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eeweere ewer dss + : E Oo UNIVERSO DE - -PLATAO 2 w > a g > Pn S ; g Bg o ag a Tule © universe de Pato, cas 33 HOON Ves yee ’ 912406 vee Ex.2 > > = ; ose > » ’ ’ » » > ’ ’ , > » » ‘ , > ’ ’ » ‘ » , » » » , , ‘ » ' , 1 ‘ , ’ Em 0 Universo de Platio Gre- Gory Viastos analisa 0 impacto a descoberta grega do “cos- mos” sobre @ percepeio que © homem tem de seu lugar no Universo, descreve os proble- mas que daf surgem e interpre- 12 a resposta de Platéo a esta descobens. Iniciando com os Pré-socrdti= Viastos descreve a revolu- go intelectual que comecou com as cosmogonies de Tales, Anaximandro e Aneximenes no ‘século Vi aC. e culminou, um ‘século mais tarde, no sistema atomista de Leucipo e Demécri- to, O que unia estes homens & ue para todos eles 9 natureza ermanecia 0 principio inviolax do € todo-inclusivo de explc 30, excluinde qualquer apelo 2 ‘uma causa sobrenatural ou uma ago ordenadora Em uma anélise detalhada das tworias astrondmica e fsica do Timeu, Vlastos demonstra 0 papel que Plato desempe- hou na recepglo e transmis: da descoberta do cosmos: "Sut- indo ao final do movimento que projetou e consolidou 2 nova concepsio do Universo, Plat nos dé 8 oportunidade de ver movimento sob um prisma Sinico e instrutive: o de um are ‘dente opositor da revolugéo que lhe arrebatou sua mais brihante ‘descoberta, anexou seu cosmos € 0 reformulou segundo 0 pa- dro de sua prépria metatsica, idealists e teista Gregory Viastos & Stuart Pro- fessor of Philosophy na Univer- sidade de Princeton e jf publi- cou 0 renomado Platonic Studies (1973) além de indmeros artigos fe mionognfias sobre os Pré-so- crdticos ¢ Platdo, O UNIVERSO DE PLATAO Deacic fwewwewerwweewrwwwerrwrwwr errr wre errr FH Aeesoacko univensinane De oes Reitor: Cristovam Buarque Vice-reitor Joo Claudio Todorov EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASILIA Consetho Editorial Hiélio Jaguaribe de Mattos José Caruso Moresco Danni ~ Presidente José Walter Bautista Vidal Murilo Bastos da Cunha Odilon Ribeiro Coutinho Paulo Espirito Santo Saraiva Paulo Sérgio Pinheiro Sadi Dal Rosso ‘Timothy Martin Mulholland Viadimir Carvalho Wilson Ferreira Hargreaves O Universo de Plalao Gregory Vlastos Pensamento Cientifico Tradueao de Maria Luiza Monteiro Salles Coroa Revisao de Joao Pedro Mendes e Celestino Pires ESE tora Universidade de Brasilia Este liv ou parte dele produzido por qualquer meio ewe As lr dds Ade Pa dP SEaNCix Vat tas rorozcsn op 1958 ot Impresso no Brasil Eaitora Universidade de Brasilia ‘Universitiio ~ Asa Norte 1 Gz. e7j10.910f Bras ~ Distrito Federal ‘Titulo orginal: Plato's Universe 1y The University of Washington Press aca pces Mey Bolas Equipe Tecnica Controlador de Texto: ‘Thelma Rosane Perera de Souza Supersitor Grastco: Etmano Rodrigues Pinheiro ISBN 85.230-0033-X. Ficha Catalogrificaelaborada pela Biblioteca Central dx Universidade de Brasilia Prise Viastos, Gregory Salles 21987. ‘© Universode Platio. Trad. de Maria Luiza Monteiro ‘Coroa. Brasilia, Editora Universidade de Brasia, 112p. (Colesdo Pensamento Cientilico. 2) Titulo oxginal: Plato's universe. 1038) P718.07%" 929 PTI Dedico este pequeno livro, com afetuosa gratiddo, aos membros do Conselho de Princeton e aos seus leais alunos. Na fé que eles tém na sua universidade repousa sua continua exceléncia. eran neem nnn nnn nme nem anseaneeeeae Agradecimentos E um prazer agradecer a hospitalidade que recebi, no campus da Universidade de Washington, do Professor David Keyt, Chefe do Depar- tamento de Filosofia, do Professor John MeDiarmid, Chefe do Departa- mento de Letras Clissicas e de muitos de seus colegas durante o vero de 1972, quando fiz estas conferéncias; e a oportuna ajuda de Edward Johnson, que preparou, sem aviso prévio, os indices do livro. GN. Sumario [As Conferéncias de Jessie ¢ John Danz Introducio 1, Os gregos descobrem 0 cosmos 2. O cosmos de Platio I-A teoria dos movimentos celestes 3. © cosmos de Plarto I-A ceoria da constituicko da materia Apéndice Notas Indice de palavras gregas indice de nomes n 23 69 89 109 13. ROR en em nme nem nn ne enn nn nme nae rwewerwewewwwer ere w www www e rere wer wrr wwe As Conferéncias de Jessie e John Danz Em outubro de 1961, John Danz, um pioneiro de Seattle e sua ‘esposa, Jessie Danz, fizeram um substancial donativo a Universidade de Washington para estabelecer um fundo perpétuo que fornecesse recursos a serem usados para trazer todos os anos a Universidade “... académicos ilustres de reputagio nacional e internacional que se interessem pelo impacto da ciéncia e da filosofia na percep¢ao que o homem tem de um universo racional”’. O fundoestabelecido pelo senhore pela senhora Danzé agora conhecido como o Fundo de Jessie ¢ John Danz e os académicos tazidos & Universidade sob seus auspicios sdo conhecidos como os Conferencistas ou os Professores de Jessie e John Danz. Danz sabiamente deixou a mesa de diretores da Universidade de ‘Washington a identificagao dos campos especificos da ciéncia, da filosofia, e de outras disciplinas nos quais os programas de conferéncias seriam estabelecidos. Sua maior preocupacao e interesse era de que o fundo possibilitasse a Universidade de Washington trazer ao campus alguns dos realmente grandes académicos ¢ pensadores do mundo. John Danz autorizou os diretores a despender uma parte da renda do fundo ra compra de colegées especiais de livros, documentos e outros materiais académicos necessarios a0 reforgo da eficacia dos extraordind rios programas de conferéncias e aulas. Os termos do donativo também estipulavam a publicagao e difusto, quando parecesse apropriado, das conferéncias dadas pelo Conferencistas de Jessie e John Danz. Através desse livro, portanto, um outro Conferencista de Jessie ¢ John Danz fala as pessoas e aos estudiosos do mundo, como falou as platéias na Universidade de Washington e na comunidade do Noroeste do Pacifico. Introdugao Uma grande variedade de coisas maravilhosas nos foram legadas pelos gregos: a democracia, a tragédia, 05 jogos olimpicos, 0 mu, a matematica pura, a logica formal, a filosofia. Seré que nossa idéia de ciéncia também ¢ uma heranga grega? Sera que eles realmente descobriram 0 que azora entendemos por “ciéncia”? Em algumas de nossas cigncias eles fizeram progressosbrilhantes— na astronomia, porexemplo, ena historia cientfica. Mas uma coisa é aprender como fazer algo, ¢ fazé-lo bem, ¢ outra bem diferente é entender o que se esta fazendo ~ conceituar seus métodos, formular seus principios. Historiadores ilustres ndo hesitaram em reivin- dicarjustamente isso para os gregos. Sambursky,em seu Physical World of the Greeks (1956), declara positivamente que “os principios basicos da abordagem cientifica.. foram descobertos na Grécia antiga”.! Ele situa a descoberta no século VI a.C., atribuindo-a & sucesso de pensadores chamados physioldgot, “homens que dissertavam sobre a natureza”. A afirmagao mais famosa desta reivindicagdo esta no prefiicio da tereeira edigdo do classico tratado de John Bumet, Early Greek Philosophy (1920): “Meu objetivo tem sido mostrar que algo novo surgiu no mundo com os primeiros mestres jonicos algo a que chamamos ciéncia ~e que eles foram os primeiros a apontar o caminho que a Europa tem seguido desde entdo,... de maneira que... éuma descrigao adequada de cincia dizer que é ‘pensar sobre o mundo & moda dos gregos”” Eucontestei essa reivindicado, aproximadamente vinte anos atris,¢ dei, resumidamente, minhas razdes.? Terei mais a dizer a esse respeito aqui, especialmente no terceiro capitulo. Mas ndo desejo dar grande importancia a cata tose negative. Muito mais intoressantes para nda, ¢ mais importantes para a humanidade, que os fracassos daqueles primitivos pensadores gregos sio seus sucessos. Embora eles ndo conseguissem ~nem tampouco Platio ¢ Aristoteles depois deles~apreender o espiritoessencial do método cientifico, descobriram uma outra coisa que pode ainda ser considerada um dos triunfos da imaginagio racional: a concepgao do cosmos ‘que é pressuposta pela idéia da ciéncia natural e pela Sua pratica. Esta e a sua contribuigao para o que ¢ denominado, na Fundagao John Danz, de “a pereepedo que o homem tem do universo racional”, © €50bre isto que flare no capitulo de abertura. Quero recuperar sentido original da palavra osmos? e tentar explicar como aconteceu uma palavra com exatamernte € € € € € € € € € € € € € c € € ti € € < € c « « « 4 c € 4 € c € « « 10 Gregory Viastos aquele sentido vir a epitomar a revolugao intelectual, que comecou com as ‘cosmogonias de Tales, Anaximandro e Anaximenes no século VI a.C. € culminou, um século'mais tarde, no sistema atémico de Leucipo ¢ Demécrito. Quando esses homens vislumbraram, com conjeturas fantas- ticas, um novo Universo fisico, por que escolheram Kosmos para deno- minar 0 que viam? Contra 0 que lutavam e a favor do que Iutavam? S40 estas as perguntas que tentarei responder no primeiro capitulo, Nos dois seguintes passarei dos séculos VI V para oséculo IV a fim de discutir, com alguns detalhes, 0 papel de Platéo na recepcao e transmissao da descoberta do cosmos. Por que Platao? Por que the dar @ parte do ledo? Minhas razes nao tém nada a ver com ojuizo absurdamente ‘empolado de sua posicdo no pensamento europeu, que se transmite através da observagdo, muito repetida, de Whitehead, de que toda a historia subseqiente da filosofia ocidental consiste em notas de rodapé a Platao. Nio precisamos fazer a Platdo cumprimentos téo extravagantes para estarmos certos de sua grandeza como pensador e como escritor, e para sentirmos 0 interesse especial de suas proprias respostas as principais correntes intelectuais de sua época. Surgindo ao final do movimento que primeiro projetou e depois consolidou a nova concepeio do Universo, Platdo nos da a oportunidade de ver este movimento sob um prisma tnicoe instrutivo: o de um ardente opositor da revolugao que Ihe arrebatou sua ‘mais brithante descoberta, anexou seu cosmos e o reformulou segundo 0 padrio de sua prépria metafisica, idealista e teista, O efeito dessa transformagao tem sido avaliado de varias maneiras Alguns estudiosos 0 denunciaram como um movimento reacionério ¢ ‘obscurantista, que teria bloqueado o crescimento subsequente da ciéncia natural, tivesse ele prevalecido. Outros o exaltam, argumentando que a conceprio de Platao do mundo fisico seria mais compativel com o cientista criativo da era moderna, de Galileu a Heisenberg, do que ade Demécrito.4 Trinta anos atrés eu tomaria, energicamente, o partido do primeiro grupo. Segui essa linha, resumi¢amente, em um artigo publicadoem 1941.5 O que aprendi desde entio, convivendo com o trabalho de Plato, mostrou-me que tanto aquele ponto de vista quanto seu oposto sao meias-verdades, ou ‘menos - que a verdade, vista equitativa e desapaixonadamente, esté em algum ponto intermediario. O leitor pode, ou nao, vir a concordar comigo. De qualquer modo, tentarei tomar-Ihe mais facil chegar a uma opinido equilibrada apresentando-lhe o melhor e o pior na teoria do cosmos de Platéo. Capitulo 1 Os Gregos Descobrem 0 Cosmos Em inglés cosmos é um érféo lingiistico, um substantivo sem um verbo aparentado*. Nao se dio mesmo em greg, que tem um verbo ativo, transitivo, kosméo: colocar em ordem, arranar, arrumar. E 0 que faz 0 comandante militar ao dispor homens e cavalos para a batalha: 0 funcionario dajustica ao preservar a ordem legal de um estado; a cozinheira 20 juntar os ingredientes para preparar uma afetitosa refeicdo; finalmente, ‘0 que os servos de Ulisses fazem ao limpar o palicio depois do massacre dos pretendentes.6 O que obtemos em todos estes casos nio é, simples- mente, qualquer tipo de organizagao, mas uma organizagao que impres- siona os olhos e a