ circulagao dos homens e das culturas. Ess crioulo, cuja trama intrincada e invariavel oscila inces santemente entre uma forma e outra, constitui a base de uma modernidade que o autor qualifica de «af politana Obviamente que é necessdrio desencriptar essas mutagdes africanas, confrontando-as também com as evolugdes das sociedades pés-coloniais europeias - designadamente a francesa, que descolonizou sem s¢ auto-d escolonizar - para acabar definitivamente com a raga, a fronteira e a violéncia que continuam arraiga das nos imaginarios de ambas as margens do Mediter raneo. Eis a condi¢ao para que o passado comum se torne, finalmente, num passado partilhado: Escrito num tom que tem tanto de moderado quanto de incandescente e muitas vezes de poético, o presen ncial do pensamente te ensaio constitu um texto e: pés-colonial em lingua francesa Copyright © 2013, La Découvert ‘Titulo Original: Sortir de a grande nut. Essa sur Afrique décolonisée © desta eaicao Edigbes Mulemba da Faculdade de Ciéncias Sociais da Universidade Agostinho Neto main Ensaio sobre a Africa descolonizada G RAN D E N Oo I ah E Coordenador da Colecsa: Victor Kajibanga ENSAIO SOBRE A AFRICA DESCOLONIZADA Tradugdo: Narrativa Tragada Revislo do Texto: Siva Neto Design e PaginagSo: Mércia Pires Se Achille Mbembe ISBN: 978-989-8655-31-8 Depésito Legal: 373106/14 Abril de 2014 {A presente publicagto é uma coedigio das Edigbes Pedago e das Ediges Mulemba ‘Ga Faculdade de Ciencias Socials da Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola. [Nenhuma parte desta publicaeio pode ser transmitida ou reproduzida por qualquer melo ou forma sem a autortzagao previa dos editores. Todos os direltos desta ediga0 reservados por EDIGOES MULEMBA Faculdade de Céncias Socials da Universidade Agostino Neto Rusa Ho Chi Minh, 56 (Caixa Postal 1649 LUANDA ANGOLA emulemba@esvan.a0 ‘emulembafesuan@yahoo.com br faclsouan@fes.uan.a0 faclsouand@yahoo.combr EDIGOES PEDAGO, LDA. Rua do Colégio, 8 3530-186 Mangualde PORTUGAL ‘Rua Bento de Jesus Caraga, 12 Serra da Amoreirs 2620-379 Ramada PORTUGAL eral@edicoespedagopt ttonwedicoespedago pt Coleccao Reler Africa Nota de Apresentacdo Uma das lacunas do mercado editorial dos paises de lingua oficial portuguesa é a auséncia, em lingua portuguesa, de obras de referéncia de autores africanos e africanistas, que fizeram catedra no dominio dos chamados “estudos africanos” nas academias dos paises angléfo- nos e francéfonos. A Colecgao Reler Africa pretende colmatar essa lacuna. Trata-se de uma colec¢ao especializada em tematicas africanas no dominio das iéncias Sociais e Humanas. Ao inaugurar esta colecco, as Edigbes Mulemba da Faculdade de Ciéncias Sociais da Universidade Agostinho Neto (Luanda ~ Angola) e as Edigdes Pedago (Mangualde - Portugal) pretendem criar um espago de debate, alteridade e reflexao critica sobre o continente africano. A-colecsao publicaré obras, textos e artigos compilados de reconheci- dos autores africanos e africanistas, que contribuam para a compreen- sdo e a reinterpretagao do continente africano. Além de apresentar uma visdo endégena (de dentro) do continente, acolecso esta aberta comunidade cientifica internacional que tem 0 continente africano como objecto da sua pesquisa. Publicar e divulgar conhecimentos e saberes sobre Africa e provenien- tes de Africa é, assim, um desafio que a colec¢io abraca, de contribuir para a construgao de uma nova epistemologia e uma nova hermenéu- tica dos estudos africanos no espaco lus6fono, livre de esterestipos e de um olhar folclérico ¢ exético. Ao abracar esse desafio, a coleccao pretende ser uma galeria de conhecimentos e saberes de Africa e sobre Africa, que interpele os leitores e investigadores especializados areler Africa para compreendé-la e reinterpreta-la. Luanda, 19 de Agosto de 2012. Victor Kajibanga (Coordenador da Coleco Reler Africa) Ao amigo Paul Gilroy, precursor do imagindrio. Eem meméria de dots pensadores do futuro ilimitado, Frantz Fanon e Jean-Marc Ela. «Aqueles que assentam cada vez mais longe do lugar onde nasce- ram, aqueles que guiam 0 seu barco para outras margens, sabem cada vez melhor o curso das coisas ilegiveis; e subindo os rios até a sua nascente, entre as verdes aparéncias, sao invadidos subitamente por esse brilho austero onde toda a lingua perde as suas armas.» Saint-John Perse, Neiges, lV, in Exil indice Prétogo Introdusto Oma séeulo Retomar sentido primitive dadescolonizagio Para onde vamos ne? emoeratizagio interaconalcago Novas mobiiagbes 1 to, Trajectérta de uma vida Fragmenta de mena ‘Areteigio raga ‘Aforga do simulate ‘Aastamento Nacrls dessa A partir do crinio de um ‘Abertura do mundo e ascensto em humanida ‘Domundo enquanto cena histrica ali ea Ubi: duae thas Ragae deseolonizag do saber Nascimento de um pensamento mundo A dup estrturade ncapacidade ede ignaranca m. Sociedade francesa: proximidade rem reiprocidade ‘O dectinio de uma nagaeeritalizads Ligadarotmponeado da raga Para.uma parina de singularidaese uma tes do reencont Suspenstoedicardancia dos tempos Conwulstes de expresses plurals (Querelasbizaninar Desejo de provinilzagao m0 Colonitimo e doonsaspstumas da meméria ¥ Atscasa.cara sem chaves Angas enovas carograllas O longing. longa distancia Informatizacao da economia dragio do pico DMltartamo e lmpem radian ‘Greutagao dos mundos: a experiencia africana Recomposiiessoisprofundas Later seals enovsexios de vida ‘Aropoitanismo pilogo {revista com Achille Mbembe Colontalismo e doengas péstumas da meméria v. Africa: a casa sem chaves Antigas e novas cartografias O longinquo e a longa distancia Informalizagao da economia e difracgao do politico Militarismo e lumpem-radicalismo vi Circulacae dos mundos: a experiéncia africana Recomposigdes sociais profundas Lutas sexuais e novos estilos de vida Afropolitanismo Passar a outra coisa Epilogo Entrevista com Achille Mbembe 131 141.163, 142 146 154 160 165.190 165 172 178 184 191.194 195.200 Prdlogo Ha meio século, a maior parte da humanidade vivia sob 0 jugo colonial, uma forma particularmente primitiva da supremacia racial. A sua libertagdo constitui um momento-chave na histéria da nossa moderni- dade. 0 facto de esse acontecimento nao ter deixado a sua marca no espirito filoséfico do nosso tempo, nao é, em si, um enigma. Nem to- dos os crimes produzem necessariamente coisas sagradas. De entre varios crimes da histéria, apenas remanesceu desonra e profanacao, a esplendida esterilidade de uma existéncia atrofiada, em suma, a im- possibilidade de «existir em comunidade» e de voltar a percorrer os caminhos da humanidade. Poder-se-é afirmar que a colonizacao foi precisamente o espectaculo por exceléncia da comunidade impossivel = uma convulsao tetdnica e simultaneamente um sopro vo? O presen- te ensaio s6 aborda indirectamente essa questo, pelo que a histéria integral e detalhada ainda esta por relatar. 0 seu objecto central éa vaga de descolonizagses africanas do século XX, Nao se trata de recontar a histéria, nem de fazer sociologia - e ainda menos de estabelecer tipologia. Esse trabalho ja foi feito e, salvo alguns detalhes, pouco ha a acrescentar: Tratar-se-d ainda menos de fazer 0 balango das independéncias. A descolonizacao é um acontecimento cujo significado politico essencial residiu na vontade activa de comunidade ~ como outros falavam antigamente de vontade de poder. Essa vontade de comunidade era o outro nome daquilo que se poderia designar por vontade de viver. Visava a realizacao de uma obra partilhada: suster-se asi prépria e constituir uma heranga. Nessa época de desilusées, mar- cada pelo cinismo e pela frivolidade onde tudo tem o mesmo valor, tais, palavras s6 poderiam ser alvo de zombaria. Todavia, na época, muitos estavam dispostos a arriscar a sua vida pela afirmagao de tais ideais que nao constitufam pretextos para se esquivarem ao presente ou a aco. Pelo contrario, como uma seta, serviam para apontar para o fu- turo e impor, pela praxis, uma nova redistribuigao da linguagem e uma 1. Ler a sintese de Prasenjit Duara (dir), Decolonization. Perspectives Now and Then, Routledge, Londres, 2004. nova ldgica do sentido e da vida. Numa tentativa de se erigir sobre os escombros da descolonizacao, a sua comunidade nao era entendida nem como um destino nem como uma necessidade. Pensava-se que desmembrando a relacao colonial, o nome perdido voltaria a assomar a superficie. A relacao entre aquilo que tinha sido, aquilo que acabava de acontecer e aquilo que estaria por vir, inverter-se-ia, tornando pos- sivel a manifestacao de um poder préprio de génese, uma capacidade propria de articulagao entre uma diferenga e uma forca positiva. Avontade de comunidade era reforgada pela vontade de saber e pelo desejo de singularidade e originalidade. Em larga medida, 0 discur- so anticolonial abracara o postulado da modernidade e os ideais de progresso, mesmo onde esbocava uma critica, independentemente de ser explicita (0 caso de Gandhi) ou nao. Essa critica era animada pela busca de um futuro que nao estava escrito de antemao; que associ- aria tradicdes recebidas ou herdadas, interpretacdo, experimentacao e criacao dio novo, sendo essencial partir desse mundo em dire¢ao a outros mundos possiveis. No cerne da analise jazia a ideia segundo a qual a modernidade ocidental fora imperfeita, incompleta e inacabada. A pretensao ocidental de epilogar a linguagem e as formas segundo as quais 0 acontecimento humano podia surgir, ou ainda de monopol zar a propria ideia de futuro, nao era mais do que uma ficsao. 0 novo mundo pés-colonial nao estava condenado a imitar e reproduzir aquilo que tinha sido feito noutro lugar.’ Dado que a hist6ria se produz sempre de modo singular, a politica do futuro - seth a qual nao haveria descolonizagao plena ~ exigiria que fossem inventadas novas imagens do pensamento e isso sé seria possivel se as mesmas se sujeitassem a uma longa aprendizagem das marcas e modalidades da sua inter- sec¢ao com a experiéncia, o tempo préprio dos lugares da vida.? ‘Amiscigenasao das realidades que prevalece hoje em dia invalidara tais proposicdes e desprové-las-4 da sua densidade histérica, ou até da sua actualidade? A descolonizagao - contanto que um conceito tao aberto possa efectivamente constituir uma marca - nao tera pas- sado de um fantasma sem densidade? Em dltima andlise, nao tera sido apenas um acidente tumultuoso, um estilhago a superficie, uma pequena fenda externa, o sinal de um futuro a subtrair-se? Sera a du- alidade colonizaga0/descolonizagao dotada de um tinico sentido? En- quanto fenémenos hist6ricos, uma nao se reflectird na outra, uma nao implicara a outra, como duas faces de um mesmo espelho? Estas so algumas das questdes que o presente ensaio procura analisar. Segundo uma das suas teses, a descoloniza¢ao inaugurou a era da bifurcacao 2. Dilip P. Gaonicar (dic) Alternative Modernities, Duke University Press, Durham, 2001. 23. Fablen Ebouss! Boulaga, La Crise du Muntu, Présence afriaine, Paris, 1977 s4 Aetna Sr du Grand ite Esl sare tn denote para infindaveis futuros que eram, por definicdo, contingentes. As trajectérias seguidas pelas nagdes recém-libertadas foram, em parte, consequéncia das lutas internas nas sociedades consideradas.