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_ Biblioteca do Pensamento Moderno Erwin Panofsky Idea A evolucao do conceito de belo Titulo original: IDEA. Copyright © Erwin Panofsky e Bruno Hessling Verlag. Copyright © Lioraria Martins Fontes Editora Ltda., Sao Paulo, 1994, para a presente ediclo, por acordo com a Dra. Gerda Panofsky. It edigéo 1994 23 edicéo 2013 c 2 tiragem 2013 ‘Tradugao PAULO NEVES Revisdo da tradugao Monica Stahel Preparacio do original Marise Simdes Leal Revisdes gréficas Mauricio Balthazar Leal Fabio Maximiliano Alberti Produgio gréfica Geraldo Alves Composisao Antonio José Cruz Pereira Dados Intemacionais de Catalogacéo na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SF, Brasil) Panofsky, Erwin, 1892-1968. Idea : contribuiggo a hist6ria do conceito da antiga teoria da arte / Erwin Panofsky ; {tradugéo Paulo Neves]. — 2! ed. - S40 Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2013. (Biblioteca do pen- ‘samento moderno) Titulo original: Idea: contribution & ’histoire du concept de ’ancienne theorie de l'art ISBN 978-85-7827-654-6 1. Arte - Hist6ria 2. Estética - Historia 3. Idealismo I. Titu- lo. Il. Titulo: Contribuigao & histéria do conceito da antiga teoria da arte. IIl. Série. 5417 CDD-111.85 was indices para catélogo sistemAtic 1, Estética : Filosofia 111.85 Todos os direitos desta edigto reservados Editora WMF Martins Fontes Ltda. Rua Prof. Laerte Ramos de Carvalho, 133 01325.030 Sao Paulo SP Brasil Tel. (11) 3293.8150 Fax (11) 3101.1042 e-mail: info@wmfmartinsfontes.com.br http:/fwww.vmfmartinsfontes.com.br Iv O “MANEIRISMO”’ Uma inspiracao tranqiila e sem problemas carac- teriza a teoria da arte do Renascimento; ela correspon- de perfeitamente a uma tendéncia, manifesta em todas as criacdes da época, e consiste em harmonizar o que parece ser mais oposto. Ora, na literatura dedicada 4 teoria da arte na segunda metade do século, época ge- ralmente definida como a do injcio do Barroco, essa ins- piracao pouco a pouco da lugar a uma outra bem dife- rente. E dificil, sem divida, na configuracao intelectual que essa literatura propée, isolar os tragos radicalmen- te novos, e praticamente impossivel reuni-los sob um con- ceito Gnico. Com efeito, é significativo que a conscién- cia cultural dessa época se apresente ao mesmo tempo como revolucionria e tradicionalista, procurando simul- taneamente isolar e unificar as tendéncias artisticas exis- tentes. Enquanto o Renascimento queria romper incon- dicionalmente com a Idade Média, 0 Barroco que se ini- 72 IDEA cia quer ao mesmo tempo ultrapassar e continuar o Re- nascimento; e se antes havia diferentes ‘‘escolas’’ que se distinguiam pelos métodos praticados mas nio pelos objetivos teéricos, a partir de agora diversas ‘‘orienta- ¢6es’’, oriundas dessas escolas, comegam a se defron- tar e a langar por escrito doutrinas e programas, embo- ra permanecendo, em certos pressupostos fundamentais, mais préximas entre si do que essas mesmas escolas (os “géneros’’ da pintura histérica, do retrato e da paisagem comecam igualmente a descobrir suas regras proprias, mas guardando entre si numerosos pontos de contato). Dai que possamos, numa é€poca que prepara simulta- neamente 0 alto Barroco e o Neoclassicismo, discernir pelo menos trés estilos, cujas correntes com freqiéncia se enfrentam e ao mesmo tempo se compenetram; a pri- meira corrente, relativamente moderada, busca conti- nuar a trama de pensamentos do Classicismo (sua ex- press&o mais pura é Rafael) e prolongé-la, mas apenas no sentido da nova evolugao; quanto as duas outras cor- rentes, relativamente extremistas, uma concerne sobre- tudo a Correggio e a outros pintores da Italia do Nor- te, procurando fazer ressaltar o sentido da cor e da luz; a outra, que representa o ‘‘Maneirismo’’ propriamen- te dito, busca ultrapassar o Classicismo por caminhos que lhe so inteiramente opostos, isto é, modificando € agrupando de outro modo as formas plasticas como tais'”°, Essa situacao € complexa, porém menos do que antes (pois a tendéncia naturalista, que na opiniao dos antigos historiadores da arte aparece repentinamente e na forma mais pura em Caravaggio, na verdade foi co- mo que atravessada e preparada por outras tendén- 0 “MANEIRISMO”’ 73 cias)!”", O reflexo natural e a expresso, propriamen- te, de tal situacao encontra-se a partir de agora na teo- ria da arte, que retine todas as tendéncias da época pa- ra pesar-lhes as vantagens respectivas ou para opé-las entre si; mas, por varias razdes!’?, essa teoria da arte favorece sobretudo o retorno ao passado e 0 Classicis- mo tardio. Em primeiro lugar reencontramos, entre os historiadores da segunda metade do século, e sob uma forma inalterada e até acentuada, as mesmas exigéncias de pensamento ja expressas por Alberti e Leonardo; elas até mesmo constituem, ainda nessa época, o repertério essencial do sistema geral da teoria da arte, a tal ponto que é preciso um exame meticuloso antes de poder es- tabelecer que uma publicacaio datando de 1580 ou de 1590 é de fato a expressao especifica da ‘‘vontade artis- tica’’ da época. Para mencionar apenas dois exemplos, a teoria da arte permanece ainda intensamente ligada ao postulado da ‘‘harmonia das proporgées’’>, embora na pratica esse postulado parega doravante sacrificado por uma multiplicidade de ideais diferentes; inversamen- te, o preceito 4 primeira vista tao tipicamente barroco, que sugere representar, numa cena de dor, um perso- nagem em prantos contemplando o espectador para fazé- lo participar de sua tristeza, remonta na verdade a uma prescrigio de Alberti”, Em segundo lugar, a pintura lombardo-veneziana langa-se numa dire¢ao que é igual- mente tedrica, protestando mais ou menos abertamen- te contra os fanaticos do ‘‘desenho’’¢, quer sejam flo- rentinos ou romanos (por exemplo, Paolo Pino, Lodo- vico Dolce e, em certa medida, G. Battista Armeni- ni!’); finalmente, em terceiro