mente como agradavelmente apropriada: como esta- belecendo, mantendo ou repondo as coisas em sua ordem propria. Ha um nitido componente estético aqui que leva a um uso derivado de kosmos, significando nao ordem como tal mas orramentar, omamento; isto sobrevive no derivado inglés cosmetic, quc, pode-se dizer, ninguém sem conhecimento de grego reconheceria como aparentado de perto com cedsmico. Em grego a afinidade com o sentido primario € perspicua, jé que zkosmos denota uma ordem criada, composta, realgadora da beleza. Ora, paras gregos o sentido moral se funde com o¢stético: eles freqiientemente dizem kalds, “bonito”, ou aischrés, “feio”, para moralmente admirdvel ou moralmente repugnante. Esperariamos, entao, aplicagdes morais e, também, militares, civis, domésticas ou arquiteténicas, do termo kesmos. E é justamente o que encontramos. Em Homero,o vemos usado adverbial- mente (now, xara xSonov) aplicado a um discurso ou a uma a¢do conduzidos de maneira socialmente decente ou moralmente apropriada.? Mais tarde o veremos sendo usado até mesmo para significar a observincia geral da moralidade e da justiga, como quarslo Tedgnis, em meados do steulo VI, lamentando a corrupgao da moral, exclama: “Eles se apossam das propriedades pela onc: o kormes perecev: [Nao mais se obtém distribuigdo eqitativa (vv. 677-78) que poderia ter levado homens que haviam usado kosmos, deste modo, desde a infancia, a dar-Ihe uma aplicagdo fisica ~ a usi-lo como 0 “SRIT, O mesmo ccorre em portugués, NT idem. 12 Gregory Viastos ‘nome de um sistema fisico composto pela Terra, Lua, Sol, estrelas e tudo o ue estivesse em, sobre, ou entre estes objetos, de modo que, se acreditas- sem haver apenas um de tais sistemas, referir-se-iam a ele como “o cosmos” ou “este cosmos”, enquanto que se pensassem haver muitos deles usariam kesmoi, no plural? Para responder & primeira pergunta examina- remos os fragmentos de Heraclito (primeiros trinta anos do século V a.C.). So estas as sentengas remanescentes, mais antigas, em que a palavra é uusada com este novo sentido, e € um método histérico seguro trabalhar tanto quando possivel com as fontes de materiais originais. Durante esta parte da minha discussao, seria bom ter em mente que Hericlito ndo é um tipico physiologos —ele tem muito de mistico, de poeta e de metafisico para se enquadrar no padrao geral. Mas, embora seja um politico independente, ele € mais, e ndo menos, do que um physiologos: de qualquer modo, é um deles ~ ele tem uma teoria sobre a constituigio do universo fisico e muitas ‘explicagées de fenémenos naturais ~ para fazer seu proprio uso do termo representativo. ‘Comeco com o fragmento B308: Este cosmos, 0 mesmo para todos, nenhum deus ou homem o fz, mai fo, ¢€ sera para sempre: um Togo constantementeardendo, acendendo-se de sc0rdo ‘com a5 medidas e sendo extinto de aconto com as medidas” ‘Como se sabe, o fogo € a substancia universal de Heraclito: 0 mundo todo. pensa ele, constituido de fogo, embora somente a sua parte que est em estado “inflamado” seja reconhecida como fogo, e é geralmente assim chamada. As outras duas massas do mundo que devem ser acrescentadas para dar conta da totalidade do seu universo material, agua e terra, devem ser, entdo, fogo “extinto”: a agua ¢ fogo liquefeito ea terra fogo solidificado, Considerando que tudo esta em mudanca constante ~ esta é a sua mais famosa doutrina, que o tornou. nas eras seguintes. 0 filésofo do fluxo ~ ele admite que 0 processo do mundo consiste de intertransformacOes continuas destes trés componentes. Em cada uma destas trocas. um elemento assegura sua propria existéncia ao destruir 0 outro; em sua propria linguagem (B76) “cada um vive a morte do outro’ Para evocar um exemplo fisico, que estaria dentro de sua propria experigncia, tomemos uma lamparina. Sua chama existe ("vive") pela constante extingdo (“morte”) do dleo (liqiido. portanto "agua": fogo "vive amorte da égua”. O mesmo se aplicaria a um fogo de madei de carvao, em que as vitimas seriam os sélidos, e provavelmente valeriam como “terra” para Herdclito. Assim, “fogo se acendendo"’¢ agua ou terra se transformando em fogo, ¢ ogo se extinguindo” seria o inverso, fogo se tomando agua ou terra, portanto, “vivendo” sua propria “morte”. Isto acontece sempre e sempre “de acordo com as medidas”. Se as “medidas” dos processos inversos. fogo se acendendo e fogo se extinguindo, fossem as ‘mesmas em todas as ocorréncias de fogo no universo. fogo estaria (© Universo de Platio 1B realmente “constantemente ardendo”. Pois entdo, a quantidade de fogoque estaria se transformando em agua e terra, a um dado momento, seria a ‘mesma quantidade de agua e terra que se transformaria em fogo no mesmo ‘momento, permanecendo, assim, constante a quantidade de fogo. E se algo correspondente acontecesse no caso da agua e da terra, suas quantidades também permaneceriam constantes. E desde que os urés compoem toda a matéria que existe, sua distribuicao entre fogo, agua e terra permaneceria invariavel e © Universo como um todo seria eterno, apesar da mudanca, incessante em seu comprimento ¢ largura. Esta seria uma surpreendente inovagao na filosofia natural. Desde seu inicio, no século VI, seu padrao dominante em Tales, Anaximandro e ‘Anaximenes tem sido cosmogonico: a teoria fisica centrada na questio, “Qual é a fonte e a origem do nosso mundo? A partir de que comegou 0 ‘nosso mundo e para o que ele eventualmente retornara?”" A argumentacdo que acabei de esbogar em Heraclito quebraria esta tradigio. Mostraria, ‘como 0 mundo poderia ser infinito, sem inicio nem fim em s2u todo, jé que nascimento e morte se mantém equilibrados dentro de suas partes. Aqui. pela primeira vez na historia grega. temos uma cosmologia sem cosmo- gonia, Voltando ao nosso fragmento: ““fogo constantemente ardendo”, no inicio do segundo membro, fica em oposigdo a “este cosmos”, no inicio do primeiro, 10 Assim, as duas frases tém a mesma denotacto. E ja que a ‘segunda se refere ao mundo todo, também o deve a primeira. “Cosmos”, entao, nao pode significar aqui. simplesmente, ordem, orgaizacao, como muitos estudiosos pensaram!, mas aquilo que fem esta ordem. esta organizagdo; deve significar 0 mundo em seu aspecto ée ordem.!? E podemos perceberem que tipo de ordem Herdclito esta pensando aqui ndo a ordem estatica do padrio arquiteténico ~ ndo ha referéncia, aqui ou em ‘qualquer outro lugar em Heraclito, forma ou ao projeto estrutural do Universo ~ mas a ordem dinamica que caracteriza as intertransformaydes de seus elementos. Na imagem do mundo de seu predecessor. Anaximan- dro, as simetrias espaciais e arquitetOnicas tinham sido conspicuas: la Sol, Lua, as estrelas eram enormes aneis de fogo concéntricos a0 redor de uma Terra central, com intervalos iguais entre pares sucessivos eem sequéncia: € 0$ mundos. infinitamente numerosos em seu Universo, estavam a intervalos iguais uns dos outros.!3 Em Heraclito as simetrias sao exclu- sivamente temporais: elas sio seqéncias causais. A order de seu mundo revela-se na constancia das “medidas” de suas ignigdes © extingdes equilibradas. E se recorrermos as nuances estéticas e morais no kosmos, nio é de surpreender vermos Heraclito referir-se a ordem do mundo como “Jus- tiga”, por um lado, e como “Harmonia”, por outro: Nos deviamossaberque a guerra ¢comum.e a competsioejustca.e guetodas sscoisas acontecem de acordo com a compeuian ea necessiade usa.(B 80, (ema ma een n ne nna mmnnnn monn eearranana pew wrwrwwr rrr rer wr www www eee ewww wewwwwe 14 Gregory Viastos (© oposto¢ harmonioso: da discordancia a harmonia mals bela. (B 8) Fogo, agua e terra estéo em oposi¢ao mortal. Esto em guerra. ai se aniquilando uns aos outros. Mat as sinevias diedmeas de cuss imeransfommasées hamonizam os oponentes. em gueta, Tazem nos perpetuaem-se mutuamente através da sa propria uta ass formaren tm mundo, que ¢ etemo porque em todo ee a vida & perpetuamente renovada pela morte. Se vocé acreditar que “da discordia(vem) a harmonia mais bela”, o que seria mais belo do que isto? E por que deveria ser “justo”? Por causa do mesmo pardo, visto agora em seu aspecte de reiproc dade imparil, que assegura cada um dos tes elementes sua parela igual de Imorte © de vida: 0 que cada um perde ao mower nos sess guaie invariavelmente recupera ao viver nas suas mortes.!4 : ee agora a Lead feet “Este cosmos”, em B 30: “Este cosmos, 0 mesmo para todos "Se voe se intertoga sore quala S die so, observe os prOxinos ues frapmentogs nn Nn ce Para aguces que esto desperios o cosmos ¢ M aa agus 108 € uno comum. Mas aqueles que t4o adormecids desviam-se cada um para um cosmos particular. (B 89)'3 'Néo devemosagirou falar como homens adormecidos, (B73) Deve-s seguir comum. Mas enguantoo logos €comum, a maloria vive coma se tvesse um conhesimento particular. (B 2) ___ © mesmo para todos" em B30, “uno ¢comum para todos” em B89 sto, obviamente, expresses equvalentes, Ora, quem sto niles eerone aii cum «cn am BBD aso ncn ip ste com os sonhadores, com os homens gue dormer fed sobre aquela mancia etanha de conseiEnca, fa que caren ea nosso sono, Herdeltodescobre achave para sa inaligencs cog oes ta sua privacidade = sua subjetvidade andrquca, No sone de nen ob design do mundo em comim qe ets st somes da peeps Te ee - eke. e “ Seni: a ele tem em vista tantoo int apt, ea claro em B13: "Nao devemos agi nem fe homers adomecids™ Seflamos no sono, blouse as abe os a amos fazer s40 impotentes para alcangar seu fim. 16 Assim, quando: Herdeltoexona seus companheios ado apr falardessa nancies implicando ser esta sun Condigao presen cles eis tee eae Iundo ti faso quanto ods shoe E no fagmentsseguite, Bcc lamenta que, "embora o Logos seja comm, a maton ie cone ce ten um conhecimento particular”. “Logos”, aqui, ndo é apenas seu proprio discuso, mas nada menos do que o que seu discute preeie eaene sei, a esvuturaintigel do processo do mundo, “Ineo pee secee devem entender e spur. dizele aos seus contemporaine, “cuteness serdo capaze de pensar lar ou ag coreamons Bis porse e ue seus ensinamentos sobre 0 cosmos tansmitem uns verdade ee © Universo de Platao 15 apreensio mudara seu modo de conhecimento. suas proprias vidas—que, s¢ ‘les compreendessem aquilo de que fala, suas percepgdes, suas falas, suas ‘ages se alterariam tao drasticamente como se alterariam as de um sondmbulo que fosse repentinamente despertado. Que 0 teria movido a fazer 140 extraordindria alegagdo? Uma resposta completa a essa pergunta me levaria além dos limites do meu tema atual: ser-me-ia necessario levar em conta 0 misticismo de Heréclito. o que equivale dizer, levar em conta otracode seu pensamento que otorna atipico daphysiologia jénica. Assim, devo contentar-me com uma resposta parcial ‘que, contudo, serve aos meus atuais propésites, pois leva em conta aquela parte de seus pontos de vista que ele tem em comum com os physioldgoi..& esclarece bem a sua descoberta do cosmos. Para isto vou ao fragmento B94: (0 Sol nto excederd suas medidas;em caso contririo, as Furas, as ajudantes da ‘ustga, 0 desmascarario, Que “medidas” poderia ter ele aqui em vista? Cada uma das seguintes regularidades poderia se aplicar: 1. A do movimento diurno do Sol, indo semprede leste para cestee a uma velocidade constante, sem atraso no percurso. 2. A das horas e lugares em que esse movimento diario comeca e termina: nascer do sol e pérdo-sol ocorrem em horério fixo, em pontos fixos no horizonte, os mesmos no mesmo dia do ano a cada dois anos, com variages sazonais de padrao invariavel de ano para ano. '3. A do tamanho do Sol e do fluxo da sua energia radiante: estes também permanecem constantes, de maneira que em um dado dia o que se despende de luz e calor seré 0 mesmo de ano para ano, ‘Observamos agora que, a despeito de quanto os outros physiolégot possam diferir de Heraclito, todos esto com ele em duas afirmagses: 1. As regularidades solares ou sio absolutamente impossiveis de romper ou qualquer ruptura que tenham comportara uma explicagéo natural, como um caso especial de alguma outra regularidade, ainda mais geral, que é por si mesma-absolutamente inquebravel. 