* Essas lutas foram cinzeladas segundo modelos sociais antigos e estruturas econémicas herdadas da descolonizagao, em técnicas e praticas de governagao dos novos regimes pés-coloniais. Na maior parte dos ca- Sos, conseguiram implementar uma forma de dominagao que alguns qualificam de «dominacao sem hegemonia*». 0 ensaio é encetado com um registo deliberadamente narrativo e autobiografico (capitulo 1). Aqui se relata como comecou o momento pés-colonial propriamente dito, para muitos, com uma experiéncia de descentralizacaio. Em vez de agir como uma marca onusta que fora 0 ex-colonizado a pensar para e por si prdprio, e em vez de ser 0 palco de uma génese de sentido renovada, a descolonizagao ~ sobretudo nos pontos onde foi concedida ~ afigurou-se um encontro forcado consigo prépria: nao resultando, de todo, de um desejo profundo de liberdade, algo que 0 sujeito se permite e que se torna a origem necessdria da moral e da politica, mas uma exterioridade, uma enxertia aparente- mente desprovida de qualquer capacidade de metamorfose. De segu da, propde-se um percurso duplo. Os capitulos 3 e 4 tratam daquilo que se designa devidamente de «ocupante sem lugar», tal como acon- tece actualmente em Franca. Enquanto forma e figura, acto e relacao a descolonizacao foi, em muitos aspectos, uma co-producao de colonos e colonizados. Em conjunto, embora em diferentes posicdes, forjaram um passado. Mas dispor de um passado em comum nao significa neces- sariamente partilha-lo, Estudam-se os paradoxos da «pés-descolonizacao», numa antiga poténcia colonial que descolonizou sem se auto-descolo- nizar (capitulo 3). As disjungdes e ramificagbes dessa realizaco séo alvo de atengao no presente, especialmente por conta de uma aparente incapacidade para narrar uma historia comum partindo de um pas- sado comum (capitulo 4). Os capitulos 2 ¢ 5 versam sobre 0 que se considera o paradoxo cen- tral da descolonizacao: desdobramento estéril e reiteragdo seca, por um lado, e proliferagao indefinida, por outro (termos tomados de emprés- timo a Gilles Deleuze‘). Porque considerando uma certa experiéncia africana, um dos processos envolvidos no rescaldo da descolonizacio tera sido a destruigao, tanto vagarosa quanto caética, da forma Estado e das instituiges herdadas da colonizagao. A histéria dessa destruigao ainda nao foi inteiramente assimilada na sua singularidade. Agora, ‘Jean-Francois Bayar, LEtat en Afrique, Fayard, Paris, 2006 (198 5. Ranajit Guha, Dominance without Hegemony, Harvard University Press, Cambridge, 1998 e Par tha Chatterje, The Nation and ts Fragments, Princeton Unlversity Press, Princeton, 1993. 6 Gilles Deleuze, Logique du sen, Minuit Pais, 1969, p. 4 navegando mais ou menos livres, as novas nacées independentes - sendo, na verdade, enxertias heterogéneas de fragmentos aparente- mente incompativeis e conglomerados de sociedades de longa duragao = retomaram 0 seu curso, assumindo todos os riscos. Essa imbricacao = sucesso de dramas, rupturas inesperadas, declinios anunciados, sobre um fundo de uma astenia formidavel da vontade - prossegue, pelo que a mudanca ganha contornos de uma repeti¢ao, quanto mais longe a forma relampeja sem consequéncias, mais ainda a aparéncia se dissolve e mergulha no desconhecido e no imprevisto - a revolugao, impossivel No entanto, a vontade de vida persiste. Um enorme trabalho de re- construgao esta em curso, a qualquer prego, no continente africano. Os seus custos humanos sio elevados, chegando mesmo a afectar a estrutura do pensamento. Paralelamente, a crise pés-colonial, opera-se uma reconversao do espirito. A destruigao e a reconstrugao estao tio intimamente ligadas que, isolando-se uma da outra, se tornam pro- cessos incompreensiveis. A par do mundo das ruinas e daquilo que se designou de «casa sem chaves» (capitulo 5), esboga-se um continente africano que desenvolve a sua sintese sobre 0 modo da disjun¢ao € da redistribuigao das diferengas. 0 futuro dessa Africa-em-movimento assentara na forca dos seus paradoxos e da sua matéria indécil (capi- tulo 6). £ uma Africa cuja organizagao social e estrutura espacial esto doravante descentradas; que ruma simultaneamente para o sentido duplo do passado e do futuro; cujos processos dspirituais sio uma associagao de secularizacao da consciéncia, imanéncia radical (preo- cupagao com este mundo e com 0 momento presente) e de imersao no divino sem mediagao aparente, cujas linguas e sons passam a ser profundamente crioulos; que atribui uma importancia primordial a experimentagao; na qual germinam imagens e praticas de existéncia surpreendentemente pés-modernas. Essa Africa-gleba fara nascer algo de fecundo, um latifiindio de tra- balho da matéria e das coisas, capaz de suscitar um universo infinito, extenso e heterogéneo, o universo das pluralidades ¢ do lato. Esse novo-mundo-africano, cuja trama, complexa e mébil, oscila incessante- mente de uma forma para outra e afasta todas as Ifnguas e sonoridades dado que j4 nao se prende a qualquer lingua, nem na sua forma mais Pura; esse corpo em movimento, que nunca esta no devido lugar, cujo centro se desloca por toda a parte; este corpo que se move na grande maquina do mundo recebeu um nome - afropolitanismo ~ a Africa do Sul como laboratério privilegiado (capitulo 6). Joanesburgo, 4 de Agosto de 2010 0 presente ensaio é fruto de longas conversas com Francoise Verges. Retoma, por vezes, verbatim, reflexdes desenvolvidas no decurso da dltima década, abrangendo simultaneamente Africa, Franca e os Estados Unidos sob a forma de artigos publicados em revistas (Le Débat, Esprit, Cahiers d'études africaines, Le Monde diplomatique). apontamentos de aulas, seminarios e oficinas, ou contributos na imprensa africana e outros meios de comunicagao internacionais. Gostaria de manifestar 0 meu reconhecimento aqueles que suscita- ram, incentivaram, fomentaram ou acolheram essas reflexes: Pierre Nora, Olivier Mongin, Jean-Louis Schlegel, Michel Agier, Didier Fas- sin, Georges Nivat, Pascal Blanchard, Nicolas Bancel, Annalisa Oboe, Bogumil Jewsiewicki, Thomas Blom Hansen, Arjun Appadurai, Dilip Gaonkar, Jean Comaroff, John Comaroff, Peter Geschiere, David Theo Goldberg, Laurent Dubois, Célestin Monga, Yara El-Ghadban, Anne- Cécile Robert, Alain Mabanckou e lan Baucom, A obra foi escrita durante a minha longa estadia no Witwatersrand Institute for Social and Economic Research (WISER), em Joanesbur- g0, onde pude contar com o apoio dos meus colegas Deborah Posel, John Hyslop, Pamila Gupta, Irma Duplessis e Sarah Nuttall. Benefi- ciei também das criticas, no mbito do Johannesburg Workshop in Theory and Criticism (JWTC), dinamizadas por Kelly Gillespie, Julia Hornberger, Leigh-Ann Naidoo, Eric Worby, Tawana Kupe e Sue van Zyl. Francois Géze, Béatrice Didiot, Pascale Iitis e Johanna Bourgault, das Editions La Découverte, acompanharam brilhantemente 0 pro- cesso de preparacao do livro e nao hesitaram em partilhar as suas intuigdes Introdugao O meio século © colonialismo esteve longe de ser um fo de Ariadne. Uma esttua colossal perante a qual, emerosas ou fascinadas, as multidies se Vinham prostrar, © colenialismo paliava, na realidade, um imenso ais, Como uma carapaca de metal eravejada de esplindidas jéis, também rogava o Animal ea imundicie'. Braselro em foge lento dis: persando por toda a parte os seus ands de fur, procurava frmar-2e ‘Simultaneamente como rito e acontecimento; como palavra, gesto © sabedoria, conto ¢ mito, hmicidio e acidente.E, em parte, gragae A ‘sa fantistica capacidade de proliferagso e de metamorfose que faz ‘stremecer 0 presente daqueles que eseravizou, Infltrando-se até os ‘seus sonhos,preenchendo'os seus pesadelos mais medonhos, antes de thes arrebatarlamentos arezes" Por sua ver, acolonizagio no passou de uma tecnologia ou de um simples dlapositivo, nlo passou de am” biguidades. Fol também urn complex, uma trama de certezas, umas ‘mais lus6rias do que outras: a forga do falso. Fo cortamente urn com plexo némada,assumindo também, em multos aspectos, um earscter {xo im6vel Habituada a vencer sem ter razSo,exgia a0 colonizades ‘que mudassem as suas razdes de vivere, como se nao bastasse, que ‘mudassem também de razio sores em mutagio perpétua" fo ssi ue a Coisa ¢ a sua representasao suscltaram a resistacla daqueles ‘ue viviam sob o seu jugo, provocando simultaneamenteinsubrnissao, ‘edo e seducio e semeando esparsamentealgumasinsurgencias, ‘A presente obra dedica-se precisamente a essa descolonizaslo, lenquanto experigncia de emergéncia ¢ insurrelgto. Tata-se de uma Interrogasio sobre a comunidade descolonizada, Nas condigBes da ge Sn pn as a 20 ‘EAS en howe mt em 158 ea te $C nr cig he ay of rita aye ey ee ier or fein Rif te fo yn ae ed ‘Satatomise Rane tne am 1/18 2 época, a insurreigdo consistiy, em grande parte, mama redistribulgdo fds linguagens, nao sendo apenas um c4s0 no qual fol necessério ‘ecorrer is armas, Presos como se estiveszem sob 0 fogo de Paraclito, 2 diversos nivel, os colonizados, davam por sa falar varias Vinguas, fm vee de uma nica, Ness sentido, a descoloalzardo represents, historia da nossa modernidade, um grande momento de separagao © biturcago das inguagens. De agora em dlante, oh um orador nem Imediador Gnicos. Nao ha umm mestre sem contramestre. Nao hé univo lade. Cada um pode exprimit-se a sua prépria lingua eos destina- trios dessas palavras podem recebé-las na sua. Depots de desatados fos nds restart apenas uma Imensa linha, Para aqueles que se liber taram, descolonizar nunca sgnificou reproduzi, num momento dife- ‘ente, as imagens da Colsa ou dos seus substitutos. O desenlace pro- Curava sempre fechar o partntesie de um mundo composto por das Categorias de homens: por um lado, 0s sujetos que agem, por outro, ‘objector sobre ot quals se Intervém,Visava uma metamorfoseradi- ‘al da relacto. Os antiges coloaizados crariam entao 0 seu proprio ‘Tempo, constraindo o tempo do mundo. No terrigo das suas tradigbes ‘dos seus imagindrios, «arreigados a0 seu longo passado, poderiam, fo futuro, reproduri-se na sua propria historia que, por sa vez. era 2 ilustrayao manifesta da atria de toda 8 humanidade A partir de ‘nto, reconhecer-se-ia 9 Acontecimento como se tudo recomerasse. (poder da criago opor-se-ia.a0 jogo da repetigao imutve es forgas ‘que, no tempo da servidio,tentaram esgotar Ou encerrar a continu ‘ade, ou seje aquilo que Frantz Fanon refria, numa linguagem pro- ‘metiana, como a salda da wprande noite anterior & vide, enquanto ‘Aimé Césaire evocava o dessjo «de um sol mais brthante ede estrelas ‘mais purasy, Retomar o sentido primitivo da descolonizacao Sie da grande noite anterior & vida requetia uma iniiativa conse ‘ente da eprovinciallzagto da Europa». Segundo Fanon, era necessirio ‘oltar as costas a esea Europa que endo cessa de falar do homem, Imassacrando-o por toda a parte onde o encontram, em todas as iquinas das suas ruas, em todos os cantos do mundon.Relativamente essa Europa que nunes delxou de falar do homer, o autor acrescen- tava, esabemos hoje com que sofrimentos a humanidade pagou cada uma das vitérias da sua conseiéncla’s. Fanon