lugar, os tratados da 74 IDEA época, por uma série de inovagdes totalmente especifi- cas, exprimem a tendéncia ‘‘maneirista’’ em sentido es- trito, tal como aparece principalmente nas obras de Par- migianino, Pontorno, Rosso, Bronzino, Allori, Salviati ou, para citar escultores, nas de Gianbologna, Danti, Rossi, Cellini (mas tal como influencia também, de for- ma mais ou menos decisiva, a arte de um Tintoretto ou de um Greco, quem sabe até a de um Peruzzi ou de um Siciolante da Sermoneta); a inovacio mais fundamen- tal deve-se talvez ao fato de que se desenvolve e se trans- forma sistematicamente a teoria das Idéias que, entre os tedricos do Renascimento propriamente dito, nao ha- via ainda recebido sua plena significacao. A frase ja citada de Giordano Bruno, segundo a qual s6 existem verdadeiras regras na medida em que ha ver- dadeiros artistas, é apenas um sintoma isolado na re- volta quase apaixonada que se desencadeia contra a ri- gidez das regras, e particularmente das regras matema- ticas; assim como a arte tipicamente maneirista rompe e curva as formas equilibradas e universalmente accitas do Classicismo, em proveito de um sistema mais inten- so de expressdes, de sorte que ndo € raro ver persona- gens com mais de dez cabecas e as formas torcendo-se curvando-se como que desprovidas de ossos e articu- lagdes, também a representag&o do espago, cuja agra- davel clareza, em seu pleno apogeu, repousava sobre uma teoria racional da perspectiva, desaparece em pro- veito de uma maneira peculiar e quase medieval de com- por, que amontoa as formas num tnico plano, provo- cando ‘“‘uma sobrecarga freqiientemente insuportd- vel’’!75, (Dizemos quase de uma mancira medieval por- | : 0 “MANEIRISMO”’ 75 que a plasticidade que as formas individuais devem ao Renascimento nao desaparece, mas simplesmente se opée A “‘superficialidade”’ caracterfstica da ‘‘visao to- talizante’’; ora, essa oposig4o era desconhecida da arte medieval, que procedia colocando-se no simples ponto de vista da ‘‘superficialidade”’.) Do mesmo modo, a teo- ria da arte institui uma critica muito intensa e plena- mente consciente de si mesma, que adere 4 contesta¢o da teoria das proporcdes de Diirer por Miguel Ange- lo!” € ataca os esforgos da antiga teoria da arte para conferir 4 representagao que o artista oferece do mun- do uma racionalidade de tipo cientifico e sobretudo ma- tematico. Sabemos que Leonardo havia se esforcado por determinar os movimentos do corpo humano em rela- ao as leis das forcas e da gravidade, e até por calcular numericamente as transformagGes trazidas por esses mo- vimentos as proporcées!”7. Piero della Francesca e Dii- rer, por sua vez, procuravam obter “‘escorgos’? utilizando um método de construgao geométrico. Em suma, todos esses tedricos concordavam em pensar que as propor- des do corpo humano, tomado em repouso, deviam ser rigorosamente estabelecidas pelas matematicas. Ora, é um ideal novo que doravante se apresenta a nés: o da “figura serpentina’’, isto é, da figura em forma de S. Em virtude da irracionalidade que caracteriza suas pro- porgdes e seus movimentos, compara-se essa figura a uma lingua de fogo!”*, Até se aconselha expressamen- te que a teoria das proporgées no seja excessivamente valorizada: se convém certamente conhecé-la, na maioria dos casos deve-se dispens4-la (e dispens4-la totalmente no caso das figuras em movimento): ‘‘Pois freqiientemen- 76 IDEA te os personagens que criamos inclinam-se, levantam- se ou se voltam, estendem os bracos ou os recolhem, de modo que devemos aumentar ou diminuir suas propor- des para que tenham graca; ora, eis algo que nado pode ser ensinado, mas que 0 artista deve aprender ‘com jul- gamento baseado no natural’s, ’7!79 As matemiaticas, que o Renascimento considerava € apreciava como o fundamento mais seguro das artes plasticas, sao agora atacadas com édio. Ougamos, por exemplo, Federico Zuccari, porta-voz das idéias especi- ficamente ‘‘maneiristas”’: ‘‘Digo que a arte de pintar — e sei que digo a verdade — no toma seus princfpios das ciéncias matematicas e nao tem a menor necessidade de dirigir-se a elas para aprender as regras ou os procedi- mentos indispensaveis 4 sua pratica, e mesmo para se esclarecer especulativamente sobre o assunto... Certa- mente concordo que todos os corpos na natureza ofere- cem proporgoes e dimensées, como testemunha Aristé- teles; mas se quiséssemos deduzir daf que todas as coisas devem ser contempladas e conhecidas por referéncia & especulacao tedrico-matematica, ¢ que é preciso traba- lhar conforme essa especulagao, o resultado, sem falar do trabalho intoleravel, seria uma perda de tempo sem nenhum proveito. Um de nossos colegas artistas (Diirer) da-nos a prova: embora pintor excelente, queria, em ra- zo de seu temperamento préprio, basear sua represen- taco do corpo humano em regras matematicas... Ora, os pensamentos do artista nao devem simplesmente ser claros, devem também ser livres; 0 espfrito do artista deve ser aberto e nao submisso, isto é, nao deve depender me- canicamente de semelhantes regras.’”!8? O “MANEIRISMO” 77 Contudo, é por um dualismo e uma tensao inter- nos que se caracteriza desde entao 0 momento da arte “«maneirista’’; a despeito de uma liberdade que se ma- nifesta na maneira de compor, essa arte aspira mesmo assim a unificar de forma estrita a totalidade do qua- dro; nio se contenta em esbogar as figuras utilizando a mera cor, mas delimita-as rigorosamente e trabalha sua anatomia, inspirando-se com freqiiéncia mais apai- xonadamente na Antiguidade do que o fazia o préprio Renascimento classico!