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“ANPOCS« cede Nowa do PGodiggne Pei naa Diretoria Executiva ‘Marla Alice Redende de Carvalho (PUC-Rio) ~ Presiderite ‘Cfoero Araujo (USP) - Secretirio Execution Julio Assis Simées (USP) — Seeretiri Adjunto Diretores Carlos Artusi (UFRGS); Maria Stela Grossi Porto (UnB) Rogerio Proenga Leite (UFPE) ‘Conselho Fiscal Lea Freitas Perez (UFMG); Ricardo Silva (UFSC) ‘Ruth Vasconcelos Ferreira (UPAL) Equipe Administrativa Berto de Carvalho Bruno Ranieri Cristina Savio ‘Mirian da Silveira Acompanhamento Editorial Mirian da Silveira Associagao Nacional de Pés-Graduacdo e Pesquisa em Ciéncias Sociais Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 ~ Cidade Universitéria ~ Butanté ‘CEP: 05508-010 Sao Paulo ~ SP Tel. (11) 3091-4664/ 3091-5043 E-mail: anpocsanpocs org br POR UMA HISTORIA DO POLITICO Pigrre ROSANVALLON Faneis Copyright © 2010 Pierre Rosanvalion Cet oworage, publié dans le cadre iu Programme aAide la Publication Carlos Drummond de Andrade de la Médiathéque de la Maison de Prance, bénéfcie du soutien du Ministére Frangais des Afjuires Etrangeres et Europbennes, Este livro, publicado no ambito do programa de participagio a publicagio Carlos Drummond de Andrade da Mediateca da Maison de France, contou com 6 apoio do ‘Ministério Francés das Relagdes Exteriores e Europeias. ‘Traduglo dos textos de Pierre Rosanvallon: Christian Edward Cyril Lynch Publishers: Joana Monteleone/ Harolde Ceravolo Sereza/ Roberto Cosso Faigfa: Jaana Monteleone Editor Assstente: Vitor Roctigo Donottio Auda: Projeto ardfico e diagramagtia: Patricia Jatoba U. de Olveira Reviséio: Maria da Gléria Galante de Carvalho/ Alexandra Colontini Capa: Patricia Jatobé U. de Olvetra Imagem da capa: Detaihe de Embaixadores {1533}, de Hons Holbein CIPBRASIL. CATALOGACAO.NA-FONTE. SINDICATO NACIONAL 00S EDITORES DE LIVROS. RI R712 Rosenvallon. Plame, 1948- FOR Un HTN BO FLIED Fens Rusorivaion: racuao de Cnstin kawerd Gye Lynch, S60 Paulo: Alomeda, 2010, 1049. ISBN 978-85-7909-0855, 1. Ciéncia pola. 2. Demoeracio. | Thu. to-444s, Dp: 320 cou: 32 o2ia03 ‘Auasieon Casa EoroRia Ruc Conselheiro Ramatho, 694- Bele Vista (CEP 1825-000 -Sa0 Paulo - SP Tel. (11) 3012-2400 www.alamedaeditorial.com.or SUMARIO A democracia como problema Pierre Rosanvalion e a escola francesa do politico Por Christian Edward Cyril Lynch Por uma histéria filoséfica do politico Por Pierre Roscnvallon Por uma histéria conceitual do politico Conteréncia de Pierre Rosanvalion 37 A DEMOCRACIA COMO PROBLEMA Pierre Rosanvallon e a Escola Francesa do Politico Por Christian Edward Cyril Lynch* * Doutorem Ciénca Politica pelo JUPERY, Profestr da Escola de Cnc Politic da Universidade Federal do Estado do Rin Ae Sanvimn (UNIRIO). Professor do Programa de Pés-Graduocio em Direitoe Socclngia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Programa de Pés- Graduagéo em Dielto da Universidade Gama Filho (UGP). Prortssor Do Corécto ps Franga, Pierre Rosanvallon é um dos mais importantes politélogos e historiadores da atualidade. ‘Autor de mais de doze livros, quase todos traduzidos em di- versos idiomas, é de se lamentar que apenas dois deles tenham sido traduzidos no Brasil. Contendo seus dois principais textos metodolégicos no lume intenta contribuir para amenizar essa situacdo e encora- Ambito da histéria do politico, 0 presente vo- jar a traducao de suas obras maiores. Refiro-me em particular & sua primeira trilogia, versando sobre a histéria da democracia francesa - Le sacre du citoyen, Le peuple introurvable e La démocra- tie Inachevée - e sua nova trilogia sobre a teoria da democracia, cujas duas primeiras partes jé vieram & luz - La contre-démocratie © La legitimité démocratique, De natureza mais informativa que reflexiva, 0 texto seguinte no ambiciona mais que apresentar © pensamento de Rosanvallon no contexto daquela que chamo a Escola francesa do politico, de