nko propunha apenas Aue no se eseguisse essa Europa: propunha slargila» porque a sua tama tinha chegado o fim, Afirmava que tinha chegado 0 momento de passar a eoutra colsan Dafa necessidade de retomar a equesto do homemm, De que forma? Marchand, «todo o tempo, de noite ede da, ra companhia do homer, de todos os homens. Era isso que fazia da ‘comunidad descolonizada uma comunidade em movimento, uma co ‘mumidado de miitantes, uma enorme caravana universal. Para outros, ssa vasa companhia universal nao poderiaconcretizarse atraves de lam afastamento da Europa, mas sim dedicando Ihe um olhar stento Compassvo, restaurando suplemento de humanidade que tinha per ‘ide ‘Além da compilasao dos detalhes histricos, & necessirio que se saiba retomar as acepcBes prmitivas do aconteclmento que residem na prépria matéria da experiéncia colonial, nalingua, no verbo, noses- fritos, nos cinticos nos acts ena conscncla dos seus protaponistas, ‘na histria das insttuigdes de que se dotaram, tal como na meméria ‘que forjaram destes acontecimentos™. Enecessirio compreender que {2 Sublevagio (nomeadamente, armada) organieada para por termo 3 ascendéncia colonial e let da raga que a sustentava jamais teria sido possvel sem a produto consciente de um poder estranho por parte {9s insurgentes~ sublime iusto ou poder onica? ~ de uma poténcla vigorosa e incendiria, de uma estrutura de afectos construida com ‘aleulism e célera, fee oportunism, desejos e exaltasao, messianis, ‘emesmo de loucura,e sem uma tradupdo desse fogo em linguagem ‘em priis:a pranis da ecloso, do nascimento, da emergéncia O hori ‘zontetraduzia-se pela inversio das antgos vinculs de sujeicioe pela ‘ceupasiio de um nove lugar no tempo ea estrutura do mundo. Eca30 ‘0 longo dessa escalada até aos confine se impusesse un cruzamento com a morte, estara fora de questio morrer como uin rato ou outro fnimal doméstico, preso numa armadilha na capoeira, nas cavalaigas, ‘o estibulo, sob o martele ou, simplesmente, 4 queima-roupa'' Para multos agentes da época,tratva'se definiuvamente de um combate maniqueista®. Interpretagao da vida e preparagao para a morte, 2 lita pela descolonizagio ganhava muitas vezes contornos {de uma procriacao poétca. Para os herbis da luta ~ como relembra a canglo popular ~ exigla 0 seu proprio despojamento, uma incrivel Capacidade de ascese e, em alguns casos, ofrémito da emibriaguez. A lonizagio tinka agrithoado uma parte importante do mundo com tama imensa rede de dependéncia esupremacia. Em resposta, 0 con bate para aniqulléla ascumis uma esrala planetéria. Movimento de repotencializayio, fo imaginado por alguns como uma celebrasao da [Ubertagao universal, uma ascensio do homem ao mais ato grau das suas faculdades simbélleas, a comesar pelo proprio corpo, meneando ‘seus membros e a sua razao a0 ritma dos canticas da danga ~ £180 fstridentee superabundincia de vida. Assim se conferia ao combate “nticolonialistaa sua dimensao stmultaneamenteoniricaeestetica, ‘Cinguenta anos depois, quo vestigios, marcas e resquicios subsistem, dessa experiéncia de sublevacio, da palsio que a inflamou, dessa ten tativa de passagem do estado de colsa 20 estado de sujelto, da von- {ade de retomar a squestio do homems? Haverd, realmente, algo a ‘comemorar ou, pelo contrario, 6 necestario recomecar? Recomesar (qué, porqué, como e em que condigBes? Em que linguas,culturas f= palavras novas no eaos nebulso do presente? Se, al come relterara Frantz Fabon, a comunidade descolonizada se define pela sua relag3o com futuro, a experiencia de uma nova forma de vida e uma nova ‘elagdo com a humanidade® 0 que redefinirsentio o contesdo orig ‘nal para 6 qual deve ser criada uma nova forma? Se tivermos de em: Dreender novamente a extraordindria Viagem para um naundo novo, ‘Qual serdo saber que a concretizara? Em suma, como dar vida a uma ‘ora ext? Ou, visto trata-re de uma matérla aparentemente inert ‘ede um sujelto que se tornow pesado, sera necessario desintegra 1a ‘Simplesmente? E decorrido meio século, em vez de uma verdadeira reapropriar30 ‘do 1 mesmo eno gar da instAncia fundadora, oque se vé? Um bloc ‘aparentemente desprovide de vida que tudo representa, excepto a forma de um corpo viv e feliz que desvanece sob uma camada dupla ders ede fetches, Aiguns objectos cintlam no meio de um rio que ‘verte 0 Seu curso. no fundo de tudo, esto Jazidasilegives anda por ‘explorar Porque ests Atica rasgada e esventrada? Porqué essa plen- ‘ude esmagadora e esse ruldo que se antepde incessantemente ao su jelto que parece mergulhi-lo num estado inominavel” Eesse furor que tenvove a calma apareate das coisas, que s6escapa & sua genealogia fouda para se abater vetiginosamente no vazio? Quando se aleangard coisa wabalhaula? Entio, para onde varmos? Reposigio da autoridade aqui, multipartidarismo administrativo cold racos progressos passveis de ser revertida all, im pouco por toda a parte niveis extremamenteelevados de violencia sociale mes ‘mo situapbes de entumecimento de conflto latente ou de guerra aera, ‘Sobre um unde de uma economia de extracg¥o.que -etn linha directa ‘com a légica mercantilsta colonial - continua a susctar a predaca ‘assim se apresentao panorama. Na verdade, 6 um turblhao destruldor, Imponderado ou brusco, no meio de tantos desastres - a0 qual acres. ‘cem apoquentapdes intel, a lmprovisagdo eréniea, aindisciplina, a ‘spersd0, 0 desperdicio e um peso de indignidade, desprezo © hi milhago ainda mais persistentes do que na 6poca colonial. Na maioria los casos, os aicanos no dispiem sequer da possibilidade de eleger| livremente os seus dirigentes, Multos paises continuam A merct de ‘strapas, cujo nico objective consiste em finear-se a0 poder para 0 ‘resto da sua vida, Logo, a maioria das eleigdes sao vicladas. Prescinde- “se dos procedimentos mals elementares da concorréneia, mas nao do control das principals alavancas da burocracta da economia, sobre- tudo, do exireito, da polciae das miliias. Dado que quae no existe a possbllidade de derrubar os governos pelas urnas, 3 possivel ‘combater o principio da permanéncia indefinida no poder através hhomieido, da revolta ou da sublevario armada. Com a exstencla ‘manipulacdes eleitoralse sucessdes de pais para fihos vive-se, de fc: 1, sob chetaras dstargadas, Para onde vamos nés? Cinco pesadas tendéncias circunscrevem futuro, toldando 0 hor zonte imediato com um véu de tempestade. A primeira é suséncia de um pensamento democratico que serviria de base s uma verd 4oiraalternativa 20 modelo predadar em vigor, ura pouco por toda a parte. segunda éo retrocesso de qualquer perspectiva de revolugio Social radical no continente. A terceira 6 a Seniidade crescente dos poderes negros.Salvaguardando as devidas proporgbes, essa situaga0 fevoca os desenvolvimentos que prevaleciam no século XIX. quando, incapazes de usar a pressao externa em seu benefico, a maloria das ‘comunidades polticas se autodestrulu em guerras de sucessio inter- ‘minives.Aquarta 60 entumecimento de franjas inteiras da sociedade 0 irreprimivel deseo, de centenas de milhdes de pessoas, de viver em qualquer outro lugar do mundo que ndo o seu ~vontade generalizada de fuga, abandono e deseryao; rendncia da vida sedentaria aim: possibilidade da existéncia de uma residéncia ou local de descanso. ‘Acstasdindmicas estruturais, unta-se outra a institucionallzasso das Puiticas de extorsdo da predapio, convulsbes abruptas, insurreigOes Taterminivets que, a dado momento, se transformam facilmente na fgucrra de pilhagem. Esse tipo de lumpen-radicalismo ~ na verdade, ‘falencia sem projecto politico alternativo ~ ndo € envergado apenas por acadetes soiais, de entre os quais as ecriangas-sokdado» ou 05 [issempregadoss dos balrros de ata constituem simbolos tigicos. Esse tipo de populismo sangrento também ¢ mobilizado, quando ne: cessirl, plas forgas sociat, que, tendo colonizado o aparelho de Es {do,o converteram no istrumento de enriquecimento de uma classe ‘us simplesmente, num recurso privado, ovainda numa fone de agar iparcamentos de todos os glneros, Correndo @ risco de utilizar 0 Es: tado para destruir o Estado, a economia e as institukdes, essa classe ‘std dloposta a tudo para conservar 0 poder, pelo que, aos seus ols 5 politica nao passa de um modo de conduair a guerra civil ova ta fxnicae racial por outros meios ‘Mas @ no plano cultural edo imaginério que as transformardes em curso estto mais acesae Arica detxou de serum espacolimitado,cuja Tocalzagao se pode dent, ou que ocultaria no seu tntimo um segredo ‘ou umm enigma, ou que se possa circunscrever. O continente continua {serum higar porque, para muitos, ainda é um local de passagem ou de teansto frequente. & um lugar que se desenvolve em torno de ura tmodelo némada de transi,lo, de errincia ou silo, A sedentarizagao Conde tornar-se a excepto, Os Estados, onde existe, so ns mals 8 Ions justapostos que se teitam contornar;esealase locals de pas- ‘ager, ou aja, uma cultura da Kinerdncia ~ sobretudo para aqueles {uecestio a caminho de outras paragens. Contudo, quantos obstcu- Tos ealstem agora para ulerapassar, num mundo cercado de tapames © Coraado de muraihas. Para millioes de pessoas como essa, lobalizag30 into representa o tempo iflnito da crelacto, 6 o tempo das cidades fortificadas, campos ¢ arames farpados, ceeas © enclaves, fontelras {que se interpoemn« que, cada ver mas, servem de obsticulo ou pedra fumolar-a morte desenhada sobre a poeira ou as ondas; onde jaz 0 Yvarlo 0 corpo-objecto largado, Agora, Africa encontra-se maioritart~ “tmente povoada por potenciais transeuntes que ~confrontados com a pilhagem,indmeras formas de gandneia, corrupg3o e doenga,pirataria hnultas formas de viola ~ esto dispostos a deixar a sua terra na tolrna esperanga de se einventarem e de erlarem ralzes noutro lugar ‘Aigima cosa est a brotar borbulhando, violentamente. da roda que Consttu a desagregacio das oryas vvas do continente, da fuga forea- ‘da face A terrivlalternativa fica allem plena seca e correr o risco de Se transformer em simples carne humana ou abalar para outro lugar, partir correr todos 0s riscos. Essas observagbes dsperas nao signiicam que, em Africa. nfo existe rnenbuin aspiragao 388 lberdade e 20 bem-estar& difell a ease de sjo encontrar uma linguagem, prileas efectivas e, sobretudo, uma tradugio em novasinstitugoes e uma nova cultura politics, na qual Ita pelo poder } no é um Jogo de soma zero. Para que a éemocracia se enrafne em Africa, deve ser apoiada por lorgas socials eulturals ‘fgantzadas; institugoes e reds resultantes da genialidade, da eria- tividade e,sobretudo, da lutas dlaras das proprias pessoas e das suas propras tradicoes de solidariedade. Mas sso nio & suficente. Tam- bbém é preciso uma Idela da qual Africa seria. a metafora viva. Por isso, rearticulando, por exemple, a politica eo poder a volta da critica das formas de morte ou. mals precisamente, do imperativo de alimentar as ereservas de vidas, pader-se-ia abrir caminho para urn novo ypensamento da democracia, num continente onde poder de matar [Permanece mais ou menos limitade, e onde a pobreza, a docnca © 05 pperigos de todos os tipos tornam a existincia incerta