*!; por outro lado, a arte manei- rista recusa o lado impetuoso e desenfreado do espaco barroco tanto quanto a ordem e a estabilidade regula- das do espaco renascentista, e € antes seu sentido da ‘‘su- perficialidade’’ que lhe permite “‘ligar’’ mais estritamen- te as figuras; assim, As profissdes de fé concernentes & liberdade do artista opde-se a crenga na possibilidade de ensinar e de aprender, isto é, de sistematizar 0 que de- pende da criaco artistica; e o temor que o arbitrario da subjetividade suscita contribui talvez para reforgar essa crenga. Pois essa época, que defende com tanto ar- dor a liberdade do artista contra a tirania das regras, faz também da arte um ‘‘cosmos’’ racionalmente orde- nado, cujas leis devem ser conhecidas mesmo pelo ar- tista mais dotado, e podem ser conhecidas até pelo me- nos dotado; € assim que Danti, que rejeita categorica- mente a esquematizacao matemAtica das formas ¢ dos movimentos corporais!®2, atribui no entanto ao méto- do anatémico um valor absoluto — uma vez que, para orientar-se em arte, é preciso encontrar um método “cientffico’’, qualquer que seja. Danti diz claramente que essa ‘“‘regra de verdade’’*, que é a anatomia, deve 78 IDEA ser utilizada'®’ tanto pelos artistas natos quanto pelos outros (entre os quais ele se inclui). E, embora se afir- me bem menos do que no passado que uma simples e tinica propor¢ao detém as normas de beleza, embora se procure propor, ao contrario, uma maior escolha de ti- pos artfsticos, o j4 mencionado Zuccari n&o hesita, ape- sar de toda a sua repugn4ncia pela ‘‘teoria matemati- ca’’*, em fixar numericamente esses tipos e delimitar precisamente o dom{nio de aplicagao de cada um de- les!*. O préprio Lomazzo, que havia institufdo o ideal da figura serpentina, retoma no detalhe as proporcdes de Diirer, nao obstante tao desacreditado; e sua teoria dos ‘‘movimentos expressivos”, que Lomazzo elabora bem mais detalhadamente do que se costumava fazer an- tes dele, significa apenas, a despeito ou justamente por causa da rica ‘‘diferenciacao”’ de suas andlises, a preo- cupacao de racionalizar o que escapa a qualquer racio- nalizagao!®, A novidade fundamental, aqui, € menos a existén- cia dessas oposigdes, mas antes o fato de que elas come- gam a ser percebidas ou pelo menos sentidas mais cla- ramente como tais; é também o fato de que as teorias da arte criticam mais conscientemente, doravante, as ten- déncias que eram tomadas como 6ébvias na época pre- cedente e procuram, embora o resultado dessa tentati- va permaneca duvidoso, escapar as aporias das quais se acabava de tomar consciéncia. Ora, o que vale para o problema ‘‘do génio e das regras’’ vale também para o problema ‘‘do espirito e da naturéza’’, e, através des- ses pares de termos antitéticos, é a mesma e importante oposigao do “‘sujeito”’ e do ‘‘objeto’’ que se exprime. 0 “MANEIRISMO” 79 Claro que isso nao representa, em si, nada de muito no- vo; tal oposicao ja existia quando se exortava o artista aembelezar os dados da realidade € se exigia, por outro lado, que ele desse provas de extrema fidelidade a natu- reza. O que é novo é antes a consciéncia da oposigao que existe entre esses dois ‘‘postulados’’ relativos ao aper- feigoamento ou a imitagao do real. A légica da antiga pintura, que admitia simultaneamente os dois postula- dos, metamorfoseia-se assim numa légica nova que im- pée escolher ou um ou outro. Vincenzo Danti, por exem- plo, distingue expressamente o ato de ‘‘retratar’’*, que reproduz a realidade tal como se vé, do ato de ‘‘imi- tar’, que a reproduz tal como se deveria vé-la'®®; ele procura inclusive, acentuando a oposi¢ao dos dois pro- cedimentos, separar nitidamente os respectivos dominios aos quais se aplicam; segundo ele, o procedimento do ‘‘re- tratar’’¢ é suficiente para representar as coisas que j4 sao belas por si mesmas, ao passo que é preciso recorrer ao do ‘‘imitar’’« para representar as que sao defeituosas!®”. (6 assim que o Maneirismo aceitava que a pintura de género constitufsse um tipo de arte independente, mas com a condicao de que as cozinheiras e os carniceiros fos- sem representados segundo as formas ideais utilizadas por Miguel Angelo para a raca de seus heréis.) O feliz compromisso estabelecido até entao entre 0 sujeito € o objeto vé-se assim, podemos dizer, irremediavelmente destruido, e 0 espirito do artista — em face dessa situa- c&o de liberdade e portanto também de incerteza que mar- ca a evolucdo da segunda metade do século XVI — co- mega a experimentar, em presenga da realidade, um sen- timento misto de soberania e precariedade. 80 IDEA De um lado, a insatisfagao suscitada pela simples “‘realidade”’ ira exprimir-se por uma desvalorizacao des- preziva diante dela, desconhecida na €poca precedente (‘‘Rio daqueles que valorizam tudo o que € natural’, afirma um autor da época'®; fala-se também dos ‘‘er- ros’”’ da natureza, que devem ser ‘‘corrigidos’’'*°), Por outro lado, que modéstia exprime-se em Dolce que, por volta de 1590, e além de tudo em Veneza, escreve: ‘‘O pintor nao deve apenas aplicar-se em imitar a nature- za, mas deve ainda, em parte, super4-la — e digo em parte porque, quanto ao resto, j4 sera maravilhoso se ele conseguir imita-la de forma aproximada.’’!%° Vasa- ri, que nesse ponto preparava o terreno para as concep- ¢Oes maneiristas, havia interpretado o ‘‘desenho’’ co- mo a expresso visfvel do conceito formado no espfrito pensava que 0 conceito, por sua vez, derivava da con- templag&o dos dados concretos; mas seus sucessores!9! haveriam de transformar essa interpretagao ainda mui- to ‘‘mediatizante’’ do conceito numa concepgao por as- sim dizer estritamente conceitualizada, sob certos aspec- tos semelhante 4 representac&o que se fazia na Idade Mé- dia da prépria esséncia da criacao artistica; o resultado € que doravante o desenho é respeitado!®? por ser co- mo que a “‘viva luz’ e o “‘olhar interior’ do espfri- to'3. Também como resultado, a arquitetura, a escul- tura e, num certo sentido, a pintura sao incumbidas da missao de realizar e exteriorizar, recorrendo a procedi- mentos técnicos, o ‘‘desenho’’ produzido imediatamente no espfrito!