que é ele hoje, ao lado de Marcel Gauchet, 0 mais eminente e conhecido representante. PERE ROSANVALION Na verdade, o conceito do politico hegeménico no campo da histéria e das ciéncias sociais francesas foi produzido no ambi- to dos pesquisadores integrantes do Centro de Pesquisas Politicas Raymond Aron (CRPRA), sediado na Escola de Altos Estudos em Ciéncias Sociais (EHESS). Esse centro se originou da fusao, em 1992, do setor de politica do Centro de Estudos Transdisciplinares: Sociologia, Antropologia e Politica (CETSAP), dirigido por Claude Lefort, com 0 Instituto Raymond Aron, fundado em 1984 por Francois Furet - ambos ex-militantes comunistas e criticos contundentes da experiéncia soviética. Fundado hé quase vin- te anos por aquelas duas personalidades e seus discipulos, o Centro Aron veio a ser a matriz da Escola francesa do politico. Entre seus atuais pesquisadores, podemos encontrar alguns dos historiadores, socidlogos e politélogos mais destacados da cena contemporénea. Além do préprio Lefort, hoje com 86 anos (Furet morreu em 1997 aos 70, durante uma partida de ténis), podemos citar historiadores do porte de Mona Ozouf (vitiva de Furet), Ran Halévi e Patrice Gueniffey, e politélogos eminentes como Pierre Manent, Philippe Raynaud e Bernard Manin. No entanto, na geragio posterior & Lefort e Furet, 0s pesquisado- res mais conhecidos hoje no cenério internacional da politologia internacional, sd0, indubitavelmente, Marcel Gauchet e Pierre Rosanvallon. Compreender a emergéncia dessa escola requer, todavia, retragar o quadro tedrico em que ela emergiu e os seus respectivos personagens principais. POR UMA HISTOR DO POUTICO Tocqueville € o retorno do liberalismo: Aron e Furet Alexis de Tocqueville (1805-1859) ¢ 0 patrono mais remoto dessa teoria politica francesa renovada pela histéria: A democracia na América e O Antigo Regime ¢a revoluedo representam referéncias quase obrigatérias para.quase-tados 0s pesquisadores daquele instituto, Trés de wa a ie pre com particular rele- vancia em seus trabalhos. Primeiro/a compreenséo da democra- cia como o regime politico moder: 3 apreeni enguanto forma social e politica caracterizada pela igualdade de condigées entre os individuos; segundo, o fato de que ela resulta de um longo, penoso e inevitavel processo de erosdo ou destrui- do voluntéria da ordem aristocratica, baseada na liberdade ena hictarquia terveiro, que esse piocesso pode conduzir alternati- vamenté a um regime auto‘ liberalismo. Diversas das hipéteses politoldgicas e historiografi- cas dos membros do Centre Aron representam desdobramentos daqueles trés eixos explicativos. No entanto, a pré-historia daquela instituicio também passa pela propria recuperagao da heranga intelectual de Tocqueville, 1 a outro, compativel.com 0 marginalizada na Franga depois do firmamento da Terceira Repiblica, juntamente com a dos outros liberais que haviam atuado na cena piblica desde a Restauragio, como Mme. de Stel, Constant, Royer-Collard, Guizot, Duvergier de Hauranne, Rémusat, Laboulaye e Prévost-Paradol. Associando o liberalis- mo.& monarquia constitucional, os republicanos preferiram rei- vindicar outros autores e historiografias, de matizes positivistas FERRE ROSARALLON Gules Ferry), ou neojacobinas (Jean Jaurés).> Em outras palavras, prevalecia entre os republicanos a orientac&o de que a democracia deveria ser produzida a partir de materiais ideolégicos diferentes daqueles que haviam orientado 0 liberalismo da Restauragdo e da Monarquia de Julho. Algumas décadas depois, o liberalismo daqueles autores voltaria a ser condenado como idealista por rea listas como Ostrogorski, Pareto e Michels: para quem a concep¢ao de democracia elaborada pelos libcrais nada teria a ver cum seu efetivo funcionamento, a luz da ciéncia social. O golpe de miseri- cérdia foi a condenacdo dos liberais pelo marxismo hegeménico do pés-guerra, comprometidos que