2. O que faz do mundo um cosmos é aexisténcia de tas regularidades de tao alto nivel e absolutamente inquebraveis. ‘Deixem-me explicar a razéo de por a primeira afirmaco na forma disjuntiva. A maioria dos physioldgoi - provavelmente todos, com exce¢ao do proprio Heréclito — teriam negado que as regularidades no comporta- mento do Sol seriam tdo inexoravelmente fixas que nunca poderiam falhar. Um exemplo dbvio seria um eclipse. Este poderia ser considerado uma parada temporéria da energia radiante que emana do Sol: estaé. de fato. a explicagao de Anaximandro, como o bloqueio da abertura do anel solar pela qual a luz e o calor normalmente saem. A teoria de Heréclito, a0 Contririo,é a de que o Sol um recipiente de forma cdncava, cheio de fou0. feque o eclipse ocorre quando esse recipiente cOncavo sedesvia da Terra. '7 16 + Gregory Viastos Esta teoria permitir-the-ia afirmar que 0 escoamento de calor ¢ luz desse recipiente permanece constante,haja ou ndo eclipse. eque arazio pelaqual @ céu se toma escuro em um eclipse ¢ porque, enquanto este dura. luz do Sol é projetada em outra direcdo, afastando-se da Terra em vez de vir em Sua diresio. Mas este tipo de diferenga de opiniao deixaria intocada 2 conviegao que Heréclito partlhou com Anaximandro, e com todos os outros que acreditavam no cosmos: que o fracasso desta, ou de qualquer outra regularidade observavel, ndo acarreta maiores distirbios nas cons. tancias mais lidas que constituem a ordem ca natnrcea ese conbecidas, fomeceriam a expcacdofnaperatatoleabmeno eal aaoisrenaets qudo incomum ou surpreendente fosse ele. Neste ponto. Hericlto, Anaximandro, todos os physiolégoi, estariam unidos ~ um grupo de imtelectuais contra © mundo. Qualquer outra pessoa. grega ou barbara, admitiria, como certeza, que qualquer regularidade que se pudesse mension poder falar, e por wna rezio que excuse «prior uma expleagd natural do tacasso: porgue er causada por uma inervenao Examinemos alguns exemplos: Herédoto (7.37.2) rlata que, quan oexdrcto de Xernesestava parindo de Sardes para invad a vooe so Sol, deixando seu lugar no espaco, desapareceu, embora nao houvesse nuvens eo céu estivesse absolutamente claro: ¢ foi noite em vez de dia Neo apenas eres seus guercvostomam 0 cclpse come “and aparigo” (edoua) , um sinal dos deuses. O proprio Herodoto 2 admite, Filho da cultura como era !8, ele manteve um pé em cada mundo; varias vezes em sua histéria das guerras pérsicas vemo-lo subsereveralgum caso de interveneio divina ~ “deus” ou um deus provocando uma enchente inundando a terra ou causando um violento furacdo (8.129; 8.13) !9. Neste caso, embora nio o faga explicitamente. a linguagem que usa sugere fortemente a visio sobrenatural do eclipse: nenhuma visto naturalista-por excEntrica que seja, poderia admitr o Sol "deixando seu lugat no espage © 0 fazendo. de repente, em céu claro (ou seja, sem ventos ou nuvens. que poderiam ter sugerido uma explicacdo natural). 20 ‘A mesma linguagem ¢ usada por Pindaro no seu nono péan: Longinguo rai de sol, mae da visfo, Estrela suprema, roubada de nossa vista pelo dia, Por qu trast ipotene 0 poder do homer, @ camino ds sabedoria E aqui a interpretacdo do acontecimento como um ic explicita e enfadonha: aes sisted [Esti tazendo um sinal de guerra, (Ou de facasso nas coleitas, (Ou de uma tempestade de neve excessivamente violenta, (© Universo de Plato (Ou de uma horrenda guerra civil (x do esvaziamento do ma (x de um congelamento do solo, (x de uma onda de calor do sul, Fiaindo com furiosa chuva? Ou inundando 3 tera, Daras um novo principio a raga humana? Convencido de que a ordem da natureza foi quebrada neste ponto, Pindaro sente que qualquer coisa pode acontecer agora: onda de calor ou ‘geada sao igualmente posciveis. e qualquer outra calamidade, do fracasso da colheita e inundacées a guerra e a luta civil. Sua convicgao de que ndo hhaveria esperanga em se buscar qualquer tipo de explicagao racional € claramente expressa quando pergunta: "Por que tornaste impotente 0 poder do homem, o caminho da sabedoria?” Aqui “sabedoria” (ooia. inteligén- cia) significa o poder humano da explicacio e da previsio racior ‘que foi bloqueado. tomado “indefeso”. deixado sem recurso. Tudo que se pode fazer em tal situagao é recorrer aos adivinhos ~ aqueles cuja sabedoria é“divina™. "Agora. finalmente, estamos perto de entender por que Heraclito. € todos os phy'siol6goi. teriam boas razées para julgar que sua descoberta do ‘cosmos revolucionaria a perspectiva do homem. Se vocé acredita que os deuses tém o poder de desviar o Sol de sua trajetoria no céu, nao ha limite para o nlmero de maneiras pelas quais vocé Ihes confere a capacidade de interferir no seu mundo: e isto afeta a sua atitude geral para com oque est acontecendo a sua volta e mesmo, como explicarei diretamente, parao que esta acontecendo em vocg, seus pensamentos e seus sentimentos. Que a frea da possivel intervengdo divina é tradicionalmente ilimitada se torna @bvio, quando lembramos a variedade ¢e coisas que se esperava que os ‘Armais leve de suas penalidades é 0 confinamento solitrio por cinco anos, Seguindo-se a execuao se o prisioneiro ndo se regenera. A um homem de cardter irrepreensivel seria dada esta sentenga se fosse provado que ele aereditava ndo existirem deuses. ou que estes ndo se interessavam pelos homens (888C). A medida que se Ie 0 predmbulo filosofico (885B € seguintes) vai-se compreendendo que os descobridoresjénicos do cosmos, 0s physiol6g0i, s80. a08 olhos de Platéo, os principais fomentadores das heresias, das quais a sua utopia deve ser purificada, Suas medidas punitivas se dirigem, primeiro e prineipalmente, contra os homens que afirmavam {ue os constituintes originais do Universo sao entidades materiais como a terra, oar, a agua e ofogo, as quais existem “por natureza” e “por acaso” ~ ou seja, coisas cua existencia nao surgiv por um designio ou. como diz Platéo, Spot arte”: coisas que existem por mera casualidade. E eles ensinam que teste nosso cosmos, com toda a “arte” que ha nele, €.consequéncia fortuta de interagées naturais destes corpos sem alma. 34 "Alguns dos nossos physiologoi. acusados de impiedade ante a Corte de Ofensas Capitais na utopia de Platéo, teriam protestado contra esta interpretagdo dos seus sistemas: Heréclito e Diogenes de Apoténia. por exemplo, pois. como ja mostrei. ambos dotaram sua substancia universalde inteligencia, e até mesmo a consideraram como um deus. Também, de utras maneiras, poderiamos crticar a aplicabilidade exata da acusagao de Platao a cada um dos sistemas dos physioldgoi. 35 Mas se encararmos a diatribe de Platio contra eles néo como um relato histérico mas como a diagnose de um filésofo da diferenca basica entre a sua propria visdo do mundo e adeles, o que ele diz é profundamente verdadeiro: chega a raiz do problema. Apesardos muitos desacordos entre eles mesmos. os physiol6goi Séo undaimes na suposigao de que a ordem que torna 0 nosso mundo um osmos é natural, quer dizer, é imanente a natureza: todos eles explicariam festa ordem pelas naturezas dos componentes do Universo, sem apelar para ewww we en 8 ee 26 Gregory Viastos ‘mais nada, portanto, sem apelar para uma inteligéncia ordenadora trans- cendental. Platdo esta absolutamente certo neste pomto ~ isto € Obvio no caso do ultimo € mais amadurecido produto da physiologia jonien, o sistema atomistico, em que 0 nosso préprio cosmos ¢ infintamente muitos outros sao produzidos dentro do Universo infinito por causas puramente mecinicas, quando os atomos colidindo aleatoriamente no vacuo formam, Por acaso, um determinado padrio mecanico, um vortice. Mesmo aqueles ‘utros sistemas em que um dos constituintes do Universo ¢ feito produror de ordem e dotado com os atributos da razio ~ como é 0 foro em Heraclitos ar em Anaximenes e Diogenes ~ até mesmo eles confirmariam a diagnose de Platdo, pois também eles pressupdem que a ordem é inesente a naturess ‘endo lhe precisa ser imposta por uma mente ordenadora sobrenatural. 36 A diferenca sobre este ponto Platéo a considera tao incompativel com seu proprio ponto de vista, e tio importante nas suas implicagdes morals Politicas, que ustifiea a remogdo do organismo estatal de qualquer um que Sustente. Que oferece ele em troca? Uma cosmogonia teoldsica, © que Hericlito havia negado quando esereveu “este mundo, 0 mesmo para todos, nenhum homem ou deus ofez”, Platio transforma-o ao Primeiro principio da cosmologia no Timew, Ele se propoe descrever 2 ‘rigem do cosmos como obra de um deus que toma a materia em um estado caético e a molda a semelhanga de um modelo ideal, a Idéia Platonica de Criatura Viva (30C e seguintes). Que esse deus ¢ sobrenatural, no sentde literal do termo, esti suficientemente clavo, ele enti forada natureea acne dela; ele mesmo ndo ¢ um memiro do sistema de entidades interagentes que consttuianatureza; ele age sobre esse sistema, maso sistema nao age sobre cle. Mas até onde assimilaria Platio esse deus aos sobrenaturais da crenea Popular? Teria esse divino eriador do mundo o poder para violar as regularidades da natureza? A resposta ndo é clara. O que é claro que, se ele tem tal poder, nunca optara por exercé-Io. Isto se conclui, pensoeu, da concepgao de seu cardter no Timeu. ,Sttia diffil pensar em duas idéias mais profundamente divergentes de divindade suprema do que a de Plato ¢ a dos tradicionalistas — isto apesar do fato de a inteligéncia ser um atributo dominante em cada caso. Sempre se considerou Zeus como de mais cérebro que os outros deuses, com a possivel excecdo de Atena que, afinal de contas,tinha sido eriada de Seu eérebro. Mas a sabedoria do Olimpico tinha sido a de um monarca profundamente astucioso e perspicaz, enquanto que deus supremo de Timeu nao é tanto governador quanto é filésofo, matematico, engenheiroe, scima de tudo, artista. Admite-se como axioma que ele ¢ a Razio Personificada: Plato alude a isso vez por outra, mas nao sente necessidade de o dizer formalmente. Ete ndo chama sua divindade de Notis ou Logos, mas Dersiourgés ~ literalmente “Artifice”. O nome é surpreendente: Ne Atenas de Platéo, o artifice ¢ to frequentemente um eseravo quantos une hhomem live trabalhando ombro a ombro com eseravos, no mess po de 27 5 classes privilegiadas sentem pelo trabalho. Assim, o desprezo que as classes pi escravo tende a atingir também c artifice: ele se torna vitima do estigma por associagao, e em todas as fermas de democracia, exceto nas mais avangadas, seu status civico ¢ precario. Platao Ihe nega participagio politica na Reptiblica e até Ihe rouba a cidadania nas Leis. Assim tambem faz Arsttles em “forma de govermo”, que pretends ser ums consttuigdo ‘bem moderada, “mista”, um compromisso entre aristocracia e democracia. ‘Que o deus supremo do cosmos de Platao use a mascara de um trabalhador bracal é um triunfo da imaginagéo filosofica sobre o arraigado preconceito social. ; Sem duivida que as imagens de “rei” e de “pai” também sio evocadas, mas so marginals remanescznestradcionis que nio determina & es sexuais nem domés- figura¢ao que opera no didlogo. Nem as associagOes sex teas de patemidade sao obseradasna historia da elagdo, como tambem no 0 sao as associagdes politicas de realeza, mas somente as sugeridas pela metafora do Artifice, Sdo expressées como “invengao”,"“"moldagem", “demareagao”, “vazar” em um “cadinho”, “recortar”, e “entrangar”, que conduzem a maior parte da narrativa. Mas este mecanico divino no é um escravo do trabalho. E um artista, ou mais precisamente, 0 que um artista teria que ser na concepsio de arte de Platao: ndo o inventor de uma nova forma, mas.o impressor de uma forma preexistente sobre uma matéria ainda sem forma, O Demiurgy esculhe a idéia de Criatura Vivente para este proposito, porque tem a dnsia artstica de criar uma parcela de beleza, © ‘esse modelo é o mais belo que pode encontrar; e, além disso, porque, diz Platdo, “ele tem bondade e na bondade nao pode haver inveja de nada, em tempo algum” (29E). Hé aqui um outro surpreendente desvio dos padroes estabelecidos. A invea dos deuses hava sido ama das conviegdes mais profundas na teologia grega, ¢ uma das mais persistentes: esté mais evident Herédoto e Euripides do que eri Homero. 