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O nascituro no Cédigo Civil e no direito constituendo do Brasil Stumana J. A. CHINELATO © ALMEDA Professora Assistente Doutora de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universi- dade de Sio Paulo Realizouse em Bogotd, Colombia, de 10 a 12 de agosto de 1987, 0 “Congreso ItaloIberoamericano de Derecho Civil y Romano” sobre “La persona en el Sistema Juridico Latinoamericano” visando a elaboracio de um Cédigo Civil Tipo, congresso esse promovido pela Universidade Exter- nado de Colémbia e Associazione di Studi Sociali Latino-Americani (Assla), com sede em Sassari, Itélia. Naquela oportunidade apresentamos a comunicagio aqui reproduzida, tendo em vista a importincia e atualidade do tema para a legislagio cons- tituenda da América Latina, inclusive para o Brasil, onde é tratado nao 36 no Projeto de Cédigo Civil, como também no Anteprojeto de Consti- tuigo Federal. 1. Consideracoes gerais As controvérsias, ainda ndo pacificadas, acerca de o nascituro ser ou no ser pessoa, de ter ou no ter personalidade juridica, € uma constante, na doutrina, com reflexos na jurisprudéncia, no tempo € no espaco. © art. 4° do Cédigo Civil Brasileiro parece contraditério, pois, a0 mesmo tempo em que afirma que a personalidade comega do nascimento com vida, reconhece direitos e estados ao nascituro, os quais efetivamente Ihe so atribuidos através de varios de seus dispositivos. O problema do aborto, cuja maior liberagdo tem sido defendida por grupos sociais nota- damente feministas ¢ por alguns penalistas, deve ser acompanhado de uma R. Inf. legis! Brasilia. 25 9. 97 jon./mor. 1988 181 eflexdo quanto ao direito & vida, ou melhor, quanto ao direito de nascer, como direito privado da personalidade, o que no tem sido feito. © grande desenvolvimento do instituto da responsabilidade civil que, nos dias atuais, atinge grande relevancia através da ctescente indenizagao de danos materiais, inclusive de danos causados a animais ¢ do dano moral, ainda se mostra timido quanto A indenizagio de danos causados 80 nas- cituro. Pelo menos no Brasil, a jurisprudéncia nega a indenizag3o pela morte de nascituro, embora reconheca que a morte de animais, por culpa extra- contratual ou por culpa contratual, deva ser indenizada. Deve-se também considerar o grande desenvolvimento da ciéncia, atra- vés das novas técnicas de fertilizagio “in vitro” e do congelamento de embrides humanos, o que influi no conceito atual de nascituro. O por nds proposto é o mesmo de RUBENS LIMONGI FRANCA (in Manual de Direito Civil, 3* ed., So Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, p. 123): “é fa pessoa que esté por nascer, jé concebida no ventre materno”, E importante observar que, para nés, somente se poderd falar em “nascituro” quando houver nidagao do ovo. Embora a vida se inicie com a fecundagio, ¢ a nidagio — momento em que a gravidez comega — que garante a sobrevida do ovo, sua viabilidade. Assim sendo, na fecundaggo “in vitro”, nao se considera nascituro, isto é, a “pessoa”, o ovo assim fe- cundado, enquanto no for implantado no titero da futura mae. Pelo menos no estégio em que a ciéncia se encontra hoje, a exigir a implantagéo no ‘itero materno, do ovo fecundado na proveta, como condi¢ao de seu desen- volvimento, nascituro é um conceito que sé existe quando hé gravidez, seja ela resultado de fecundagéo “in anima nobili” (por inseminago na- tural ou por inseminag&o artificial) ou “in vitro”. Destarte, também nao € nascituro o embrifo humano congelado — conforme recente técnica desenvolvida na Universidade de Monash, de Melbourne, Austrélis —, que, no entanto, deve ser protegido juridica © eticamente como pessoa virtual. No direito estrangeiro, apés estudarmos cédigos civis de diversos pai- ses, entre os quais Franca, Itélia, Espanha, Austria, Portugal, Suica, Ar gentina, Chile, Peru, Coldmbia e até da China, observamos que todos eles reconhecem certa capacidade juridica ao nascituro, desde a concepgao, ain- da que disponham que a personalidade comece a partir do nascimento com vida. Especial atengio merece o Cédigo da Argentina, valiosa obra de VELEZ SARSFIELD, que estabelece o inicio da personalidade a partir da concepgo, pois o nascituro tem certos direitos a partir de entao, como se jf tivesse nascido, tomando-se irrevogavelmente adquiridos se nascer com vida; considera expressamente 0 nascituro como pessoa por nascer, integrando o rol dos absolutamente incapazes (art. 54, 1.