estariam com a produgo de uma ideologia antirrevolucionéria destinada a encobrir do prole- tariado a realidade inegavel da dominacao burguesa. Sobrevivendo apenas nos Estados Unidos como uma espécie de primeira testemunha europeia da exceléncia do sistema de go- verno norte-americano e profeta de sua futura grandeza nacional, apenas na década de 1950, Tocqueville viria a ser resgatado, na Franga como te6rico da democracia, gracas ao cientista social e historiador liberal Raymond Aron (1905-1983). Aron era, entéo, Praticamente o tinico intelectual de porte a combater o marxis- ‘mo politico e académico hegeménico da época, fortemente es- talinista, em obras polémicas como O Opio dos Intelectuais e De uma Sagrada Familia a Outra. Relendo Tocqueville conforme suas obras completas eram publicadas pela editora Gallimard Aron 3 Nicones, Claude (1992), L'idée républicaine em France (1789-1924): essai ‘histoire critique. Paris: Gallimard. 4 Foner, Frangois (1988). Aron Réintroducteur de Tocqueville. In: Jean- Claude Chamboredon. Raymond Aron, la philosophie de histoire et les sciences sociales, Paris: Editions Rue d’Ulm, p. 28. = POR UMA HSTGRA DO FOLINCO percebeu o alcance daquela que Ihe parecia a principal tese toc- quevilleana: a de que a modemidade nao se caracterizaria.nem nem pelo capitalismo pela industria, como preten ¢ pela luta de classes, como postulara Marx, e sim pela “igial- dade social”, pela “igualdade de condigies’.° A redescoberta da teoria de Tocqueville colaborou expressivamente para que Aron desenvolvesse uma reflexao contraposta aquela desenvolvida pe- Jos tedricos marxistas de seu tempo, que acusavam a democracia liberal (“burguesa”) como verdadeira burla do ideal democrati- co, Dai que, em As etapas do pensumento socioldgio, Axon incluisse Tocqueville na qualidade de sucessor de Montesquieu no interior de uma linhagem de indole liberal das ciéncias sociais, alternativa a matrizes entdo hegeménicas: a marxista e a positivista (Comte/ Durkheim) Por outro lado, Aron néo podia sendo simpatizar com a orientago historiografica de O Antigo Regime e a revolugo na medida em que, livre de determinismos préprios a filosofia da histéria entéo em voga, aberta causalmente & contingéncia, aos valores a atores individuais, ela parecia sintonizada com a de Weber - outro ator central no pensamento aroniano” Por fim, ‘Aron participou ativamente no grande debate sobre o fendmeno totalitério, de onde emergiu a oposicao por ele estabelecida entre 5 Aupmn, Serge (2004). Raymond Aron: la démocratie conflictuelle, Paris: Mi- chalon, p.52. 6 Anon, Raymond (2003). As etapas do pensamento socioligico. Coleco Topi- 0s, 6* ed. So Paulo: Martins Fonts. 7 Anon, Raymond (1986). introduction la philesophie de U histoire : essai sur les limites de Vobjetivité historique, Paris: Gallimard. e FERRE ROSAMVALLON 0 regimes “constitucionais pluralistas” e aqueles marcados “de Partido monopolistico” * Esse golpe vibrado por Aron na constituicdo de uma reflexdo sobre a modernidade democratica, alternativa ao padrao mar- xista no campo das ciéncias sociais, encontrou o seu equivalente no campo historiografico na obra produzida por Francois Furet (1927-1997). Foi depois, na virada da década de 1950 para a se- gulnte, com seu desligamento do partido comunista, que o futu- ro autor de Pensando a Revolugao Francesa se aproximou de Aron, Cujas posicdes ele adotou mesmo em obras polémicas como O assado de uma ilusto — ensaio sobre a ideia comunista no século XX. Quando da morte de Aron em 1983, partiu de Furet, entao pre- sidente da Escola de Altos Estudos em Ciéncias Sociais, a inicia- tiva de criacéo de um instituto que, tendo por acervo o arquivo daquele socidlogo se destinasse aos estudos de filosofia ¢ histé- ria politica. Surgiu, entao, 0 Instituto Raymond Aron, de que se tomnou o primeiro diretor (1984-1992). Em idéntica sentido, are- flexdo historiografica de Furet