37 Os deuses gregos defendem tanto seu status privilegiado em relagao aos homens, que s6 de ma vontade concedem a humanidade qualquer beneficio, por mais inocente que seja, 1e possa estreitar a distancia entre o esplendor de sua propria existéncia e timiséra da condi¢do humane Para ve exalarem, bmiamn oe homens, £ por isso que castigam Prometet téo cruelmente. Seu motivo, a philancro- ia 38, nio atenua seu crime de trazer ao homem 0 dom do fogo, a0 Contrario, 0 agrava. Os Olimpicos nao podem perdoar mais este deus “amante dos homens” do que ama casta branca ¢ aristocratica poderia perdoar um de seus membros ue se tomasse“amants dos negos”E por isso que Plutos, deus da riqueza, é cegado por Zeus na comédia Arist6fanes. 39 Enquanto ele podia ver, tazia prosperidade apenas pera homens bons e sabios. “Zeus me cegou, diz Plutos, porque ele tinha inveja da humanidade”: Zeus nao podia tolerar a melhora que resultaria, para 0 28 Gregory Viastos destino humano, se fosse dada a Plutos a capacidade de garantir que a riqueza fosse sempre recompensada da virtude na vida do homem. Diferentemente do tirano cruel do Prometeu Acorrentado ¢ do Plutos,o Artifice de Plato é movido pelo desejo de partithar sua exceléncia com o$ outros: quanto maior for a beleza e a bondade fora dele, mais satiseita fica sua natureza nio-invejosa. Esta é a mais nobre imagem de divindade jamais projetada na antiglidade classica, e ela abre ao intelectual caminho para uma idéia radicalmente nova de piedade, que os tradiciona- tisas teriam julgado impia: ade lutar para assemelhar-se adeus ( guowwors Oem ). Se eu estivesse em posigdo de tragar aqui as implicagdes desta ‘idéia, acho que poderia mostrar quao inspiradora ela é, a0 mesmo tempo que é desinquietante, pois serelaciona com a ominosa nogao do re fil6sofo nna Repuiblica, Mas a minha preocupagao aqui nao é quanto a contribuiggo de Platdo para a religido e a moral, mas para a cosmologia. Continuemos, pois. As realizagdes do Demiurgo se classificam em duas categorias: I. Triunfos da Teleologia Pura (Parte Ida Historia da Criagao, 29E- 47D). TL. Compromissos da Teleologia com a Necessidade (Parte Il, de ATE até 0 fim) ‘A categoria I compreende duas classes de proposigées: as que admitem a derivaedo teleolégica por um lado, e as que admitem a explicacdo teleologica por outro. A comecar pela primeira, Plato nos surpreende alegando descobrir fatos sobre 0 nosso Universo, deduzindo sua existéncia a partidos postulados de sua cosmologia, ou seja, a partirda hipotese de que 0 Universo ¢ produzido por um deus, cuja benevoléncia e amor a beleza o incitam a criar uma semelhanca fisica da Forma Ideal de Criatura Vivente. Eis aqui alguns desses supostos fatos: 1. O cosmos deve ter uma alma. Por qué? Porque a Forma Ideal de Criatura Vivente tem uma alma (30B), 2. O cosmos deve ser tnico. Por qué? Porque 0 modelo Ideal é unicoe ‘o mundo se pareceria mais com esse modelo se também fosse tinico (31 A~ 8)0 3.0 cosmos deve ser esférico. Por qué? Porque a esfera é a forma mais homogénea ( dpoustatov ) que ha e © homogéneo. diz Platio, ¢ “dez mil vezes mais belo”, (33B7) do que o heterogéneo. 4.0 cosmos deve ser caracterizado pelo tempo. Por qué? Porque tempo, como Platdoo concebe. é "a imagem em movimento da eternidade” (37D5); ele raz uma dimensao de consténcia ordenada a inconstincia do fluxo, e tora, assim, a imagem em mutagao mais semelhante a0 modelo imutével do que se fosse de outra forma, Nao desejo me estender nesta parte da historia da criacdo. Mas 0 historiador seria negligente em sua tarefa se ndo reconhecesse 0 retrocesso (© Universo de Platao. 29, ‘que Platao imprime & questo cosmolégica, quando converte tio sensa- cionalmente preconceps6es de valor em alegagées de fato. F certo que ele ‘nao foi o primeiro a fazer isto. Pitagoras 0 havia feito abertamente muito ‘antes.4! Até mesmo os physiolégoi no estavam completamente imunes & essa tendéncia: Anaximandro e Hericlito, como ja vimos no capitulo anterior, haviam projetado no cosmos ‘isico sua fé na justica. Mas ha uma ‘grande diferenca entre a sua praticae ade Platéo. Supondo que pudéssemos ter feito aos physioldgoi ~a qualquer um deles a partirde Anaximandro~a seguinte pergunta: “Nas suas inquirigdes sobre a natureza, quando vocé tém que decidir se algo ¢ isto ou aquilo, acharia certo liquidar 0 assunto ‘argumentando: “Seria melhor, mais belo, se as coisas fossem desta ou daquela maneira; ergo, elas s io desta ou daquela maneira’”?"#? Ha poucas diividas, penso eu, de que receberiamos um enfatico “no” de cada um ddeles. Certamente éss0 0 que Platdo pensa deles; ele os denuncia no Fédon (97C e seguintes) pelo fracasso em invocar o principio do bem nas suas inquirigdes naturais: ele os critica por decidirem questées, tais como se a terra é redonda ou plana, sem pergunta: primeiro qual das duas formas seria “melhor” (97E). Seria contra a base da physiologia jénica admitir tal principio. e, no seu capitulo final, 0 atomistico, esse principio € com- pletamente excluido, Quando Leucipodeclara: “Nada acontece por acaso. mas tudo a partir da razao e da necessidade"” (B2), a“razio” a que ele se refere é a razdo de necessidade — a racionalizacao da explicagao mecani- ‘cista que exclui rigorosa e sistematicamente consideracées de valor da determinacao dos fatos. Esta é, em grande parte, arazo pela qual osistema ‘atomistico se mostrou tdo apropriado aos fundadores da ciéncia modema no século XVII ~ a razao pela qual eles o saudaram como um refiigio do sistema aristotélico, que havia consolidado a metodologia teleolégica jefendida por Plato. #9 eter asta sind als com eagio a eta parte do Timeu, Felizment Platao nao se fixana drea sombria em que se obtém fatos deduzindo-os de premissas telgologicas e metafisicas. Ele logo entra na area dos faros derivados de uma disciplina cientifica, e entao. com esses fatos em maos. invoca a estrutura teleoldgica de sua historia da criacao para estrutura-los, em um esquema coerente. Observemos este esquema. Em alguns aspectos ¢ mais fantastico do que qualquer coisa que Vimos até agora. Mas nio o rejulguemos até vermos o servigo que ele prestara a Platao, ‘Ja que se deve providenciar ume alma para o cosmos. o Demiurgo se langa 4 sua criagdo. Platéo cria agora um dos seus dogmas mais duradouros, a saber, de que a alma se estende pelos dois dominios distintos de sua ontologia - 0 das Formas abstratas. por um lado, que constitu o mundo do Ser eterno, ¢ o das coisas sensiveis. por outro, que constitui o sempre mutavel mundo do Vir-a-Ser. A alma tem uma perna em cada um. destes dominios, No pensamento racional. cujos objets so Formas puras. ela tem contato com 0 mundo do Ser. Na percepedo dos sentidos. cujos teem meme enna nanaannnnaanameeecmeennaee 30, Gregory Viastos ‘objetos so coisas em mudanga, ela tem contato com omundo do Vir-a-Ser. Platio, portanto, descreve a criagdo da alma como uma mistura do Sere do Vir-a-Ser.44 Misturando-os em seu cadinho, 0 Demiurgo produz um novo ‘material —ou deveria dizer supermaterial? — que nio contém matéria fisica (senhum fogo, ar, agua ou terra) e ndo tem quaisquer propriedades da matéria fisica (‘ais como temperatura, densidade e peso) exceto uma: pode mover-se. Mas, mesmo na sua capacidade de locomogao, difere radical- mente da matéria fisica. Para Platdo, esta é inerte qualquer de suas partes se move apenas quando é movida por algo que nao ela mesma: a alma, ¢ somente a alma, pode mover-se por si mesma‘: pelo pensamento e pela vontade, ela pode movimentar o corpo ao qual esta ligada e, através deste, ‘outros corpos. Assim, a0 criar alma, o Demiurgo faz algo que terd grandes conseailéncias fisicas: 0 movimento autogerado da Alma do Mundo e das almas das estrelas sera responsavel por todos os movimentos nos céus: todo movimento celeste sera explicado como psicocinese. © Demiurgo eria a Alma do Mundo cortando em tiras 0 material de alma que produziu e juntondo-lhes as pontas para fazer “circulos”, ou seja, faixas circulares moveis. Por que circulares? Por causa de uma outra doutrina platénica: o movimento rotativo 60 “mais apropriado para a razio © a inteligéncia” (344); somente assim, pensa Plato, pode a invaridncia absoluta das Formas eternas ser aproximada dentro da incessante varian- cia que é inerente 20 movimento. O primeiro dos circulos-alma, o Demiurgo coloca-o na circunferéncia do cosmos para produzir “o movi- mento do Mesmo”, um movimento que Platao julga percorrer todo 0 Universo: tudo no cosmos, desde a sua periferia mais extrema ate o centro da nossa Terra, esti sujeito a esse movimento*6, embora ele seja neutrali- zado por outros movimentos em todos os lugares*?, exceto na regio das estrelasfixas. Neste caso, podemos vé-lo puro e desobstruido: ¢ a revolugo diuma de leste para oeste, paralela ao plano do equador celeste!® — o movi mento autogerado da Alma do Mundo, o “movimento do Mesmo”, comu- nicado a cada uma das esirelas fixas, toma-se, por sua vez, seu. movi sete i , por sua vez, i sestitts Platto deve ainda dar conta de outro conjunto de movimentos ‘celestes: 05 caracteristicos das estrelas “errantes"’50, a Lua, o Solos cinco Planetas.S! Cada um destes mostra um movimento proprio, de longo aleance, do qual as estrelas fixas esto totalmente isentas. Pois, se as sucessivas posigdes de qualquer dos membros do septeto se contrapuserem as das estlas fas, durame lngos periodos de tempo, consatas set oe Se movimentardo em diregao ao leste, de modo que acabarao fazendo um circuito completo do céu. Estas érbitas lentas, em direcéo ao leste, diferem conspicuamente da revolugao diuma, em diregdo ao oeste, que predomina no céu. Trés dessas diferencas séo especialmente dignas de nota: Emprimeiro lugar, todos os seus periodos so muito mais longos,com srandes variagées de duragio entre eles, A Lua leva um més lunar para (0 Universo de Platao 31 voltar sua posigao inicial; o Sol, um ano solar; Venus e Merctirio, 0 ‘mesmo (em média); Marte, um aro mais 322 dias; Jupiter, onze anos mais 315 dias; Saturo, vinte e nove anos mais 166 dias. ‘Em segundo lugar, estas érbitas se dio em planos diferentes dos das estrelas fixas, Em vez de correrem paralelas ao plano do equador celeste, todas as drbitas do septeto, em direcdo ao leste, dao-se em planos que interseccionam aquele obliquamente. Assim, 0 Sol move-se no plano da ccliptica, que intersecciona 0 plano do equador celeste a um Angulo de 230,552 A Lua c 08 cinco planeias movem-se em variados graus de pro- ximidade da ecliptica, com suas érbitas se circunscrevendo quase in- teiramente no “circulo do Zodiaco” — uma estreita faixa de estrelas ixas de cada lado da ecliptica, convenientemente dispostas em uma seqdéncia de doze constelagées distintas, ‘Em terceiro lugar, todas estas érbitas apresentam o fendmeno que ¢ tio caracteristico do comportamento sazonal do Sol: todas elas tém “reversbes” (roona(), pontos de dsvio miximo ao norte e aosul, quando se voltam e prosseguem na direcéo reversa até que 0 ponto oposto da “reversao” seja aleangado.? Para explicar todas estas caracteristicas do movimento “errante”, Platao postula um outro “eireulo” na Alma do Mundo que ele chama “o movimento do Diferente”54 ,e 0 descreve como “inclinado” ( rhayiav 39A) para uma diregdo inverss, “em diregdio a esquerda, segundo a iagonal”, enquanto que movimento do Mesmo ¢ “em diregao a direita, pela lateral”.!5 Este segundo sirculo € partido em sete circulos de Coupiimentos desiguais, com relocidades angulares apropriadamente diferentes, que se distribuem pea Lua, Sol e 0s cinco planetas para se tornarem seus movimentos indiv duais, caracteristicos, e darem conta do .gi0 a0 leste de cada um no plano da ecliptica, ou movimento em prdximo dele. ‘Assim, antes de chegar a criagdo da humanidade, o Demiurgo trouxe ‘20 mundo uma enorme populacdo de “deuses eternos” (37B6): a Alma do Mundo; a incontavel multidao de astrelas fixas®6, cujo movimento visivelS? & exclusivamente 0 movimento do Mesmo; e 0 Sol, a Lua e os cinco planetas, cujos movimentos visiveis também apresentam diversificagées do movimento do Diferente. Devido @ periodicidade invariavel de seus ‘movimentos, as estrelas fornecem mensuragdes visiveis de tempo: so os cronémetros celestes.