e preciria, No undo, tal pensamento deveria ser uma coa)ugarao de utopia © prag: rmatismo. Por necessidade, deveria ser um pensamento do que esta para ur da emergincla eda insureigio. Mas esc insureigao deveria fe muitoalém da heranga das lutas anticolonialistas e ant-imperiallstas ‘jos limites s80 agora evidentes, no Ambito da mundializagzae ate. {endo a0 que se passou desde as independéncias. Entretanto, tr factores deisivos atrasam uma democratizag3o do continente. Em primelr lugar uma certa economia politica Em seu ‘da um cert Imaginrio do poder, da cultura eda vida. E, por fim. es- ‘ruturas socials eno trago proeminente éa conservacio da sua forma aparente e das suas antigas mascaras, transformando-as profunda incessantemente, Porum lado, a brutalidade das constrigdes econdm: ‘cas que os pafses africanos viveram no dltimo quarto do sé. XX € ‘que prossegulu sob a égide do neoliberalismo ~contribulu para fabr: ar uma multiddo de egente sem partes, cua apariglo na cena pblica ‘Se eectua cada ver mals soba forma de tumulko ov, plor. de matanes fem ataques nendfobos ou lutas éinleas, sobretudo, no seguimento de ‘legdes fraudulentas, no ambito de protests contra o custo de vida, ‘ou ainda no contexto das guerras para aambarcamento dos recursos escassos. Na maioria desclasificados dos bairos de lata, destituldos de escolarizagio, privados de qualquer hipétese de casar ou fundar ‘uma familia, s30 pessoas que, objectivamente, nada tm a perder e {que além disso, do ponto de vista estrutural estio mais ou menos 20 AAbandono condicdo da qual na matoria das vezes s6 podem escapar Tecorrendo & migrasso,8 criminalidade ea um sem numero de legal- dudes. uma dasse de «supérfuoso perante os quaiso stado (onde existe), ‘© 0 proprio mercado, nio sabem coma actuar, pessoas que nfo po: ‘dem ser vendidas como escravas, como sucedeu. nos primérdios do ‘apitlisme modern, nem submetidas a trabalhos forgados, como na {oes colonial e durante © apartheid, ou depositadas em insttuicdes peniteneirias, semelhanca dos Estados Unidos. Do ponto devistado apitalismo, tal como funciona nessas regies do mundo, representa ‘ame humana subjugada 3 lel do desperdicio, da violéncia e da doen ‘a, entregues a0 evangelismo norte-americano, ds crvzadasilimiess {3 todos os tipos de fendmenos de feitigara eclarividencia, Por outro lado, a brutalidade das constrigbes econémicas também desproveu o projects democritico de todo 0 conteddo, redusindo-o a uma simples formalidade - um artificlo sem sentido « um ritual privado de efics ‘a simbolica, Acrescendo ainda a tudo Isso, come se Sugeriaanterior- mente, ineapacidade de abandonar o ciclo de extracgio e predagio ‘Que, segundo a histOra, antecede a colonizagso.Essesfactores, anal ‘Sados no seu todo, influenciam significativamente os contornes do ‘combate politica em multos palses pds-colonials. ‘A esses dados fundamentals junta-se 0 acontecimento que ter sido «a grande difraceio social, que surge no inicio da década de 1900. Essa difaceio da sociedade susetou, um pouco por toda a parte, uma ta- Formalizagao das relagdes socials e econdmicas, uma fragmentacio sem precedentes em matéria de regras e normas, ¢ um processo de Aesinsttucionalizaeio que nfo poupou nem o proprio Estado. Provo ‘cou igualmente um grande movimento de deserg30 por parte de mu tor agentes sociais, abrindo caminho anovas formas de lta social ~ na base, uma lta sem pledade pela sobrevivencia centrada no acesso aos recursos essenclals: no topo, a corrida& privatizagao, Actualmente, 0 blrro de lata tornou-se o ponto nevrdlgico dessas novas formas de ssecessbes» sem revolugio,altercapées aparentemente anénimas, de {ipo molecular e celular e que combinam elementos da uta de classes, {da luta de ragas,dalutaétnica, de milenarismosreligiosos ¢ das lutas de feitigaria. ‘Quanto ao resto, a faqueza das oposigses ¢ conhecida. Poder © opotigao operam em funsie de um breve periodo, marcado pelo im- proviso, acordos pontuats e Informals, compromissos e comprome- timentas dversos, imperativos de conquista imediata do poder ou a rnecessidade de o conservar a todo o custo. A allangas S20 constante- siente urdidas e desfeltas. Mas, acima de tudo, Africa continua a ser ‘uma regio do mundo onde o poder, de qualquer tipo, sob a chaneela do sétrapa, se reveste automaticamente de imunidade. Com efeitos ‘coisas #30 simples. 0 poderio uma elem si mesma. Em multos cases, ‘essa lel 6a da extrace30 ¢ do agambarcamento e, eventualmente, do ‘homicidi Uma estrutura pesada, estagadora e nodosa, a sua fangs ‘consiste em estabelecer um lago finebre entre a vida e 0 medo. Ao {omar 4 morte pela vida ¢ a9 manter ambos os termos unidos nama Felagio de troca, to infernal que & quase permanente, pode assim Fenovar discricionarlamente, os ciclos predatérios com que cada wm ‘entera, cada we mais profundamente 3 Africana regio dionislaca a ‘Que Bataille chamava a «despesay, Democratizagao e internacionalizagao A descolonizagio de ATrica nto foi meramente uma questio af ‘cana. Tanto antes, quanto durante a Guerra Fria, fol uma questo in- ternacional. Muitas poténcias externas 56 a aceltaram a contragosto, ‘Algumas opuseram uma recusa, por vezes militant, 20 imperativo ‘de uma descolonizapao a par da democratizagSo ou, como aconteced na Africa Austral, um grau significativo de desracializagao. No seu dominio, a Franca das décadas de 1950 e 1960 recorreu, sempre que hnecessiro, eorrupsao e ao hornicidio". Ainda hoje ¢ reconhecida, ‘com ou sem razdo, pelo seu apoio mais tenar, retoreidoe indefectvel ‘is strapias mals corruptas do continent eprecisamente aos regimes ‘que voltaram as costas a causa africana. Existem duas azdes para ta: por um lado as condigbes historias segundo ax quals se eectuaramn a Aescolonizagaoe o regime das capitagdes que cimentaram os acordos desiguais ade cooperagio e de defesay, celebrados na década de 1960; por outro, volatldade revolucionaria,aimpoténcia ea desarganiza ‘0 das forgas socials internas. Os acordos secretos ~ nos uals detsr- Tinadas cliusulas versavam sobre o dire de propriedade da terra, do subsolo e do espago aéreo das antignscol6nias ~ no inham por objective destzerolago colonial mas contratvalizsloesubcontrata-o ‘205 procuradores indigenas: Longe de serem meros brinquodas nat ‘mos de um prestiigitador os dltimos dispunham de uma relativa a tonomia da qual souberam tirar partido. ponto de trem constituido, tum século mals tarde, uma verdadelra selasses com tentéculos agora ‘wansnacionais Talver 0s Estados Unidos nBo se oponham activamente & democra: ttzapdo de Alrica. O cinismo, a hipocrisia ea instramentalizagao #40 largamente suficientes ~ a0 passo que, pondo de parte moralism, ‘evangelismo e ant-intelectuallsmo, mulas nstulgoes privadas mer fanas oferecem um apolo multiforme & consolidasso das socledades Fear et Cr ee detain Cay, Pt 196 civisafricanas. Um facto crucial do primo século seré a presenga {dz China ~ poténcia sem Idela ~ em Aftica Se no for considerada lum contrapeso serd, 29 menos, um expediente na troca desigual, to ‘aracterfstica das relagBes que o cantinente aficano mantém com as poténcias ocidentais © as instituigbes financeiras internacionals. Por ‘enquanto, a relayo com a China ndo foge ae modelo da economia de ‘extraceie - modelo que somado a predagao, consttul a base materi- A das tiranias nogras- Por consepuinte, nao & de esperar que a China ‘enta 3 constituif uma grande ajuda nos combates a travar em nome {da democracia. A influéncia de outra poténcla em ascensao, a India { por or, irriséria ndo obstante a presenga na Africa Oriental e Aus: tral de uma diaspora solldamente estabelecida. Quanto Africa do Sul festa nto pode, por sis, promover a democracia em Africa pois 0 ‘iepde de meins,vontade ou eratvidade. Além disso, primetramente terd de consolidar a sua democracia antes de pensar em promové-la no estrangeir. Face 8 ausincla de forsas socials internas eapazes de impor. se ne cessirio pela forea, uma transformacio radical das relagbes socials © ‘econdmicas,énecessirioimaginar outras vias para um possivelrenas- ‘imento, Sera longas e sinuosas. Todavia, as linnas de pressa0 roul- tiplicamse, ainda que se faam acommpankar de formas perversas de es y" Maito em breve, sera necessario abandonar essa [ternative erversafugir ou perecer. Dever-se-achegar a uma espe ‘ie de «New Dealy continental egociado colectivamente pelos diversos Estados africana: e pelas poténcias internacionals ~ um «New Deal» ‘em prol da democracia e do progresso econdémico que Vila a com pletare encerrar definivamente © capitulo da descolonizagao. Mais {de um século apés a famosa Conferéncia de Berm, que inaugurou a partitha de Africa, esse «New Deals seria complerentado por um pré- Ino eonémico para a reconstrugio do continents. Mas seta também ddotado de uma vertentejuridicae penal, de mecanismos de sano, e até de excusio, cuja implementasao seria forgosamente multilateral ‘que poderta tr buscar a sua inspiragao as tanoformagoes recentes {do direto internacional. Isso implicaria que, no caso dos regimes cul- ppados de crimes contra os seus povos, esses pudessem ser depostos [egitimamente pela forga e que os autores desses crimes fossem per _seguldos pela jastiga penal internacional. A propria nogao de «crimes ‘contra a Humanidade> deveria ser objecto de uma interpreta alar- {pada que inclufsse no 6 0s massacres as vilagBes graves dos direitos hhumanos, mas também os actos graves de corrupgao e ithagem dos recursos naturals de um pas. £ Sbvio que agentes privados, locals ou {nternacionais poderiam igualmente rer visados por tas disposigbes. E nesve nivel de profundidade histarica e estratogica que importa ‘agora considerar 2 questio da descolonizagso, da democratizagao © {do progresso econsmico em Africa. N3o ha dvds de que a democrs tdzagio de Attica & essencialmente uma questio africana que pass ‘evdentemente, pela constituigso de forgas socias capazes de a fazer hascer. apolar e defender. Mas éigualmente um assunto internacional Novas mobilizagées No meio século que se segue, uma parte da fungi dos intelectuais, dos individuos do mundo da cultura ¢ da sociedade civil africana con “sti justamente-em, por um lado, contribuir para a onstituicao ‘dessas forgas partindo da base e, por outro, em Internacionalizar a squestio de Africas, em linha com os esforgos dos ultimes anos para partihara segurangaeodireito internacional e que assistiram 40 apa Fecimento de instinclas Juridicas supranacionals Sendo igualmente fnecessirlo superar a concepslo tradicional da sociedade civil herd td directamente da historia as democracias capitalists. Por um lado, & precio contemplar factor objective da muluipieidade social ~ mul- Uuplicidade das Identidades, dependéncias, autoridades e normas ~ & ‘ partir dal, tmaginar novas formas de luta, mobiizagao lideranga. Por outro lado, a necessidade da criasdo de uma mais-aliaincelectal ‘nunca tinha sido tao premente Essa malsvalla deve ser reinvestida hhum projecto de transfermasao radical do continente. A sua eriagio ‘nie serd.uma inilativa exclusiva do Estado, seri a nova missao dasso- Cledades civisafricanas Para concretissla,seranecensdro