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RUDOLF VON IHERING TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE INDICE TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE Capitulo I — A posse como objeto de um direito .. 67 Capitulo 1X — A posse come condigéo do nassimen- to de um diteito 74 Capfiulo TI — A. posse como. fundamenio de um direito .. 76 Capitulo IV — RelagSes possessbrias nfo protegides 81 Capitulo V — A rao leyslativa da proto por sess6ria 85 Capitulo VI — A posse é um direito . Capitulo VII — Luger da posse no sistema j Capitulo VIII -- Nascimento ¢ extingio da posse (existencia concreta), condigao da vontade .... 105 Capttulo IX — A apropriagio corpérea da coi 107 Capfiulo X — A posse dos direitos . 116 Capitulo XI — Transformagio da posse no desenvol- vimento do direito modemo . 123 a) A posse das coisas ... 123 b) A posse dos direitos . 124 Capitulo XII — A literatura - . 127 TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE 1 A POSSE COMO OBJETO DE UM DIREITO Um dos sinais caracteristicos pelo qual o jurista se distingue de qualquer outro homem est4 na diferenga radical que estabelece entre as nogSes de posse e de pro- priedade. Na Tinguagem comum empregam-se com grande fregiiéncia essas expresses como equivalentes, Fala-se de retengiio, de restituigao de propriedade, onde, na linguagem do jurista, se de falar de retengdo ou de restituigéo da posse. Fala-se de grandes posses territor de posses de fundos, etc., quando se trata da proprieda essa confusdo encontra-se também entre os romanos. Ni ‘guagem da vida didria serviam-se os romanos da palavra pos- sessores para designar os proprietétios de iméveis. Pode-se inferir deste hébito de linguagem qua pouca diferenga se percebe entre a propriedade e a posse, quanto & sua mani- festacdo exterior na vida. E na real ide € assim mesmo. Em geral o possuidor de uma coisa é ao mesmo tempo © scu proprietério. Ordinariamente o proprietério € 0 pos- suidor, e enquanto subsista tal relago normal, € indtil es- os TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE tabelecer-se uma disting#o. Mas, desde 0 momento em que a propricdade ¢ a posse se separam, o contraste produz-se imediatamente, com uma tal eyid@ncia, que nfo pode pas- sar despercebido, nem sequer ao leigo. F evidente, até para © espirito mais simples, que a subiragéo violenta ¢ clandestina de uma coisa mével néo faz perder a proprie- dede ao proprietétio, ¢ ainda quando, em toda a sua vida, ele ndo tenha ouvido falar em possuidor nem em pto- prietério, seria capaz de definir de fato as posic6es distintas de um e de outro com uma exatidao téo perfeita, que nao Ihe xestaria senfo aprender a linguagem do jurista, Uma chamarse propriedade, e outra, posse. Para negar-se a alguém o direito de guardar a coisa, ¢ para conceder-se a outrem o direito de recuperé-la, 0 leigo julgou compreender que a relagao dessas duas pessoas rela- ivamente & coisa é inteiramente distinta, ¢ no The seria dificil expressar a diferenga com uma perfeita cxatidao. De fato, dir-se-4, a coisa se acha em maos de alguém — eis af a posse — diria o jurista. O conilito sera entre 0 nao-pro- prietirio que possui o proprietério que nio possui. O Iato eo direito — tal é a antitese a que se reduz a distingao entre a posse e a propriedade. A posse é 0 poder, de fato, © @ propriedade 0 poder de direito sobre a coisa. Ambas podem achar-se com o proprietério, mas podem também separarse, podendo acontecer isto de duas manei- ras. Ou o proprieidtio wansfere a outrem tdo-somente a posse, ficando com a propriedade, ou @ posse Ihe é arteba- tada contra a sua yontade, No primeiro caso a posse € justa (wossessio iuista), ¢ 0 proprietério mesmo deve respeité-la; no segundo & injusta (possessio iniusta), € 0 proprietétio pode acabar com ela por uma agdo judicial. Ora, uma ver CAPITULO 1 ® munido dessa faculdade, ficalhe garantido o direito de ‘A posse nfo tem, na pessoa do justo posstiidor, como na do possuidor injusto, o cardter de uma relagio de puro fato, mas o de uma relagéo juridica. A posse do proprietério traz consigo 0 direito de possuir (ius possidendi). A importéncia pritica que para ele apresenta esse di- 0 econémica da propriedade consiste, se- gundo a natureza das coisas, no uti, fru, consummere. O proptietério pode realizé-la por si mesmo (utilizago ime- diata ou real), ou cedé-la, quer por dinheiro (arrendamen- to, venda, troca), quer gratuitamente (empréstimo, doa- go), a outras pessoas (utilizaglio mediata ou juridica), sendo necessério classificar nesta segunda categoria a con- cesso condicional do direito de vender sob hipoteca. ‘To- dos esses atos tém por condigfo a posse. Quem nfo tem uma coisa nfo pode consumila, nem uséla, nem perceber seus frutos, €, se a conclusdo de convengdes (obrigatérias) para a cessagio do uti, rai ou da propriedade, a outras pes- soas, no supde a existéncia atual da posse, @ realizacio destas convengées, pela execugdo, a exige. Segundo 0 direito romano, ¢ consoante 0 direito co- mum atual, 0 que ficou dito é certo ainda com relagio & transmissio da posse. De onde resulta que © proprictério privado da posse se acha paralisado quanto 2 realizagio econdmica de sua propriedade, A posse, como tal, no tem nenhum valor econémico, ¢ néo o adquire senio porque 7 ‘TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE torna possivel a utilizagao econdmica (de fato ou de direl- to) da coisa, ainda quando se tratasse somente da mera contemplago de um quadro. Se me entregassem um qua- dro em uma caixa fechada, a posse dele seria desprovida de valor par A posse sem um proveito posstvel seria a coisa mais do mundo. Seu valor consiste unicamente na funcio indicada: é um meio para alcancar um fim. Segue-se dat que tirar a posse é paralisar a proprieda- de, e que 0 dircito a uma protegao juridica contra o esbulho € um postulado absoluto da idéia de propriedade. A pro- priedade néo pode existir sem tal protesio, pelo que nio 6 necessdrio procurar-se outro fundamento para a protecgo possessétia. E, pelo menos, o que se infere da propriedade mesma. O direito romano deu todavia 20 direito possessério do proprietério uma extensio infinitamente mais ampla do que a que se supde no caso indicado, em que nfo se nota senfio a antitese da posse e da propriedade reduzidas & sua mais simples expresso. direito romano d4 ao proprieté- rio o meio de recuperar a posse de todo individuo em cujas mios acha a sua coisa, seja qual for 0 modo por que este adquitisse a posse. Esse meio, que antigamente consistia num ato solene de recorrer-se & forga privada, e que nao conduzia a uma instfncia judiciéria senfio no caso de resis- téncia, ¢ a reivindicatio, Encerra ela o sinal particular