®8 Aqui a contribuigao do Sol é notavel: as alterna- ‘90es espetaculares entre claro e escuro, causadas pelo seu surgimento pelo seu o¢aso, nos dio uma “medida perspicua’” (yérpov Evagyés ) de todos os movimentos celestes.59 Mas a trajetéria da Luaem diregio ao leste também nos fornece uma util medida temporal, o més lunar.60 Assim também acontece com a trajet6ria anual do Sol. Os perfodos dos cinco planetas também, se tivessem sido determinados, nos forneceriam outros tunidades de contagem de tempo.é! E enquanto a contribuicao semelhante 32 Gregory Viastos das estrelas fixas nao for mencionada. ela € reconhecida por implicacdo {quando Platio fala de todas as estrelas ~ndo apenas do septeto "errante”~ como “instrumentos de tempo"62, e novamente quando ele diz que “o tempo e os ceus foram gerados juntos” (38B6), pois as estrelas fixas constituem a esmagadora maioria dos componentes do céu.63 ‘Onde esta entdo, pode perguntar 0 leitor, © esquema coerente organizador de fatos cientificamente comprovados que prometi algumas paginas atrés? Chegarei ld, mas néo antes de me dedicar a duas tarefas preliminares: (A) Devo tornar claro 0 que entendo por “fatos cienti- Fcamente comprovados"; (B) Devo estabelecer que fatos desse tipo se encontravam, entdo, disponiveis na astronomia grega. e dos quais o préprio Plato tirava amplas vantagens de sua disponibilidade. A tarefa A pode ser rapidamente resolvida. Por “fatos cientificamente comprovados" eu en- tendo os fatos que satisfazem a trés requisitos basicos: ‘ 1°50 estabelecides pela observagdo ou por inferéncia dela: s40 obtidos, deta ou indiretamente, pelo uso dos sentidos. 2. Tem significagao tedrica: fornecem respostas a perguntas pro- tas pela teoria. Por Pf parthivelse corsgives: S40 propriedade comum de inves: tigadores qualificados que estdo conscientes das possiveis fontes de erro de observacao, e estio em posigao de repetir ou variar a observacdo para tliminar ou reduzir 0 erro suspeitado. "A tarefa B demorara mais tempo. O que eu gostaria de fazer aqui édar a0 letor uma idéia do progresso a que a astronomia grega ja havia chegado ‘como ciéncia de observacdo, € mostrar que Platdo estava a par desse progresso quando comegou a escrever 0 Timeu. Documentar esse progres So em todos os detalhes nao é possivel. Os registros sd muito fragmentarios fe muitas vezes também vagos e pouco confiveis, Mas. mesmo assim. por ‘scassos que sejam, os registros nos do material suficiente para documentar tos essenciais. Pilg sabemos que nos anos trinta do século V a.C. ~ aproximadamente dois tergos de século antes da redagdo do Timeu ~ dois astrénomos ‘tenienses. Euctémon e Meton®, fizeram observagdestS que mostraram a esigualdade das estacdes astronémicas. Seus dados foram os seguintes: Do solsticio de verdo 20 equinocio de gutono, 99 dias. Do equinécio de outona ao solsticio d§ inverno, 90 dias. Do solscio de igverno ao equinocio.da primavera. 92 dias Do equinocig, da primavera a0 solsicio de verdo. 93 dias. (0 que é surpreendénte nestas descobertas nao é sua exatidao. Como observou Heath (Ariscarchus of Samos, pp. 215-216), comparados aos dados modemnos estes apresentam erros que variam de 1,23 a 2,01 dias. fenquanto que 0 erf0 nos dados correspondentes conseguidos, um século mais tarde, por Calipo (92, 89, 90, 91 dias, respectivamente}6? varia ‘apenas de 0.08 a 0.44 dias. O que ¢ verdadeiramente notavel aqui ¢ que © Universo de Platao 33 Euctémon e Méton estavam preparados para deixar que a observacio se sobrepusesse as pressuposigdes de que 0s dois intervalos intersolstci eram exatamente iguais, e que ambos 0s equinécios caiam exatamente em seus pontos médios — pressuposigdes to plausiveis em si mesmas e lo sedutoras no seu proprio tempo e espago, dada a obsessio grega pela simetria. Baseados nestas pressuposigées, Euctémon e Méton poderiam ter-se poupado o trabalho de calcular 0 equindcios e solsticios de inverno através da observacao: poderiam ter obtido esses nimeros simplesmente contando os dias entre os sucessivos solsticios de verdo e dividindo-os por quatro ~ que é 0 que os astrénomos babilénios estavam fazendo até o final do século IV a.C.68 Que eles tenham escolhido o caminho mais dificil. oda ‘observagao. e tenham persistido nos seus resultados quando observaram as diferengas em lugar das uniformidades esperadas, ¢ um testemunho surpreendente da orientacdo observacional que norteava 0s astronomos praticos gregos. E oque esta envolvido aqui nao simples, mais impregnado de teoria, observagao que, como alegou Dicks, “pressupée, no minimo, a teoria de uma terra esférica no centro da esfera celeste” (Early Greek Astronomy, p. 88)69. © argumento a favor desta alegacdo nao precisa ser estabelecido por premissas na pressuposicao de que os procedimentos observacionais de Euctemon foram 0s mesmos usados nos estagios subseqiientes. mais, desenvolvidos. da astronomia grega.7 Esta pressuposi¢ao seria dificil de justificar em face da muito maior exatidéo dos dados de Calipo, o que sugere progressos drasticos nos métodos observacionais no decurso dos ‘cem anos seguintes. A substancia da alegagao de Dicks pode ser compro- vada por argumentos que contornam essa arriscada pressuposicdo: a aceitacao da esfericidade da Terra por Euctémon e Méton pode ser inferida, com certo grau de probabilidade. de suas peregrinagées do norte 0 sul levando a cabo suas observagées7!: ndo seria provavel que fizessem isso se néo fossem capazes de usar a latitude?2; e conceito de latitude certamente supée uma Terra esférica.13 Além disso, ha poucas dividas de {que a obliquidade da ecliptica nao fosse conhecida por seu contemporaneo Enopides.?4 Nao seria, portanto, desarrazoado admitir que eles tambem haviam assimilado essa descoberta’S e o aparelho conceptual que ela implica: a esfera celeste com seu equador como um grande circulo interseccionando em angulos retos seu eixo norte-sul: 0s trépicos como dois, circulds na esfera, paralelos ao equador e eqildistantes dele: e a ecliptica como um outro grande circulo na esfera, interseccionando oequador em um Angulo agudo e tocando os tropicos nas suas extremidades norte e sul Mesmo que nao tivéssemos esta informagdo sobre Euctémon e Meton. ainda assim poderiamos inferir com seguranga que muito antes do tempo de Plato - 0 mais tardar por volta da ultima terga parte do século V © papel da observagio tinha mudado drasticamente na astronomia greg: desde 05 dias em que a pesquisa racional dos céus comegara em Mileto sp ewe ee ene nn nen nn ean 34 Gregory Viastos como um ramo da physiologia. Poderiamos ter inferido isto diretamente das mudangas no conteido relatado da doutrina astronémica, Para estabelecer este contraste deixem-me voltar novamente ao modelo gran- dioso de cosmos a que aludi no capitulo anterior”®: o de Anaximandro. ‘Aqui o Sol, podemos lembrar, é um enorme anel ou arco de fogo na periferia do nosso mundo, invisivel a nao ser por um orificio do qual o fogo escapa: a Luaé umoutro anel de fogo, similar em formato, mas menor, com didmetro de dois tereas do correspondente ao do Sol; este, por sua vez, & acompanhado, depois de um outro intervalo de vacancia, de uma multidao incontavel de anéis de estrelas, cujos orificios visiveis sto minisculos ¢ ccujos didmetros sao metade do da Lua e um tergo dodo Sol.77 Uma simples vista de olhos neste esquema nos mostraré que é um trabalho da imaginagao, cujo ponto de partida da visio do mundo herdada nao poderia ter sido justificado por um s6 fato cientificamente comprovado que preencha as condigSes estabelecidas acima (pp. '3, 23). Disse um autor tardio que Anaximandro descobriu 0 gnémon ~ aquele simples mas extremamente util instrumento que consiste em uma haste presa verti- calmente a uma base plana, no qual as variagoes sazonais podem ser medidas de acordo com 0 tamanho da sombra do Sol.78 A veracidade da informagao ¢ duvidosa.?9 Mas suponhamos que se admitisse: suponhamos que Anaximandro tivesse um gnémon eo usasse a seu bel-prazer. Nada que ele tivesse aprendido com sua ajuda poderia ter a menor comprovagao observacional quanto & ordem do Sol, Lua, estrelas e Terra em seu modelo.50 Inversamente, tivesse ele se dado ao trabalho de observar 0 céu estrelado, durante longos periodos de tempo, teria, com certeza, apreendido fatos incompativeis com essa ordem, por exemplo, fatos sobre ocultagao celeste.S! Sao estes 0s fatos a que Aristoteles se refere como evidencia observacional de que a Lua esta mais perto da Terra do que estao os planetas ou as estrelas fixas: oie vimos a Lua meio cheia aproximando-se, pelo seu lado escuto,daesrela de Mare, que fica entdo encobera de nossa visto para reaparecer do lado brilhante €sluinado da Lua. Sobre as outras estes tambem expicagoes semelhantes foram dadas por egipiose babilénos, que as cbservarar durante ‘muitos anos no pastado.e de quem recebernos muitos relatos fidedignos acerca de cada uma dela #2 ‘A mengdo que Aristételes faz a “estrela de Marte” e sua aluséo a registros semelhantes sobre outros planetas poem em destaque um outro trago da teoria astronémica de Anaximandro, sintomatico da escassez de dados cientificamente comprovados 4 disposigdo de seu autor: seu modelo cde mundo nao tem lugar especial para planetas em contraposigao as estrelas fixas.83 E duvidoso que até mesmo tenha notado explicitamente a ‘existéncia de qualquer corpo celeste que correspondesse ao que 0s gregos ‘entendiam por “planeta” ~ estrelas (outras que no o sol ¢ a lua) distintas das estrelas fixas, por seu movimento aparentemente erratico (“viajante” ou “errante”). A partir de nossas fontes (admitidamente parcas), nem ao © Universo de Plato 35 menos podemos ter certeza de que qualquer estrela tenha sido identificada arc nee ue ai tendon século V a.C.). Embora Vénus tenha sido conhecido e observado na Babilénia antes mesmo de 1500 a.C.