*. Mesmo 0 termo retrato, que num plano meramente lingiifstico significa j4 uma relagZo imedia- ta de imitaco (retrato = retratar)*, € as vezes derivado O “MANEIRISMO”” 81 de uma ‘‘Idéia ou de uma forma’’* dotada de intelec- tualidade e universalidade'®®. Embora seja natural que nessa época tal ‘‘Idéia’”’ ou ‘“‘Conceito’’* nao pudessem designar algo de simplesmente subjetivo ou de puramente “psicolégico”’, surge no entanto a questo de saber co- mo pode o espirito formar nele mesmo uma representa- cio desse tipo, pois esta nao pode se originar nem da simples natureza, nem unicamente do homem. Tal in- terrogacao conduz alids, em ultima andlise, 4 questao da possibilidade da criaco art{stica em geral. Essa teoria, baseada na soberania do conceito e que havia minado os pressupostos te6ricos do Renascimen- to ao duvidar da validade incondicional das ‘‘regras’” eda incondicional normatividade das impresses natu- rais, essa teoria via também na produgao artistica a ex- pressao concreta de uma representacao espiritual, e con- siderava que a ‘‘invengZo’’* dos préprios contetidos fi- gurativos devia antes ser imaginada pelo artista do que tomada das tradigdes biblica, poética ou histérica!®; por outro lado, ela nao cessava de exigir para o conjun- to da criagdo artistica fundamentos e normas universal- mente obrigatérios; ora, essa mesma teoria levantaria pela primeira vez um problema fundamental que o pe- riodo precedente no julgara necessdrio colocar: o das relagdes entre o espirito e a realidade sensivel. Deste mo- do a teoria da arte via abrir-se diante dela um abismo até ent&o oculto e sentia a necessidade de preenché-lo desenvolvendo toda uma especulagio filoséfica que con- feriria um cardter radicalmente novo aos escritos tedricos sobre arte publicados na metade do século. Se até entao 82 IDEA seu objetivo fora dar a criacao artistica seus fundamentos prdticos, doravante a teoria da arte deveria tentar esta- belecer sua legitimidade tedrica; assim ela recorreu 4 me- tafisica, a tinica capaz de garantir as pretensdes do ar- tista quando reivindica para suas representacées inte- riores uma validade transcendente a subjetividade quanto ao rigor e 4 beleza. Portanto é muito injusto censurar a teoria da arte por orientar-se, de forma cada vez mais decisiva, para a especulacao. Acreditamos ter mostra- do que essa época, por uma inexordvel necessidade, viu- se confrontada com problemas que sé era possivel re- solver pela especulacéo; 0 reconhecimento de tais pro- blemas levaria os tedricos das belas-artes aos caminhos que tomavam, mais ou menos na mesma €poca, os fun- dadores da poética moderna, como Scaligero e Castel- vetro. Do ponto de vista da histéria das idéias, os volu- mosos tratados de Comanini, Danti, Lomazzo, Zucca- rie Scanelli, com sua maneira de afastar-se da utilida- de imediata e, por assim dizer, daquilo que é ‘‘vivo’’, representam uma transi¢ao importante, e talvez indis- pensdvel, entre a época de Alberti e Leonardo e a nos- sa; em breve os escritos sobre arte irao passar das maos dos artistas para as dos aficcionados, letrados e filéso- fos, de modo a constituir uma ‘“‘estética’’? normativa e finalmente uma ‘‘ciéncia das belas-artes’’ no sentido in- terpretativo e atual do termo. Mas 0 itinerario que con- duz da pratica artistica a ciéncia da estética ‘‘pura’’ pas- sou, mais de uma vez, pelo ‘‘absc6ndito”’. Constatamos portanto que as questées tradicionais: ““Como oferece 0 artista uma representago rigorosa da coisa?’’, ‘“Como representa 0 artista algo de belo?”’, ri- 0 “MANEIRISMO”” 83 valizam agora com uma questao inteiramente nova: “Como sao possiveis em geral a representacao artistica e sobretudo a representacao do belo?’’” Vemos também que, para responder a essa questdo, recorria-se a tudo o que na €poca era proposto como especulagao metafi- sica, ou seja, ao sistema da escoldstica medieval basea- do essencialmente no Aristotelismo, bem como ao Neo- platonismo, restaurado a partir do século XV. Mas em ambos os casos — o que para nés € altamente instrutivo — o que se produz é o mesmo. Somente a partir do mo- mento em que se percebem todas as suas implicag6es e ela ocupa o centro da teoria da arte, € que a teoria das Idéias recebe estas duas missdes: primeiro, permi- tir A consciéncia teérica abordar um problema que nao havia sido ainda colocado com acuidade; segundo, in- dicar o meio de resolver esse problema. Durante o Re- nascimento, os tedricos da arte nao pensavam ainda com rigor a nocao de Idea, e nao avaliavam sua importan- cia; assim ela contribufa para furtar aos olhares o abis- mo que separava o espirito da natureza, enquanto ago- ra o torna visivel ao enfatizar mais a personalidade do artista e ao deslocar a atencao para o problema ‘‘do su- ‘jeito e do objeto’”’. Mas, simultaneamente, procura-se tapar de novo esse abismo invertendo a significagao me- tafisica da Idéia e, por causa dessa prépria inversao, ul- trapassando a oposi¢ao do sujeito e do objeto em pro- veito de uma unidade transcendente mais elevada. A orientac&o aristotélico-escolastica dessa teoria es- peculativa afirmava-se j4 no Tratado do milanés Lomaz- zo, publicado em 1584; ela encontra seu apogeu no tex- to doutrinal publicado em 1607 por Federico Zuccari, 84 IDEA de quem j4 mencionamos os protestos apaixonados con- tra as matematicas!®”, Sua obra-prima, L’/dea de’ pitto- ni, scultori ed architetti, é subestimada e mal compreendida pelos historiadores da arte!®; ela merece porém consi- deragao, pois pela primeira vez consagra um livro in- teiro ao estudo de um problema puramente especulati- vo, que se resume 4 quest&o seguinte: como uma repre- senta¢ao artistica € em geral possivel? Mas sé se pode e deve responder a essa questo apés ter examinado a origem e o valor dessa idéia interior, da qual se consi- dera que a obra de arte seja a manifestacao externa e visivel, e apés ter constatado que a idéia sai vitoriosa desse exame. O autor comeca — de acordo com o espfrito de seu tempo e fiel ao método aristotélico-escoldstico — por afir- mar que a obra deve manifestar o que necessariamente primeiro se formou no espirito do artista. Ele define es- sa representagao espiritual como um ‘‘Desenho inte- rior’’* ou como uma ‘‘Idéia’’* (pois, segundo sua defi- nigado, o ‘‘Desenho interior’’ nao é sendo ‘‘uma forma ou uma Idéia que reside em nosso espfrito e que desig- na, com explfcita clareza, as coisas que este se repre- senta’’!