se caracteriza por uma constante referéncia a Tocqueville que data pelo menos de 1971, quando Publicou Tocqueville e 0 problema da Revolucéo Francesa. A histo- riografia tocquevilleana teria sido praticamente a tinica a pro- por “uma conceitualizagéo rigorosa da Revolugdo Francesa”? Nao causa espanto, pois, que seu oficio se desenvolvesse intima- mente relacionado com aquele da histéria intelectual, tal como 8 Anon, Raymond (2007). Démocrate et totalitarisme, Paris: Gallimard, 9 Foner, Frangois (1989), Pensando a Revoluglo Francesa. Tradtusio de Luiz Mar- {ques e Martha Gambini, 2 ed. So Paulo: Paz e Terr, p. 12. 1 POR UMA HSTORIA DO POLITICO praticado pelos politélogos, no intento de devolver & tarefa his- toriografica a dimensao politica de que havia sido privada pelos marxistas e pela Escola dos Anais: Eu advogo que a histéria politica seja ao mesmo tempo a histéria das ideias, nao apenas de sua re- cepeao social. E, alids, dentro dessa perspectiva, eu advogo uma alianca da histéria com a filosofia. Mi- nha ideia central, o que eu faco no Instituto Aron, é juntar os historiadores e os filésofos. E tentar nek litar nao apenas a histéria do politico, mas também a histéria das ideias, que foi praticamente arruinada pela Escola dos Anais." Aprofundando as pegadas de Aron, Furet entendeu que nao bastava recuperar a obra de Tocqueville. Sendo a sua tarefa, a0 contrério, ade reler a trajet6ria politica francesa de uma perspec- tiva ndo-marxista, que implicava rejeitar a matriz historiogrdfica jacobina, 0 coordenador do Dicionério critica da Revolueio Francesa fomentou vivamente a recuperagio de toda a cultura politica li- eral francesa do século XIX. Tendo desarticulado pega por pega a historiografia jacobina reivindicada pelos mardstas, que nela enxergavam tum protétipo da futura revolusio comunista, Euret passou a apresentar a Revolugio como umm longo ¢ softido pro- cesso de quase um século de passagem da Franga & democracia 10 Foner, Frangois (1988). 0 historiador e a historia (entrevista). Estudos His- toricos, Rio de Janeiro, n? 1, p. 148-61. PEE ROSANALLON Uberal. Nesse quadro, a persisténcia da cultura politica jacobina deixa de ser percebida como uma gloria para ser vista Gomo um Obstdculo & constitui¢ao de uma cultura politica democrética; da mesma forma, a Revolugéo deixa de ser um patriético lugar de ‘meméria, para ser encarada como um problema a ser enfrentado pela filosofia politica," Aemergéncia do politico: Claude Lefort As reflexes acerca “do politico” propriamente dito devem ser atribuidas, porém, a filosofia de Claude Lefort (1924). Ele situa a sua reflexdo num plano filosdfico & maneira aristotélica, que Ihe permite considerar o politico como abarcando a totalt- dade do social valendo-se, simultaneamente, de todos os ins- trumentos disponiveis para tanto oriundos dos mais diversos campos do conhecimento social. Daf que o seu itinerério into. Jectual seja marcado peto mais impressionante exercicio de in- tetdisciplinaridade: vai da fenomenologia de Merleau-Ponty a literatura antropolégica de Marcel Mauss, Pierre Clastres, Malinowski ¢ Evans-Pritchard, passando pela teologia pol fica de Emst Kantorowicz e pelas grandes intezpretacbes da Revolucdo produzidas por Edgar Quinet e Michelet” As refo- éncias a Tocqueville, Furet e Aron também estio presentes, a despeito de sua preocupacso em esclarecer suas eventuais di- vergéncias em relagio as perspectivas desses autores. Assim, do ee 11 Foner, Francois (1988). La Rénlution Francice, Paris: Machete, 12 Poutren, Hugues (1997). & i ee igues (1997). Claude Lefort: la découverte du politique. Paris: Edi FOR UMA MSTORIA D0 POUTCO autor das Lembrangas de 1849 Lefort louva a leitura do advento da modernidade como ruptura com a sociedade monérquica em Reversibilidade: liberdade politica e liberdade do individuo e Da igualdade @liberdade a leitura do advento da modernidade como ruptura com a sociedade mondrquica. © didlogo com o segundo emerge em Perssando a revolugdo na Revolueo Francesa, ocasiao om que clogia o desejo manifestado por Furet de “redescobrir a andlise do politico”. No mesmo sentido, conforme se depreen- de de artigos como “Raymond Aron e o fenémeno totalitério”, Lefort compaxtilha com Aron a tese de que a compreensio da democracia enquanto regime moderno passa, necessariamente, pelo estudo do totalitarismo."