*4, no ha nenhum sinal dele ers Homero ou Hesiodo ~ nenhuma indicagdo naqueles poemas de que Estrela-d'alva” (“Ewopég0s) e “Estrela Vespertina” (“Eontgos ) devo, minam a mesma estrela e a qual dos nomes qualifica “errante™"®> Mesmo mais tarde.no século LV a.C.hé partesna Grécia em que essaidentidade ¢ desconhecida: o interlocutor cretense, nas Leis de Platao, nem suspeita AA identificagao ¢ atribuida a Parménides em um texto doxo; Gploca a Estrela-alva (bv Eowov), que ele juga idéntica 4 Esvela nesPertina seuindo-s © Sol, sob o qual ele coloea as estrelas na regito sbrasadora que ele chama ‘céus *(Aécio 2.15.7 = DK 28A 40a)) $80 texto no afirma que Parménides julgava a Estrela-d‘lva “erramte”. Maso fato considerd-la uma “guirlanda” (aregdvn)®%, distinta separada. das estrelasfixas pela “guirlanda” do Sol%, sugere que ele reconhece que seu Préprio padrio de locomocdo ¢ muito diferente do destas®! Assim, Podemos provavelmente reconhecer em Parménides o primeiro grego a $entifiar um dos cinco planetas da astronomia grea % ai em diante © progresso foi répido: os outros quatro ¢ sua o 4p6s 2 identficagdo do primeiro, Esta sélida conquista da astronomia Qbservacional foi atingida a despeito de alguns persistentes apegos a ipéteser altamente especulativas, projetadas sem preocupagao recente com os controles observacionais. Dessa forma, Anaxdgoras ¢ Democrite Postulam a existéncia de uma multidéo ndo-especificada de plancias alegando que a conjunea0 (aiupaons )de tais corpos é a esponsavel pela aparigao dos cometas%4; © 0 contemporaneo pitagorico de Democrte Filolau, transforma a propria Terra em uma estrela girando a0 redor de ung fogo invisivel no centro do Universo. insere entre eles uma outra estrela misteriosa, a “contraterra".35 Todavia, lado a lado com estes vOos da imaginagao%, a teoria baseada na observa¢ao fol progredindo com rapider O Verdadeiro quinteto de planetas é conhecido por Filolau.”, ¢ poset. velmente também por Demécrito.%8 De qualquer modo, devia estar bem estabelecido a0 tempo em que Platio veio a escrever a Republica (Provavelmente no final da segunda década do século IV), pois ele o incorpora ao modelo de mundo do mito de Er: ld a Terra esta no centro do Seems, as estes fixas em sua periferia, e entre estes dois extzemos vem te estrelas que s6 poderiam ser a Lua, 0 Sole os cinco planeta, Estes deanes S80 identificados pela cor e ndo pelo nome. mas ndo pode haver vidas, sobre qual € qual e de que eles estdo colocados na ordem 36 Gregory Vlastos Dei-me ao trabalho de tragar a invencdo dos planetas porque uma descoberta desta natureza estabelece conclusivamente a maioridade da astronomia grega!0! — sua transformagdo do exercicio especulativo que tinha sido durante suas origens na physiologia milesiana e durante, pelo menos, uma geragdo depois disso!02 em uma disciplina onde a teoria. continuando a ser ousadamente imaginativa como sempre, se associa Produtivamente a observagio, sendo agora suas hipéteses informadas por lum erescente corpo de dados cientificamente estabelecidos. Dizer que esses cinco planetas foram descoberios é referir-se a uma multiplicidade de informagoes transformadas em uma unidade sistemitica pela teoria, E afirmar que em determinados lugares do céu. em determinadas horas da noite. em determinados periodos do ano, objetos luminosos de uma certa ‘ordem de brilho tinham sido vistos e estariam sempre Id para ser vistos por alguém que se desse ao trabalho de olhar: e que estes cinco conjuntos de objetos visiveis representam o mesmo niimero de estrelas, cada conjunto correspondendo a mesma estrela com aparig6es muito separadas no tempo ‘no espago — tio separadas, por exemplo, como seriam as de Merctirioem tum dado ‘ano, brilhantemente visivel como estrela matutina durante os meses de setembro e outubro, e, depois, desaparecendo de vista para reaparecer meses mais tarde como estrela vespertina no horizonte oci- dental. Mesmo que nao soubéssemos nada além de que a existéncia dos cinco planetas havia sido descoberta ao tempo de Platao, saberiamos que. na area da astronomia, 05 gregos tinham obtido 0 sucesso que nao tinham conseguido em qualquer outra area importante da investigagdo empi- rica!03: tinham conseguido livrar-se do estilo da especulagao livre, tao ‘caracteristico da physiologia, e descobrir outros métodos de pesquisa natural em que a teorizacdo era controlada por material factual. que preenchia os requisitos de observacao cientifica, estabelecidos acima. ‘A histéria da criagéo do Timew. apesar de suas pinceladas ale- Béricas, atesta a assimilagdo, por parte de Platao, dos resultados obtidos poresta ciéncia, na qual teoriae pratica interagiam, agoracom sucesso. Sua historia mostra que Platdo tinha aprendido dos astrénomos muito mais do que a identidade e a ordem dos cinco planeias. Em particular. ele passara a saber. (1) que a trajetéria dos planetas. embora partilhando do movimento ddiumo em diregao ao oeste das estrelas fixas. também esta sujeita a um movimento inverso, muito mais lento. em direedo ao leste “obliquo™ a0 equador celeste!0#; (2) que ha diferengas na amplitude de suas érbitas. nos periodos de suas revolugdes e nas suas velocidades angulares relativas as estrelasfixas: mais particularmente, que Vénus e Marte tém periodos de revolu¢do iguais uum a0 outro € a0 do Sol!05, e que os outros planetas tém drbitas maiores. periodos mais longos e. segundo seus calculos, menores velocidades'96, L (© Universo de Platio 7 (3) qu: as drbitas planetarias apresentam peculiaridades que ele descreve como “giros retrégrados”!07¢ “avancos” de planetas, em relacéo luns aos outros ~o que poderia apenas ser uma referéncia a0 fendmeno da retrogradacéo planetaria, ou seja, ao fato de que os planetas, no seu avango em direcdo ao leste, através das constelagées do Zodiaco, nem sempre se ‘movem uniformemente para a frente, mas diminuem a marcha ocasi mente, parezem parar e, entéo, dio de fato uma volta para tris (“iro retrégrado”} durante algum tempo antes de retomarem seu “"avanco”108 ‘A passagem em que ocorre a referéncia a (3) é digna de ser citada na integra. E a observacio final no relato da criacdo das estrelas: Deserever os movimentos estruturados (iteralmente “coreografi”( so0eias esses deuses, suas justaposicbes (xagapohas) of giros retogrados ¢ 08 avancos de suas orbitasSabee si proptios (xg ta xihuy -agd5 fucTobs Exavanewioet: Xai xeozuenoes) Szerquais devses se aliaham un com os ‘outros nas suas conjunetes (ev tui: ovvaytow) ¢ quais deles estio em oposicso( wuravtng J. eem que ordeme quando se poem uns frente aos ures, ‘Se modo qe alguns venhama Ser encoberos de nossa visio para reaparece. mais tarde. trazendo assim terrores pressaios de acontecimentos 208 que 0 po- em raciocinar ~ dizer tudo iso [usar] modelos visveis sera trabalho vio, (ocs-D3) Aqui a linguagem de Platdo esta saturada de termos da astronot observacional!09: “justaposigao” ocorre quando 0s corpos celestes se levantam e se péem com grande proximidade: “conjungao” quando tém a mesma. longitude celeste: “oposigdo™ quando sua longitude celeste difere em 1802: “encobrir” € ocultar. mas neste contexto se refere particu- larmente aoseclipses solares ¢lunares: e. como ha pouco mencionei,giros retrogrados” e “avancos” séo incidentes de retrogradacao. ‘Assim. parece nao haver duvidas de que ao tempo em que Platao ‘comps 0 Timeu ele estava a par da astronomia observacional. Isto ndo € sugerir que ele tenhia se tornado um pratico da disciplina !10~ apenas que tinha conhecimento do que a disciplina havia descoberto. Que ligacio. enti. poderia ter sua propria narrativafilosofica sobre as estrelas com esse tipo de trabalho? O que teria a dizer aos astrénomos praticos que faria dliferenca na sua propria teoria observacionalmente controlada’ Voltemos sua narrativa, comegando com duas de suas teses principais: ‘Tee 4. As estrelas sfo deuses, e seus movimentos s80 prsocineticos.! ese BOs movimentosestelares $80 circulares. (Ora, estas dua tesesndo so apenas lopicamentedistinias ~ nem ums, tomada em si mesma implicaria a otra ~ mas pereencem 2 areas de pesquisa Faticalmente diferentes pertence ateologia ametafsica especulauva, B35 ciencias maturais. Todavia, Plato se propoe a deduzie B de a, Ele 0 far ambinando 4 com duas outras teses dt mesma especie ‘Tese C. AS almas dos deusesestelass4o perfeitamenteracionas. Tese D, Todo o movimento perfeitamenteracionale circular epee en ena ennmeneee eee eee nnn nenacarea 38 Gregory Viastos C vem da teologia de Platdo, que faz da bondade um atributo essencial da divindade,!!3 em conjungdo com sua pressuposi¢ao axio- ‘matica de que bondade implica racionalidade. Assim, quando o Demiurgo povoa 0 céu com uma raga inteiramentenova de deuses, cujasnaturezas, no devendo nada ao mito ou ao ritual popular, podem ser livremente remodeladas pela imaginagao filosofica de Platao, inevitavel que todos cles devem ser providos de inteligéncia de imperturbavel racionalidade.!!4 Quanto a D, jaa tinhamos encontrado. Anteriormente, neste capitulo, citei ‘a descrigao do movimento circular no Timeu como “0 mais conveniente & razao e inteligéncia” (34). O mesmo € expresso mais elaboradamente nas Leis; movimento rotativo ~descrito como 0 que “se move, invariavelmente ¢ uniformemente, sobre as mesmas coisas e em [a mesma relagao as ‘mesmas coisas de acordo com uma s6 regra e ordem"!15 — ¢, “de todos os movimentos, 0 que tem de todas as manciras a maior afinidade e semelhanea possiveis com a revolugdo da inteligéncia" (898A3-6). Dadas as teses A, Ce D, segue-se a tese B: se 0s movimentos das estrelas sio causados pelas suas almas, se suas almas s40 racionais e se 0 movimento racional ¢ circular, entdo todos seus movimentos devem ser circulares. Assim, se a teologia metafisica de Platio é verdadeira, a principal alegagdo astronémica feita em B teria que ser verdadeira. Bem,eo 6? Emrelagdo as estrelasfixas, a resposta para a astronomia grega émaisdo {que dbvia: “Sim"!'6, Determinando posigdes sucessivas de qualquer estrela circumpolar, em um interval de vinte e quatro horas, veriamos imedia- tamente que se ajustam com rigor numa disposigao circular. E isto continuaria a ser verdadeiro independentemente da proximidade dessas posigées sucessivas. Uma facil extrapolacio nos mostraria que a mesma coisa também deve ser verdadeira para todas as estrelas fixas, incluindo aquelas cujas revolucdes diurnas nao s4o completas ou absolutamente observaveis nas latitudes norte em alguns periosios do ano. Até aqui, entao, aimplicagao astronémica das teses 4, Ce D coincide exatamente com uma inferéncia conhecida, amplamente aceita, de fendmenos ha muito obser: vados. ‘ mesmo nao se da com as outras estrelas que tém movimentos “errantes”. Ao que tudo indica, estes movimentos nao se ajustam a padroes perfeitamente circulares. E exatamente por esta razio que vieram a ser considerados “errantes", em primeiro lugar. O que faz Platio nesta situago? Dirdele: “As aparéncias sensoriais nada valerdo caso desmintam luma proposicio que se segue com seguranca dedutiva das verdades racionais de minha metafisica?” Isto ¢ 0 que Se poderia esperar dele em vista da atitude que parecia tomar, décadas antes, em relagdo as expe- riéncias dos sentidos no Fédon: la, ele havia acusado os sentidos de enganadores ¢ insistia em que o filésofo devia desconfiar deles, por principio, e evita-los tanto quando possivel na sua busca da verdade.t!7 Este rebaixamento do valor epistémico da experiéncia sensorial poderia © Universo de Plato 39 facilmente ter voltado Platao contra a metodologia que havia transformado ‘0 estudo dos ceus de inspiradas conjeturas em pesquisa empiricamente ‘controlada. Mas, como tentei mostrar acima, Platao conseguiu escapar de tio tragica alienagdo da ciéncia de seu tempo. Sua pratica, se ndo sua ‘teoria, mostra que ele compreenderia a tolice de qualquer teorizagao sobre (5 céus que ignorasse ou negasse fatos comprovados pela observagao. Sua tarefa, entdo, era conciliar a convicgao a priori de que todo o movimento celeste ¢ rotativo com os fatos empiricos relativos aos movimentos “errantes” de sete estrelas. No Timeu vemo-1o projetando uma teoria for- mulada para levara efeito essa conciliacao: ele levanta a hipotese de que os ‘movimentos do Sol, da Lua e dos planetas sao em todos os casos combin: {36e8 de movimentos