%); e, se Zuccari se recusa continuamente a uti- lizar a expressdo ‘‘teolégica’’(!) ‘‘Zdea’’, € apenas porque “se dirige, enquanto pintor, a pintores, escultores e ar- quitetos’’; por outro lado, a representacao no sentido da ““pratica”’ artistica é sempre designada, quer se trate de pintura, de escultura ou de arquitetura, como um ‘‘De- senho exterior’’*, A obra inteira divide-se assim em dois livros: no primeiro, a idéia aparece como uma ‘‘forma espiritual’’* produzida no intelecto e na qual este reco- 0 “MANEIRISMO”* 85, nhece, clara e distintamente, todas as coisas naturais (nao apenas para perceber sua individualidade, mas em fun- co de critérios gerais); o segundo livro trata da execu- cdo, utilizando as cores, a madeira, a pedra ou qualquer outro material?. O “‘Desenho interior’, ou a ‘‘Idéia’’, precede a exe- cugio e é totalmente independente dela!; mas ele sé pode — o que constitui uma diferenga essencial em re- lag’io as concepcdes do Renascimento — surgir no espi- rito humano porque Deus deu a este essa faculdade, ¢ porque, no homem, a idéia, no fundo, nao é mais que uma centelha arrancada ao espfrito divino, uma ‘‘scin- tilla della divinita’”’?"?. Embora tomando o termo de Plato para designar sua concepgao de Idéia, Zuccari inspira-se bem mais, quanto ao contetido, no célebre tex- tode Tomas de Aquino, que ele cita com precisao (Sum- ma Theol., 1, 1, 15)*3. Ora, em sua origem e em sua verdade, essa Idéia nao é senao o modelo interior ao in- telecto de Deus que, ao imité-lo, cria o mundo. (Assim se explica que, enquanto cria, Deus ‘‘desenhe’’ dentro e fora dele.) Num segundo momento, a idéia € a repre- sentacAo introduzida por Deus no espirito dos anjos que podem assim, embora sejam apenas puros espiritos, in- capazes portanto de qualquer conhecimento sensivel, ter acesso as imagens das coisas terrestres; pois é destas que se ocupam, seja para conhecé-las ou agir sobre elas, na qualidade de anjos protetores de certos homens ou de certos lugares?, Enfim, é sé num terceiro momento que a idéia é a representaco tal como se encontra no proprio homem. Essa idéia distingue-se essencialmente da que est4 em Deus ou nos anjos, pois, contrariamen- 86 IDEA te A segunda, est4 na dependéncia da experiéncia sens{- vel. Mas, de qualquer forma, é a prova da semelhanca do homem a Deus, pois permite ao homem “‘criar um outro mundo inteligivel”’ e ‘‘rivalizar com a natureza’’: “‘Afirmo que Deus, tendo em sua bondade criado o ho- mem & sua imagem... quis dar-Ihe uma representagao completamente interior ¢ intelectual, que lhe permitis- se conhecer todas as criaturas e formar dentro dele um mundo novo; que lhe permitisse também, imitando Deus e rivalizando com a natureza, produzir, 4 semelhanga das coisas da natureza, uma infinidade de obras de arte que fazem surgir na terra e desvendam aos nossos olhos, através da pintura e da arquitetura, novos parafsos. Mas, ao formar essa representacao interior, o homem se con- duz de forma inteiramente diferente de Deus. Pois, en- quanto Deus possui uma representacdo tinica que, subs- tancialmente, é perfeita e contém todas as coisas... o ho- mem se oferece uma diversidade de representagdes que correspondem 4 diversidade dos objetos que ele se re- presenta...; além disso, essa diversidade tem uma ori- gem inferior, isto €, provém dos sentidos, conforme ire- mos expor em seguida.’?205 No podemos reproduzir aqui as passagens onde Zuccari, tomando por ponto de partida o ‘‘Desenho in- terior’’¢ (no final de sua obra ele interpreta etimologi- camente esse desenho como um signo da semelhanga di- vina — Disegno = segno di dio in noi), que ele celebra como o “‘segundo sol do cosmos”’, como a “‘segunda na- tureza criadora’’ e como ‘‘o segundo espirito do mun- do que vivifica e alimenta’’2°’, procura deduzir absolu- tamente tudo o que o entendimento humano produziu 0 “MANEIRISMO”’ 87 de valido, inclusive a filosofia?, de um modo metafé- rico e completamente escol4stico, ainda que nao despro- vido de espfrito nem de interesse. Também nao pode- mos reproduzir as passagens onde ele faz derivar do desenho a atividade do ‘‘intelecto especulativo’’*, 0 co- nhecimento, e do ‘‘intelecto pratico’’*, a atividade in- terior, nem aquelas onde subdivide, para terminar, es- sa atividade interior em atividade moral e artistica?®. Pois aqui apenas o ultimo termo nos interessa, 0 que designa o ‘‘Desenho interior, humano, pratico e artisti- co” (“‘interior’’ opondo-se a ‘‘exterior’’, “‘humano”’ a “divino”’ ou ‘‘angélico’’, ‘‘pratico”’ a ‘‘especulativo’’ e “artfstico’’ a “‘moral’’). Nesse ponto de nossa disser- taco, a questo da possibilidade, para o artista, de ‘“‘ex- teriorizar’’ o desenho que esta nele recebe uma respos- ta clara. Pois, na medida em que participa da faculda- de divina de criar as Idéias e em que se assemelha ao espfrito divino, o intelecto humano é capaz de produzir dentro dele as ‘‘formas espirituais’’ de todas as coisas criadas e transferi-las para a matéria. Por uma espécie de predeterminagao divina, resulta daf um acordo ne- cessdrio entre os procedimentos do homem, criador de obras de arte, e os procedimentos da natureza, criadora da realidade; esse acordo assegura ao artista que existe uma correspondéncia objetiva entre suas préprias pro- ducSes e as da natureza. Assim pode-se dizer, em plena concordancia com Aristételes e referindo-se textualmente aTomés de Aquino, cuja teoria geral da arte € retoma- da aqui para as necessidades, mais particulares ¢ restri- tas, de