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ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LINGUAS IntRoDUGAO 1. Circunstancias da composigio Este Ensaio, que sé foi publicado depois da morte de Rousseau, inclui-se, resumivelmente, entre as obras de seu periodo inicial de produgao. Indicam-no 9 estilo, a prépria organizagdo da matéria e, sobretudo, os assuntos de que trata, ‘Néo obstante, os especialistas ainda néo conseguiram indicar uma data provével de redagdo que seja unanimemente aceita. Vaughan afirma que, ao menos em parte, o Ensaio jé estava escrito antes, com certeza, do Discurso sobre a Desigualdade e, ralvez, até do primeiro Discur. 80. Toma, como base para essa inferéncia, o fato de surgirem no texto elementos que pertencem aos estudos de misica originalmente destinados & Enciclopédia. P. M. Masson acredita que o Ensaio ndo passa de uma das multas ¢ extensas notas adicionadas, como apéndices, ao segundo Discurso, que, contudo, acabou Por assumir proporgées e cariter de texto aut6nomo. Petitain, que iniciow as pes- quisas mais aprofundadas sobre a cronologia da produgdo de Rousseau, data 0 Ensaio de 1759, porém néio justifica tal indicagao. Podemos tomar a data indicada por Petitain como a méxima provavel, pois 44 no ano seguinte estava escrito o Emilio, que se editaria simultaneamente em ‘Amsterdam e Paris, no ano de 1762. Alids, uma nota, que figura nas primeiras edigdes do Emilio, faz referéncias a esse texto, chamando-o de Ensaio sobre 0 Principio da Melodia, surgindo 0 titulo com que hoje 0 conhecemos na mesma nota, porém em edigdes posteriores. Dificilmente, entretanto, podemos fixar com ‘gual seguranca uma data provével minima. As preocupagées musicais de Rous- ‘seau duraram longo periodo de sua vida, vindo a predominar em sua vida intelec- ‘ual por trés vezes: deixando de lado as singularidades da juventude, podemos contar, primeiro, o episédio da nova notagio musical, que se resume na Disserta. sao sobre a Misica Moderna e que termina com a viagem a Veneza; depois hd © capitulo em que Rousseau parece destinado a representar, entre os enciclope- distas, o papel de especialisia em assuntos musicais (1743-1748) e durante 0 qual se dé o primeiro e fugaz desentendimento com Voltaire; afinal, vém os dois anos (0753-1754) que antecedem a concepeéo do segundo Discurso (e sao marcados pela famosa querela entre os adepios da misiea francesa e os da italiana) para aleancarem 0 auge com a publicacao rumorosa da Carta sobre a Misica France. sa, que teve duus edigdes no ano de 1753. Caberd escother um desses periodos Para af localizar a redagdo do Ensaio. A verséo de Vaughan parece bastante verossimil, mas para adoté-la precisariamos da certeza, que nos falta, de ter 0 Ensaio saido dos escritos destinndos & Enciclopédia, porquanto a hipdtese con- 150 INTRODUGAO. tréria seria igualmente possivel, Ademais, a oposigao é reoria de Rameau, 0 alvo preferido dos enciclopedistas, jé comecara, para Rousseau, no primeiro momen- ‘fo das disputas musicais, com o parecer da Academia sobre seu sistema de nota- ¢do, e 0 acompanharia pelo resto de sua vida. ‘Nao obstante, pela anélise do texto somos levados a propender por uma data tardia que, se ndo for ade Petitain, colocar-se-é muito préxima a ela. Hé, no Ensaio, indicios, se ndo concludentes, ao menos capazes de justificar tal inferén cia, Em primeiro lugar, a prépria refutacao de Rameau, que, a principio sem indicagdo clara de nome, malgrado a transparéncia das alusdes, toma endereco explicito e direto no capitulo XIV e na nota do capitulo XIX. fundase basica- ‘mente na maior ou menor musicalidade natural das linguas, ou seja, em termo: ‘muito semelhantes aos da polémica de 1752-1753 entre “italisnos”¢ “franceses' ‘Mesmo admitindo-se que haja no Ensaio elementos comuns & colaboragéo musi eal destinada & Enciclopédia, sente-se que a orientagdo do texto jé sofreu a influéncia das contendas da moda, negando-se, alids, Rousseau a endossar 0s ‘exageros entdo correntes sobre a “musicalidade” do idioma italiano e, acen- tuando a menor aptidao da lingua francesa para servir é misica, volta-se para 0 problema que considera central: o primado da