abandonar ‘ldgiea do humanitarismo a todo o custo ~ ou seja, da urgenciae das nnecessidades imediatas que, a ao momento, colonizou o debate em torne de Arica. Enquanto nao tiver sido abolidaalpica da extracg30.e da prodagdo que raceriza 4 economia politica das matéras-primas ‘em Africa ~ ¢, com ela, os modos exstentes de exploragao das rique- {238 do subsoloafriano ~ poucos progressos se registarao. tipo de ‘apltalismo que increments essa logic alia maravilbosamente met- antlismo, agitagdes polfticas. humanitarismo e miltarismo. As suas premissas eram perceptiveis na época colonial, com o regime das Sociedades concessionirlas. Ora tudo aguilo de que necessita para funcionar € de enclaves fortficados, cumplicidades frequentemente ‘riminosas, no seo das soctedades locals, do minim possivel de Es- ‘ado eda indiferenca internacional [A descolonizagio sem a democracia 6 uma forma de reapropriagio de si mesmo, fcticia e muito lastimével. Mas, se or Alricanos alma, ‘a democracta, entio compete-Ihes imaginar os seus contornos © as- sumir responsabilidades: Ninguém 0 fars em seu lugar Também no ‘a conseguirio obter a crédito Terao de recorrer a novas redes de soli- dariedade internacional, a uma grande coligagio moral superior aos Estados que retina todos aqueles que acreditam que, sem sua parcels ‘Airicana,além de 0 nosso mundo ser ainda mats pobre em esprit ‘e humanidade, a sua seguranca encontrar-se-3, mais do que nunca, iravemente hipotecada, SAIR DA GRANDE NOITE ENSAIO SOBRE A AFRICA DESCOLONIZADA. Achille Mbembe i A partir do cranio de um morto. Trajectérias de uma vida s+] deve pensar-se a noite do mundo como um destino, que acon ‘aquém do pessimism e do optimismo. Talvex se aproxime ‘agora a nolte do mundo da sua meia-note. Talvez aera do mundo se or completo um tempo indigente. Por outro lado, pode ser que io, sempre ainda nfo, apesar da necessidade inco- rome, apesar da caréncia incestante de descanto e de pz, apesar da fusdo crescente.» Assim dlscorre Heidegger num texto inctulado "te, ao longo do qual analisae desenvolve a elegia de ‘Vino, procurendo especialmente dar uma resposta A sequinte questo: «E para qué poetas em tempo indigente?» Uma ver ‘que'o stempo indigenter se afiura longo, Heidegger considera que ‘mesmo o horror, «tomado como causa possivel de wma viragem, no & apar de nada enquanto nso se proporcionar ima viragem nos tor fais». Ora. prossegue 0 flésofo, nessa viragem s6 se dard quando os ‘mortals eneontrarem a sua propria essGneian.E conclul er pocts fem tempo indigente significa: cantar, tendo em atenglo o tempo dos ‘Seuses foragidos, partir da eesséncia indigente da era, nfo obstante ‘facto de equanto mals a nolte do mundo se aproxima da sua mela noite tanto mals hegeménico ¢ 0 dominio da in de tal modo {que subtral a sua easénclan, eos seus tras sed ‘Mas também nie se pode obscurecer o individu celebrando a bele 2a do mal eas mitologias que procuram justamente areyimentar es Dirito, tl como fez e proprio Heidegger na sua referéacia ao projecto hati Também é necessério resist & cumplicidade t saber para onde se encaminha o nosso canto, «4 no edestino da noite de mundo, Fragmento de memoria Juno. Nase! afortunadamente num dia de Julho, 0 més se aprox ‘mava do fim, numa regio africana 3 qual fol atribuldo, tardlarvente, 0 ‘nome de «camardes», em homenagem A admiragao que se apoderou dos naveyadares portugueses do século XV quando, 20 subirem 0 110 znas cercanias de Douala, se depararam com a presenca de uma mult plieldade de crusticeos e baptizaram local de «Rio dos Camarses™ Gresci a sombra dessa regito desprovida de nome préprio pois, em certo sentido, o nome que ostenta &fruto do espanto de ue outro ~ tratar-sede um equivoco de ordem lexical? Nacereadura de uma das varias lorestas do sul, passei muito tempo & sombra de uma aldela ‘Cujo nome no tem nome - multe tempo sombra das uss historias ¢ da Sua gente da qual ainda preserve a memoria, assim como de quer {aleceu durante a minha adolescEncia ou pereceu posteriormente na ‘minha auséncia, dada a minha partida.Ainda sel os seus nomese con tg ver os seus rostos. Anda ougo rufar dos tambores anunciando | passagem deste ou daquele deste mundo para o outro. Tata-se da plavra certa, spascagent pois era essa que a minha mie utllzava para evtar pronunciaraterivel Oura, a «mortem. Tudo isso vivencel nessa aldein Recordo-me também dos lutos e das exéqulas, das histérias que se ‘contavam nessasocasides: sobre este ou aquele cua sombra num dia {eslambrance fol avstada nos campos onde essa mestna pessoa cos: tumavatrabalhar. E sobre o menecma de outro que se engtew das en: tranhas da terra para prosseguir com os passeios, cortar a madeira ferair o vinho de palma, visttar a sua casa calda a note, refazendo Sssim o caminho sempre inconcluso que, desde tempos imemoriais, suposto culminar na morte e vice-versa, numa espeéce de epifania ‘migea que encandeava por completo o meu esprtio de medo ede extase Distingo os tmulos sob o anteparo das habltagdes, ou na belra da es trada bem como nesse cemitérioabandonado, no coragio da aldeia, ‘mesmo diante da concesso do chef entre as drvores e uma ou duas palmetras denuncando 0 fardo do tempo, junto dos coquelros e da ‘pela, © onde, um dia, 0 Caterpillar que levava a cabo az obras dere ‘construcdo da estrada acabou por abrir uma sepultura, desordenando ‘amas veh ossadas,dispersando-as e arrastando-as pela ala, quais objectos perddos,atirados& frente dos noss0s olhos, como farrapos. ‘Também exstiam rituals, designadamente as vigillas que se proton szavam por nove noltes e, por vezes, mal, pols era costume proteger ts cadéveres acabados de enterrar contra sakeadores e vendedores dle ossadas humanas. Eram noltesassustadoras ~ garanto ~sobretado {quando os ces comesavam a ladrar, ou uma chuva torrencia ou um ‘exerci de formigas selvagens se abatlam sobre. aldea, importuns {00 sono das gallnhas, brigando os carneiros. as cabras eos cabeitos 8 cabriolar cada vex mals alto, rasgando 4 escursdao com relampagos terrificantes, « fazendo.a memériarecuar Tonge no tempo ate avs dias anteriores a cvilzagdo, Lembro-me da escola da missio catlica,stuada entre a igrela © © ‘ispensirio, n3o muito distante do cemiteria por tras das mangueiras ‘0 rente da bananeira, no qual repousavam corpos num numero que ‘sempre desconheci, sob as pedras tumulares que se assemelhavam 3 ‘uma infinidade de timutos mais ou menos reclineos, mas na rea dade dispersos no espago sobre a encosta de uma espécie de colina jinto & qual coria um pequen rogate. Por vezes,assomada a tarde ‘enquanto se consumava a noite, vagarosa e estrelada, imaginava es ‘ss sepulturas que via em pleno dia durante um jogo de fatebol dos ‘hunos.Sllenclosamente, interrogava-me como poderia alguna vez arquitectar um discurso sobre essas sepulturas, com o seu talhe to Fessequido sob a foe do sol, to visivel por conta da sua cor ocre, fessas Sepulturas de tal forma envoltas na‘sua sombracilindrica que ‘me impregnavam de melancolla, tristeza e pledade, como se, ji nessa “altura, o pasado estivesse perdi, o infnito do céu tlhido,e oftm do ‘mundo desprelta ‘Ainda hoje, depois de tantas outras marcas, nao tego explicagdes 50 bre o como eo porqué do presente texto vertiginos,refiro-me aquilo {que nos atinge a todos e que se designa de morte, coma tudo se tornow to indissoctavel desses dias de transumincia, nas paragens da minha sdolescéncia, e da meméria errante que conservel. Sempre me eludia ‘motivo pelo qual escuridao da noite- mascara opaca e,no entanto, ‘tio penetravel - me imbula, todas as veres, de um medo indescritvel ‘com a sua legizo de pirilampos sobre os quais se dizis repetidamente ‘Que, em cada um, germinava um fantasia, com o3 seus cantios lig ‘bres de mochos entretidos, conforme nos contavam, a devorar a carne ‘dos outros, esses cinticor de sabor enferrujad,salgados das corrup ‘es da feltiaria, essa espécie delapidagto, de exaurimento perverso ‘ desmesurado, que resistia aos destrogos do dia e as eras da mundo, ‘como. crinio das cavernas. Dezembro, Todas a8 noites, © nevociro abatia-se sobre 0 mato e, chegada a aurora, banhava os veredas, quals navies rebentades, en turralados na ribanceira Era o prenincio do Natal outra sequéneia do ‘alendirio cristo, dado que, para muita gente dessa aldela as endas Sibilantes do cristianismo se haviam transformade, pelo menos a par. lurda década de 1930, ness labirinto de todos o= possiveis gragas a0 {qual o proprio horizonte era recoloeado ao alcance do nosso esprit, ‘Tambémm havia as Pascoas,antecedidas, anualmente, pelo Domingo de Ramos e por vas-sacras tnfindaveis: a Quaresma, como &evidente, ‘oragio, a peniténcia, os cinticos monétonos de idosas proferindo 0 Stabat Mator a meio da tarde, as extorze estagbes, a cruclficagio ¢ 4 Sepultura, Judas Platos, 0 Gélgota ea Ressurrekio No era devoto. Porém. o crucifixo suscitou a minha curfostdade durante um largo pertodo de tempo. De fact, enquasto 0 homem e>- tava pregado na cruz profundamente abalado pela dor. sede. 0 sof mento ea febre~ pelo menes assim o imagine - nao entendia porque Cristo nao estavatransfigurado de tanto padecimento, porque o sup slado, sujeito a essa tortura monstruoss, mantinha of seu sentidos Inalteradas, porque nao sueumbia no sewestremecimento, porque nie se prostravae se entregava & loucura, porque, nesse horror supremo, ndo estavam os seus ois esgazeados e exatridos, porque no cho- ‘Fava, porque ndo estavaireconhecivel edesfigurado, pore emanava seu rosto serenidade a ponte de esborar um sorriso, a ponto de femanar essa espécie de luz migiea que conferia sa croa de espinhos sua imagem um ar too, correndo 0 risco de fazer da sua morte edo ‘Seu nome epitetos vulgares? "Ngo sabia como lidar com 0 crstanismo até que, muito tempo de- pois, numa tarde, na biblioteca dos padres dominicanos, peguel quase ‘por acaso num ivr da autoria de um tedlogo peruano, Gustave Gutier Fer, intitulado Théologie dela Nberation: 0 autor ajudou-me a tepen- sar o crstanismo como meméria elinguagem da insubmaiso, como narrativa da lbertar3o e igac30 a'um acontecimento,seja de ordem simbslica,hiperbslica, mites ou histérica =a morte ea ressurreigao de um imei naseido em Belém e crucificade pelo poder pablica no Gélgota, apés um calvérioespinhoso. Ajudou-me também aconcebé-o ‘como um Felato critica dos potentados e das autoridades, una posta social, um sonho subversivo e uma recordagio posit, a actuagho de ua linguagem (literal fgurada) sobre o sentido da vida, Pore, fez-me ainda compreender que 9 alem da morte merece ser pensado ‘enquanto tal, come anterior qualquer estincia do mundo hstérico, No decurso desses anos, assim se aprofundou a existéncia como tum horizonte de areia,envolto numa turba de signos tanto eldmeros ‘quanto eternos. Desde que me lembro, nunca deseje enlevar os diat que, na altura, ndo pareciam seguirse.em stropelo ~ enterri-los em livros antigos ou mesmo encarcerd-los no tempo que, desde da. avan- ou sem cessar, de tal modo que, partindo do pressuposto de que hoje um recomeso de tudo, me pergunto se realmente trarei provelto de "aman re: ape rt aan ia Bn, 97 cada um desses