da nogdo romana da propriedade, comparada com 0 aspecto que reveste no direito dos demais povos. Como em parte nenhuma, ache-se af a idéia que os romanos faziam da im- portdncia da posse e da propriedade. Propriedade e direito a posse sto sindnimos. Para fazer com que a posse Ihe fosse restitufda, o proprietério nao tinha mais do que provar que CAPITULO 1 1 jar da propriedade, por um dos modos de aqui- sigdo legalmente proseritos, e a existéncia da posse exer cida pelo réu. A propriedade ¢ a posse medemse aqui sem mescla de nenhum outro elemento, ¢ até poderia dizer-se que quase em toda a pureza de seu princfpio. E eis ai o que distingue esta uta pela posse da disputa jé assinalada, onde se encontra, no obstante, na pessoa do réu o elemento da injustiga sub- jetiva que falta aqui. Em zazio deste elemento, o autor da nda quando deixe de possuir. tena, todavia, em suas mos, a coisa, porquanto a reiv Gicagio, fundada unicamente no fato de que outro supde a existéncia de posse na ocasiéo em que se int ta Ges que precedem néo indicaram todavia a ica particular que se dé & posse como tal romano ¢ em todas as legislagdes que dele de- . Temos até aqui considerado a posse em sua relagio com a propriedade, e por isso podemos resumir 0 exposto nas seguintes proposigdes: 1) A posse é indispensavel ao proprietério para a uti- fizacdo econdmica de sua propriedade. 2) Resulta disto que @ nogio de propriedade acarreta necessariamente o direito do proprietério A posse. 3) Esse direito ndo poderia existir se 0 proprietério contra 0 esbulho injusto da posse. contra todos os atentad perturbacio desta dltima, constitui um postulado absoluto da organizagio da propriedade. 2 TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE 4) A questo de saber se, pelo sistema do direito ro- mano, a protecdo do direito possesssrio do proprietério deve-se amplier ainda contra terceiros apenas possuidores, & para o legislador uma questi aberta, que pode det que certamente decidiu num ou noutro sentido. Esse direito de reclamar a restituigdo da posse contra terceiros possuidores estendeu-o 0 dircito romano, mais tarde, @ outros direitos. Estendeu a reivindicatio (como jcatio ou int rem actio) a outras pessoas distintas do proprietério. Tais so, em primeiro lugar, as pessoas a quein 0 proprietdrio mesmo, sem despojar-se da sua pro- priedade, concedeu o direito de utilizar a coisa, jé para proporcionar-lhe o gozo econémico de propriedades edifica- das ou de bens rurais (superficie, enfiteuse, ambas conce- didas perpetuamente ou por longo prazo), ja para garantic © pagamento de seus créditos (hipotecdrio, com o direito de vender eventualmente a coisa, pignus, hypotheca). Pondo de parte essas pessoas, ctija posiglio juridica o jutisconsulto caracteriza, atribuindolhes um ius fit re, a aco foi concedida de um modo mais xestrito (como a actio publiciana) a0 bonae fidei possessor ou possuidor de boa-fé putative), isto é, aquele que sem ser verda- deiro proprietirio tem, nao obstante, motives si razGes bastantes para julgar-se tal, porque adquiriu a coisa de um modo regular ¢ préprio para conferir-lhe a proprie- dade, mas cujo efeito no se realizou em sua pessoa, em conseqiiéneia de obstéculos particulares desconhecidos para em um contlito com o proprietério ou com as pessoas que The esto ao mesmo tempo assimiladas, a ago presta a0 possuidor o mesmo servigo que ao proprietério ¢ as pessoas que se Ihes assemelhem: — devolve-the e poe em suas mios a coisa perdida. CAPITULO 6 Todas essas relagées referem-se & propriedade, da qual os iura in re so ramificagdes e a bonae fidei posses reflexo, Em todas clas se reproduz a idéia fundamental da ptopriedade — o direito a restituico da coisa achada em fos de outrem, @ volta da posse ao possuidor legal, a invo- cagio do ius possidendi contra quem nio o tem. ‘A importncia da posse consiste em ser ela o contetido possidendi. A posse 6 0 contetido ou o objeto de um direito, Se ela nfo tivesse outra importincia, ofereceria ecasso interesse sob o ponto de vista do lucro, porque todas as coisas, por exemplo, andar a pé ou de carro, beber égua, prestar servigos, podem ser objeto de um diteito. Em vista disso, uma definigao da posse ndo seria mais necesséria para 0 jurista do que a de todos esses outros atos; porém, desde jé pode-se assegurar que a coisa nao € tio fécil nem tao simples como & primeira vista parece. ‘A posse, com efeito, deve ser considerada sob dois outros pontos de vista. Em primeito lugar € a condigao do nascimento de certos direitos, e, néo obstante, atribui por mesma a protegao possesséria (ius possessionis em opo- ico ao ius possidendi); ela €, por conseguinte, a base de um direito, u A POSSE COMO CONDICAO DO NASCIMENTO: DE UM DIREITO Uma ver adquirida, a permanéneia da propriedade des- liga-se da posse. O proprietério conserva sua propriedade ainda mesmo depois de haver perdido a posse. Ora, sendo 1a prinefpio a propriedade indepondente da posse, no s¢ compreende a xazio por que, podendo ela continuar sem posse, nao poderd igualmente nascer sem posse, € 0 motivo por que uma simples convengao sem entrega da posse no seré bastante para transferir a propriedade, Nii obstante, o direito romano exige para esse fim 0 ato da tradiio, © apesat de suas numerosts dotrogates, esta se manteve até nossos dias. ‘A idéia que a insprou salta acs olbos. Para nasoer, a propriedade deve manifestarse em toda a sua realidade; ora, esta realidade é precisamente a posse, a qual & indis- pensével para a realizagdo do fim da propriedade. A pro- priedade nfo aparece sem posse sendo na aquisigéo a titulo de heranga ou legado, ‘A posse, entre vivos, é indispensdvel para se chegar & propriedade. ‘A aquisigéo da propriedade das coisas sem dono (occupatio) tem também por condigdo a apropriagao da posse, € acontece © mesmo com a aquisicio da proprieda- dle dos frutos por parte do colono (fructus perceptio) . caPITOLO I Em todos estes casos, a posse tem importancia so- mente como um ponto de transigiio momentdnea para a pro- pricdade. Se sobrevém sua perda logo apés, nao implica ela ‘o menor ataque & propriedade uma vez estabelecida. O que hi € que no é s6 a posse que gera aqui a propriedade; é preciso também que concorram outras condigdes exigidas pelo direito. Se a posse nfio tem nestes casos senfio o valor de um ponto de transigéo momentanea para a propriedade, ¢ se nao se considera ela sendo como um ato, hé outro modo de aguisig&io da propriedade em que ela toma o aspecto de um estado de ttansigdo de uma situagdo duradoura. Referimo- nos & usteapido. Contudo, nao é bastante aqui a simples posse como tal; & preciso que concorram certas condigSes (que formam no conjunto a conditio usucapiendi) , as mes- mas