melodia. Ademais, todo o fundo de interpretagdes antropologicas ¢ sociais mostra-se muito mais préximo das proposigaes gerais do segundo Discurso (ao qual pode mesmo servir de texio Subsididrio no trabalho dos analistas) do que da teoria, ainda algo incerta, do Discurso inieial. Afinal o desejo de fundir numa sb linha interpretativa a trans: formacio do homem pela sociedade, a formacdo e a evolupdo das linguas, e 0 ‘desenvolvimento da expressdo musical, revela-nos um Rousseau ainda moro, porém jé maduro e coerente, tal como 0 supomos, com ponderdveis razoes biogrdficas e criticas, ao redigir a primeira versao das InstituigSes Politicas. ‘De qualquer modo, permaneceré no terreno das hipoteses mais ou menos fundadas a data em que foi escrito 0 Ensaio sobre a Origem das Linguas e, por- tanto, as circunstancias de sua composi¢ao. 2. Fontes ¢ influéncias Também aqui néo podemos ser muito precisos, porquanto nao se pode indi- car com seguranca as fontes de um texto de histdria incerta e cujas referéncias bibliogréfieas sdo apenas incidentais. Cabe apenas registrar certas influéncias evidentes e diretas. Neste caso esté, sem diivida, Condillac, no que respeita ao problema das linguas ou, mais exatamente, ao problema do desenvolvimento da razéo humana, que no Ensaio adquire importincia bésica. Jé apontara Jean ‘Morel (Fontes do Discurso sobre a Desigualdade, in Annales de la Société Jean- Jacques Rousseau, 1910) a influéncia nitida de Condillac no segundo Discurso. ‘Depois Robert Derathé (O Racionalismo de J-J. Rousseau, Paris, 1948) apon tara no Emilio a persisténcia desses elementos Nao surpreenderé, pois, que reaparecam, mais uma vez, no Ensaio. Explicitos ou implicitos, encontram-se nos capitulos iniciais do Ensaio aqueles prinefpios do Emilio, segundo os quais tudo 0 que a razdo possui passou primeiro pelos sentidos, no sendo a razdo, em sentido amplo, algo simples ow primério, sendo o fruto do entrosamento de todas as demais faculdades do hhomem, que se processa numa passagem das idéias simples ds idéias complexas, INTRODUGAO, ast isto é, da razdo sensitiva ou pueril & razdo intelectual ou humana. Ndo passam, no fundo, da versdo dada por Jean-Jacques a certas passagens do Ensaio sobre a Origem dos Conhecimentos Humanos, de Condillac, que se editara em 1746. (Ora, 0 desenvolvimento racional do homem encontra sua expresso mais carac- teristica na formagao da linguagem. Até o século XVII, efetivamente, continuava a imperar o mito da lingua Adimica. A referéncia a uma Idade de Ouro, entao transformada em Estado ‘Natural, que se supunha constituir o estdgio inicial real da espécie humana, natw- ralmente levava a cogitar, como fizeram pensadores de grande porte, acerca da lingua que teria valido aos homens que povoaram o mundo nessa fase edénica e ‘se comporia de termos que ndo simbolizavam mas traduziam efetivamente a esséncia das coisas. Se, pois, no séeulo dezoito Rousseau apareceria para arran- ‘ear 0 concelto de Estado Natural de sua anterior condieao mitica e proto-his ‘érica, transformando-o na descrieéo, evolutiva mas ontogénica, da base fisiolé- xgica ¢ instintiva do complexo humano, naturalmente haveria de se interessar ‘pelos que, como Condillac, descreviam a evolueao da mente humana partindo de estdgios simples e diretamente ligados a fendmenos biolégicos — idéias simples que resultariam de simples percepedes — para chegar a etapas de maior comple- xidade — “idéias complexas” resultantes da “reuniao ou coleedo de vérias percepoies” —, afim de chegar & definicdo final e extensiva do entendimento, ao ‘mesmo tempo que firmavam o termo inicial da evolueéo das linguas numa base biolbgica, que corresponderia as interjeigdes arrancadas ao aparelho fonador pelos impulsos instintivos mais simples. Como sempre, Rousseau procura sublt thar que, no viver como no falar, 0 homem sé superaria esses modos esponté- rneos para ascender a formas mais complexas se motivacées poderosas a tanto 0 ‘movessem. E, nessa linka geral de desenvolvimento da mente, da linguagem e da vida humana, insere a evolugdo da musica. ‘No que respeita ao problema musical, que de forma alguma podemos consi- derar secundério num texto do qual, ao