* Mas, afinal, 0 que ¢ ¢ de onde veio 0 “pensamento do poli- tico”? A primeira vista, 0 conceito parece remeter & reflexdo do texto homénimo de Carl Schmitt, publicado alguns anos antes da subida do nazismo ao poder. De fato, tanto Lefort quanto o autor de A ditadura concebem 0 politico como duutinio transcendente dos limites da politica entendida como subsistema social, a arti- cular a existéncia comunitéria. Para ambos, a politica nao passa de um subsistema entre outros ~ comio 0 juridico, o econdinigs e o religioso -, que surge com o advento da modemnidade e, como tal, permanece & sombra do politico. As semelhangas, porém, nao vo além, Calcado na oposigio entre amigo e inimigo, o conceito schmittiano do politico destina-se a superar uma categorizagao 13 Laront, Claude (1991). Pensando o politico: ensaiva sobre demoeraca, revolute liberdade. Tradtuco de Eliana Souza. So Paulo: Paze Terra, p.115. 14 Leronr, Claude (2007). Le temps présent érits 1945-2005, Paris: Belin, p-969. FERRE ROSAMALLON da politica vinculada ao liberalismo, que o alemao reputava inar- tedavelmente anacrénica em virtude de dois fatores. O primeito Tesidia na emergéncia da democracia de massas enquanto forma de organizacao sociopolitica que exigia a unidade substantiva do Povo consigo mesmo, em ruptura com a tradig&o liberal pluralis- {2 O segundo fator estaria na decadéncia do idedrio liberal paci- fista e universalista, a revelar com ela a existéncia de oposigées radicais entre os diversos grupamentos humanos, que s6 pode- it 5 ' si, m ser resolvidas em tiltima andlise pela eliminagdo de uns ou outros. Ora, 0 conceito do politico desenvolvido por Lefort pa- Tece neste sentido construido deliberadamente contra aquele de Schmitt, i i } na medida em que, associando-o ao totalitarismo, recu- Pera o elemento liberal da democracia que o autor de O guardido da constituicto havia repelido. No entanto, é preciso ésclarecer que esta comparagio perma: nece no plano da abstragio: embora manifestamente critico do eee © “pensamenitu do Politico” articulado por Lefort nao parece fer sido elaborado tendo por negative aquele de Carl Schmitt, com quem, alids, ele nao dialoga expressamente em ne- nhum de seus trabalhos mais relevantes. Se Hobbes ¢ o clAssico a quem Schmitt se refere preferencialmente para articular o pré- Prio trabalho, aquele a partir do qual Lefort extraiu sua nogio do “politico” foi o Maquiavel da Primeira década de Tito Livio. Como ‘se esta informagao jé no bastasse para situar o quadro intelectual a 15 Scurry, Carl (1992), La notion du politique, Théorie du partisan, Traduzi- do do alemo por Marie-Louise Steinhauser, Prefécio de Julian Freun, inhauser, Pret i id. POR UMA HISTORIA D0 POUICO em que se move 0 autor de A invengiio democritica, 0 modelo de totalitarismo que Lefort tem sempre diante de si ndo é o nazista, mas 0 bolchevista. Ademais, o “pensamento do politico” lefortia~ no busca compreender 0 funcionamento do social fenomenologi- camente, isto 6, a partir dos dados da experiéncia — aspecto este que explica a centralidade por ele conferida a historia. “O exame das sociedades antigas pela literatura antropol6gica por ele empreendido nos comegos de seus estudos cedo 0 levou a indagar acerca dos mecanismos que tornam possivel a instituicio da vida coletiva, ow seja, que permitem a um conjunto de indivi- duos imaginarem-se, ao cabo de certo tempo, participes de uma mesma comunidade politica. O passo decisive na compreensao desse mecanismo de instituigao do social, que é justamente o que ele denomina'v politica, foi dado durante a confeccao de sua tese de doutoradg sobre Maquiavel, de cuja obra, conforme referido, Lefort apreendeu a dimensio politica do social."