°), tal como o faz o ilustre civilista brasileiro TEIXEIRA DE FREITAS na Consolidagao 162 R. Inf, lepist. Brasilia, 25 m, 97 jan./mer. 1988 das Leis Civis e no Esbogo de Cédigo Civil. © Cédigo Civil chileno, por suia vez, reconhece o diteito & vida, que € incondicional, como um direito privado {art. 75). Conforme muito bem demonstra o eminente Professor italiano PIE- RANGELO CATALANO — em relevante pesquisa especffica intitulada “Qs Nascituros entre o Direito Romano e o Direito Latino-americano”, a ser publicada na Revista de Direito Civil —, “deve-se admirar o esforgo criativo dos juristas latino-americanos empenhados tanto na interpretacao dos c6digos hodiernos, quanto na elaboragaio de novos cédigos, ao seguir a tradigéo romana justinianéia, contrapondo-se & interpretagao germénica do direito romano”. Bascia-se o ilustre Professor italiano na anélise cui- dadosa do Cédigo Civil peruano, de 1984, notdvel obra de CARLOS FER- NANDEZ SESSAREGO, cujo art. 1.° considera o nascituro como sujeito de direitos para tudo quanto o favoteca, consagrando, ainda em sede de direito positivo, a tese que jé sustentévamos em 1983, de que somente 0s direitos patrimoniais, como a doagao ¢ a heranga, esto condicionados {resolutivamente) a que nasca vivo; relembra, também, o insigne roma- nista catalano, o Cédigo Civil paraguaio, de 1985 — que no art, 31, tra- tando da representacdo, retoma o conceito de “pessoa pot nascer” —, ¢ 0 Projeto de Cédigo Civil colombiano, de 1980, que rejeita a teoria da fic- 40, utilizando-se do conceito de ser humano para abranger o concebido No ventre materno (art. 35). Ao tratarmos do inicio da vida, invocamos, como argumento filosé- fico, a doutrina aristotélico-tomista, segundo a qual, desde a concepgio, o homem traz em si o germe de set racional, Do ponto de vista bioldgico, nao hé diivida de que a vida se inicia com a fecundagao do dvulo pelo espermatozdide, resultando um ovo ow zigoto. Assim o demonstram os atgumentos colhidos na biologia. A vida vidvel comeca, porém, com a nidagéo, quando se inicia a gravidez. Con- forme adverte o biélogo BOTELHA LHUZIA — in prélogo do livro Dere- cho a la Vida e Institucién Familiar, de GABRIEL BEL ES ESTAL (Madrid, Eapsa, 1979) —, em ligao lapidar, 0 embriao ou feto representa um ser indi- vidualizado, com uma carga genética propria, que nao se confunde nem com a do pai, nem com a da mae. Por isso, néo é exato afirmar-se que ‘© embriao ou feto seja parte do corpo da mae. Alcangando grande desenvolvimento nos dias atuais, a perinatalogia — ramo da medicina dedicado primariamente ao feto ¢ 4 crianga reeém- nascida — fez grandes conquistas em favor da sade e do normal desen- volvimento do nascituro, através das técnicas de: amniocentese, transfusio de sangue na eritroblastose fetal, ultra-sonografia, etc. Quanto a terapia médica, ¢ possivel administrarem-se medicamentos a fetos, seja fornecendo a droga & mae, seja dissolvendo-a no liquido amnidtico. Mais recentemente, em 1980, em Chicago, ha noticia de nove R. inf, legist. Brosilia o, 25 n. 97 jon./mor, 1988 183 cirurgias intra-uterinas, bem sucedidas, indicadas nos casos de hidrocefa- lia e hidronefrose. Isto demonstra que a ciéncia se preocupa com o nasci- turo — seja embriao, seja feto — como ser auténomo e independente da mie, procurando cada vez mais possibilitar-lhe