a que se refere a protecio juridica do bonae fidei pos- sessor contra terceiros, de que falamos hé pouco, A pres: crigfo revela novamente a estreita correlagdo que existe entre a posse e a propriedade. A posse oferece-se, mais uma ‘vez, neste caso, como o caminho que conduz a propriedade; apenas © caminho é mais longo, por faltarem as condigdes que concortem no outro caso. Na teoria da posse, a doutrina ndo trata dos casos em que a posse aparece como condigio da aquisigao da proprie- dade. Deixa-os, com razfo, & teoria da propriedade. Com efeito, a posse é tHo-somente aqui uma das miltiplas con- digGes de que depende o nascimento do direito, ¢ que nao deviam ser tratadas neste lugar, senio no caso de nao haver outra ocasifo de se falar no assunto. Esta ocasiao oferece-a © direito romano, porquanto nele a posse recebeut a figura ¢ 0 valor de uma instituiciio juridica independente. A POSSE COMO FUNDAMENTO DE UM DIREITO © possuidor, como tal, 6 protegido conira todo ataque (perturbacao ou esbulho) & sua relagdo possesséria. Basta isso para caractetizar o lugar que a posse ocupa no diteito, como instituico independente, A idéia fondamenial de toda a teoria possesséria € 0 ius possessionis, isto é, 0 direito que tem todo possuidor de prevalecer-se de sua relaglo possessdria alé que se enconire alguém que o despoje pela prova de seu ius possidendi. Per- _gunta-se com admiragdo 0 que determinou aos romanos con- ceder a protesiio juridica a esse puro fato que nada, a ndo ser a si proprio, pode alegar em seu favor. A questo den muito que fazer aos nossos juristas, e as opinides'sio muito discordes, A resposta nfo se pode achar sendo na forma que (0 romano deu a esta proterdo possesséria, Resumi- Jaci em seguida a largos tracos. © conhecimento exato da forma particular dada ao interdito possessério no proceso romano nfo apresenta inte- resse para as pessoas estranhas ao direito. Bastard dizer que era uma ordem (interdictum) emanada do pretor & instan- cia de uma parte, e dirigida & outra, ordem que nao tinha forga contra esta tltima senfio quando concorriam as con- digdes @ que ela se achava subordinada Em todas as ordens pretoriais deste género, o magis- trado que as ditava nao tratava de investigar se essas condi- cAPETULO 1 n ¢Ges eram justas ou nao. Era isso objeto de ulterior instru- (do pelo juiz, 0 que nfo se verificava sendo no caso de nao se haver dado cumprimento & o:dem, A ordem nfo era, pois, absoluta; era ordenada sob a reserva de que as con- digdes a que se subordinava deviam ser estabelecidas. Esta forma, empregada pelo pretor para um grande niimero de relacdes, tinha uma aplicacdo muito especial na posse. Tais eram os interdicta possessoria, que 0s romanos classifica- ‘vam em trés espécies. Para obrigar 0 réu a obedecer imedia- tamente sem processo ulterior, cominayam-sethe penas se- veras, dado 0 caso que sucumbisse, podendo-se afirmar que sempre que 0 direito do autor fosse incontestavel, @ ordem lograria seu fim, De ordindrio nao se chegava a um processo ulterior senfio quando a relagdo possesséria eta duvidosa; e neste caso s¢ © autor sucumbisse, a pena recafa sobre ele. Podia, pois, custar caro intentar ou sustentar levienamente uma questéo possesséria. ‘Mas, perguntaré a pessoa estranha a0 direito, como poderia haver discussio acerca de qual dos dois possufa, se a existéncia de posse prova-se & primeira vista? Aqui apre- senta-se a teoria possess6ria particular ao direito romano, que exige uma qualificagdo especial para que a posse par- ica, e que, por conseqiiéncia, dis- de posse — a posse juridicamente pro- tegida e a posse juridicamente desprovida de protegao. Em nossa terminologia atual, a primeira chama-se posse jurfdica — civil (os romanos chamavam-ne simplesmente possessio. ‘ou possidere ad interdicta, em oposigéio a0 possidere ad ust- capionem do bonae fidei possessor) . A segunda recebe o no- me de posse natural ou detenefio-posse. Os romanos servem- se neste caso de vérias expressdes que nfo tém interesse ‘para as pessoas estranhas a0 direito, e entre as quais me ‘TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE es modernas. 'osa possessio) ocupava 0 lugar in- expressava a relagio do justus) pata com o justo Aquele que se achava nessa relagdo como possui- e citarei como exemplo principal 0 caso do esbutho violento (de vi), encontrava plena proteséo contra todas as demais pessoas, e tomava, com relacio a estas, a posicdo do possuidor; porém, em frente 20 possuidor justo, negava-selhe a protegao aco possesséria fosse intentada por ele ou pelo adversé- rio — ele no tinha, perante este, posicfo distinta da do detent: © vicio de posse (vitisan possessionis) tinha apenas uma importncia relativa. O seu influxo para com as demais modo que, com relagio ao detentor que possuisse em seu nome (veja-se IV), podia, por sua autoridade pr6pria, re- cobrar a posse, sempre que ni fosse & mio armada (vis armata, em oposigo 2 violencia permit quotidiana) . Tropecando-se com uma resistén: se logo a autorizacdo d das trés espécies de interditos possessérios, a saber: pelos interdicta RETINENDAE possessionis, cuja idéia funda. por si mesmo, e que reclamava a protecdo da a0 opor sere resistencia (vim: fieri veto). Muito como se sustentou, continham eles, pelo contrario, a autori- ‘CAPITULO zacio de servir-se dela, Enlagam-se estreit fa antige idéia romana de que o possuidor legal pode fazer valer o seu direito por seu proprio desforgo, ¢ que nfo deve reclamar o auxilio da autoridade pablica senfio quan- do se choque contra uma resisténcia, pelo que o adversério que @ opGe & castigado com uma pena. © nosso ponto de vista moderno de que todo individuo que tem um direito contra outrem deve antes de tudo seguir os caminhos da ordem juridica, era completamente desco- nhecido dos romanos da época antiga. Com excegéo de cer- tas relagées particulares, que em razio do seu cardter duvi- doso deviam ser submetidas a decisio do ju necessidade de intervencio do magistrado cialmente como patticularidade do proceso que se devia seguir (legis actio per tava convencido da leg claramente disso que, da introdugio da insténcia Essas mesmas formas tiraram dai os seus nomes (legis actio per vindicationem, per manus iniectionem, per pignoris capionem). ‘A protegio possessétia relaciona-se igualmente com esta antiga idéia romana. Nao é proibido, nem mesmo 20 possuidor natural, ao detentor, manter-se em posse usando da violéncia, salvo uma restrigio relativa, que mais adiante propésito da detengfo, a saber: que nfo se poderia agir por esse modo para com aquele de quem se a posse, Néo hé nisto sendo uma conseqtiéncia do ‘pio absolutamente geral de que a violéncia pode ser repelida com a violéncia (vim