menos inicialmente, representou o obje- tivo principal e ostensivo, a grande influéncia a ser citada é negativa. De fato, para Rousseau, como para todos os enciclopedistas, porém na mais ampla medi- da que the permitia 0 conhecimento mais aprofundado do assunto, era preciso opor-se a Rameau. Ora, se no exercicio da critica dos espetéculos correntes a oposipdo se fazia entre a dpera francesa e a italiana, Rameau, que figurava como representante méximo dos “franceses” pela orientacdo tebrica que tragara e pelo constante e aplaudido exercicio da criagao, deveria representar 0 alvo da predile- ‘edo do partido posto, ndo sé pela sua qualidade de chefe de um dos grupos em luta, senéo, e principalmente, por ser 0 autor de tratados teéricos de singular significapdo. Eram, pois, os escritos de Rameau sobre a harmonia os elementos que Rousseau tinha sob os olhos cada vez que escrevia sobre misica. ‘Nao obstante, em que pese 0 alcance das idéias de Rousseau sobre a mmisica @ as linguas — relativo no primeiro caso e assaz consideravel no segundo —, 0 Ensaio sobre a Origem das Linguas é peca substancial, embora de funcdo subsi didria, para a compreensao das idéias — estas, originais e decisivas — de Rous- seau sobre © homem e a sociedade. Os duis Discursus, principalmente o segundo deles, assumem mais ampla e clara sgnificagéo quando completados com a arte inicial deste Ensaio, enquanto boa parte do Emilio, como indica o proprio ‘autor, depende da boa inteligéncia do processo de desenvolvimento do intelecto 192 INTRODUCAO individual, acerca do qual hé no Ensaio indispenséveisindicagdes. Sem a devida penetracao dos Discursos e do Emilio, sempre se entenderd menos completa- ‘mente 0 Contrato Social, como acontece, infelizmente, com certa freqiéncia. Tais sao, aliés, as razées que justficam a incluséo do Enssio, neste volume da edigao brasileira das obras de Rousseau, entre os escritos camumente chamados de polticos. Neste sentido, dispensamo-nos de repetir, acerca de fontes e influéncias, 0 que jé dissemos a propdsito dos demais textos politicos. Dos viajantes, como Chardin, aos fiésofos, como Platéo e Montaigne, valem aqui a Rousseau os ‘mesmos autores e livros de que anteriormente jé se servirs. Se, por vezes, sua osicdo em face desses inspiradores positivos ow negativos parece agora mais caracterizada, tal como acontece indubitavelmente com a oposi¢do a Hobbes, tais variantes confirmardo 0 quanto operaram taisinfluénciase, pois, o papel que tiveram na formagao do pensamento de Rousseau. 3. Resenha analitica Distinguem-se no Ensaio irés partes bem caracterizadas e correspondendo a trés interesses bem definidos: a) a origem da linguagem — esiudo da necessidade de comunicagao no homem natural; b) diferenciagdo das linguas — estudo da evolugao dos grupos humanos e dos meios de expressdo; c) estudo particular das quesioes musicais relacionadas com a evolueéo linguistica e social. Quanto ao Ultimo capitulo, euja importancia desejamos sublinhar expressamente, parece cconstituir caso & parte, embora logicamente ligado ds duas partes iniciais, como se mostrard mais adiante. A. ORIGEM DA LINGUAGEM E a diferenciagdo das linguas que dé interesse e contetido a pesquisa de sua origem. Eis por que o Ensaio se inicia (cap. D) assinalando que a linguagem dife- rencia o homem entre os seres vivos, enquanto os homens entre si se distinguem pela variedade das linguas — “néo se sabe de onde é um tomem antes de ter Salado”. Por que causas semethantes teréo levado os homens a resultados téo diferentes? Rousseau comeca por tracar uma hipstese explicativa tinica para demonstrar como todos os homens, por sua condicéo, precisaram servir-se da palavra. ‘A necessidade de comunicar-se com o semelhante pode ser satisfeita tanto pelo movimento (gesto) quanto pela vor (palavra), mas-a comunicagéo sonora rndo se impée forcosamente. Hé signos mudos (simbolos desligados de palavras) ‘poderosamente elogiientes. “Assim se fala aos olhos muito melhor do que aos ‘ouvidos”, ao menos quando se trata de exprimir sentimentos simples. Por isso, pode-se imaginar que ‘se sempre conhecéssemos td0-s6 necessidades fisicas bem ‘poderfamos jamais ter falado”. ‘Nao falamos porque sejamos mais aptos para isso do que os outros animais, nem tampouco apenas para exprimir as mesmas necessidades fsicas que 80 co- ‘muns a eles ¢ a nds. Se, em maior ou menor proporeéo, todos os seres vivos se comunicam, “a lingua de convencao 36 pertence ao homem, ¢ esta é a razdo por INTRODUGAO. 