uma teoria das artes do desenho: ‘‘A raz&o pro- funda que faz com que a arte imite a natureza é que a 88 IDEA representacdo interior ao artista, e conseqtientemente a propria arte, procede da mesma forma que a natureza para a producao de obras de arte. E se quisermos pro- var que a natureza é suscetfvel de ser imitada devere- mos admitir que um princfpio inteligente ensina-lhe seus objetivos e seus procedimentos...; ora, visto que a arte, essencialmente grac¢as ao que chamamos de representa- cao interior, observa nos seus modos de proceder as mes- mas instrugGes que a natureza, a natureza pode ser imi- tada pela arte ¢ a arte pode imitar a natureza.’’2" Zuccari certamente nao ignora que o homem é um ser corporal, conseqiientemente votado a um conheci- mento proveniente dos sentidos, s6 podendo, portanto, formar suas representacoes interiores com base na ex- periéncia sensivel. Mas, prevendo as objegdes que 0 pro- blema das relacdes entre conhecimento sensivel ¢ inteli- givel poderialevantar, ele se empenhou em garantir ex- plicitamente a ‘‘Idéia’’ uma prioridade genética e siste- miatica sobre as impresses dos sentidos. Nao é a per- cep¢4o sensivel que esta na origem da formacao das Idéias; ao contrario, € esta que (por intermédio da ima- gina¢4o) poe em movimento a percepgio sensivel; os sen- tidos, de certo modo, sé sao convocados para esclarecer € animar as representagoes interiores?!!; em todo caso, eis o que ele responde a afirmacdo de que a representa- ¢4o intelectual e ideal, embora transmita ao espirito a luz inicial e o primeiro movimento, no pode operar to- davia por suas préprias forgas, o intelecto s6 conhecen- do em geral por intermédio dos sentidos: ‘‘Sutil obje- ¢4o, mas nula e desprovida de sentido. Pois, assim co- mo as coisas ptiblicas sao propriedade de todos, cada qual 0 “MANEIRISMO”” 89 tendo a liberdade de servir-se delas... mas ninguém, ex- ceto o principe, podendo erigir-se como seu senhor ab- soluto, também podemos dizer que o espirito € os senti- dos esto submetidos & Idéia (Desenho) e que esta, 4 ma- neira de um principe, de um chefe ou de um senhor, serve-se deles como de sua propriedade e sem limita- 0.7222 Repitamos: 0 que confere uma significado carac- terfstica a toda essa especulacao neo-escolastica sobre a arte e particularmente as consideragdes de Zuccari, alias pouco acessiveis ao pensamento contempordneo, nao € somente o fato de se retomarem na teoria da arte — ain- da que, por si sé, isso j4 seja do mais alto interesse — certos raciocinios da escoldstica medieval?!; € sobretu- do o fato de se colocar, pela primeira vez, 0 problema da possibilidade da representacao artistica enquanto tal. O recurso a escolastica é apenas um sintoma. O que é propriamente novo € essa transformacao que afeta as dis- posigdes de espfrito ¢ torna precisamente possivel ¢ ne- cessdrio esse recurso: o abismo entre 0 sujeito € 0 objeto é doravante claramente percebido, e sera transposto quando se tiver tentado elucidar a fundo as relacdes exis- tentes entre a produgao das idéias e a experiéncia dos sentidos. Sem contestar a necessidade da percepgao sen- sivel, restitui-se no entanto a Idéia seu cardter de a pri rimetafisico, fazendo imediatamente decorrer do conhe- cimento divino o principio que preside no espfrito hu- mano a produgio das Idéias. Nessas condiges, 0 ‘‘De- senho interior’, que tem a propriedade de trazer ao espfrito humano a luz, 0 movimento e a vida, mas tam- bém de receber das percepces sensiveis sua clareza € 90 IDEA perfeicio, apresenta-se como um dom e mesmo como uma emanacao da graca divina: 0 espirito soberano do homem, tendo chegado finalmente A consciéncia de sua propria espontaneidade, pensa nao poder manter os di- reitos dessa espontaneidade em face da realidade sens{- vel a nao ser legitimando-a do ponto de vista da divin- dade*. O génio conhece e afirma explicitamente agora sua propria sublimidade, mas a justifica em fungao de sua origem divina. A essa justificagao metafisica ou, melhor dizendo, teolégico-metafisica da ‘‘representaco artfstica em ge- ral’’ corresponde uma tentativa andloga para justificar a producio do belo. Mas nao podemos esperar encontra- la numa obra como a de Zuccari. Pois este, a despeito de sua ‘‘teoria das Idéias’’, tinha uma visao essencial- mente peripatético-escoldstica e s6 podia resolver o pro- blema do sujeito e do objeto instituindo um paralelo entre a ‘‘criagao na natureza’’ e a ‘‘criagao na arte’’. Ele ti- nha portanto toda a liberdade de reconhecer ao artista o poder de rivalizar com o real representando-se a tota- lidade das criaturas, independentemente de qualquer modelo*!*, as vezes até inventando livremente todo ti- po de ‘‘fantasias e coisas diversas e fantdsticas’’*2!5, Mas nao podia atribuir-lhe o poder de triunfar sobre ela “‘depurando-a’’ ou ‘‘enobrecendo-a’’. Com efeito, de acordo com a natureza humana — esse composto de “corpo”’, “‘espfrito”’ e ‘‘alma’’#!6 —, a finalidade es- sencial da arte é aspirar a formas cuidadosamente deli- mitadas, a movimentos marcados de ousadia e vivaci- dade, bem como a uma espécie de graga e leveza no de- senho e na cor. Para Zuccari, portanto, a finalidade es- 0 “MANEIRISMO”” 91 sencial da arte representativa é levar o mais longe pos- sivel a imitacao da natureza. ‘‘Eis aqui’’, exclama ele, apés retranscrever uma série de anedotas a propésito do trompe-l’oeil, ‘‘qual o destino verdadeiro, auténtico e uni- versal da pintura: ela deve imitar a natureza e todos os ‘artefatos’, deve iludir o olhar dos homens, mesmo dos mais sabios. Além disso ela possui, no repertério dos ges- tos, dos movimentos, dos olhares e dos rostos, um jogo tGo vivo e tao verfdico de expresses, que consegue re- velar as paixGes mais profundas, o amor € 0 édio, o de- sejo, o medo ¢ a alegria.’”2!7 Para Zuccari, como para todo bom aristotélico, 0 problema especffico da beleza era e sé podia ser um pro- blema