“ Sua tese passa pela afirmagio de que ndo existe sociedad sem referéncia a um lugar de poder; pela ideia de que 0 poder politico consiste numa precondigio da vida social na medida em que é ele que conforma a sociedade, que do contrario nao passaria de uma dj dao. Nao se trata de afirmar banalmente que a sociedade precisa de © a sociedade é da politica para subsistir, ¢ sim de su: produto de um trabalho prévie~dé Stia cor um lugar de poder, qye€onstitui o epicentro daquilo que Lefont politico é, deste modo, anterior ao social; ¢ denomina o politico. / 16 Larons, Claude (1991). Pensando o politico: ensaias sobre democracia, revoli- fo e Hberdade. Traducio de Eliana Souza. Sao Paulo: Paz. ¢ Terra, p. 253 PERE ROSAWALLON 4 sua arquitetura que toma este iltimo possivel. Além disso, per- meia sua obra a crenca na itredutibilidade da divisto social, ou seja, da oposicio entre os fortes e os mais fracos. Enquanto instin- cia que garante a unidade na pluralidade, ele € distinto e superior a0 social, a fim de arbitrar as divisdes que caracterizam este tilt mo. O politico remete, assim, a um dominio anterior e superior de todos 08 dutros modos de vinculacio social, que acaba pot Permitir conformé-lae, como tal, gerir as suas divisdes; em outras Palavras, ele é um “modo de instituico do social”.” Combinadas, ambas as diretrizés IeVam & conclusio de serem ut6picas quais- quer tentativas de supressio do cardter mediador ou refratario da instancia politica — aquilo a que ele e seus discfpulos chama- #40 “as ilusdes da transparéncia” do social no politico, sejam elas oriundas do liberalismo ou do democratismo extremado, sejam elas advindas dos totalitarismos de esquerda ou de dircita, A.compreensio do politico atinente ao modo de instituigdo de cada tipo de sociedade depende, por sua vez, de uni proced! to comparativo. Assim € que a apreenséo da forma peculiar de instituigdo da democracia liberal enquanto regime moderno de- pende de sta comparacio com a forma social que a antecedew, a monarquia, ¢ com aquela forma que tentou ultrapassé-la,o totali- tarismo. Ao contrario da monarquia, cujo fundamento originério era transcendente ena qual a pessoa do monarca servia de instru ‘mento por que a multido se tomava sociedade, na democracia o “lugar do poder” fica vazio. Nao sendo mais possivel instituir 0 social apelando a uma ordem anterior e superior, pela mobilizagao ee 17 Larort, Claude (1972). Le travail de Voewore Machiavel. Paris Gallimard. POR UMA HISTORIA DO POLNCO da religido ou da tradigéo, as normas de organizagio da democta- cia ficam sujeitas 0 perpétuo questionamento por seus cidadaos, Daj o caréter inarredavelmente indeterminado e probleméttico do regime politico moderno bem como a inviabilidade de qualquer tentativa de “resolvé-o” ou “solucioné-lo” em definitive. Com efeit,o toalitarismo estava de antemio fadado ao fracass0jus- tamente porque seu motor radicava na veleidade de aietalta diferenca entre a sociedade e o lugar de poder que a constitui, movido pela ilusdo de conseguir fazer 0 social transparecer no politico. © papel deste é justamente o de servir de espelho capaz derefrataraimagem da multidao e converté-1aem sociedad; por iss0 meso, & que o politico no poderia se exradicado pelo social, sob pena deste tiltimmo mesmo desfazer-s juntamente. A tentativa totalitaria de suprimir a instancia de mediagao de moldea repre: sentar 0 povo como em unidade consigo mesmo s6 poderia por isso ter resultado no que resultou: o terror, decorrente do esforgo do partido tinico em erigir-se em modelo substantivo de unidade, aparadigma de “sociedade ideal” a parti do qual é a sociedade real que precisa ser modelada, por mais altos que sejam os custos sociais."