183 ‘que 0 homem progride, seja para o bem ou para. mal, ¢ por que os animais ndo o-conseguem”. Distingamos, pois, no homem considerado em estado natural, as necessi- dades que “ditaram os primeiros gestos” das paixies que “arrancaram as primel- ras vozes” (cap. II). Ndo se creia que 0 desenvolvimento das linguas seja racio- nal, geométrico, porquanto de sua esséncia resulta o serem vivas e figuradas. “Néo se comecou raciocinando, mas sentindo; enquanto as necessidades fisicas ‘opunham os homens, as necessidades morais, as paixées, aproximavam-nos, sus- ettando a linguagem que, forgosamente, seria igurada (cap. Ii). Supondo-o assim (cap. IV), a primeira lingua se comporia de combinagdes de sons simples que, além do arranjo sonoro, ainda conheceriam a diversificagao do tempo e da qualidade, criando expressdes capazes de proteger as paixies que se quer comu- nicar. Poucas consoantes, bastantes apenas para evitar os hiatos, imensa fartura de sons e acentos, largo recurso & onomatopéia fariam dessa lingua inicial algo mais préximo da misica do que da linguagem dé que nos valemos em nossa con- digéo atual. Eis por que o Critilo platonico, Bem compreendido, esté longe de ser ridiculo. ‘Nessa hipdtese evolutiva, pode-se avangar ainda um passo, pois parece natural 0 progresso que iré multiplicando as consoantes, em prejulzo das infle- des, numa transicao da lingua passional a racional (cap. V). Rousseau ndo se contenta, contudo, com a explicacao hipotética — em tudo conforme com seu ‘método genético. No caso particular das linguas, pode oferecer-nos uma compro- vagéo objetiva, vélida ao menos para um largo periodo do desenvolvimento das linguas e que encontra, na escrita, documentos de importancia singular. A escrita ficou realmente reservada a funeéo de registrar boa parte da evo- updo da lingua, endo trés as principais maneiras de escrever que se conhecem: a) representar, ndo os sons, mas os préprios objetos, sefa diretamente (an gos mexicanos), eja alegoricamente (antigos egtpcios); ) representar as palavras por earacteres convencionais (chineses); ©) representar as partes elementares das palavras, sejam vogais, sejam arti ‘culadas, para depois combiné-las em vocdbulos. “Esses trés modos de escrever correspondem, exatamente, aos trés diferen- tes estados em que se pode considerar os homens reunidos em nacdes”: povos selvagens, povos barbaros e povos policiados. Nao se creia, contudo, que a arte ide escrever dependa da arte de falar — sua evolucao prende-se a outras neces: dades que sao, sobretudo, de precisao e clareza. Inevitavelmente, pois, a escrita altera a lingua, tirando-a do dominio da paixéo desejosa de exprimir-se para ‘entregéc-la& forca e @ clareza da razao. Eis por que s6 quando os gregos jd escre- viam suas poesias & que puderam sentir iodo o encanto da composicdo pura- ‘mente verbal dos poemas homéricos (cap. VD. Conseqientemente, nas linguas modernas procura-se, em pura perda, qual’ quer acento real, isto é, musical, pois nelas 56 se encontra o acento prosédico ¢ © vocal, acrescentando-se, ainda, 0 acento gréfico que, malgrado freqiientes confusées, nada tem de comum com aqueles (cap. VID). A acentwacao surge exa- lumente quando desuparecem 03 acentos — as velhas linguas, faladas por nés, indo seriam entendidas pelos que delas se serviram correntemente. Por outro lado, nenhuma miisica hé nas linguas modernas e, quando falamos de sua musical 154 INTRODUGAO dade, apenas indicamos sua maior ou menor aptidéo para serem aproveitadas na composi¢éo musical. Tal é 0 caso até mesmo do italiano. B. DIFERENCIAGAO DAS LINGUAS Iniciando o oltavo capitulo do Ensaio, reconhece Rousseau que até entiao sé cuidou das linguas primitivas em geral e de sua evolugio ro tempo. Resta-the, ‘pois, um segundo desenvolvimento teérico para explicar a evolugdo complemen. tar, porém possivelmente simultdnea, que