anexo em relag&o Aquele mais geral da ‘‘enfor- macao’’2!8, Nao é portanto nele, mas antes nos auto- res mais ou menos fortemente influenciados pelo Neo- platonismo*!9, que podemos encontrar ‘‘esclarecimen- tos sobre o modo como o Mancirismo considerava 0 pro- blema da beleza’’. Com efeito, o Neoplatonismo havia, desde a Antiguidade, atribufdo em seu sistema um lu- gar central ao conceito de Beleza®, no qual via uma su- peracao da oposicao metafisica entre a forma e a maté- ria’; na forma nova que adquiriu no Renascimento, demonstrara também um zelo particular na elaboragao das teorias do belo. Ora, vimos que a teoria renascen- tista da arte comecou por negligenciar as teorias neo- platnicas, que nela nao deixaram quase nenhum tra- go. Mas, durante a segunda metade do Cinguecento, ha uma disposi¢ao bem maior de acolhé-las, e sao elas que impdem aos debates da teoria da arte sobre o problema da beleza um cardter to singular. Enquanto o espirito 92 IDEA procura, apoiando-se sobre outros fundamentos, situar-se de novo em relacdo 4 natureza, surge outra vez a neces- sidade, relacionada aos problemas da representagao em geral e da produco do belo, de legitimar metafisicamente o sentido e o valor da beleza. Nao é mais suficiente soli- citar os critérios exteriores do belo a uma ‘‘harmonia’’ que, quantitativa e qualitativamente, continua sendo um indice fenoménico”°; 0 que se quer, ao contrario, é apreender o princfpio do qual essa harmonia é apenas a expresso sensivel, e € remontando até Deus, onde Zuc- cari situava a propria faculdade da representaciio artfs- tica, que se descobre o principio do belo. Num sentido totalmente neoplaténico e medieval, a beleza sensivel é portanto objeto de uma revalorizacao, mas somente na medida em que é a expresso visivel do Bem™!. Assim, a beleza fisica necessariamente se combina, no homem, com pureza e espiritualidade””?, Quanto 4 defini¢ao se- guinte, freqiientemente retomada na época, ela concor- da perfeitamente com a antiga metafisica da luz de um Dionisio, o Areopagita, da qual Ficino e, no perfodo que nos ocupa, homens como Giordano Bruno e Patrizzi eram os herdeiros apaixonados; essa defini¢ao conside- raa beleza como um ‘‘brilho”’ ou ‘‘raio”’ de luz emana- do da face divina?*3. Alias, em estreita relagdo com is- so, o fendmeno negativo da feitra é igualmente com- preendido num sentido novo. Enquanto a teoria renas- centista da arte (e também a de Zuccari, como se percebe*), quer a consideremos no seu infcio ou no pleno apogeu, limitava-se a afirmar que a natureza nunca produz — ou sé produz em raras circunst4ncias — uma coisa perfeitamente bela, esse fato a partir de agora en- 0 “MANEIRISMO”” 93 contra na “‘resisténcia da matéria’’ uma explicag4o e uma cau¢ao metafisicas. E essa mesma matéria, que, para um aristotélico como Zuccari, constitufa por si mesma 0 suporte apropriado e décil 4 Idéia divina e huma- na™5, aparece aos pensadores de inspiracao neoplaténi- ca da época como um princfpio de feitira e malignida- de. E a “‘disposig’io viciosa da matéria’’e que doravan- te explica em profundidade as imperfeigdes e os erros das aparéncias naturais®°. Ao artista, que na concep- ¢4o precedente contentava-se em escolher e extrair 0 que ha de belo nas aparéncias dadas, incumbe desde entao uma tarefa essencialmente metafisica, a de restaurar, contra as aparéncias, os princfpios dissimulados por baixo delas. Em outras palavras, e retomando a expressao de um desses autores, o artista deve, qual um ‘‘diretor da graca divina’’, reconduzir as coisas da natureza a seu estado original, tal como foi concebido por seu Criador eterno. Deve restituir as coisas a perfeicao e a beleza que elas perderam””’, recriando em espfrito”8 a “‘perfeita forma intencional da natureza’’*. A beleza de uma obra de arte, portanto, j4 nao resulta da sfntese pura e sim- ples de uma multiplicidade dispersa mas sempre dada; depende da visdo ideal de uma ‘‘forma’’> que nao exis- te em absoluto na realidade. Pode-se entao perguntar de que modo e em que con- digdes é€ possivel ao artista conhecer e ver essa beleza supraterrestre e supra-real. A resposta mais clara a essa questo nos é dada pelo pintor milanés Giovanni Paolo Lomazzo. Se seu Trattato dell’arte della Pittura parece ainda de inspiracdo essencialmente peripatético-escoldstica, sua obra intitulada Idea del Tempio della Pittura, publica- 94 IDEA da seis anos mais tarde, mostra-nos que ele se tornou 0 porta-voz de uma metafisica da arte de orientagao neo- platénica®°. Nessa obra”, e de um modo tipicamente maneirista — pois as nogées de astrologia e cosmologia figuram entre os elementos especulativos que comecam a se introduzir em teoria da arte®5! —, 0 autor compa- ra o templo da arte com 0 edificio do céu; ele 0 coloca sob a autoridade de sete pintores e baseia sua teoria no sistema do ntimero sete. Consagra também um capitu- Jo inteiro a esta questo: “‘Como conhecer e estabelecer proporgées conformes a beleza’’8?. Lemos nesse capi- tulo, cheio de alusdes cosmolégicas e astrolégicas, que a beleza se da sob numerosas formas e que ela deve re- ceber da arte a expresso de formas igualmente nume- rosas. Mas, por esséncia, a beleza é una: ela é a ‘‘gra- ca’’ viva ¢ espiritual emanada da face divina e reflete- se em trés espelhos diferentes e de pureza decrescente. Os raios divinos iluminam primeiro a consciéncia dos anjos, onde provocam a visio das esferas celestes consi- deradas como puros modelos ou puras Idéias. Refletem- se a seguir na alma humana, onde fazem nascer razao € pensamentos, e aparecem finalmente, sob a forma da imagem e da figura, no mundo dos corpos. A beleza di- vina manifesta-se, portanto, sob a influéncia das Idéias, igualmente nas realidades corporais, mas apenas sob a condic&o de que e na medida em que a matéria se mos- tre décil e disposta e recebé-la. Décil e disposta a rece- ber sua influéncia significa que a matéria, em