vi repellere aplicagao especial A relagio possessétia. B pri # TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE. distinguir com cuidado o emprego da violéncia com o fim de defender por si mesmo a posse, para manier a relagho existente, do emprego da violéncia com o fim de fazer-se justiga, como, por exemplo, com o fim de recuperar a posse o. Este tiltimo é © privilégio do possuidor » Somente ele pode vencer pelas vias de di- reito destinadas a garanticlo. Se o possuidor natural as in- tenta, vetse-d repelido. E preciso que em seu Iugar atue aquele em nome de quem ele possui, Do mesmo modo, o iniustus possessor & repelido quando age contra o iustus possessor, porque, sob 0 ponto de vista de suas relagdes re- ciprocas, nao € ao primeiro, mas ao iiltimo (o iustus posses- sor), que cabe 0 direito de justia privada, Iv RELACOES POSSESSORIAS NAO PROTEGIDAS ‘As coisas sobre as quais um direito de propriedade nao & possivel, nfio podem ser objeto de posse no sentido juridico, sendo preciso aplicar-se a mesma regra aos que ‘nfio podem ser proprietérios (em Roma, 0s escravos © 0s fithosfamiflias). Onde a propriedade nao é possivel, obje- tiva ou subjetivamente, a posse também nao o 6. 'A posse e a propriedade andam de més dadus: a falta de aptidio na pessoa ou na coisa, quanto & propriedade, implica a mesma falta relativamente & posse. ‘A essa razao de exclusfio da posse, que no tem hoje grande importéncia, actescentase outra infinitamente mais importante, que conservou todo o seu valor. Em certos ca- sos — em que © proprietério tenha abandonado, por meio de contrato, a coisa a outrem, com a reserva de serthe devol- vida ulteriormente com ou sem condigdes, casos que com- preendo com o nome de posse derivada — o direito romano concede a posse a certos detentores tempordrios (por exem plo, ao enfiteuta ou colono heteditétio) , ¢ nega-a a outros (por exemplo, a0 colono e ao atrendatéirio ordindrios). A negativa da posse, nesses casos, € coisa que pode produzir- nos nfo pequena surpresa. ‘Aquele que se apoderou da posse de uma coisa — verbi gratia, o ladrdo, o salteador —- ¢ 0 que se apoderou com violéncia da posse de um imével, obtém protego juridica; 2 TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE ao passo que aquele que a obteye de um modo justo néio 6 protegido: este wltimo, no que concerne & relagdo posses- esta destituido de todo direito, néo somente para com terceiros, como também com aquele com quem se obtigou, por contrato, a restittir a coisa, ao tetmo do arrendamento ou aluguel. Se reclamada antes da expirago do atrendamento, deve restitui-la; de outro modo faz-se réu de um esbulho que haverd de custar-Ihe caro. Nao hé dtivide de que pode intentar imediatamente a ago do contrato e re- clamar perdas e danos, porém deve restituir a coisa, sem fazer oposi¢ao alguma. O arrendador tem contra ele o di- reito de fazer justica e, caso necessétio, de proceder contra ele mediante o interdito possess6rio. Os juristas romanos dao como explicagdo disto que 0 colono possui pelo arrendador, em seu nome (alieno nomine possidere), e que ele nao tem posse propria, mas simplesmente o exerefcio da posse de um outro. Esta consideragio impée-se, do ponto de vista de constructio juridica, porém nfo explica de forma alguma ‘0 aspecto real das coisas. Para chegarse a este resultado, a teoria romanista seguiu o caminho das dedugées ligicas. Para que haja posse, diz ela, € preciso que na pessoa do possuidor exista a mesma vontade que na do proprietério (animus domini). Esta vontade existe no proprietério real, também no putativo, ¢ no pretenso proprictatio, isto é, na- quele que, desprezando a propriedade, apoderou-se da c alheia, tal como 0 ladrdo, o salteadar, e, com relagio a imé- veis, 0 dejiciens. Ao passo que ela nfio existe naquele cuja posse € detivada do proprietério ¢ que por isso mesmo re- conhece a propriedade de outro. © colono desempenha simplesmente o papel de um representante que quer ter a coisa no para si, mas para o proprietitio. Vé-se facilmente de que maneira se viojenta CAPITULO IV 8 aqui a nogao da representago, porque, na realidade, 0 co- ono nio tem intensio de deter a coisa para o atrendador, mas para si. A idéia da representago em matéria posses- séria nfio 6 exata sendo quando se recebe 2 coisa exclu sivamente no interesse daquele que a dey, por exemplo, para guardé-la (depositum) ; para entregé-la 2 outro (manda- tum) ; nas relagdes entre amo e criado, e— enfim, segundo o nome que julgo deve-sethe dat — na posse por procurador. © que se nega nesses casos aquele que tem para ou- trem a coisa, é toda a protecao possessbria contra o dono da posse; e isto € uma conseqtiéncia inevitavel da depen- déncia necesséria do representante com relagio ao seu amo ou dono; o sistema contrrio conceder-lheia uma indepen- déncia que facilmente nfo se concilia com o fim da relaglo. Nos casos, porém, em que a coisa é dada aquele que a tem, por si mesmo — e que eu concebo com o nome de posse interessada — a idéia de uma representagio 6 inexata, Re- ferimo-nos aqui a uma disposi¢éo do dircito romano que nilo se pode deduzir por via de conseqiiéncia juridica, e que melhor se deve procurar justificar por motivos préticos. Acrescente-se a isto que, em uma porcéo de casos de posse interessada, o direito romano concede a posse em lugar da detenc&o que resultaria da teoria do animus domini, & ter- sed desse modo a prova de que nao se deixou guiar pelo ponto de vista que the atribui a teoria, Realmente, as con- sideragdes de caréter prético foram as que aqui influiram para fazer com que a balanga s¢ inclinasse. Eu as expus de tum modo detido em meu Livro A vontade na posse (Der Besitzwille, Tena, 1889, n. XVI-XVID). Nas relagdes entre os arrendadores e arrendatérios ou colonos, a falta de protegdo possesséria do detentor devia st TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE conservar no proprietério a possibilidade de repeli-la em qualquer tempo, ¢ isto em atenco a um duplo interesse: em primeiro tugar para poder-se aproveitar qualquer venda que durante 0 arrendemento se apresentasse; além disso, para poder livrar-se 2 todo momento de um colono incapaz ou de um inguilino rixoso ou desagradavel. A falta de protecdo possesséria nfo priva, contudo, de todo o direito, ao simples detentor. Além do direito de manter-se por si na posse, que nfo se Ihe nega, o direito romano concede-the, no caso de atentados contra a sua pos- se (perturbacio ou esbulho), varias agdes; apenas no se trata de agées possessérias propriamente ditas. De onde se segue que estas t8m uma natureza particular que explicare- mos depois, Vv A RAZAO LEGISLATIVA DA PROTECAO POSSESSORIA, Se causa estrankeza o direito romano neger