levou os homens a diferentes linguas. A explicagdo terd fundamento nitidamente mesolégico-comparativo. Se 0 erro comum dos europeus esté em sb considerar seu proprio caso, “para estudar 0 ‘homem, importa que a vista alcance mais longe; impée-se comecar observando as diferengas para descobrir as propriedades”. Por isso dedicaré dois capitulos especiais (IX e X) d andlise da formagéo e diferenclacao das linguas meridionais. e das linguas do norte. Aqui voltamos, sem diivida, ao mesmo clima tebrico de outros escritos ao tratarem das “sociedades nascentes". A precedéncia dada ao sul explica-se, alids, assim: nos climas quentes, as condigies fisicas tornam mais vidvel 0 isolamento ‘em que inicialmente viviam os homens. Se impulsos bésicos levam-nos & repro- dugao e mesmo ao pequeno grupo biolégico dela resultante, faltava 0 verdadeiro cconvivio social que provoca a comparardo com situagses semelhantes, fonte da reflexéo que, em si mesma, é a comparacdo de uma pluralidade de idéias. Dai a barbérie dos primeiros homens: “Sempre vendo té0-85 0 que estava d sua volta, ‘nem mesmo isso conheciam, nem sequer conheciam a si préprios. Tinham a idéia de um pai, de um filho, de um irmao, porém néo a de um horsem”. Daf sua aspe- reza natural: “Tudo que conheciam thes era caro. Inimigos do resto do mundo, ‘que ndo viam e ignoravam, odiavam-se porque ndo podiam conhecer-se”. Concebendo uma Idade de Ouro, que néo & a dos jusnaturalistas, porque nela néo hd uma reuniao natural e pacffica dos homens, e também nao é a de Hobbes, pois o estado de guerra é apenas eventual no isolamento necessério, Rousseau propende a crer que, entéo, a atividade produtiva seria a do pastoreio a da cara — a agricultura exige a expansio da posse, ¢, az mesmo tempo, sua defesa. Se, pois, passa em exame exemplos do estégio patriercal biblico, € para ‘mostrar quanto nele ainda se esta longe duma verdadeira e completa sociedade, orém ainda assim nao se esquece de que essa fase “esté bers longe da primeira ‘dade. Para sair da rudeca barbara, depois que a evolugdo da atividade levou os cacadores a guerra e.d conquista, e os pastores a fixaedo e & paz, viria um desen- volvimento agricola. “O selvagem é cacador; 0 barbaro, pastor: o homem civil- zado, agricultor.” De tal sorte, a interpretacao mesolégica se reforca pelo parale- lismo sécio-econémico. Se, pois, necessidades afastam os homens, novas necessidades os reuniréo. Para que estas surjam, operam-se “acidentes da natureza”, sejam cataclismé- ticos, sejam simplesmente ciclicos como as estagées em sua sucessao. A fogueira ow a fonte, recursos simples na luta contra a natureza, sido também lugares de reunido. “At se formaram os primeiros lacos de familia e ai te deram os primei ros encontros entre os dois sexos." E da reuniao nasce a necessidade de se comu- rnicarem, isto é, a linguagem desenvolvida. Que,no Sul, se ligou substancialmente INTRODUCAO. 155 a0 prazer e, pois, se fez de acentos sedutores até que novas alteragdes levassem (0 homem a s6 pensar em si mesmo. ‘Jé oNorteé regido de vida dura, que seleciona os homens mais fortes — ou seja: as vozes mais dsperas — e Ihes impoe o dever de uma constante atividade — isto 6, de expressies secas e diretas. A lingua nasce de uma constante caréncia ¢ nao do amor e da ternura. E a linguagem “da cdlera e das ameacas, ¢ essas vozes sempre se acompanham de articulagses fortes, que as tornam dsperas ¢ estridentes”. Assim se marcam “as causas fisicas mais gerais da diferenca carac- teristica das linguas primitivas”, que hoje ainda caracterizam “as linguas moder- rnas, centenas de vezes misturadas e refundidas”. C. A QUESTAO DA MUSICA Claro fica que, inicialmente, as linguas meridionais eram por natureza musicais, ou melhor: faziam-se com a propria musica. E, também, que essa mist a, formada naturalmente, era pura melodia. Muito provavelmente tais atributos ainda se discerniam na lingua e na misica dos gregos (cap. XI). A melodia é, ois, essencial & misica, como o desenho a uma pintura — 0 que leva Rousseau 4 figurar uma hipétese sobre a arte néo-figurativa, verdadeiramente profética, que nao cabe porém na ordem de nossas cogitacdes. Seu principal