o normal desenvolvimento tendo por objetivo o nascimento perfeito. Examinadas as diversas correntes doutrindrias que tentam explicar a natuteza juridica do nascituro, podemos reunilas em trés grandes grupos: doutrina natalista (considera o inicio da personalidade a partir do nasci- mento com vida), doutrina da personalidade condicional, impropriamente denominada “concepcionista” (considera que a personalidade comega com a concepcao, sob a condigao do nascimento com vida) ¢ doutrina verda- deira concepcionista. Colocamo-nos entre os adeptos da tiltima, que também tem por segui- dores; JOSE TAVARES — in Os Principios Fundamentais do Direito Civil (Coimbra, Coimbra Editora Limitada, 1928, v. II), jurista portugués, € 0s juristas brasileiros, TEIXEIRA DE FREITAS — in Consolidagao das Leis Civis (32 ed., Rio de Janeiro, H. Garnier Editor, 1986) ¢ Esbogo de Cédigo Civil (Mi io da Justiga e Negécios Interiores, Servigo de Do- cumentagao, 1952), PONTES DE MIRANDA — in Tratado de Direito Privado, Parte Geral, Introdugao. Pessoas Fisicas e Juridicas (Rio de Ja- neiro, Borsoi, 1954, tomo 1) e Tratado de Direito Privado. Parte Especial. Direito de Familia: Direito Parental. Direito Protectivo. (Rio de Janeiro, Editor Borsoi, 1955, tomo IX), R. LIMONGI FRANCA — in op. cit, — ANACLETO DE OLIVEIRA FARIA ¢ ANDRE FRANCO MONTORO — in Condigao Juridica do Nascituro no Direito Brasileiro (Sao Paulo, Saraiva S/A, 1953). Segundo pensamos, o nascituro tem personalidade desde a concepgiio. Quanto a capacidade de diteito que ndo se confunde com personalidade, apenas certos efeitos de certos direitos, ou sejai os patrimoniais materiais, dependem do nascimento com vida, como o direito de receber doagao ¢ de receber heranga (legitima e testamentéria). Os direitos absolutos da personalidade, como o direito a vida, o direito & integridade fisica ¢ & sati- de, independem do nascimento com vida. O direito a alimentos, intima- mente ligado ao direito & vida, independe do nascimento e, a0 contrério, a ele objetiva, conforme jé se vé inquestionavelmente nos seguintes textos do Digesto: D. 37, 9, 1, 15, D. 37, 9,5 e D. 37, 9,6. A mesma dependéncia se verifica quanto ao direito & curatela e & representagdo. O nascituro é titular desses direitos, desde a concepgao e independentemente do nasci- mento com vida. Ainda que possa haver discordncia quanto ao inicio da vida, do ponto de vista filoséfico religioso, pode-se prescindir de tais argumentos para afirmar que, biologicamente, nao hé dtivida de que a vida comeca com a fecundagéo, e a vida vidvel, com a gravidez, que se inicia com a nidagéo. Juridicamente também nao hé como negar-se personalidade a0 nas- cituro, o qual, em todas as legislagdes dos povos cultos, goza de certa 194 R. Inf, lopiel, Bs 2. 25. 97 jon./mor, 1988 capacidade juridica de direito e de “status”, ambos elementos da perso- nalidade, nem sempre dependentes do nascimento com vida, A prategio ao direito & vida do nescituro, através da inctiminaggo do aborto, também € uma constante na legislagao estrangeira com poucas excegdes. Se ha outros interesses protegidos na incriminagio do aborto, como o interesse da estirpe e interesses demogrdficos do Estado, na ver- dade 0 bem juridico tutelado é, primordialmente, o direito & vida, con- forme o reconhecem os autores, entre os quais se incluem VINCENZO LANZA — “Sull'oggetto del delitto di aborto ¢ sul concetto di persona nel diritto penale” (in Rivista di Diritto e Procedura Penali. Milano, 1918, pp. 211-15) ¢ EDUARDO NOVOA ALDUNATE — in “El Comienzo de la Existencia Humana y Proteccién Juridica” (Facultad de Ciencias Juri- dicas, Politicas y Sociales. Universidad Catélica de Chile. Memoria, n° 46. Santiago de Chile. Editorial Juridica de Chile, 1969). Il. O nascitura no Cédigo Civil Brasileiro A despeito da redagio aparentemente contraditéria do art. 4° do Cédigo Civil, que, estabelecendo o inicio da personalidade civil a partir do nascimento com vida, concede direitos ¢ nao expectativas de direitos ao nascituro, é possivel concilié-lo consigo mesmo e¢ com todo o sistema agasalhado pelo Cédigo, que reconhece direitos ¢ estados ao concebido, desde a concepcéo — nem sempre dependentes do nascimento com vida —, em harmonia com os diplomas legais de outros ramos do direito. Utilizando-nos dos métodos légico e sistemdtico de hermenéutica, en- tendemos que o art. 4.