a protecio possessGria ao colono ou ao inquilino, nfo causaré menos estranheza reconhecé-la no possuidor injusto. Por que te 70? SAvIGNY, cuja opiniao pode-se considerar hoje como preponderante no dominio cientifico, responde: no interesse da manutencao da paz e da ordem publica, Esta consideragao de policia, chamemo-la assim, parece ser de uma evidéncia notéria, porém no se harmoniza com o aspecto de que se reveste a protecdo possesséria no direito romano. Segundo esta consideragao, o possuidor natural ¢ as pessoas incapa- es de possuit deveriam ter igualmente um direito a ser pro- tegidas, porquanto € perfeitamente indiferente que seja em sua pessoa ou na do possuidor juridico que se procure a de- fesa da paz e da ordem publica. Também se diz. que a posse se protege em vista da personalidade, ou antes, em atengiic a vontade da pessoa. Cometer um atentado ou ferir ura relacéio possesséria na qual se realizou, ¢ de certo modo incorporou, a persona- fidade (ou a vontade) ¢ atentar ou ferir esta personalidade mesma, Dirigir um atentado contra a relag&o possesséria € lesar a personalidade. © mesmo pode responder-se a esta consideragao. Pode-se consideré-la como perfeitamente exata sob 0 ponto de vista da filosofia do direito romano. Segundo 6 ‘TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE ela, os detentores ¢ os filhos-familias poderiam também re- clamar a protegdo possesséria, porque, afinal, s4o tao pes- soas ¢ {Go capazes de vontade como 0 possuidor juridico. Somente de uma maneira pode-se explicar satisfatoria- mente 0 aspecto da protegdo possesséria do direito romano, © & dizendo que ela foi instituida com o fim de aliviar e facilitar a protegio da propriedade. Em vez da prova da Propriedade, que 0 proprietétio deve apresentar quando re- clama a coisa em maos de um terceiro (reivindicatio), ser- the-d bastante a prova da posse para com aquele que a arre- batou imediatamente, Pode a posse, de acordo com isto, representar a propriedade? Sim, porque é a propriedade em seu estado normal — a posse ¢ a exterioridade, a visibilidade da pro- priedade. Estatisticamente falando, esta exterioridade coin- cide com a propriedade real. Quase sempre o possuidor é ao mesmo tempo 0 proprictario, sendo muito diminutos os casos em que nfo o 6. Podemos, pois, designar 0 possuidor como .proprietdrio presuntivo, ¢ compreende-se perfeitamente, por um lado, a razdo por que o direito romano declarou essa presungdo de propriedade — esta prova a prima jacie, como diz 0 direito inglés — suficiente contra o réu somente quando se trata de repelir os ataques & propriedade; e por outro lado, tanto quanio a coisa se ache em mios de um terceiro, e 0 réu, tendo a seu favor a presungio da propriedade, exija que tal prestnedo nfo se possa destruir sendo pela proprieda- le. A ago possesséria mostra-nos a propriedade na defen. sivg, ¢ a reivindicagao na_ofensiva, Exigir da defensiva a prova da propriedade seria pro- vlamar que todo individuo que néio se encontra em estado CAPITULO V a de demonstrar a sua propriedade — o que 6 impossivel em muitos casos, quigd na maioria, quando se trata de moveis — acha-se fore da Jei; dessa maneira, qualquer pessoa po- ceria tirarthe a propriedade. ‘A proteséio possesséria aparece como um complemen- to indispensdvel da protegao da propricdade. O diseito & propriedade sem a protecdo possess6ria seria a coisa mais imperfeita do mundo, ao passo que a falta de reivindicagio apenas afetaria, a nfo se considerar a questiio sendio em seu aspecto prittico. © nosso diteito atual colocou-o fora de uso em um grande mimero de casos, De fato, a organizago da proprie- dade no se bascia tanto no direito de propriedade e na aco reivindicatéria, como na seguranga da posse que, na ver- dade, nfo se baseia, por sua vez, menos na aco possess6ria do direito privado do que sobre as penas do direito criminal. © ponto de vista que acabamos de expor, figurando a tulela possesséria como uma facilitagdo para proteger a propriedade, exprime perfeitamente a idéia romana cago da posse. E 0 que se depreende da proposiggo acima enunciada: onde a propriedade ¢ impos- sivel a posse também o é — proposigao esta que, de outro modo, nao teria sentido, Ela nfo se explica senao pelo fato de que a posse considera-se como a exteriotizagio da pro- priedade, que o dircito deve proteger. Onde nao se pode conceber juridicamente a proprieds- de, ndo pode haver questo accrea da presungao de pro- priedade, que constitui a base da protecio possesséria. Nao julgo necessério reproduzir aqui as demais razGes que, para fundamentat esta opinifo, expus com detida anélise em 88 ‘TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE outra obra (Grund des Besitzschutzes — O fundamento da protegao possessoria —~ 1869). Se, para ser protegido como possuidor, basta demons- trar a posse, esta protegiio aproveita tanto ao proprietério como ao néo-proprietario, A protecdo possesséria, estabele- cida para o proprietério, beneficia desse modo uma pes- soa para quem no foi ela institutda, Semelhante conseqiién- cia 6 inevitével. O direito deve aceitéla sobretudo para conseguir seu fim de facilitar a prova da propriedade. Para evitar-se essa conseqiiéncia seria preciso abrir mao da ques- tao de direito, 0 que deve acontecer no processo passessd- rio. © carter essencial deste ¢ que a questiio de direito fique descartada para ambas as partes. Nenhuma deles tem necessidade, para obter a facili- dade da prova estabelecida em atengio ao proprietatio, de alegar ou provat © sett direito; ainda mais, no se Ihe dé ouvidos, se o alegarem. Assim, 0 réu ndio pode objetar a0 autor que ele 6 proprietdrio ou que tem um direito obtiga- cional sobre a coisa (excepciones petitorias),’e 0 autor nao pode suprir as Iacunas da prova de sua posse pela ale- gacio de seu direito de propriedade. E nesse sentido, ¢ so- mente nesse sentido, que os juristas dizem: a propriedade ea posse nada tm de comum e por isso nfo podem de forma alguma ser confundidas. A diferenca do possessério e do petitérig repousa na rigorosa desta regra (interdicta possessoria ¢ pe- titorium iudicium) . Naquele 6 se trata da questo de posse: neste trata-se exclusivamente da questéo de direito, pelo que se depreende, falando a linguagem da prética, que a deci- sio do possessétio no prejudica a do petitério, isto é, que a parte que foi vencida no primeiro pode ainda triunfar no er] CAPITULO V 9 segundo e vice-versa. Desta maneira & possivel que 0 nio- proprietétio triunfe no possessério contra 0 proprietatio. ‘A instituigdo feita para este tornase sua adverséria. Mas nfo sucumbe porque a reivindicaggo proporciona-the o modo de pér fim, em qualquer momento, & posse porven- tura juridicamente