* E nesse ponto que a filosofia politica de Lefort sa fealte: laga com a historiografia de Furet: ambos véem no jacobinismo reyolucionario.um totalitarismo embriondrio.=2-nao st casei da qual haveria de sair a “verdadeira demacracia”\—a-socialista ~ como queriam os marxistas. 18 Leroy, Claude (1987). A ivenga democrtia os limites da dominagiottal- tiria. Traducao de Isabel Marva Loureiro. 2* ed. So Paulo: Brasiliense. PEREE ROSANGALLON Sequéncias do politico: Gauchet e Rosanvallon Os expoentes mais destacados da Escola Francesa do Politico na cena académica contempordnea si0 Marcel Gauichet (1946-) ¢ Pierre Rosanvallon (1948-). Suas obras so profundamente mar- cadas pela filosofia politica de Lefort, de quem foram discipulos. Esse débito pode ser medido, por exemplo, no recurso ao politico como instancia de apreensdo do fendmeno atinente & sociedade 4 politica, a tese de irredutibilidade da democracia, e sua con- traposicao face a6 totalitarismo." Ja 0 peso de Furét pode ser ava- liado pela importancia do papel por eles assinalado & histéria, re- putado instrumento incontornavel de reconstrugio de uma teoria capaz de conferir inteligibilidade & politica moderna. Do mesmo mode, ele os animou na perspectiva de uma histéria renovada das ideias politicas, Uma vez. que o liberalismo representava para ele e Lefort um elemento essencial do fendmeno democratico, 19 Arespeito de Lefort, diz. Gauchet: “Foi o tinico professor que me marcou verdadeiramente ao longo de meus estudos universitarios. Ele no era fi- ésofo, institucionalmente, mas socidlogo. Fle ensinava sociologia geral ¢, nese quadro, falava de Maquiavel, de Marx, de Tocqueville, um pouco como fazia Aron na mesma época. Ele superava todas os outros, inclusive ‘humanamente. Pela primeira vez na minha vida, vi com 06 meus olhos ¢ escutei com os meus ouvidos alguém que era habitado por wm pensamen- to, Bu tinha vinte anos. Ele me foi uma revelacSo, certamente o encontro {intelectual mais importante da minha existéncia”. Vide: Gavciter, Marcel (2003), La condition historique. Paris: Stock, p. 22. Rosanvallon também ex- plica sua aproximagéo intelectual com Lefort ao fato de ser ele “tum filéso- {fo da politica que partia de uma compreensdo bastante realista e bastante substantiva das difivuldales da democracta”. ROSANVALLON, Mierte (2006). “Tiinéraire et role de Vintellectuel”. Revista de Libros. Reprodugo no site do Collge de France. Madri, 28 sotembro de 2006 POR UMA HESTOR DO POLTCO tornava-se imperioso aos pesquisadores recuperar a reflexo po- litica produzida por seus representantes no século XIX. Assim, enquanto Aron e Puret se responsabilizavam pela ressurreicio de Tocqueville como tedrico da democracia, Gauchet e Rosanvallon encarregaram-se de retirar do limbo as reflexes desenvolvidas pelos outros dois liberais franceses fundamentais do perfodo pos- revolucionério: Benjamin Constant e Frangois Guizot™ As seme- thancas e afinidades decorrentes da socializagio comum nao bas- tam, porém, para erradicar as visiveis divergencias entre os dois autores. Gauchet propée uma abordagem eminentemente filosé- fica do politico que incursiona, em escrita por vezes pedregosa, pelos campos da religiao, da pedagogia, da clinica médica e da psicandlise. Por sua vez, devido & sua formagao ligada as cién- cias sociais aplicadas e & politica sindical, ou seja, & dimensdo em- pirica da politica, Rosanvallon adota uma perspectiva mais terra- aterza, enveredando para a histdria social, as politicas piblicas € os problemas de gestdio num estilo literdrio clara e sofisticado, a 20 Gavexss, Marcel (1997). Benjamin Constant: I'ilusion hucide du libéra- lisme. In: Benjamin Constant Ecrits Politiques, Marcel Gauchet, nova edi- fo revista e ampliada, Paris: Gallimard. RosanvatLon, Pierre (1985). Le ‘mement Guizot. Paris: Gallimard. 