enigmas, mais do que outrora. Ora, esses aspectos S80 apenas uma parte infima, um fragmento de imagens a respeito de um ‘passado cujossinals so tio numerosos, os resvalamentos to furtivos, ‘Que qualquer relato perde necessariamente a sta garanta, ¢ o esquct- ‘mento e 0 nto-dito acabam por prevalecer. Crest nessa repiao sobre ‘qual haveria ainda muito para dizer. Quanto aquilo que me serve de ‘dentidade, devo-o em grande parte As minhas vivencias esse pais 2 {cua meméria me refiro sempre, 0 mais proximo possivel do lugar que ‘me viu nascere das sas inquletagdes, Depels, um da, part Arefeicao tragica ‘Uma ver que nase no resealdo das independéncias fem larga me- dida,fruto da primelra idade do pés-colonialismo - da sua Infancia eda sua adolescéncia.Cresci em Aftica& sombra dos nacionalistmos ‘riunlantes. Nessa época. a divida, 0 ajustamento estrutural, o desert ‘prego em massa, a grande corrupelo e a grande crimiaaidade, 23 fapinas e mesmo as guerras depredatérias praticamente ni fariam parte da vida quotidlana ~ ou, pelo menos, «seu grau de Intensidade ‘do era igual a0 dos dias de hoje. Mais concretamente, no meu pals. natal, tratava-se do combate contra o que se designave ia gpoce de stebelifo» ede werrorismos, ‘S6 depots da Segunda Guerra Mundial, curgia um movimento ant- ~ representava o mals alto custo. Dispinhamos da nossa Robben Island - Mantoum e Tholl- ‘é,porexemplo.onde alguns estiveram duas, ou mesmo ts déeadas ‘no mais absolute dos anonimatos. As les draconianas que remontam 5 Gpoca colonial permitiam, de facto, suspender 0 direito a qualquer ‘momento e instaurar o estado de emergéncia a fim de «cortar pela ‘ales qualquer tentativa de rebelito ede «neutrallzar os pescadores fem dguasturvas», Sabemo-lo bem: por mals que se sea independente, ‘no s pode descolonizar tude a0 mesmo tempo, Afastamento ‘Actualmente, no sei como lograremos passar da palavra 3 acao, atendendo a esse astimavel teatro do poder Delxelo pals multocedo [2m pape Caron an ep ne arama ec pr ‘nth Given santana oneamsac nunca mals regresset- pelo menos, para viver ou trabalhar Inilel '9s meus estudos universitirios no meu pats ¢ conchitos em Paris, Ssemelhanga de outros que rumarar para Londres ou Oxford. Desde a época dos Fanon, Csairee Senghor sempre fo assim. Durant alguns anos, percorriassiduamente esses lugares: os anfitatros, os museus. ‘slivrarias, asbibllotecas os centro de arquivo, ox concertos, ss rua ‘coscafes. Lie aprendi com os mestres da paca. Num contacto estreito ‘com as pessoas proporcionado pelas minhas viagens. deparetme com ‘um pals antigo orgulhoso,conaciente da sua histria~evidenciando, aliés, uma propensio para glonfici-la a todo o momento - e particu larmente caso das suas tradl,Oes. Sem seu contributo no limbo da ‘Mosofa, da cultura, das artes da estétea, o nosso mundo sets indv- bitavelmente mais pobre em espiito « humanidade.Gragas aos meus anos parisienses, também compreendi que a vetustez, por st $6,030 {orna necessariamente os povos e os Estados sensatos,e muito menos virtuosos. Cada cultura antiga - e nomeadamente as antigas culturas colonizadorss ocultaum lado negro sob a mascara da razio eda cit lidade. ‘Antes de chegar a Franca, jd tinha conseiéncia do seu lado negro. NNio tinha Pranga desempennado uin papel eminente nessa questio do crinio do morta ~e, por isso, de recusa da sepultura e do destor ro das vitimas que tombaram durante as lutas pela Independencia © { autodeterminagao no meu pals? Nao fol a sua politics africana su ficlentemente llustrativa sobre o facto de que nao basta sdescolont ‘ary: ainda necessirio operar uma verdadeira auto-descoloniza¢ao? Paradoxalmente, ndo serd a sua tradigao de universalismo abstracto contrria sua fé no dogma republicano da igualdade universal? No concernente a Franga e Paris, considerel-me sempre um individuo de passagem, em trinsito, rumo a um alhures (0m passageiro). Todavis, ‘em concomitancia,certos modos de pensar. de raciocinar e de argu- ‘mentartornaram-se-me familiares Do ponto de vista do espirito, aca- bel por transformar-me num habitante. num herdero pela habituacao lingua, as gostos e aos costumes do pals pelo convivio com certos Aaspectos da cultura erudita Tinha 4 minha disposigao 0 acervo do s3- bere pensamente humanos.Devore-o deta forma que, hoje em dia, me eonsidero, com toda a franqueza, um sucessorlegitime dese patriménio. No afrmou Fanon que nds seremios ot herdeiror do undo, no seu todo? ‘Nava lorque fol a metrépole que me permitiu entrar efectivamente nos Estados Unidos e gragas & qual, pela primeira ve, comece ater tuma visio do mundo e ful de sito, ao seu encontro. Em Nova lorque, fesse eciimene global, pude contomplar, pela primelra ver e de um ‘mode concret, 0 semblante do universal sobre o qual poetava Senghor. (0 semblante de Nova lorque 6 extremamente diferente do de Paris. € mais tarde me aperceb disso ~ 0 universal 3 francesa expressa se ‘puma linguagem nareisista. Em Nova lorgue, descobri, pela primeira ‘vez uma metrOpole alleergada na lel da hospitalidade. A tudo parecia er'um convite ma atitade de abertura face dqullo que hd-de vir: © Bulico dos povos das racase das humanidades, a cacofonia das wozes, a variedade de cores e do sons. Mais do que em Pars. al deparel-me Com o menecma de Africa, que correspon & América africana negra or misica negra, uma intelectualidade negra, o fantasma que vive do eseravo para aie do Aldntico, a sua presenga nos primérdios da ‘modernidade enquanto mareainsurreecional que, na sus radicalidade, ‘ecorda incessantemente que,em materia de liberdade,exstem apenas Sucessores E que, enquanto a Altima ndo for usufrulda por todos, podere-4 falar de tudo, menos de democracta ‘Além disso, havia uma colusdo extraordindria de culturas que, como 6 evidente, tornava essa cidade na metrépole por exceléncia do opt ‘misma, da fe no si mesmo. naguilo que hé-de vie um futuro em que hhaverd sempre alguma coisa para criat AI, tudo levava acrer que, tanto fas periferias quanto no centro, hava espago para todas as voues ~ ie havia, em principio, sem-propriedade, mas 56 sucessoes. Era pos- Sivelelhar de pert ~ els @ motivo pelo qual Nova Torque era mals do ‘que uma cidade - uma Idela a0 encontre do espirito, da matériae dos ‘mundos. Devo dizer que enquanto Idea, marca e utopia Nova lorque Seduziv-me, iteralmente © estimulou profundamente o meu trabalho Intelectual Pela primeita vee na vida, conseguia distingulr claramente ‘clamor dos mundos, eco sussurrante do encontro das nagbes sobre © qual se referia uma vex mais, o poeta Senghot. Também eu almejei Ser parte intogrante dessa epfania. Sera necessirio risa que, 20 dia lo, no me esquego de que. nessa mesma metropole, um negro pode sercrivado de quarenta bala pela poicia apenas por estar no lugar er ‘ado & hora errada? E que para centenas de milhares de descendentes de escraves no Novo Mundo, a prisdo tomou rapidamente o lugar da plantagio, Na orla do século CChepuel A Attica do Sul no timo ano do sée XX Deparet-me,literal- ‘mente, com um pals fracturade, repleto de estigmas do Animal, 0 deus-com-rabo-de-cabra, a0 qual - conforme exige a ideologia da ‘Supremacia branca ~ alguns devotaram um culto, durante décadas. Era evidente que se tinha passado alguma coisa de particularmente abjeca suscitando uma resistencia nlo menos selvagem. Ainda era possvelvislumbrar a efigie do deur-com-rabo-de-cabra na palsagem, ‘a arguitectura, no modo de construgio das cidades, nos nomes das ‘ase das avenidas nas estituas, nas formas de falar de uns e de outros, ‘os hibitos conscientes e sobretuda inconscientes, Comm eleto, © que se afigurava mais grave eram as escaificapBes mentais passives de serem detectadas em todos, negros e brancos, mestigos indiavos = ineluindo aqueles que tentaram sai lesos da loucura. No restamn ‘hividas de que todos perderam. em nives varkivels, mais do ue um vestigio de decéncia no turblhao do apartheid © os séculos marca dos pelo regresso a sevajaria racial que o precederam. Naz igre, no obstante os indimeros pequenos gestos de compalxio pratcados diariamente nas relacdes entre senhores e servos, os movimentos de ‘resistincia eas amizades de natureza inter-ractal sofreram um alque: ‘bramento por conta das desigualdades e do canterto represivo, um ‘muro opaco separavaros. oram Iiteralmente despojados de qualquer ‘proximidade humana, ou sea. da capacidade de imaginar 0 significa do de te, algures, qualquer coisa er comums. O pais estava repleto de lmundicies, de cotos ~ essa combinagio de beleza estupetacientee de fealdade do espirito tio caracteristica dos lugares a certa altura es colhidos pelo deménio humano come local de residéncia, Muitos brancos a ndo sablam onde haviam estado durante todos es ses anos torpes. Tudo se passava como setivessem saidodirectamente ‘dg asilo. Outros ndo queriam saber de nada. Nem mesma do nome de seu pais de residéncla onde, teoricamente, gozavam de cidadania, ‘Tratava-se de expatrados mental que contavam histériasininter- ‘ruptamente. Embora vivessem esse pas, na realidade, pertenciam & ‘um salhuress, a Europa, vendo-se forgados a reproduzi-a em termos ‘guase exactos, tal como acontecera anteriormente com os colons {ngleses nas margens do Potomac. Com o poder politico a escapalir -se-he das mios, a maioria procurava esquecer ido omalsrapidamente possvel,refazendo, melhor ou pior, um arremed de vida. Queriam, de facto, olhar para o futuro, mas multas vezes sem saber como se pos sonar relativamente ao presente e a0 passada, Outros, por sua vez ‘queriam agir como se nada tivesse mudado, como se tudo estivesse na ‘mesma ou como se tudo tivesse mudado demasiado rapido, Esorca: ‘mse por se convencer de que continuavam iguais Apenas o tempo haviafugido, passando sobre as suas cabegas, quase despercebido"= Por vezes,tinha a impressio de estar mum casino funerdro, Jamas ‘esquecerei esses nomes das ruas, dos lugares, das alamedas e dis venidas, das montanhas, dos lagos dos Jardins, das barragens, dos monumentos ¢ dos museus.Serviam de manto obscuro de qué? Quals, “partes vergonhoess» desse pals escondiam a kla 0 esertio, tas ‘as mands, 20 longo da avenida Vorster; a oragio numa ire situada ‘ba avenida Verwoerd, o almoro na rua Botha eo Jantar relativamente préximo do cruzamento da Princesse Anne? Importars considera fessas marcas como simbolo da mediocridade da qual se alimentam todas as formas de raciamo e de mimetismo colonial? Porque criar faventar tanta resistencia para o si mesmo? Porque deix-os, ap6s © ‘desfecho do apartheid, intact? Porque nao reunie nur muses todas ‘esas estituas com pés de argla todos esses cavalo, generals, trafican= tes de ouro, monumentos e marcas da loucura racial? Quase 10 anos ‘ap6s a aboligio do racismo institucional, uma espécte de fedor ainda femanava do eaixio, Insidioso. A segregacio racial fora ofcialmente ‘abolida, mas o espirto do racismo deslocarase, manifestando-se oravante em outras linguas. orci, a Africa do Sul por mim descortinada era também um pas de smaitiplos enclaves: o palsdaconeatenaeao dos mundos, dasnagbese dos atemas.O Gauteng. a redo mals rica do continente€ representative dessa concatenagao.