circulares ndo-errantes, que se dao em diferentes pla- nos, em diferentes direges, em diferentes velocidades ~ 0 movimento do Mesmo em direcao a0 oeste, no plano do equador celeste combinado com 0 movimento do Diferente em direedo ao leste, muito mais lento, no plano da ecliptica, ov proximo dete O ceme conceptual desta hipdtese — sua “intuigao central”, se assim posso chamé-la com propositos de referéneia futura~ é que a combinagiio de movimentos circulares regulares postulados pode explicer os movi mentos fenoménicos irregulares. Platio tocou aqui em uma nogao pro- fundamente original e fértil - 0 grande canon heuristico da teoria astro- rnémica grega durante 0 meio milénio que se seguiu.!!8 Daqui a pouco veremos mais sobre isto. Mas antes de prosseguirmos na importincia de longo alcance dessa intuigio central, deixem-me dizer mais sobre sua bem sucedida aplicagao ao movimento solar no Timeu. A teoria dai resultante teria sido de especial interesse para o astrénomo pratico, porque dava corigem a uma profusdo de inferéncias relativas ao comportamento esperado do Sol ~ inferéncias que podiam ser usadas para instituir novas obser- vagSes, que podiam confimar ou negara teoria. Deixem-me enumerar um conjunto de tais inferéncias, que esta associado a concluséo de que 0 movimento compésito do Sol é em espiral. Que o proprio Platdo chegou a esta conclusio fica claro quando ele observa que a revolucao do Mesmio dda a todos os circulos [os do Sol, da Lua e dos planetas] uma virada em espiral porque eles se move simultameamente de duas maneiras, em direcdes contrdrias (owivovea thine dic wo Sez] xavia ve ivaviia Gua goiévar )” (39A6-B1).119 Ele néo nos diz como passa aqui da premissa 4 concluséo. Mas nao ¢ dificil imaginarmos esses pasos no caso do movimento solar. Fi-los aqui (veja a figura 1), como foram preenchidos por historiadores que glosaram esta passagem!20; cada passo na recons- trugdo do raciocinio se mantém bem dentro dos limites da geometria esferica elementar, que seria perfeitamente conhecida de Platao. ‘A figura I representa uma esfera imaginaria concéntrica com aesfera celeste, mas muito menor (seu raio é a distancia do centro da Terra ao centro do Sol). VS é o eixo polar. CQDP ¢ um grande circulo na nossa 40 Gregory Vlastos esfera imaginaria, no planodo equador celeste. Se 0 movimento do Sol fosse exclusivamente derivado do movimento do Mesmo. constituiria uma revolugdo diumna em direcdo ao oeste, sobre o circulo CQDP. EPBQ éa ecliptica, um segundo grande circulo na nossa esfera, a trajetéria da revolugdo em diregio ao leste que o Sol faz através do Zodiaco. As linhas AB e EF representam circulos na nossa esfera imaginaria nos planos dos trépicos norte e sul. (Suas representagdes por linhas sio esquematicas: desenha-los como circulos confundiria demais o diagrama.) Tispice se cancer Figura 1 Asdistincias Q0"e Q'0" foram exageradas:fossem mantidasem escala Q.0'¢ Ov estanam prosmos demas pars aparece. (Adapiado de Heath Atstarchus of es Oi eus ° (Adapuado de Heath, dristarus © Universo de Platao 4 ‘Suponhamos ocentro do Sol em Q, em um dado momento. quando 0s planos do equador celeste e da ecliptica se interseccionam em QP. O movimento do Mesmo leva o Sol em direcdo 20 oeste pelo circulo CODP. Concorentemente, o movimento do Diferente o leva (muito mais lenta- mente) na diregdo inversa pela ecliptica EPBQ. Assim, ao final de vinte € quatro horas, 0 centro do Sol nao teria chegado bem até Q; teria apenas alcangado um ponto Q’, um pouco ac leste de Q, no arco QE. Portanto, 0 movimento real do Sol. naquele intervalo, naoterd sido um circulo na nossa ‘esfera, mas uma espiral muito fina sobre ela, comecando em Q erematando em Q. Pela mesma razio, nas proximas vinte e quatro horas ele tera deslizado de volta a Q”, um pouco mais ao leste no arco QF, e uma outra volta terd sido acrescentada a espiral que comegou em Q. Isto continuara dia apés dia, as espirais se tornando um pouco mais curtas a cada volta. fembora sempre cruzadas em tempos iguais, até que 0 solsticio do in- verno seja alcangado em E. A partir dai o processo sera reverso: as es- pirais continuarao a descer. tornando-se sucessivamente maiores até 0 ‘equindcio da primavera, para entdo comecarem a ficar novamente menores até que 0 solsticio do vero seja alcangado em B, ¢, mais uma vez. 0 processo se inverters. Obteremos, assim, dois conjuntos de espirais continuas, um ascendente de E para Be outro descendente de B para E: ‘uma espiral para cada dia do calendirio, sempre descrita em tempos iguais. ‘mas com comprimentos variados, menores nos solsticios e maiores nos equinécios. ‘Assim, o valor da hipotese de Platao fala por si mesmo. Uma matriz. conceptual que gera a informagao que acabei de detalhar nao deixa dividas ‘quanto ao seu valor cientifico. E como é que Platdo chegou a ela? Tanto ‘quanto apreendemos dos registros, ele a obteve através de seu esquema rmetafisico: jé que o Sol é um deus cujos pensamentos determinam seus movimentos. sua alma deve ser perfeitamente racional (teses A e C acima); jf que o movimento racional é circular (tese D).0 movimento do Sol tem que ser circular (tese B). Por que.entao, o movimento solar nao apresenta a simples e direta circularidade dos movimentos das estrelas fixas? Por que tle nao esti, como os delas. restrito ao movimento circular em diregao a0 ‘este num s6 plano? Por que é que ele desliza para tris, em direcaoao leste, dias apés dia? E por que este deslizar ocorre num plano que corta obliquamente os planos nos quais se move as estrelasfixas? Sera que sua alma ndo é téo racional quanto as delas? Por que, entdo, seria seu movimento tao diferente dos delas? A hipdtese de Platao responde com sucesso a todas estas perguntas: formule a hipétese de dois movimentos em panos que se interseccionem em diferentes diregdes, a diferentes velo- Cidades, onde cada qual, operando sozinho. levasse 0 Sol a uma érbita perfeitamente circular.e vocé pode deduzir que a operagao concorrente dos mesmos produzir uma hélice responsdvel pelos fenémenos!?!, compativel com a exigéncia da tese B. Spe meme mae nee nnn nme nes a2 Gregory Vlastos ‘Tendo chegado a esse ponto, Plato dificilmente poderia naoir além. Ele ria querer satisfazer a mesma exigéncia no caso do movimento da Lua « dos cinco planetas. Mas aqui sua hipétese comeca por Ihe nao dar o que ele quer. Aqui ele se defronta com movimentos que, ao contririo do Sol, nto podem ser explicados pela decomposi¢io de cada um deles nos movimentos do Mesmo ¢ do Diferente. O movimento do Diferente em qualquer dos membros do sexteto seria ou no plano da ecliptica, como no «6250 do Sol, ov entdo em um plano fixo paralelo ao da ecliptica, Por que, entdo. aquelas variagdes em latitude, aqueles movimentos que, alterna. damente, se aproximam e se afastam da ecliptca? Estes movimentos laterais fogem totalmente a explicagao pela hipétese do Mesmo ¢ do Diferente de Platdo. Como também as variagées na velocidade angular apresentadas por Venus e Merciirio em relag8o 20 Sol, que Platéo reconhece, 20 descrever 0 trio, como alternadamente superando e sendo superadas umas pelas outras” (38D4-6) e, mais genericamente, os retrocessos apresentados de tempos em tempos por cada um dos cinco planetas. Do ponto de vista da hipotese de Platdo, que atende apenas ‘movimentos constantes em velocidade e direcdo. essas intermiténcias do movimento planetario sdo escandalosas irregularidades: s40 fendmenos que @ hipdtese de Plato néo pode tocar. ‘A metafisica de Platdo ihe foneceu um caminho simples para chegar ‘um acordo com esses fendmenos. Ele poderia ter dito: “Bem, nao sio a Lua e os cinco planetas deuses, com mente e vontade proprias? Por que, entdo, teriam que se manter nessas estruturas simples de movimentos que resultam da composigao entre 0 Mesmo e 0 Diferente? Por que ndo resolveria uma das estrelas “errantes”. ou mais de uma, variar aquele movimento que o Sol segue tio monotonamente?” De acordo com Comford (Plato's Cosmology, p. 80 e seguintes, 106 e seguintes). assim é, de fato, a maneira pela qual a teoria astronémica de Platao explica os fendmenos de deslocagdo planetiria que do recaleitrantes a hipotese do Mesmo e do Diferente: Cornford nos faria acreditar que o poder de autolocomogio da Lua dos cinco planetas constitui para Platéo uma “terceira forga” (p. 87) que modifica, no caso. a direcio e a velocidade imprimidas a cada um deles pelo Mesmo pelo Diferente!22, Esta proposta falha por falta de evidéncia textual!23: ndo ha sugestao, no texto de Plato, de que ele tenha alguma vez recorrido a tal “terceira fore” para explicar fendmenos nio-explicaveis pelo Mesmo e pelo Diferente '26, E hd umaboa razdo por que ele ndo 0 faria ~ uma razdo que parece ndo ter ocorrido a Comford!25: ¢ que o valor explicativo de tal hipétese ancilar teria sido spiro. Ela pretenderia explicar irregularidades observadas nos movimen- tos desta ou daquela estrela postulando que a estela simplesmente decidiu se mover dessas maneiras, naqueles periodos de tempo. Porgue ela teria tomado essas decisées e ndo optado por quaisquer das outras infinitas alternativas que poderia ter escolhido, naqueles mesmos pontos de sua (© Universo de Platao 43 \ajet6ria, permaneceria um mistério. O explanans proposto, por si mesmo ‘ndo menos obscuro do que o explanandum, nao explicaria nada. Assim, é lum mérito de Platao que, tanto quanto podemos apreender de seu texto~ a iinica fonte relevante de informacao ~ ele tenha se denegado esta maneira simplista de resolver as enormes discrepincias entre os fenémenos dos movimentos lunar e planetario, e sua hipdtese astronémica do Mesmo edo jiferente. Deva tradigdo antiga representa Platio como tendo deixado 0s ‘outros 0 problema que ele proprio ndo conseguiu resolver. Ela nos chega através desta citacao de Sosigenes 126 em Simplicio (in de Caelo 488.21-24 lincluido em Eudemo, fr. 148 Webrli): Platio colocoe este problema Aqueles que se ocupavam com estes estudos {astrondmicarl: Que movimentos uniformes e ordenados dever ser tomados ‘como hipotese para salvar of movimentos Tenoménicos das estrelas er A verdade histérica deste relato, do qual nao temos maneira de tragar 2 origem!2S. é em si mesma de pouca conseqiéncia. Pois a despeito de ter Platéo formalmente proposto ou nao esta tarefa em tantas palavras ~ essas ououtras!29 — aos astrénomos de seu tempo, podemos ter certeza de que a tarefa se colocaria para qualquer pessoa que viesse a conhecer sua teoria, astronomicae tivesse 0 poder de entender tanto sua consideravel conquista como a sua falha residual. Tal pessoa foi, com certeza, Eudoxo. Os historiadores da astronomia ha muito tempo reconheceram!30 que a sua teoria das esferas homocéntricas!3} representa, se nio uma solugdo para o problema formulado na citagao acima, ao menos um brilhante avango na diregio certa. O que ndo foi reconhecido, que eu saiba, € a continuidade entre esse avango — um dos maiores jamais alcangados na historia da astronomia ~e o representado pela solugdo que Platdoda para uma parte do ‘mesmo problema, na sua teoria do movimento solar. Em ambos os casos temos uma composigao de movimentos circulares, simples e uniformes, sendo responsiveis por movimentos fenoménicos complexos e irregulares, Aplicando esta formula ao movimento do Sol. Platio obtém excelentes resultados; aplicando-a ao movimento dos planetas. obtém fracos resul- tados. pois nestes casos sua hipdtese é simples demais para lidar com a complexidade dos fenémenos. Eudoxo aplica a mesma formula a0 movi- mento dos planetas e obtém resultados muito melhores, porque ele teansformou o simples construto platénico, substituindo-o por um novo modelo altamente imaginativo, em que trios ou quartetos de esferas homocéntricas