objetivo, nes. tes capitulos dedicados & musica e também eles algo afastados de nosso interesse prinelpal, €caracterizar a harmonia como uma racionalizagéo da cria¢éo sonora ‘que, por mais legitima que seja, sempre tende a abafar a invengdo melédica, ou seja, 0 que de musical hd na miisica eo que de sentimental e natural hd nas suas expressoes (cap. XIV). £ a polémica contra Rameau que, de tal sorte, acaba por estabelecer-se francamente e, como convinha & querela em curso, p6r-se em dire- tarelacéo com as linguas, observadas as caracteristicas temperamentais destas. Trata-se de detxar bem claro que o simples estimulo das sensagdes, por mais cal- culado que seja, nao atinge 0 objetivo maior da comunicagao musical, que é de despertar, por via de sensagées estimuladas, impressoes morais (cap. XV). Desa: tendendo & natureza temporal da musica (cap. XV e aproximando-se perigosa- mente da mera sensagio fisica (cap. XVID, os muisicos atentam contra sua pré- ria arte: “Deixou jé de falar e logo néo cantaré mais; entao, com todos os seus acordes ¢ toda a sua harmonia, ndo terd mais feito algum sobre nds Todas as alegagées eruditas, como as referéncias descabidas & miisica grega (cap. XVII), de nada valeréo para deter a degenerescéncia da miisica moderna que, comprometida pela antimusicalidade dos bérbaros durante toda a Idade ‘Média, encontraré o termo final na racionalizacao, isto é, na harmonizacao, ini- ‘igo mortal da melodia (cap. XIX). D. OCAPITULO FINAL Jé as primeiras palavras do capitulo XX denunciam que ele néo se liga dire- tamente aos que o precedem. De fato, as palavras inictals — tais progressos — ni se referem especificamente aos progressos, alids funestos, da miisica, de ‘que se acaba de falar, senao diretamente as transformagoes da lingua, de que se Tratou até o capitulo XI. Hé base, pois, para inferir-se ou que Rousseau haja 136 INTRODUGAO, Inserido suas observacées musicals num texto anteriormente preparado para explicar a evolugao das linguas (e, entdo, a hipdtese de P.M. Masson cresce de importéneia), ou que o texto, concebido e atacado como um todo, por qualquer vrazdo permaneceu privado de alguns capitulos anteriores ao que conclui a versao de que hoje dispomos. De qualquer forma, esse vigésimo capitulo & um esboco precioso dos desen- volvimentos que, no final, detxa vislumbrar com a frase de Duclos, inter-relagdo sobre a lingua-sociedade, ndo apenas no sentido evolutivo, que de qualquer modo ‘ficou bastante explicito nas duas porgdes iniciais do Ensaio, sendo também no ‘sentido daquela alienagéo da natureza humana submetida é deformagéo trazida pelas anomalias da sociedade policiada ao cair sob o despotismo. E 0 que nos ‘permitem supor os quatro pardgrafos do capitulo XX. ‘De fato, se a vida em sociedade transfigurow e alterou o sentido primeiro € natural ‘da linguagem, tirando-lhe quase tudo da comunicagdo sentimental e moral, para dar-Ihe apenas preciséo e clareza, um segundo passo, ainda mais funesto, aqui fica assinalado: quando néo hé liberdade, a lingua se torna inill. ‘Realmente, se 0 homem tudo perde quando perde a liberdade, nao hd por que pretender reservar-se a comunicagao com os semelhantes quando suas relacoes ‘sdo ditadas do alto. A elogiiéncia, comunicaeéo entre os cidadéos sobre matéria de interesse comum, esvazia-se de sentido e funedo. Restariam os sermées, isto é, a elogiiéncia em soliléquio ¢ ditada pela autoridade, porém até mesmo a forma deturpada deixa de ser itil em relacdo ao povo, do qual afixal para nada depen- de. E, conseqiientemente, a linguagem, permanecendo em funcao secundéria e ‘apenas para contatos sem grandes conseqiiéncias, jé ndo conhece um verdadeiro cultivo; “no sussurro dos sofés”, no pilpito, na voz de “um académico que, num dia de assembléia piiblica, 18 uma meméria” sem qualquer repercussio, resume- se a vida desse instrumento que 0 homem conquistou e desenvolveu para mais ligar-se aos outros homens. Eis como se torna evidente e decisiva a importancia do Ensaio sobre as Lin- guas no desenvolvimento da teoria politica de Jean-Jacques Rousseau. ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LINGUAS NO QUAL SE FALA DA MELODIA E DA IMITACAO MUSICAL 2 edigies do Emil, Rovssem, ai subse Pepi de Neda. © tle (Side G: Mt) 3 que Figura no Livro IVs che roa, pores nas edie Capiruto I Dos virios meios de comunicar nossos pensamentos ‘A palavra distingue os homens entre os animais?; a linguagem, as nagies entre si — no se sabe de onde € um hhomem antes de ter ele falado. O uso € a necessidade levam cada um a apren- der a lingua de seu pafs, mas o que faz ser essa lingua a de seu pais e nao ade ‘um outro? A fim de explicar tal fato, precisamos reportar-nos a algum moti vo que se prenda ao lugar € seja ante- rior aos proprios costumes, pois, sendo a palavra a primeira instituigo so- cial?, s6 a causas naturais deve a sua forma. Desde que um homem foi reconhe- ceido por outro como um ser sensivel, pensante ¢ semelhante a ele proprio, 0 desejo ou a necessidade de comunicar- Ihe seus sentimentos € pensamentos } Palo Discurso sobre a Desiqualdade sabe- ‘mos, primeiro, que nio € tanto pelo entendi ‘menio que os homens se distinguem dos ani- mais, sendo pela sun qualidade especifica de bhomem: a capacidade de se aperfexoar tanto {ndividualmente quanto como espécie, Fiel & Iigdo de Montaigne, Rousseau opée se unani smdade dos. seus ‘contemporaneos, para. os ‘uals 0 homem se caracteriza como um “ ‘al raciona”. Aqui, sa faculdade da palavea E apontads como rago distintvo, logo patenteara sua pequena importancia, para tor- ‘ar mais evidente a funcéo da linguagem que, essa, € um dos aperfeigoamentos Upicos: do hhomem. (N. de. G. M.) fizeram-no buscar meios para isso. Tais meios 96 podem provir dos senti- dos, pois estes constituem os tinicos instrumentos pelos quais um homem pode agir sobre outro. Ai esta, pois, a instituigo dos sinais sensiveis para exprimir 0 pensamento. Os inventores da linguagem no desenvolveram esse raciocinio, mas o instinto sugeriu-thes aconseqiiéncia’. Limitam-se a dois os meios gerais por via dos quais podemos agir sobre 98 sentidos de outrem: 0 movimento € ‘a voz. A ago do movimento pode ser > Insiuigdo social, porque, na formagio da linguagem,interessa menos a aptiio Fisil sice para emitire articular sons do. que a hecestidade “de comunicagio que leva 0 Thomem 2. utilizar essa possibilidade para desenvolver as palavras. Eo que se I ‘equ, sendo-de sublinhar que Rousseau no trepidae chega aos extremos de sus hipoteses ‘quando coloca 0 gesto em posigio equivalente a palavra enguanto meio d= comunicasio, para depois apontar a razio da preferéncia pela linguagem falada.(N.deL. G..M.) ** Supoe-se aqui © homem em um nivel de cexiséncia extemamente singelo — vive sozi ‘ho, embora venha a ter contatos com os Semethantes. Em tas condigoes, mio se neces. sita explicar 0 uso da palavra nem pela razio ‘nem por um impulso inato, pois estamos em face de um fendmeno de "vivencia"s poss lidade oferecida pela constiwigao do homem vale & necessidade trazida pelo contato com ‘outro homem. (N.de L.G.M.) 160 ROUSSEAU imediata, no tato, ov mediata, no esto. A primeira, encontrando seu mite no comprimento do brago, nfo pode transmitirse a distancia, mas a outra alcanga tio longe quanto 0 raio visual. Restam, pois, somente a vista e ‘© ouvido como éreaos passivos da lit ‘guagem entre homens dispersos. Apesar de serem a linguagem do esto € a da vor igualmente naturais, a primeira, todavia, parece mais facil ¢ depende' menos de convengées, por- quanto um maior nimero de objetos impressiona antes nossos olhos do que 103905 ouvidos, ¢ as figuras apresen- tam maior variedade do que 08 sons, ‘mostrando-se também mais expres sivas ¢ dizendo mais em menos tempo. © amor, dizem, foi o inventor do dese nhho; péde também inventar a palavra, porém com menor felicidade. Pouco satisfeito com ela, despreza-a; possui maneiras mais vivas para se exprimir. Quanto dizia a seu amante aquela que com tanto prazer tragava a sua som bra! Que sons poderia empregar para traduzir esse movimento do brago? Nossos gestos nada significam além de nossa inquietagio natural, mas nao € desses gestos que desejo falar. $6 0s europeus gesticulam quando fala dir-seia que toda a forga de sua lin uagem reside nos bragos, ¢ acrescen- tam Ihe ainda a dos puimées, de nada Ihes servindo tudo isso. Enquanto um