protegida de seu adversério, Esses efei- tos, que excedem do fim legal das instituigdes juridicas, so inconvenientes que o legislador deve aceitar sem remédio. ¥ como a chuva que rega ao mesmo tempo aos que dela necessitam @ aos que néo necessitam dela, Semelhantes in- convenientes reproduzem-se em mais de uma instituisio, sobretudo naquelas que tém pot escopo facilitar 2 prova. Como exemplo citarei os titulos a0 portador. Introduzidos em favor do interessado, para facilivar- Ihe a prova do seu direito, aproveitam também a quem de- les se apoderou de um modo injusto. Quando se trata de semelhante falsidade nas provas, tem-se que escolher ontre deixar o que nfo tem direito ser entretanto protegido como posstiidor legal, ou, para excluir aquele, negar a este a ina- precidvel vantagem, que supde o emprego de uma prova facil. Os casos da primeira categoria so tio escassos, com- parados com os da segunda, que nfo se deve tomélos em conta. A concessio, pois, da protecéo possessGria, Aqueles que no tém direito, quando 0 fim legislativo néo atende sendo ao possuidor legal, aparece como uma consegiléncia no desejada, porém inevitavel. ‘A teoria teinante sobre a posse muda completamente a face da questo. Consoante esta teoria, a protego possesséria nao foi introduzida para o proprietério, mas para o possuidor como tal, o que inplicava a necessidade de justificé-la sob este 0 TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE ponto de vista. Ora, acabamos de ver quéo pouco concor- dam as consideragSes que efetivamente se fazem (ordem liblica, personalidade, yontade) com o aspecto que o di- reito romano deu & protecio possess6ria, tinico ponto que agora nos importa. A proteg&o possesséria do direito roma- no néo pode ser compreendida senfio sob 0 ponto de vista da propriedade, ¢ sendo posta em relago com a seguranga necessiria da propriedade, A especiosa objegio que se for- mulou, tendo em conta que os juristas previnem-se contra toda confusdo entre posse © propriedade, destréi-se aten- dendo-se a que ela nao se refere senio & reparaga aplicagao judicial, que eu mesmo ac modo algum & cortelagio das duas instituigdes, de que nem se ooupam sequer. Fis af uma questio aberta para a ciéncia: © desenvolvimento hist6rico da protegfio possesséria, assim como a construcdo dogmética da teoria possesséria por parte dos juristas romanos, bastam para demonstrar, com toda a clareza e certeza desejéveis, a existéncia desta rela- do legislativa entre a proptiedade e a posse. © nosso exame da protecdo possesséria estabeleceu, pois, a mesma relagio intima da posse com a proptiedade que encontramos desde o principio, e que finalmente se hé de encontrar ao examinar-se ulteriormente a questo da existéncia concreta da posse. Resumindo o que ficou exposto, as proposig6es assen- tadas até agora sfo as seguintes: 1) _A posse constitui a condigao de facto da utilizagao econémica da propriedade. 2) Assim, o direito de possuir € um elemento indis- pensdvel da propriedade. CAPITULO Vv 3) A posse & a porta que conduz propriedade, 4) A protege possesséria apresenta-se como uma po- sigao defensiva do proprietétio, com a qual pode ele repelir com mais facilidade os ataques dirigidos contra a sua esfera juridica, 5) Negase, por consegiiéncia, a protegdo possessoria, onde quer que @ propriedade juridicamente se exclua. Em todas as partes, pois, reproduzse a relagdo da posse com a propriedade. VI A POSSE £ UM DIRFITO A questio de saber se a posse 6 um direito ou um fato € objeto de uma controvérsia ainda nfo resolvida até agora pela ciéneia juridica. A opinigo dominante sustenta que é ‘um diteito e é preciso reconhecer-se que aparentemente toda a razio esté de seu lado, A posse nasce puramente do fato, sem pressupor um direito. Como, pois, hd de ser ela um direito? © possuidor que no tem outra qualidade sucumbe na luta contra o proprietério reivindicante, o que prova que a posse nao 6 mais que um puro fato que desaparece perante o direito. Isso néo demonstra, na realidade, que a posse seja um direito, mas que constitui um direito de uma espécie particular, por sua natureza diferente dos demais. Para se aplicar a uma relagdo juridica uma distingao erica de cardter geral, & necessério, antes de tudo, deter minéla com preciso, Foi justamente 0 que nao se fez, no que concerne a distingfo do fato ¢ do direito, por quase todos aqueles que trataram da questo, Um jurista notavel, BUCHEL, escreveu uma vasta monografia sobre este assunto, na qual nao disse uma s6 palavra acerca desta questo pré- via to decisiva. E realmente, para qué? Esta distingfio fun- damental deve ser clara para todo jurisconsulto. Deveria sé-lo certamente, porém viu-se hé pouco que nfio o ¢, A dou- trina antiga nfo fez a mais leve tentative para fixar cienti- ficamente a nosiio de direito em sentido subjetivo. O que CAPITULO VI 8 se encontra nos tratados antigos nfo passa de uma pardifrase da expressfio direito pelo intermédio de equivalentes (do que jé falei em meu Espiri romano, +. 4, § 70)". ‘A nova doutrina referiu-se & primeira, na solugao desta questo de ha muito abandonada; mas, por uma fatalidade que persegue a posse, semelhante doutrina que, segundo sua definigéo do direito, deveria reconhecerIhe a natureza de direito, negoutha. Para julgar se a posse é um direito ou um fato, fundo- me na definigéo de que expus em outro lugar, de modo aptofundado (ob. cit., t. 4, §§ 70 e 71). Os so 08 interesses juridicamente protegidos. Esta definigao tem sido objeto de criticas. Se a reproduzo aqui, € no so- mente para expé-la ao piblico, a quem esta obra se dirige, isto é, na contingéncia de formar-se uma idéia da natureze juridica da posse, como também porque acredito que pre- sentemente a minha noo do direito pode revestir-se de um valor especial para 0 economista. ‘As objecdes que se deduziram contra a minha defi- nigGo si infundadas. Nao é exato que para definir 0 direito me sitva da nogéo mesma que trato de definit. Sem davida a palavra direifo apresenta-se na expresso protegidos”, porém com uma significacéo muito diferente. No primeiro caso significa 0 direito no sentido subjetivo, e, no segundo, no sentido objetivo; estas duas nogdes so fundamentalmente diferentes entre si. Ponba-se em luger de juridicamente protegidos, LEGALMENTE proiegidos, ¢ FY, na traducto francesa do Geist des rémischen Rechts, a p. 317 (ch. Lresprit alu droit romain, Paris, Librairie Mareseque Ainé, 1888, +. 