fazem 0 papel dos pares de circulos de Platio, trazendo a exploracao deste aparato mais potente os recursos do seu génio mate- matico. Nao se pode, naturalmente, comparar a grandeza da conquista cientifica de Piatdo com a de Eudoxo. E verdade, entretanto, que foi Plato 44 Gregory Viastos ‘que preparou o caminho para triunfo de Eudoxo, pois 0 trabalho de Platao indo s6 havia colocado o problema como ja tinha solucionado o caso mais simples do movimento do Sol, Neste caso, Platdo tinha realmente mostrado “quais movimentos regulares ¢ uniformes devem ser formulados como hipétese para salvar os movimentos fenoménicos”: © movimento do Mesmo no planodo equador, completado em apenas vinte e quatro horas. © movimento do Diferente, no plano da ecliptica, completado em pouco mais de 365 dias (Comecei este capitulo dramatizando a hostilidade de Platao paracom 105 descobridores do cosmos. Sua oposigao a eles era tao violenta que. se tivessem aparecido em sua utopia, ele os teria silenciado com a prisio.ou a morte. Mas do que trata essa oposi¢ao? Nao & do cosmos: é da teoria que eles tinham do cosmos ~ essa ¢ que ele esta determinado a estilhagar embora apenas para substitui-la por uma nova de sua autoria, que teria sido iqualmente odiosa aos fanaticos extremados que processaram Anaxagoras © Socrates. Pois, enquanto a cosmologia de Platéo reconhece comple- tamente o poder sobrenatural no Universo, ela o faz com a garantia inclusa de que ele nunca ser exercido para perturbar as regularidades da natureza!32, Como expliquei no inicio, esta garantia é dada tacitamente, no carater do criador sobrenatural da natureza. Ele é um artifice cujo unico desejo ¢ fazer um mundo téo belo quanto a sua arte pode fazé-lo, Como poderia sua natureza, téo sem inveja, perturbar subseqilentemente a ordem gue ele colocou no mundo para torni-lo tdo belo quando é? Se se aceita 0 ‘modelo platénico de cosmos. nao se & mais tentado a ver um eclipse como tum pressagio.!33 ou a interpretar o comportamento de um homem como resultado da ate, do que se se aceitar 0 modelo democritiano. Em qualquer um dos casos fica a certeza da infalivel operacao do que passa a chamar-se desde entao “lei natural’. Somente a base dessa lei seria diferente: natural no modelo democritiano, sobrenatural no platdnico. Assim. a rejeigdo de Platdo da physiologia jénica nao é 0 desastre total que poderia parecer a primeira vista. Mesmo assim, nao sera um erro? Se tivéssemos que escolher entre aqueles dois modelos de cosmos, néo teriamos todas as razdes para optar pelo de Demécrito? Boas raz6es sim: todas as razes — nao. Seu carater necessario nos teria salvo daquelas infe- réncias absurdas, legitimadas pela teologia de Platio, que decidem 0 que 0 que nio €0 caso pela dedugao do que seria bom e belo, encantador € inspirador. se fosse 0 caso. Na medida em que o modelo platénico incorporou tais inferéncias estava errado e com 0 tempo, fadado a ser descartado pela comunidade cientifica. O que, as vezes, ¢ distorcidamente descrito pelos historiadores da ciéncia como “a dissolugae do cosmos” no século XVI de nossa era é de fato a dissolugdo do modelo platdnico do cosmos - o modelo de um Universo finito, bifurcado em dois dominios di- versos, 0 celeste € 0 terrestre, governados por diferentes tipos de movimen- tos, movimentos circulares para 0s céus, iniciados pela alma, movimentos © Universo de Platao 45 de outros tipos para a esfera sublunar. causados mecanicamente. Este é 0 retrato do mundo inventado por Platao e consolidado por Aristoteles que tinha que ser apagado antes que a ciéncia se pusesse a caminho!34, Assim, 1 longo prazo, a escolha do modelo de Demécrito contra 0 de Platio se revelaria correta ~ mas a muito longo prazo. A curto prazo 0 modelo platénico apresentava nitidas vantagens, © que. a0 contrario de todas as expectativas. 0 tornou nos aspectos principais mais util 4 ciéncia con- temporanea do que seu rival. Cheguei a esta conclusio relutantemente, quase que incredula- mente.135 As nogdes de que o mundo tem alma, de que todas as estrelastém. alma e de que os corpos celestes se mover como se movem porque suas almas racionais devem se mover em circulos perfeitos sio tio fantasticas ‘que acho dificil acreditar que pudessem ter sugerido uma sistematizagao cientificamente valiosa dos dados cientificamente estabelecidos. Se 0 argumento anterior ¢ correto, isto é de fato 0 que aconteceu. A teoria cientifica dos movimentos celestes sugerida a Platao por seu esquema metafisico tinha perspicacia genuina ¢ tinha, de qualquer maneira. valor cientifico distintamente maior do que a altermativa democritiana para os ‘mesmos dados. Buscando uma explicacao mecénica para 0 movimento dos corpos celestes, Demécrito tinha se voltado para 0 velho esteio dos physiolégoi, © vortice: as estrelas se moviam como se moviam porque ppermaneciam sob o controle do movimento vortical que, em um passado distante, causou a formacao do nosso mundo: e as diferengas em sua: velocidades angulares se deviam ao fato de o vortice se tomar “mais fraco’ a medida que se aproximava do centro. de modo que o Sol “ficava para tris” das estrelas fixas. e a Lua mais ainda.!36 Mas 0 valor explicativo desta hipétese era ilusorio: ndo havia maneira de derivar dele correlagdes verificaveis de diferengas de velocidade, digamos. entre a Lua, 0 Sole as estrelas fixas com diferengas nas suas distancias respectivas da Terra. A hipétese era impotente para salvar os fendmenos e servir como guia uti para novas observacées. que a confirmariam ou mostrariam o caminho de sua corregao.!37 Realmente, ¢ dificil vermos como qualquer teoria dindmica, que pudesse ser construida com os recursos técnicos desse tempo, poderia ter boas chances de sucesso. Essa teoria permaneceu além dos poderes dos maiores astrénomos do Ocidente por dois milénios ‘Também por esta razao 0 esquema metafisico de Platao seria uma base para astrénomo em atividade: livré-lo-ia da necessidade de construir um modelo dinamico dos movimentos dos corpos celestes. Permitir-Ihe-ia contentar-se com um modelo puramente cinematico, que tinha por objetivo mostrar como. sendo postulados certos movimentos. a3 conseqdéncias matematicamente dedutiveis salvariam os fenomenos.!38 Este seria 0 caminho do futuro ~0 caminho percorrido por Eudoxo. Apolonio. Hiparco, Ptolomeu.!39 O que encorajou Platéo a comecar essa tradi¢ao foi um conto de fadas metafisico.140 Isto foi o que o salvou ~e, através dele, 0s maiores SPR me eR eee en en ne nen nme vewewwewewwew rv eww wwwwew we ewe ewww ecw cee o Gregory Viastos exusnmos da aniseed pesquisa fl de asa sins pata os marion ene meando que henese as eat Sa SSenrndothe ur xn suena: erste pict manent plcutncbon Jo Nee Capitulo 3 © Cosmos de Platio Il ~Teoria da Estrutura da Matéria Deixem-me reiterar um dos principais pontos do capitulo anterior: embora Platéo fosse certamente um inimigo declarado ¢ um possivel perseguidor dos physioldgoi, nem por isso deixou de aceitar sua descoberta do cosmos. A este respeito crucial, seu mundo é como deles e diferente do de Pindaro, Herédoto e do da grande maioria de seus proprios contempo- Faneos: € um sistema de mundo cuja ordem esta livre de interferencia sobrenatural. Isto € verdadeiro até mesmo na sua teoria dos céus, onde seu ataque frontal aos physioldgoi se verifica. Elirinando causas fisicas desta regio do Universo, ele nao a devolve aos seus tradicionais senhores do ‘Olimpo. Estabelece um outro conjunto de causas, psiquicas sem duivida, ‘mas destinadas a garantir que os movimentos dos corpos eelestes sejam tio regulares como um vértice. ou como qualquer outro agente mecénico possa fazé-los. As estrelas-deuses de Platdo nao podem “ultrapassar suas medidas” mais do que as estrelas-fogo, ou as estrelas-terra sem alma dos physiolégoi. ‘Quando passamos da primeira divisio do Timeu (29E-47E). que trata principalmente dos movimentos teleologicamente ordenados das almas, para sua segunda divisio (47E-69B), que trata dos movimentos ‘mecanisticamente ordenados da terra, da agua, do ar e do fogo, a visao em ‘comum que Platio tem com seus adversarios se torna muito mais solida. A teoriada estrutura da matéria. que ele apresenta aqui, tem tanto em comum ‘com suas contrapartidas na physiologia jonica, que Aristételes parte do pressuposto de que a teoria de Platéo ¢ uma variante da hipotese atomicade Leucipo e Demécrito.!42 © proprio Platao convida & comparacdo com os atomistas, com Anaxagoras ¢ com Empédocies. A Anaxagoras ele faz breve alusdo, ao falar das invariantes de seu proprio sistema fisico como “sementes”, 143 que Anaxagoras usou como termo técnico para esse propésito '#4. 4 sua aluséo aos atomistas € mais destacada e mais constante. Foram eles que chamaram aos constituintes primeiros da matéria “sroichefa”, “letras”, fazendo analogia de seus atomos com os caracteres, cujas combinagées e permutagdes permitiam produzir 0 corpus aid Gregory Viastos total ¢ infnito de sentengas em escrita alfabética. 145 Platdo usa esse termo de empréstimo repetidas vezes: ele chama scoicheia as figuras elementares das quais se constroem os corpuisculos de seu sistema, 48 Em certa ocasiao queixa-se de que aqueles que postularam a terra, a agua, oar-eo fogocome 05 stoickela do Universo ndo tinham sido muito profundos: o que eles haviam tomado como letras do alfabeto da natureza nao deveria ser dizele arrolado nem ao menos como as silabas mais basicas para esse prope. sito, 147 Aqui ele deveria ter tido Empédocles em vista '8, pois havia sido cle que tinha feito da terra, da agua, do ar e do fogo os elementos do Universo natural. dotando-os com uma inalterabilidade absoluta, parme. Ridiana, para tomi-los adequados a esse propdsito. Assim, oferecendo-nos seus proprios stoicheia, Platdo mostra que se engajou no mesmo programa ée elementarismo fisico. Como Empédocles, Anaxagoras e os atomistas, ele se prope a identificar aqueles elementos recorrentes. cujas misturas ¢ ttocas de posicao explicariam as constincias em forma de leido fuxo. Ele ‘nos quer fazer saber que a tarefa que seus predecessores tentaram fazer tinha agora sido feita. adequadamente, por ele proprio: as letras, nioapenas as silabas, que a natureza usa para escrever sua narrativa haviam sido finalmente descobertas. Mas em tudo isto temos ainda de apontar a especial afinidade de Platdo com os atomistas ~ou, para dizé-loem termos menos lsonjeiros. sua divida ndo reconhecida a eles. que ¢ muito maior do que o que ele deve a qualquer outro filésofo da natureza. Para chegarmos a isso devemos lembrar-nos daquilo que nos atomistas constitui a grandeza das suas conjunturas no enigma da matéria, Isto ¢, certamente, ndo apenas o fato de Que eles postulam indivisiveis. E a perspicdcia mais profunda que eles revelam ao fazer essa postulagdo, mais exatamente, o fato de que os nao- observaveis que postulamos para explicar as propriedades dos observavels no precisam, eles mesmos. ter essas mesmas propriedades. Divisiblidade € um caso desses. Atribuimos, e com toda razio, essa propriedade a todo.o objeto material dentro do ambito dos nossos sentidos. Devemos tambem atribui-la aquelas microentidades invisiveis e intangiveis que formam as ‘coisas que vemos ¢ tocamos? Por que deveriamos fazé-lo? Até onde vai a l6gica, ndo hé motivo para raciocinar que “X é composto de um milhdo de ¥'s: X ¢ divisivel. logo. cada um dos ¥°s ¢ divisivel.” Reconhecendo a faldcia dessa inferéncia—“a faldcia da diviséo” chamam a issovs livres de logica -, estamos livres para investigar a conclusdo em seus proprios, méritos e poder rejeita-Ia de consciéncia tranquil, se descobrirmas, come 8 atomistas fizeram, razdes contra ela. Da mesma forma, por due

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