francés se agita e marttiza 0 corpo dizendo muitas palavras, um tureo tira por um momento o cachimbo da boca, diz. a meia vor duas palavras e esma- go com uma sentenga. Depois que aprendemos a gesticular, esquecemo-nos da arte das pantomi mas, pelo mesmo motivo por que, pos suindo muitas belas graméticas, nao entendemos mais os simbolos dos egip- ids. O que os antigos diziam com maior vigor nao exprimiam com pala- vras mas com sinais. Nao o diziam, mostravam-no®. ‘Abri a Historia antiga e a encontra- reis cheia desses meios de convencer os ‘olhos, que nunca deixam de produzir eleito mais seguro do que 0 de todos os discursos que se poderia colocar em seu lugar. O objeto oferecido antes da palavra acorda a imaginagio, excita a curiosidade, mantém o espirito em sus- penso ¢ na expeciativa do que se vai dizer. Observei que 08 italianos e os provengais, entre os quais comumente © gesto precede o discurso, encontram assim um meio de se fazer ouvir me- thor e até com mais prazer. Entretanto, a linguagem mais expressiva é aquela em que o sinal diz tudo antes que se fale. Taraiinio, Trasibulo, decepando os botdes de papoula, Alexandre apon do seu selo A boca do favorito, Didge- nes passeando diante de Zenao, nao falavam melhor do que com palavras? Qual o conjunto de palavras que te: riam exprimido tio bem as mesmas idéias? Dario, com seu exército na tia, recebe do rei dos citas uma ra, um passaro, um rato e cinco flechas. 0 mensageiro entrega silenciosamente 0 presente e parte. 0 terrivel discurso foi compreendido, ¢ Dario s se preocu: pou em alcangar, com a maior rapidez Possivel, 0 seu pais. Substitui esses si ais por uma carta — quanto mais, ameagadora for, menos intimidara. Nao passaria de uma fanfarronada, da qual Dario s6 teris de rir. Quando o levita Efraim ® quis vingar © Em sintese, © meio expressiva em si mesmo nada vale — depois d ter servido para trans iti 05 simbotos das coisas e das ages, pode ewvariarse de conteide e permanceer como alo interamenteindevo, como sja a gesticu iio, (N.deL. GM) S"Desse episidio bitico Guizes”, 19 421) Rousseau tiara um breve poema em prosa, pelo qual sempre demonstrow particular car! Bho. (N-deL GM). ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LINGUAS ‘a morte de sua mulher, no escreveu as tribos de Israel; dividiu-the o corpo em doze pedagos que enviou a elas. A hor- rivel visio, empunharam rapidamente as armas, gritando todos a uma s6 vo: ‘Nao! nunca tal coisa aconteceu em Israel, desde 0 dia em que nossos pais ssalram do Egito até hoje. E a tribo de Benjamim foi exterminada”, Em nossos dias, o assunto, transfor mado em arrazoados, em discusses, até mesmo em brincadeiras, arrastar- se-ia, e permaneceria impune o mais tremendo dos crimes. O rei Saul, vol- tando da lavoura, também despedagou 1 bois de seu arado e serviu-se de um sinal semelhante para fazer Israel socorrer 2 cidade de Jabés. Os profetas dos judeus, os legisladores dos gregos, oferecendo’ freqiientemente ao povo objetos visiveis, falavam-lhe melhor com esses objetos do que o teriam feito com longos discursos, ¢ 0 modo pelo gual Ateneu conta como o orador Hipérides fez absolver a cortesi Fri- néia, sem alegar em sua defesa uma ‘inica_palavra, constitui ainda uma elogiiéncia muda, cujo efeito, em todos ‘0s tempos, nao é raro’. Assim se fala aos olhos muito me- thor do que aos ouvides. Nao ha uma s6 pessoa que no reconhega a verdade do juizo de Horécio a tal respeito. ‘Compreende-se mesmo que os discur sos mais elogientes so aqueles em que se introduz o maior nimero de imagens e os sons nunca possuem ‘maior energia do que quando fazem 0 feito das cores. Temos totalmente diversa, contudo, quando se trata de comover 0 coragdo e inflamar as paixdes. A impressio sucessiva do discurso, que > Restaram somente seiseenios momen mulheres fis. (N. do A) xpresentando a nvs 20s juizes (N. de L. M) impressiona por meio de golpes redo- brados, proporciona-vos emogao bem diversa da causada pela presenga do préprio objeto, diante do qual, com um 85 golpe de vista, tudo ja vistes. Supon- de uma situagao de dor perfeitamente conhecida — vendo a pessoa afta,

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