4) (Nota do Coordenador) o TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE tudo ficaré bem. Se utilizei a primeira expresso, é por- que 2 lei no é a Gnica fonte do direito no sentido objetivo; ha ainda o diteito consuetudinério, que nfio pode ser com- proendido na expressio “legalmente protegidos”. Acreditou-se que se podia criticar o elemento do inte- resse (que cu oponho como elemento substancial ao ele- mento formal da protegao juridica), dizendo que, con- forme as circunstincias, um direito pode nao ter © menor interesse para o titular e, nfo obstante, ser protegido como tal. Assim se raciocina, por exemplo, na critica feita recentemente por Kuntze, Zur Besitzlehre; fir und wider Rudolf von Jhering (Leipzig, 1890, p. 77 ¢ seguintes) Esta critica funda-se em uma confusio entre o interesse et: mesmo me preveni de mim. : Em tinha definicdo, referia-me ao interesse abstrato, Jador no estabelecimento de todos 05 tipos juridicos sem excego, Eu disse expressamente que a medida deste interesse varia segundo o horizonte dos inte- resses do povo e da época; que a opinidio sobre a questao de saber se certos interesses sfo dignos de protec e se dela necessitam, modifica-se com a evoluco das apreciagdes do * Os nimeros se referem as paginas da edicio or ito do ai denador), CAPITOLO VI 9% povo. Certos interesses, aos quais, em uma fase inteira da lizagdo, nega-se a protegdo juridica, foram dela benefi- ciados com o progresso da civilizagio; outros perderam-ne. A questo de saber se em um caso particular existe 0 interesse que 0 legislador julga digno de ser protegido e que, segundo cle, necesita sé-lo (interesse concreto), nfo tem importéncia alguma em tese geral; a prova dos fatos, as quais a lei se refere para afirmar 0 nascimento do di- reito, é bastante para que o autor deva consignar o interesse que tem em fazer valer seu direito, nem que o réu seja admi- tido a prevalecerse da falta deste interesse. Uin cego pode-se prevalecer de uma servidio de vista; © homem completamente desprovido de todo o sentimenio de honra pode intentar uma agdo de injérias; o comodante pode pedir a restitui¢go do livro emprestado por um certo tempo, ainda mesmo que o comodat4rio tenha o maior inte- resse em conservé-lo por mais algum tempo, e niio tenha aquele, por acaso, interesse algum em vé-lo, A célebre decisdo de Ciro, que, a despeito dos direitos de propriedade, resolvia a questfio dos mantos adjudican- do © maior ao homem mais alio ¢ 0 menor ao mais baixo, esté em flagranie contradi¢o com os principios superiores mais incontrastdveis do diteito. O direito € IN CONCRETO absoluiamente independente da questdo do interesse. Nao o € de ouiro modo senio em certos casos: nas obrigagies interessadas, como eu as chamo; por exemplo, o mandato, Nesses casos € preciso a prova de um interesse conereio para dar ao juiz uma medida de avaliago; ¢ ainda com certas demandas obrigatérias de outra espécie, este in- teresse pode-se acrescentar acessoriamente € chegar assim a set o objeto da prova. Além disso, em alguns casos nomina- 96 ‘THORIA SIMPLIFICADA DA POSSE tivamente citados pela Iei, a falta de interesse opde-se ao exercicio de certas faculdades. ‘A nogio de chicana tem af a sua explicagio: € 0 exer cicio sem inieresse, ¢ com o fim tinico de prejudicar a ou- trem, de faculdades que, considerades em si mesmas, slo juridicamente fundadas. Somente ela € proibida onde a lei 4 proibe expressamente, ¢, por mais paradoxal que patega, & nisso que consiste a seguranga da ordem juridica. Esta seria sacrificada se, a principio, a defesa dos direitos, em juizo, dependesse da prova do interesse na pessoa do autor, ou se, pelo contrério, se permitisse opor e provar a falta de interesse. Se se parte desta definigdo: “os direitos so os inte- resses juridicamente protegidos”, nfo pode haver a menor daivida de que € necessdrio reconhecer 0 cardter de direito & posse, Expusemos mais acima 0 inferesse que implica a posse: constitui ela a condigao da utilizagio econdmica da coisa, Pouco nos importa que esta utilizagdo torne-se assim ‘possivel para o possuidor legal como para o'que ndo tem direito; em todo caso, a posse oferece interesse como pura relagdo de fato: € a chave que abre o tesouro € é tio ne- cesséria para o ladrGo como para o proprietirio. A este elemento substancial de toda nogio juridica, 0 direito acrescenta, no que concerne @ posse, um elemento formal: a protegdo juridica, e por este modo concorrem todas as condig&es juridicas de um direito. Se a posse como tal nao fosse protegida, nao constituiria, na verdade, senfo uma relago de puro fato sobre a coisa; mas, desde o mo- mento em que ¢ protegida, reveste o carter de relagdo juri- dica, 0 que vale tanto como direito. oo CAPITULO VI 37 ‘Winpscrew quis evitar a necessidade desta conclu- sio, dizendo que a posse engendra muitas “conseqiiéncias juridicas”, porém nao constitui um direitos do contrério seria preciso qualificar também como direitos os contra- tos © os testamentos (Pandekten, 1, § 150). Ele confunde neste caso 0 fato gerador do direito com o seu efeito. Um fato nao é um direito; a aquisigao da posse vale a esse res- peito tanto como a conclusfio de um contrato ou a confec- Go de um testamento. Quando, porém, como nos trés casos citados, a lei atribui a um fato conseqiiéncias jurfdicas favordveis para uma pessoa determinada, que coloca na situagiio de assegurélas por meio de uma ago, provoca procisamente a produce do conjunto das condigses legais a que chamamos direito. ‘Ao fato da conclusio do contrato a Iei liga = conse- giiéncia juridica de que 0 credor pode reclamar do devedor 2 execuggo do contrato; a0 fato da confecgiio do testa. mento a lei liga a consegiiéncic idica de que o hetdeiro institufdo pode reclamar de terceiros a restituigdio dos bens da sucesso, ¢ dos devedores desta o pagamento de suas dividas; ao fato do nascimento da posse a lei liga @ conse- qiiéncia juridica de que o possiidor pode exigir de terceiros respeito para a sua situaglo possesséria. Nos dois primeitos casos chamamos a conseqiiéncia juridica direito do credor ou direito de sucessio. Que motivo bd para negarse o nome de direito ao terceiro caso? Se se nega 0 direito de posse somente porque resulta, como consegiiéncia, de um fato, é preciso também negar o direito do credor ¢ 0 de sucesso, porque a relagio entre © fato gerador do direito ¢ a conseqiiéncia juridica é exatamente a mesma, ¢, com efeito, nfo hé um sé direito oe ‘TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE que no pressuponha um jato gerador de direitos, Todos os direitos, sem excegio, aparecem como conseqiiéncias juridi- cas, isto é, como conseqiiéncias juridicamente protegidas em favor daqueles a quem deyem elas aproveitar. Nao vejo inconyeniente em conceder, a quem destrui esta definigio, © direito de dizer que a posse nfo é um direito: se ele ndo 0 fizer, 6 porque admite a natureza juridica da posse. Nao ha diivida que um fato pode também engendrar conseqiiéncias juridicas que nfo