° em tela consagra a teoria concepcionista e ndo a tcoria natalista, conforme tem sido erroneamente defendido pela maioria dos autores. © nascituro é pessoa desde a concepgo. Nem todos os direitos estados a ele atribuidos dependem do nascimento com vida. como, por exemplo: o estado de filho (art. 458 CC), de filho legitimo (arts. 337 ¢ 338 CC), de filho reconhecido (art. 353 CC), o direito a curatela (arts, 458 © 462 CC) ¢ & representago (art. 462, caput, combinado com os arts. 384, V, e 385, todos do Cédigo Civil), o direito a vida, ao qual se relaciona 0 direito a alimentos, o direito A integridade fisica (lato sensu), este tiltimo diteito da personalidade no qual se compreendem o direito & integridade fisica stricto sensu e & satide — direitos absolutos, A personalidade — que nao se confunde com capacidade — no é condicional. Apenas certos efeitos de certos direitos, isto é, os direitos Patrimoniais materiais, como a heranga ¢ a adogao, dependem do nasci- mento com vida. A plenitude da eficdcia desses direitos fica resolutiva- mente condicionada ao nascimento sem vida. O nascimento com vida, enunciado positive de condicéo suspensiva, deve entender-se, ao reverso, como enunciado negativo de uma condigao resolutiva, isto é, o nascimento R. Inf. togisl, Brosifia 0, 25. n, 97 Jan./mor, 1988 185 sem vida, porque a segunda parte do art. 4.° do Cédigo Civil bem como outros de seus dispositivos reconhecem direitos (no expectativas de direi- tos) e estados ao nascituro néo do nascimento com vida, mas desde @ concepgao. © nascimento com vida aperfeigoa o direito que dele dependa, dando- the integral eficdcia, na qual se inclui sua transmissibilidade. Porém, a posse dos bens herdados ou doados ao nascituro pode ser exercida, por seu Tepresentante legal, desde a concepcao, legitimando-o a perceber as rendas e os frutos, na qualidade de titular de direitos subordinado a con- digo resolutiva. Fundamentam nosso entendimento os arts. 119, 1.186, 1.572, 1.778, todos do Cédigo Civil e os arts. 877 ¢ 878 do Cédigo de Processo Civil brasileiro, A tomada de posigao de que o nascituro é pessoa importa reconhecer- Ihe outros direitos. além dos que expressamente Ihe sdo conferidos pelo Cédigo Civil, uma vez que se afastam na espécie, por inaplicdvel a regra de hermenéutica “excepciones sunt strictissimae interpretationis”. Reitera nosso modo de ver quanto & néo-taxatividade dos direitos reconhecidos ao concebide, pelo Cédigo, outro postulado de hermenéutica, no sentido de que a enunciacdo taxativa ¢ indicada expressamente pelas palavras sd, somente, apenas e outras similares, inexistentes no texto do art. 4.° que, ao contrdrio, refere-se genericamente a “direitos do nascituro”. Entre os direitos que também podem ser a ele atribuidos incluem-se, por exemplo: diteito de ser beneficiério de estipulagdo a favor de terceiro (art. 1.098 CC), direito de ser beneficidrio de seguro de vida (art. 1.474, combinado com o art. 1.169, ambos do Cédigo Civil), direito a alimentos (arts. 396 405 do Cédigo Civil), direito & vida (art. 1.537 CC), direito A integridade fisica (stricto sensu) e & satide (art. 1.538 CC). Assim sendo, propomos que 0 Projeto de Cédigo Civil brasileiro, bem como a legislacao constituenda, em geral, adotem a orientagio do Esboco de TEIXEIRA DE FREITAS, estabelecendo que a personalidade se inicie com a concepgdo, e 0 nascituro seja expressamente considerado como su- jeito de direito. Somente certos atributos de sua capacidade juridica, nota- damente a aquisicao de direitos patrimoniais materiais, como a doagiio e heranga, ficariam resolutivamente condicionados ao nascimento com vida. Quanto a responsabilidade civil por dano causado ao nascituro, enten- demos ser indenizével a morte do conceptus porque ele € pessoa, desde a concepeao, apesar da redago defeituosa do art. 4.