€ af que se situa joanesburgo,a metrOpole africana ‘de maior modernidade, poderioe miscigenafo. Desde o nico da déca- ‘dade 1990, essa enorme cidade-repi fundada em 1096 por migrantes ‘orlundos de diversas partes do mundo, na sequéncia da descoberta das ‘minas de oure do Witwatersrand, assumlu-se como anova frontera do ‘cntinente. Ao longo do uti quartel do séc. Xe grarasao desmoro: inamento do apartheid e 3 transgso para a democracia, novas ondas l- {ratdrias provenientes dos restants pases de Aiea untaram-se a esse ‘Complexo soclal ¢ urbanojéfrtementepintalgado. Nessa Nova lorgue. ‘S30 Paulo Los Angeles em mialatura 3 escala africana, encontramos ‘actualmente quase todas as nacionalidades do mundo. Viriowsto origindrios de palses em guerra, dvidides contra sl prépri- ‘sou sujeltos 2 incria ea malversagao de elites depredatorias e (ou) enix, Enquanto alguns procuram refigio, outros sao movidos pela fexperanca de fugr a situayBes de misérta cronica ede corrupgao en- ‘denies Ao entrarem no patsilegalmente, muitos evar uma exstanla ppreciria e quase clandestina,sendo alvo de uma persegugio constan- te por parte das autoridades sul-aricanas e de ameagas continuas de detengio e deportacio. Paralelamente a essa ximigragdo na base 4 hlerarquia»,assstu-se a0 florescimento de uma segunda, const- tulda por quadros africanos altamente qualificados e elites exstentes fem dominios to diversos quanto as finangas, os meios de comunica- ‘fo, a telecomunicagbes, ss novas tecnologlas, as universidades, 05 fablnetes Internacional de peritos eas grandes empresas comercial. Timitando-nos ao exterior. tudo parece apontar, pela primeira vez. parao surgimento de uma forma de fusio cultural inédita em Joanes- bburgo, que constitula base de urna modernidade afropolita ‘A presenca de estrangeiros em territriosul-africano nao ¢ naudita, Asemethangs do que aconteca no reto do continente antes da colo- hzapao, as mlgragoes eram comuns. A miseigenacio das populates devido as guerras, Ae trocas comercias, ds transacgoes de ordem ‘eligiosa ou das allancas evidenciava um carizststemtico, Oencame- mento corresponde 8 forma predominante de mobilidade. «Forjar 3 Sociedader consistia, no fundo, em sforjar um rede, tecer cadelas de parentela e urdir dividas, sejam elas reais ou fica Longe de Sserem unidades echadas,eis rao pela qual asenidades étnicas sul- “africaas se encontram tao enredadss nos planos cultura lingustico territorial, jé que as Felacdes estretas entre elas também as vnc lam aos seus pares de Mocambique, Zimbabwe, Botswana, Lesoto ou Suazilindia. A imigracdo europea a partir do sée XVI, a importagso ‘da mao-de-obra servi na regito do Cabo, o estabelecimento de india 'nos em Natal no inicio do Boom do agar até de chineses, no Inicio a era Indusirial em Witwatersrand, contribuiram de forma signifi. tsitiva para a edifiario da Africa do Sal enquanto pais transnacional ese embora o facto de nunca ter sido reconbhecida nessa qualidade por conta do apartheid. ssa naturera tranenacional aentar-se-4 0 Secorrer da primeira metade do séc. XX gracas& aluéncla de judeus € posteriormente, em meados da década de 1970, com a ehegada de ‘excolonos portugueses que abandonaram Morambique Angola, de ‘excolonos rodesianos apds a independéncia do Zimbabwe e das mi- horas eriundas da Europa Oriental No fundo, desde a deacoberta das tminasde dlamante Kimberley e, sobretudo, das minas de ouro er Wit- ‘watersrand, no final do sé. XIX. as frontelrasefectivas da Africa do Sul fstendent-se deste Cabo até ao Katanga, sendo que 0s contibutos feuropeu e asidtico dltam ainda mais a identidade desse pal, at Dbuindo-the uma dimensio transversal, ransnacional e pluricultural ssusceptvel de ser apregoada apenas por um nimero redusido de na 80s modernas. ‘A fim de cra € aumentar as suas riqueras, a Africa do Sul esteve sompre dependente do trabalho estrangeiro. quando da industrializa ‘20,0 recrutamento de uma parte considerivel da mio-de-obra mi- ‘heir era levado a eabo em toda a Aiea Austral. No pats trabalho ‘azonal e migrante constitul ambémn una das tenolopias-chave do processo de proletariagso. Privados dar suas terrax e destituldos da ‘Su edacania os negrossulafrcanos foram exlados para os bantustoes. tipos de reservas nativas onde a luta pela reprodugio social assumia proporgdes de maior gravidade A sua estadia na cidade branca era ‘brigatoriamente tompordria. A institugso do live-transto permit ontrolar a sua mobilidade no selo de uma economia capitalista na ‘qual a rapa engendrava a classe, bloqueando, tanto quanto possivel | emergencia dessa consciéncia O trabalho sazonal e migrante, por tum lado, ea expulsdo dos negros sul-africanos para as reservas, por futro, foram determinantes na implosio das estruturas familiares r= bbanas. 0s lacos comunitrios rgistaram um definhamento. A cultu ‘do pequeno empreendedorismo e da iniclativa individual fo extiha- ‘cada ao passo que a liberdade de exereer 0 pequeno comercio nda fo ‘bolida pela le. Para os negros sul-aficanos,o fim do apartheid significou a acesso de pleno direto& cidade. O desmantelamento das leis racstas abriu ‘caminko para as iberdades de movimento e de residéncia. Todavia Se trata-se de um facto crucial - esteve na origem de um movi- rent migratbrie duplo, interno e externo, com consequénctas soci aise poitcas potencialmente explosivas. No plano interno, 0 ragime {o apartheid comecou a rulr no inicio da década de 1980, no preciso ‘momento em que -devido a0 agravamento da eise de reprodut0 noe ‘bantustdes ~o Estado racist deixou de ter condisOes para acrar her ‘meticamente as suas fronteltas inernas, controlar a mobilidade dos ‘negros intensificar a sua exploragto através do capital, sem prejuizo {do reforgo da segregacso racial. Assim, uma massa de pessoas sem ‘trabalho, pouco instruidaseeujo Unico melo de sobrevivincia residia, amide, na pequena depredacdo, comera a abandonar as zonas rurais ‘© aflur paraa periferia dos grandes centros urbanos, minando desde Togo e quase em absoluto qualquer esforgo de planficagao urbana, deformando pelo caminho as principals cidades sul-africanas, provo- ‘anda a fuga das classes médias brancas e negras para barr rest {encials (suburbs) ou enclaves protegidos por empresas privadas de ‘segurang,e propiciando praticas de Sobrevivencia que conterem urn papel de destaque 20 crime. “A extraordinaria luta pelos recursos, até entéo difell de refrear no seio dos bantustées, alastrou-se para o contexto urbano que, quase fem concomitanca, acolhia milhares de migrantes llegals origindrios {dos restantes pontos do continente Por conseguinte, 20 invés dos seus ‘opressores de antigamente, o5 negros sul-aricanos viram-se con ‘ontados, pela primelra vez, com outros migrantes (na sua maloria ‘mais instruidos, conhecedores da vida citadina e habituados a no epender do Estado) orlundos de outros palses afrcanos e com os ‘guaisentram de imediato em competigte, muito em particular no sec- {or informal - espago prvilegiado do combate pela sobrevivencia— ou ainda no dominio da habitagso, do empregoe inclusvamente pla oc ‘age de um pedago de espaco nos campos da fortuna co cescimen {ora continuo. Esses campos da pobreza estendem = infinitamente cereando as grandes metrépoles da Africa do Sul. Sto zonas onde © ‘nfo-direito, a doenga, a morte prematura ea lta impiedosa pela so- bbrevivéncia se conjugam, pelo que apresentam um eardcterexplosivo ameagando objectivamente aestabllidade do pals. ‘0 significado politico e cultural do presente sl-africano correspon 4e, logo, a0 ensejo do fim e da reinvencao. Ora retnvengao 38. pos- sivel através da contemplardo tanto do passado quanto do futuro. Pos, ‘quando aquilo que comegou no sangue termina no sangue, as hipd teses de um recomego sio enfraquecidas e ensombradas pelo horror do passa. Afigura'se complicado proceder a uni reinvengi, [a la qual for simplesmente através da canalizagio, contra 0 out, da Violéneia praticada contra o si mesmo. Nao existe autonaticamente luma sboa violencia» que deveria segulr-se auma «ma violencia» que 3 precedeu, ou que nela deveria encontrar a sua legitmidade, Cada vio 'eacta, tanto a boa quanto a md, sancionam sempre uma separagio. A reinvengio da esfera politica nas condigdes do poe-aparthotd implica, desde logo o abandono dalogia da vinganga, independente de enver- bar os andrajos do dirtto. Posto ito, a uta pelo afastamento em relagso a uma orem in mana das coisas nao pode prescindi daquilo que se poderiaapelhdar ide produtividade pottica da meméria e do religiose. 0 religoso e 3 ‘meméria representam, neste caso, o recurso imapinirio por excelén ia Por reigioso, entende-sea relaglo como diving e anda a instin- ia da cura» e da esperanca, num contexto historieo onde a violencia fectou tanto 48 infa-ertruturas materia quanto as infraestrutiras fisteas, através da difamagao do Outro, aafirmagao segundo a qual ele no & nada. Certas formas do religioso questionam precisamente esse discurso ~ por vezesinterorizado ~ sobre o nada cujo objectivo ul: timo consiste em garantir que aqueles que estavam de joelhos pos ‘sam por fim slevantar-se andar». Nesse contest a questio de Cale simultaneamente fils6fico, politic e étic eonsiste em saber como Acompanhar esse ereforgo de humanidades ~ no final do qual serd possvel odidlogo entre os homens. em detrimento das imposigbes de {um hamem face 30 eu object, ‘A experiencia subafricana demonstra que a ordem slevantar ‘marchars ~ a descolonizagio -dirige-se a todos, inimigos © oprimidos de outrora A supostalibertarao consist na crenca de que basta matar ‘95 colones e tomar 0 seu lugar para rertaurar a relaplo de reciproc. dade, No Smita ds politica de vinganca, ¢ possivel pensar que o caso {a Africa do Sul constitu uma reprodusso do complexo de Calm. Posto {sto,a preceupagdode reconciiasao, por st36,nao pode ser substitulda pela exigncia radical de justia. Para que aqueles que ontem estavam Ei eles ecurvados perante o peso da opressto poszam levantar “see marchar, & necessario que sela felta justiga. Por conseguinte, ‘a exigencia de justlgn no sera descurada, acarretando a lbertar30 ‘do dio da st mesmo e do 6dio do Outre, condigao essencial para um fetorno & vida. implica igualmente superar a dependancia reativa 3 Fecordagao do sofrimente proprio, propria da consclénela vitimaria. De fact, a ibertagao dessa dependencia 6 condiglo para a reapren- ‘lzagem da inguagem humana e, eventualmente, para a criagio de um ‘mundo novo, Resta a questo da meméria que, na Aftica do Sul eontemporines, se coloca em termos de tm passado doloroso, mas também repleto ‘de experanca, utlizade pelo conjunto dos protagonistas como estribo para a criagio de um futuro novo e diferente. O que pressupde por a Uescobertoo sofrimente outrors infligido aos male fFacos: proclamar fa verdad acerca do que fol suportado; renunciar & dissimulac30, & Fepressio « 4 nogagio~ trata-s da primeira etapa no processo de re- ‘onbecimento mituo de humanidade de cada um edo direito de cada ‘ina uma vida de lberdade perante a le. Uma parte considerivel do ‘rabalho de memorializarSo traduz-se por exemplo em sepultar devi ‘damente 25 ossadas dos que faleceram