ordem, medida e aspecto (‘‘ordem’’4, ‘‘modo’’¢ e ‘‘aspecto’’¢, ou seja, tudo o que depende da ““compleigao’’ do indi- viduo em questo), conforma-se ao préprio ser da Idéia 0 “MANEIRISMO”” 95 que deve exprimir-se nela: E, como os raios oriundos da face divina devem, no percurso que os conduz 4 Ter- ta, atravessar a consciéncia dos anjos ¢ nela se diferen- ciar conforme a natureza das diferentes esferas celestes, existem portanto trés tipos de beleza, que correspondem a Japiter, a Saturno e a Marte*3; umas sao mais ou menos perfeitas que as outras, mas todas refletem, no conjunto, a tinica e absoluta beleza. Ora, o homem que deseja conhecer ou exprimir em obras essas diferentes formas e diferentes graus da beleza tem necessidade de outros 6rgaos que n&o os corporais. Pois essa beleza, co- mo a luz que nos faz vé-la, é de uma esséncia incorpé- rea, e estA tao distante do mundo material que sé pode exprimir-se adequadamente nele sob condigdes muito fa- vor4veis; portanto sé pode ser apreendida por um sen- tido interior e espiritual; s6 pode ser criada a partir de uma imagem igualmente interior e espiritual. Esse sen- tido interior é a raz4o; essa imagem interior € a marca eo selo que as formas primeiras, eternas e divinas im- primiram em nossa razao e que constituem em nés a “f6rmula das idéias’’4?54, Com semelhantes dons, 0 pintor pode entdo reconhecer a beleza das coisas da na- tureza e, por menos que observe os sinais exteriores € as condicées de possibilidades dela, manifest4-la em suas obras. As idéias desenvolvidas nesse capitulo (costuma-se citar dele apenas uma frase que, privada de seu contex- to, resulta mal compreendida?*) parecem 4 primeira vista estranhas e pressupdem uma singular associac¢ao do mundo celeste e do mundo terrestre; mas quem esti- ver um pouco familiarizado com os textos filoséficos do 96 IDEA inicio do Renascimento ter4 a impressao de estar em campo conhecido. De fato, deixando-se de lado as nu- merosas omissées, interpretacées e variagGes de escrita, esse capitulo reproduz quase literalmente a teoria do belo exposta por Marsilio Ficino em seu comentario ao Ban- quete de Platao**. Essa teoria do belo, reelaborada so- ”?, “mo- do’’, ‘‘ordem”’ e ‘‘aspecto’’*, que sao correntes em teo- ria da arte, haveria de prefigurar de forma caracteristi- ca a especulacao do final do Cinguecento. E verdade que Ficino, em suas obras, havia se preo- cupado com a beleza e nao com a arte, e que a teoria da arte também nao havia se preocupado com Ficino até ent&o. Mas eis-nos em presenca de um fato muito importante para a histéria das idéi: doutrina mfstico- pneumatolégica da beleza, defendida pelo Neoplatonis- mo florentino, reaparece, mais de um século depois, para constituir a metafisica maneirista da arte. Esse reapa- recimento foi possivel porque nesse momento, e sé nes- se momento, a teoria da arte, obedecendo a uma espé- cie de necessidade interior, havia se tornado especula- g4o; também porque, em sua relacgao com a questio ge- ral da representagao artistica, o problema do sujeito e do objeto parecia estar resolvido pela teoria escolastico- peripatética das Idéias tal como a interpretava Zuccari; e finalmente porque, com relag4o 4 questao do belo, es- se problema esperava também receber uma solucao ana- loga. Alids, se Zuccari e Lomazzo nos deram a impres- sao de ser os representantes de duas visdes do mundo completamente opostas, convém nao esquecer que, nesse ponto como em geral em outros pontos na época, essa bretudo em torno das categorias de ‘‘proporcao’ 0 “MANEIRISMO”” 97 oposicao nao significava exclusao; com efeito, ambas as visdes do mundo — peripatético-escolstica ou neopla- ténica — prefiguram a diferenca de sensibilidade que opde da forma mais nitida a concepgao maneirista da arte A do Renascimento propriamente dito. Para essa nova sensibilidade, o mundo visivel nao é mais do que osimbolo de significages invisiveis e espirituais, ¢ a opo- sigdo do sujeito e do objeto, da qual o pensamento teé- rico tomava consciéncia, s6 pode resolver-se por refe- réncia a Deus. E, assim como as obras de arte da época procuram tao freqiientemente exprimir, para além de seus contetidos simplesmente visfveis, todo um conjun- to de pensamentos cujo sentido é alegérica ou simboli- camente apresentado (jamais a ciéncia dos emblemas e das alegorias floresceu tanto como nessa €época”’’); as- sim como, por referéncia as obras contempor4neas cujas significagdes sAo freqientemente alegéricas, as obras do passado tornam-se objeto de interpretacdes igualmen- te aleg6ricas®8; assim como, finalmente, novos esque- mas vém substituir a arte de compor segundo os mode- los formais do Renascimento por uma ‘‘espiritualizagao”’ da representagao”, também a faculdade que tem 0 ar- tista de representar as coisas deve exprimir doravante um principio mais elevado, suscetivel de enobrecer 0 ho- mem que apresenta dons artisticos e de preserva-lo, por isso mesmo, das ameacas da dispersao e da irresolugao. As teorias da Renascimento, por causa de sua admira- cio pela natureza e sua confianga em si préprias, ha- viam tratado a arte em geral e o belo em particular co- mo nogoes empiricas e dadas a posteriori. Gragas a esté- tica do Maneirismo, essas duas nogGes reencontram — 98 IDEA por pouco tempo, é verdade — seu cardater de a priort metafisico, uma por referéncia a escoldstica peripatéti- ca, a outra por referéncia a filosofia neoplaténica. Am- bas voltam a ser, com efeito, os pensamentos ou as re- presentacées de inteligéncias supraterrestres, das quais o homem sé participa pela intervencao direta da graca divina. Separado da natureza, o espirito humano refugia- se em Deus, num sentimento ao mesmo tempo de triunfo e de despojamento, cujo triste orgulho se reflete nos rostos e nas atitudes dos quadros maneiristas, e do qual a Con- tra-Reforma € uma expresso entre outras.

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