° do Cédigo Civil, que deve ser interpretado de acordo com todo o sistema por ele agasalhado e nao isoladamente. Nao ha razo aceitével para nao se indenizar a morte do conceptus conforme orientagiio dos poucos acérdos brasileiros que tratam da questéo. Nem o mencionado art. 4.° autoriza tal entendimento. Segundo pensamos, o fundamento legal para a indenizagao civil pela morte do nascituro € 0 mesmo para a do jé nascido. Na responsabilidade civil 186 R. Inf. legisl, Bresitia @. 25 0, 97 jon./mar. 1988 extracontratual ou aquiliana, os fundamentos legais so os arts. 159, CC, 1.537, CC e a Stmula 491 do Supremo Tribunal Federal, que assim se enuncia: “E indenizavel o acidente que cause a morte de filho menor, ainda que nio exerga trabalho remunerado”. Tratando-se de culpa contratual, como no contrato de transporte, por exemplo, fundamento da responsabili- dade civil € 0 proprio contrato que acarreta a presungéo de culpa, pelo transportador. Nesse sentido € 0 art. 17 do Decreto n.° 2.681, de 7 de dezembro de 1912, que regula a responsabilidade civil das estradas de ferro € que a jurisprudéncia brasileira estendeu a todo tipo de transporte oneroso como o bonde, o dnibus, o taxi ¢ a barca. Mesmo se se prescinda do inquestiondvel argumento de que o nascituro € pessoa, desde a concepgao, a obrigacdo de reparat o dano que Ihe causa a morte fundamenta-se no instituto da responsabilidade civil. O dano é moral ¢ sua reparacio — que visa a uma compensacdo e ndo a um ressarcimento — faz-se pelos mesmos critérios que norteiam a indenizagio pela morte de filho menor. Ul. Direito Constituendo A} O nascituro no Projeto de Cédigo Civil Brasiteiro © Anteprojeto de Cédigo Civil, de 1972, no art. 3, agasalhava dis- Positivo idéntico ao do art. 4° do vigente Cédigo Civil (“A personalidade civil do homem comega do nascimento com vida, mas a lei pée a salvo desde a concepgao os direitos do nascituro”). © Projeto de Cédigo Civil — Projeto de Lei n° 634, de 1975, publi- cado no Didrio do Congreso Nacional, de 17 de maio de 1984, suplemento 20 n.° 47 — aprovado pela Camara dos Deputados e ora em tramitacZo no Senado Federal — traz significativa inovagao ao suprimir do texto anterior a expresso “desde a concepgao": “A personalidade civil do homem comega do nascimento com vida, mas a lei pe a salvo os direitos do nascituro.” Justifica o preclaro autor da Parte Geral do Projeto, Ministre MOREI- RA ALVES, em sua obra A Parte Geral do Projeto do Cé igo Civil Brasi- leiro (Saraiva, 1986, p, 86); “Do art, 3.° (atual 2°), suprimiram-se as palavras “desde a concepgao”, para atender-se A objegio de que essa resttigdo entrae ria em choque com os arts. 2.007, 1, ¢ 2.008 (atuais 1.987, Le 1,988) do Anteprojeto, os quais — ‘como ocorre com 0 Cédigo vigente (art. 1.718) — admitem & sucesso os filhos ainda nao concebidos (nondum concepti). R, Inf, legisl. Brositia 0. 25 on. 97 jon./mar. 1988 187 Em que pese 20 grande respeito que devotamos ao insigne autor da Parte Geral do Cédigo Civil Brasileiro, entendemos que a objegio a que pretende atender nao pode ser acolhida, pois o nascituro, ou conceptus, ndo se assemelha nem se identifica com 0 nondum conceptus ou concepturus entre nés denominado “prole eventual”. O nascituro j& é pessoa, desde a concepgdo, no ventre materno, sem necessidade de valer-se da ficgdo, 0 que no ocorre com a prole eventual, pessoa ainda nao concebida e que, eventualmente, poderé até nunca sé-lo. Ao introduzir-se no Projeto conceito genérico de nascituro para abranger tanto o concebido, que & pessoa por nascer, como a pessoa futura ou nao concebida (¢ que, eventualmente, nunca © sera), equiparam-se dois conceitos que nao se equivalem no plano bioldgico, nem no plano juridico. Se hé semelhanga é entre pessoa nascida e pessoa con- cebida, conforme se vé na codificagao latino-americana € na prépria tradigao brasileira, desde as Ordenagdes Afonsinas (Livro 32, Titulo XVIII, § 7.