constituam direitos: tais sio 0s fatos de extingdo (por exemplo, a derelictio, a entrega, © pagamento) ¢ os fatos modificativos do direito (por exem- plo, a mora, a culpa, 0 dolo nas relaches contratuais) . Mas ‘onde quer que os fatos engendrem conseqiiéncias que a lei garante ao interessado por meio de uma agi especial, ex- clusivamente destinada para esse fim, tais fatos cl mo-los (como geradores de direito) sob o nome de direitos. Na maioria dos direitos, a confusio do fato gerador com o proprio direito 6 excluida pele diversidade mesma dos nomes que a linguagem Ihes dé; por exemplo, o contrato © 0 crédito, o testamento e o direito sucessério, Na lingua- gem dos romanos, porém, havia também expresses que tinham os dois significados; por exemplo, nexum, obligatio, e tal & precisamente 0 caso da posse. Do mesmo modo que ao nexum ¢ & obligatio, como ato (fato gerador de direito) , ligava-se ¢ referia-se o dizeito do credor (conseqiiéncia juri- dica), designado pelo mesmo nome, assim & posse como estado de fato liga-se e refere-se a posse como direito. Os juristas romanos tiveram plena consciéncia desse duplo aspecto da posse. No primeiro caso, distinguem a posse como causa facti, ou por meio de express6es andlogas, por exemplo, corporis, facti est; no segundo, designam-na CAPITULO VE »” como ius possessionis, iura possessionis, sendo portanto di cil compreender como alguém poderd citar expressées da pri- meira categoria, para sustentar que a posse, no pensar dos juristas romanos, nao é um direito. Esta assergdo € desmen- tida pelo reconhecimento formal da posse como direito, ¢ ha to pouca contradigéo entre esses duas expresses que, muito ao contrério, tornam manifesto 0 exato reconheci- ‘mento, por patte dos juristas romanos, da natureza juridica da posse, Na posse, # relagio entre 0 fato gerador ¢ 0 di- reito € tHo particular que, afora um caso somente, que ie- remos ocasifo de mencionar, nfo se a encontra em Jugar nenhum. Em todos os demais direitos, ¢ podem-se citar, como principais, a propriedade e a obrigagio, o direito separa-se desde © momento em que nasceu do fato que o engendrou: por exemplo, da tradicdo, da ocupagéio, do contrato, do de- lito: 0 fato cozresponde imediatamente ao passado, ¢ apenas persistem as suas conseqiiéncias. Na posse, pelo contrério, a manutengiio da relaciio de fato & a condiggo do direito & protegdo: o possuidor nfo tem um direito senao enquanto ‘ou quando possui, Em outros termos, em todos os demais direitos o fato & a condigao transitdria do direito; na posse & a condigao permanente. Daj nasce a diferenca da prova. Nos primeiros olha-se para 0 passado; neste para o presente; naqueles nao se pro- va senfio o nascimento do direito a que a sua existéncia se refere como conseqiiéncia necesséria. B preciso provar-se neste a existéncia do direito, e por isso nfo basta provar que a posse nasceu em tal ou qual momento, porque nao 2 ficaria por isso autorizado a coneluir que ela existe atual- mente, mas ¢ preciso provar-se que a posse existia na mesma ‘ocasiaio em que se cometeu o atentado. 100 TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE B deste modo que, na posse, 0 dircito ¢ o fato cobrem- se reciprocamente: o direito nasce com o fato e desaparece com ele; um ndo existe sem que exista o outro. Acontece © mesmo com 0 direito de personalidade, que compartithou a sorte do da posse, pelo que alguns jurisconsultos quiseram, téo equivocamente como fizeram com a posse, negar-lhe o cardter de um direito. Assim como 0 direito de posse acha- se unido a existéncia do estado de fato que ele se destina a proteger, assim também o direito de personalidade esta Tigado & existéncia da pessoa; nasce ¢ morre com ela: neste caso o fato e o direito também andam completamente pa- raletos, ‘Nao se chegaria a duvidar da natureza juridica da posse se nd se reputassem inconcilidveis com efa os dois fatos jur dieos que se seguem. O primeito é que mesmo o possuidor injusto & protegido. Como pode a injustica gerar 0 direito? Haverd maior contradi¢ao!? © esbulho violento 6 proibido, ¢ n&o obstante tem por conseqiiéncia um direito! O mesmo fenémeno todavia apresenta-se também em matéria de pro- priedade. O especificador, isto é, aquele que de uma matéria existente faz coisa nova — por exemplo, 0 sapateiro que emprega © couro para fazer botas, o alfaiate que emprege pano para fazer um terno — faz-se proprietério dessa coisa, ainda quando a matéria-prima no Ihe pertenga. Do mesmo modo, segundo a teoria romana sobre o direito de cage, aquele que cagasse em terreno alheio, mesmo contra a yon- tade do proprietétio, fazia-se dono da caga apanhada, Aqui também o simples fato injusto engendra direitos. A lei néo quis com isso dar aprovagdo a esse fato injusto e deixar o re ao ndo-proprietério para fazer toda espécie de especificago e ao cagador para cagar em terreno alheio: CAPITULO VI 101 suas disposigdes correspondem a idéia de que os tetceiros nada sofreram com a injustiga do ato conereto. As conseqiiéncias prej ingem exclusivamente as pessoas culpadas, o que se obtém por meio de uma ago ‘pessoal proposta contra elas. A propricdade élhes reconhe- cida no por elas mesmas, mas no interesse da seguranca dos negécios sobre a propriedade. Bis ai uma das idéias mais fecundas do direito romano, que néo obstante repto- duz-se em uma porgo de relagdes em que a aquisigdo da propriedade na pessoa do adquirente pode sex atacada, sem que 0 vicio que acarreta sua aquisigao alcance a propria propriedade, Esta passa pura ¢ intacta das mios do adqui- rente atual para a corrente das relagdes posteriores: 0 prin- cfpio doentio que a achacava em seu poder, fica nele ¢ toma a forma de uma ago pessoal. ‘Quem no tiver conhecimento desta idéia do direito romano nfo poderé compreender o aspecto da propriedade romana, nem a protegiio possessdria; surpreender-se-4 tam- bém vendo que a propriedade concede-se ao proprietétio injusto (exposto A agio de rescisio) , como ao ver a protecdo possesséria concedida ao possuidor injusto. Mas deve-se ter presente que a propriedade concede-se aquele, nfo em aten- cio a cle préprio, mas em atengio aos terceiros que adquii- ram a coisa dele, e também que a protege possesséria con- cede-se a0 possuidor injusto, nao por ele, mas em atengio a0 proprietério. © escopo almejado pela lei nao poderia ser alcangado se fosse negada a propriedade ao adquirente in- justo, e a protegio possesséria a0 possuidor injusto. ‘A comparacio com a propriedade proporciona-nos também uma arma para repelir a segunda objecio feita contra a natureza juridica da posse. A posse, diz-se, sucum- be na luta contra a propriedade, isto é na reivindicactio;

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