em combate; a implantacao de ‘stelas funerdrias nos loais onde pereceram a ratificarto de rtuais ‘elighosos tradiional-cristios destinados a asalvar» os sobreviventes Gacélera¢ do deseo de vinganga a criagso de uma multpliidade de mmuseus e parques visando a celebrar3o da humanidade comum de {odos,o lorescimento das aries e, acima de tudo, a fmplementacdo ‘de pollticas de reparagdo orientadas para a superapio de séculos de negligéncia (om telhado, uma escola, uma estrada. um centro de Sade, Sgua potivel, elecricidade). O trabalho da meméria ¢, neste ‘iso. inseperavel da refleto sobre o modo de transformar adestrulgao fisiea daqueles que se perderam e se transformaram em pé numa pre- senga interior Meditar sobre essa austnciae sobre os meios de recu- perarsimbolicamenteo que fol destruido consste,om grande medida, Conferir 4 sepultura toda 8 sua forga subversiva Porém, neste caso, Sisepultura no ¢ tanta a celebragio da morte em sl mas antes © re- tormo a esse complomento de vida necessério & elevagio dos mortos, fo ceio de uma culture nova que procura atribuir um lugar quer para fs vencedores quer para o= wencidos, | Il. Abertura do mundo e ascensado em humanidade ‘A descolontzasao acabou por transformar-se num conceito de juris: {a5 e historiadorest. mas nom sempre fol assim, dado que a nocd se fol depauperando nas suas maos. As suas miliplasgenealogias foram. ‘cultadas e 9 concelto fol despojado do seu teor incendidrio que, além de tudo, constitula a marea das suas origens. Sob essa forma intima, 4 deseolonizaclo designa, simplesmente, a transferencia de poder da Metr6pole para as antigascoldnias, aguando da Independencia. Ten- de sido esbocada no inicio da década de 1940, essa transferéncla de poder ¢ geralmenteo fruto de negociagSes pacificas compromissor _ssumidos entre as elites poltcas dos noves paises independentes © 25 antigas poténcias colonais, ou uma consequéncia de uma luta a ‘mada para aboliraascendéncla estangelra, esultando na derrota, 00 ‘mesmo na evicelo dos colonos ena reapropriagae do teritirio nacio- ‘nal pelo novo poder autéctone. Do mundo enquanto cena histérica Enunciada por meio de Inimeras designagbes 20 longo dos séculos Xie XXafrianosa descolonizago fo, contudo, rma plena categoria politica, polémicae cultural. Sob esse prisma maior a descolont2a;a0 scemethava-se a uma «luta de lbertagao> ou como sugeria Amilear (Cabral, a uma srevolusa0%. Em suma, essa lots almejava a recon ‘quista, por parte dos colonizados, da superficie, dos horizontes, das Profundezas e das eminéncias da sua vida. Nos meandros dessa luta Prque exigla um enorme esforgo Misleoe capacklades extraordinarias de mobilizagio das massas~ as estruturas da clonizagao deviam sor |S Caps Dnt nna ney ro Ct re eM hy amon te, tin 8 ‘Tita sa neem Bapra ai 195, desmanteladas e instituidas novas relagdes entre o sujeito eo mun- do, reabilitando-se o possivel. A luz de tal perspectiva, 0 conceito da descolonizacio revela-se eliptico, remetendo para a dificil problemati- ca da reconstituigao do sujeito, da abertura do mundo e da ascensao universal em humanidade, evocando as principais linhas do trajecto a que nos dedicamos na primeira parte do presente capitulo. Todavia, muito rapidamente se percebeu que a reconstituicao de um sujeito dotado de rosto, voz.e nome préprios ndo consistia numa mera incumbéncia pratico-filos6fica. Pressupunha um enorme trabalho epistemolégico, e mesmo estético. Acreditava-se que, para acabar de- finitivamente com a alienagao colonial e sarar as feridas infligidas pela lei racial, seria necessario o conhecimento de si mesmo. 0 tiltimo = as- sociado 4 preocupacao renovada do eu - constituiria, a partir de entao, condigées prévias ao desapego dos panoramas mentais, discursos representagoes de que o Ocidente se servira para arrebatar a ideia do futuro. Tanto na condigao de sinal quanto de acontecimento, a prépria descolonizagao era imaginada como um elo de ligagao ao futuro que, por seu turno, constitufa 0 outro nome dessa forca de autocriacao e in- vengdo, Para recuperar essa forga, acreditava-se que seria necessario reabilitar as formas endégenas da linguagem e do conhecimento’. $6 elas permitiriam que as novas condigdes da experiéncia se assimilas- sem adequadamente e se tornassem novamente pensaveis. Também seria necessario forjar um pensamento a medida do mundo, capaz de relatar a histéria comum que a colonizagao possibilitara, nascendo assim a critica p6s-colonial abordada na segunda parte do presente capitulo. Uma teoria da descolonizacao em si, ndo existe verdadeiramente. Para explicar os factos coloniais e de influéncia ~ e, por tabela, da descolonizasaio ~ muitas abordagens classicas do imperialismo fri- saram os factores econémicos. Como tal, Lénine defende que a fun¢ao das colénias no desenvolvimento histérico do capitalismo consiste em absorver 0 capital excedentario da metrépole e que esse excedente se manifesta em mercadorias, dinheiro ou demograficamente - a super- populacao. Nessa éptica, as colénias contribuiriam, na qualidade de mercado, para mitigar a crise de superprodugao que ameagaria, in- ternamente, 0 modo de produgao capitalista®. Segundo os tedricos da dependéncia, a divis4o do trabalho e a especializacao - constrita e forgada - das col6nias na producao de matérias-primas agricolas e in- dustriais constituem, por isso, tanto a forma quanto o contetido da rela¢ao ‘4 Ngugl WA Thiong?o, Decolonising che Mind, Heinemann, Portsmouth, 1986. S.Mladimir Hitch Lenine, Limpérialisme, stade suprime du copitaisme, Science marxiste, Montreull-sous-Bois, 2005 —Aewmehowrce san crand Nie ania obec deneoniena colonial propriamente dita. As matérias-primas séo produzidas a pregos baixos e os custos de trabalho reduzidos fomentam 0 aumento das taxas de lucro, tal como 0 proprio Marx assinalava. Essa divisao do trabalho - e a consequente especializacao ~ nao teria constituido apenas uma das condicdes do crescimento do capitalismo industrial, teria formulado igualmente condigdes estruturais de troca desigual que, desde entao, caracterizam as relacdes entre 0 centro e a perife- ria®, Por conseguinte, as colénias nao constituiriam, de todo, fronteiras exteriores. Longe de serem meros exutérios formariam elos essenciais do devir-mundo do capitalismo. Nesse Ambito, a descolonizagao explicar-se-ia facilmente. 0 trabalho hist6rico concretizado pelo imperialismo colonial consistiria na im- plementacdo das condicées estruturais de uma troca contrafeita ¢ desigual entre o centro e a periferia. De acordo com as suas condigoes, e atendendo as circunstancias, qualquer emancipagao eventual de- veria ser impossibilitada ou nimiamente dificultada. Lograda essa missao, a forma propriamente colonial da supremacia tornar-se-ia obrigatoriamente anacrénica. A sua preservacdo deixaria de ter fun damento, cedendo o lugar a outros mecanismos de exploracao e de exercicio do poder mais eficazes, menos onerosos e mais rentaveis. Durante a prolixa histéria do capitalismo, o imperialismo colonial nao teria passado de um momento: ao longo do qual, a expropriagao dos nativos, a conversao da forga de trabalho em mercadoria, a especializaco das sociedades colonizadas na producao de matérias-primas a precos baixos e a reproducao do capital a longo prazo foram implementadas. Mas enquanto forma de expropriagao original, cuja fungao consistia em institucionalizar a longo prazo o regime de troca desigual e con- trafeita, acabaria por consistir num modo primitivo de valorizagao dos recursos naturais e sociais e das forcas produtivas, e mesmo num 6nus para as forgas da metrépole, como sugere Jacques Marseille. A transigao para a independéncia e a soberania nacional (ou seja, para a forma de Estado-na¢ao) seria assim inevitavel dado que nao con- seguiu abolir a submissao econémica, politica e ideolégica das antigas colénias. Nesse aspecto, a descoloniza¢ao constituiria certamente uma cisdo e, apesar disso, um ndo-acontecimento. De qualquer forma, teria preparado sobretudo o terreno para 0 neocolonialismo, uma modali- dade das relagdes de forca internacionais que amalgama rendas e co- ercao, a violéncia, a destrui¢ao e a brutalidade sao acompanhadas de uma nova forma de acumulagao através de extorsao’, 6 Samir Amin, LEchange inégal et fa oi dela valeur, Anthropos, Paris, 1988, 7. Kwame Nkrumah, Le Méocolonializme, dernier stade de Iimpérialisme, Presence africaine, Paris, 1975. a al Tal como existiram diversas eras da colonizacao, existiram diversas vagas de descolonizacao. Os historiadores distinguem habitualmente duas eras do colonialismo. A primeira corresponde ao periodo do mer- cantilismo. No caso das poténcias europeias, trata-se de conquistar territérios estrangeiros, marcé-los e estabelecer com as populagdes autéctones lagos de submissao, geralmente legitimados por qualquer ideologia da supremacia racial, fazendo-as trabalhar, de seguida, ¢ produzir riquezas das quais essas populagdes usufruem infimamente. Inaugurada pelas denominadas «grandes descobertas», e consolidada posteriormente pelo comércio dos escravos negros, o periodo do mer- cantilismo marca a verdadeira entrada num novo «tempo do mundo». ‘Tempo que se caracteriza pela imbricagao das fronteiras, a caldeacao das moedas e o prolongamento das zonas de trocas e de cruzamentos. Evidentemente que a fragmentagao ndo se dissipa. E ainda menos as. diferengas, as hierarquias e as desigualdades. Mais, constréi-se pro- gressivamente uma relativa unidade e coeréncia do mundo. As novas formas de transgressao dos limites, accionadas pelo desenvolvimento do mercantilismo, propiciam a transi¢ao de uma concepgao do mundo = enquanto enorme superficie composta por blocos diferenciados ~ para uma consciéncia do globo - enquanto panorama massivo no qual 3 histéria se desenrola doravante’, A colonizacao e a descolonizacao constituem parte integrante dessa nova era da mundializasao. ‘A segunda era do colonialismo é uma consequéncia da revolugao in- dustrial. Se a primeira era movida pela economia do trafico e da plan- tagao, tendo terminado, mais ou menos, com as independéncias dos Estados Unidos e da América Latina, entre 0 séc. XVIII e em meados do séc. XIX, a segunda é caracterizada pelo imperativo duplo de acesso as matérias-primas e de preparago de mercados para os produtos industriais’. As primeiras vagas de descolonizacao na América Latina ‘ocorrem cerca de 1880 e 1890 e, posteriormente, em 1920. Coincidem ‘com a época durea do pan-americanismo. Sendo um projecto simul- taneamente politico e ideol6gico, o pan-americanismo define-se pela oposigao aos intentos hegeménicos dos Estados Unidos. Um dos seus objectivos consiste em eliminar-a politica americana de ingeréncia nos assuntos dos seus vizinhos. Essas vagas séo marcadas por conflitos ~ a guerra entre o México e os Estados Unidos (1846-1848), que resulta fa anexagaio de metade do territério mexicano; a guerra pela inde- pendéncia de Cuba (1895-1898); a revolucdo mexicana (1910-1917) {Fernand Braudel, ivlsction matériele économie et captalisme (AVe-XKVle site), vol. 3: "Le “Temps du monde’, LGE Paris, 1993 (1979). S.peterj. Cain e Anthony G. Hopkins,