°), Consolidagéo das Leis Civis de TEIXEIRA DE FREITAS (art. 1.°), Esbogo (art. 53 a 61 ¢ 221 a 227) do mesmo autor, Projeto de FELICIO DOS SANTOS (art. 77, § 1.9); Projeto Primitivo (arts. 2.° ¢ 5.°) ¢ Projeto Revisio (art. 4.°), ambos de CLOVIS BEVILAQUA. Embora o digno autor da Parte Geral do Projeto pretenda nao incidir na critica retromencionada, é de se salientar que o Projeto continua a fazer distingdo entre “pessoa existente”, “pessoa concebida” e “prole eventual”, pois, enquanto o caput do art. 1.821 legitima a suceder as pessoas existentes concebidas no momento da abertura da sucesso, o inciso I do art, 1.822 dispde que podem, ainda, ser chamados a suceder “‘os filhos, ainda nfo concebidos”, de pessoas in s pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessao ”; continua, assim, agasalhando distingao entre “pessoa existente”, “pessoa concebida” e “pessoa nfio concebida” (ou “‘prole even- tual”), 0 que demonstra que os dois dltimos conceitos nao se podem fundir ‘em um Unico e genérico de “nascituro”, conforme entendemos. Aplaudimos a observagéo do Professor Ordindrio de Direito Romano da Universidade de Roma, PIERANGELO CATALANO (op. cit.), no sentido de que 0 Projeto, ao pretender assemelhar “nascituro” ¢ “prole eventual”, encontra suas rafzes néo declaradas nas teorias pandectistas da fico € direitos sem sujeito. Como conseqiiéncia, teremos de interpretar taxativamente 0 texto legal, s6 cabendo aos nascituros os direitos que expres- samente lhes forem consagrados, semelhantemente ao que ocorre com outras codificagées influenciadas pelos pandectistas e ao contrario do que propuse- ‘mos, & luz do texto hoje vigente e na esteira do entendimento de outros auto- res, entre os quais o Magnifico Reitor da Universidad Externado de Bogoté, Professor FERNANDO HINESTROSA, ex-Ministro da Justiga da Colémbia (in Studi Sassaresi, 1970/80, p. 436), a propésito da possibilidade de se admitir a adogdo de nascituro, no ambito de aplicagio do Cédigo Civil de ANDRES BELLO, ainda que no prevista em lei. 188 R. Inf. legisl. Bresilia @. 25 n. 97 jon./mar. 1988 Quanto aos direitos expressamente reconhecidos ao nascituro, em cotejo com as disposigdes hoje vigentes, é de se lamentar que o Projeto tenha supri- mido a adogao de nascituro que, a0 contrario do que sustentam alguns, é de grande importéncia quando se encontrar na situagdo irregular descrita pelo inciso I, item b, do art. 2.° do Cédigo de Menores (Lei n.° 6.697, de 10-10-1979): isto ¢, privado de condigdes essenciais a sua subsisténcia ¢ sadide por manifesta impossibilidade dos pais ou responsdvel para prové-las. Com efeito, o direito de subsisténcia (incluindo-se alimentos e adequada assisténcia médica pré-natal) Ihe € concedido para que nasca vivo — como ja reconhecido por ULPIANO in D. 37, 9, 1, 15 — e poderd ser conse- qiiéncia da adogao, como obrigagao do adotante. Contempla o projeto o direito de receber doagao (art. 542); atribui o estado de filho legitimo ao concebido na constancia do casamento; estabele- ce o reconhecimento de nascituros (art, 1.623, pardgrafo Gnico); o art. 1,803, caput, estatui que seré dado curador ao nascituro, se o pai falecer estando a mulher gravida e nao tendo o patrio poder; se a mulher estiver interdita, seu curador seré o do nascituro (pardgrafo unico). No Livro V, Direito das Sucessdes, consagra inovago de primordial importancia, a preencher lacuna no ordenamento, que é a outorga de capacidade sucesséria ao conceptus, dentro da vocagao hereditéria, pois 0 Cédigo vigente a admite de modo expresso, unicamente dentro da sucesso testamentéria, conforme art. 1.718, embora a doutrina a reconheea também quanto 4 sucessiio legitima. A prole eventual s6 pode adquirir por testa- mento, estabelecendo 0 projeto o prazo de dois anos, apés a abertura da sucesstio, para que seja concebido o herdeiro esperado (art, 1.823, § 4"), inovando em relagdo ao Cédigo vigente, que nfo estabelece prazo algum. Nao hé mais dispositives que contemplem expressamente direitos a0 nascituro, cabendo 2 doutrina e a jurisprudéncia analisar se, diante da reda- go do art. 3.° do Projeto — que esperamos no prevalega —, serd possivel interpretagiio meramente exemplificativa e nfo tio-somente taxativa, confor- me parece sugerir. B) Anieprojeto de Constitui¢do Federal do Brasil 1, _A Assembléia Nacional Constituinte, instalada no ano de 1987, através da Comisso da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher — Subcomisstio dos Direitos ¢ Garantias Individuais —, assim consignou no anteprojeto: “Art. (...) Sao direitos ¢ garantias individuais I —a vida, desde a sua concepeao até a morte natural, nos termos da lei;” R, Inf, legicl, Brasilia @. 25m, 97 jan./mar, 1988 139 2. No Parecer ¢ Substitutivo da mesma Comissio, no Titulo I (“Dos Di- reitos ¢ Liberdades Fundamentais”), Capitulo | (“Dos Diteitos Individuais”), © art. 3.°, inciso 1, consagra: “Art, 3.° — Sio direitos ¢ liberdades individuais invioldveis: I — a vida, a existéncia digna ¢ a integridade fisica e mental: a) adquire-se a condi¢o de sujeito de dircitos pelo nasci- mento com vida; 5) a vida intra-uterina, insepardvel do corpo que a concebeu ou a recebeu, é responsabilidade da mulher, comporta expectativa de direitos ¢ seré protegida por lei;” 3. No Anteprojeto da mesma Comisséo a matéria esté assim regulada: “Art. 3° — Sio direitos e liberdades indiyiduais invioldveis: I — A VIDA, A EXISTENCIA DIGNA E A INTEGRIDA- DE FISICA E MENTAL: a) adquire-se a condigo de sujeito de direitos pelo nasci- mento com vida;”” 4. Tal dispositive — que representa lamentavel, inexplicavel ¢ inaceitivel retrocesso, data venia — fulmina 0 nascituro como sujeito de direitos, rompendo com a secular tradiggo romanistica justin’ que consagra a paridade do nascituro com o nascido, como regra geral, sendo as excecdes aplicdveis a algumas partes do direito, anotando-se que nao constitui ficcao, mas sim constatagio de uma realidade, conforme JULIANO in Digesto 1,5, 26, inteiramente aplaudido por TEIXEIRA DE FREITAS, na nota 221 do Esboco de Cédigo Civil, repelindo critica de SAVIGNY. Contrapée-se, destarte, também a tendéncia louvdvel das legislagdes da América Latina, no sentido de se ampliarem os direitos do nascituro e no de restringi-los, muito menos de reduzi-los ao nada juridico. E de s¢ ressalvar que nenhum dos Projetos de Cédigo Civil, desde TEIXEIRA DE FREITAS, até 0 projeto atual, pretendeu tal redugdo, que oscilaram entre atribuir personalidade condicional ou incondicional ao nascituro, mas sempre reconhecendo direi- tos em maior ou menor extensdo, Se prevalecer a norma em tela, 0 que esperamos nao acontega, possi- velmente serdo taxados de inconstitucionais quaisquer dispositivos que reconhecam direitos ao nascituro, no plano civil € nos demais ramos do direito, valendo lembrar que o proprio direito 4 vida — direito primordial do nascituro — protegido com relevancia pela incriminagio do aborto, como Tegra, nao poderd ser invocado em seu favor. Aguardamos, pois, que uma maior reflexao possa orientar nossos cons- tituintes para que, se o inicio da personalidade for objeto de texto constitu- cional — 0 que nao ocorre no projeto do Deputado Bernardo Cabral que segue, destarte, a tradicao brasileira —, seja ela fixada na concepgo e nao no nascimento com vida. 0 R. inf. legiel, Bresitia @. 25m. 97 jon,/mor, 1988

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