21 Assim, por exemplo: Gaucusr, Marcel (1980). Le pratique de Uesprit rumain: L'institution asilaire et ta révolution démocratique (em colabo- rago com Gladys Swain), Gallimard, Paris. Gaucuer, Marcel (1992), L’inconscient cérébral, Paris: Editions du Seuil. Gaucur, Marcel (1994). Diatogue avec Winsensé. A la recherche d'une autre histoire de Ia folie (em colaboragio com Gladys Swain). Paris: Gallimard, Gavcusr, Mar- cel (2008) Les conditions de I’éducation. Paris: Stock. Gaucwet, Marcel (2009). Histoire du sujet et théorie de la personne. PU, Rennes. FERRE ROSAMVALLON cocultar a erudigao de seus trabalhos. Da mesma forma, a reflexio dle Gauchet parece se circunscrever mais claramente no espago da experiéncia europeia, ao passo que Rosanvallon expande aque- les horizontes para aprender a democracia enquanto fenémeno planetério, adotando enfoques comparatistas e dialogando com praticamente todos os setores das ciéncias sociais, em especial a briténica e a norte-americana. Marcel Gauchet entende 0 politico como 0 conjuntos de me- canismos ou representacdes primordiais que, projetadas para o campo da politica, sustentam a vida de uma comunidade, per- mitindo-the pensar a si mesma como unidade, sem renunciar 8 pluralidade Sua tese central é de que a democracia moderna resulta de um longo proceso por meio do qual a religido dei- xou paulatinamente de constituir 0 principio ordenador do po- litico® Os trés novos pilares do regime democratico moderno teriam se destacado da velha forma religiosa por intermédio de trés revolucdes sucessivas: a da politica, no século XVI; a do di- reito, no século XVII e da histéria, no século XIX Dai que suas obras mais diretamente politicas se debrucem sobre cada um desses pilares de sustentagio moderna do politico, ai inclusa a neces- sidade de um poder politico imparcial que represente mais cla- 22 Gaver, Marcel (2003). Le condition historique. Entretiens avec Francois Azouoi et Syloain Piron. Paris: Editions Stock, p. 76. 23 Gaucrer, Marcel (1985). Le désenchentément dit monde histoire politique de la religion. Paris: Gallimard. 24 Gauci, Marcel (2007).L’avénement de la démocratie, Tome I: La Révolu- tion Moderne. Paris: Gallimard. oR ro UMA HsTORIA D0 POLITCO ramente 0 cardter refratario do Estado sobre 0 social. As crises sofridas pela democracia so também explicadas a partir dos diversos momentos desse processo cada vez mais acentuado de caida da religio”. Estas produzem as “crises de paradigma” da democracia liberal a partir do desarranjo no equilibrio neces sitio que deve ser mantido entre aqueles trés pilares. f devido a esse motivo que 0 totalitarismo é percebido como uma “religio secularizada”, em que 0s pilares historicos e politicos foram ma- ximizados em detrimento do juridico, no contexto de crise do Iiberalismo - em sociedades onde a perda da forma religiosa de organizagao levou ao medo generalizado de dissolugio do social Hoje vivenciarlamos outra crise, atravessada por uma sensagao de esvaziamento civico simulténeo & explosao de um demandismo individualista, cuja causa residiria justamente na climinagao dos tltimos residuos de organizagio do politico a partir da religiio.” Note-se que, nessa hipétese sobre a passa~ gem de um mundo marcado pela organizacio hiesérquica a par- tir da religido e aquele do crescente nivelamento social e plena 2B Sobre a emergéncia dos direitos individuais: Gaucnet, Marcel (1989). Le révolution des droits de homme. Paris: Gallimard, Sobre a organizagéo do Estado democrético e a nevessidade de um “terceiro poder organizador”: Gaver, Marcel (1995). La révlution des pouois : la souverninet, le peuple et Ia représentation, 1789-1799, Pars: Gallimard. Sobre “opilaxhistOrco": Gau- crt, Marcel (2008). La condition historique. Pati: Stock. 26 Gavcust, Marcel (1998), La religion dans in dimocratie: parcours de ta tact. Paris; Gallimard. Gaucwex, Marcel (2007). Liavénement de ta démocratie. ‘Tome I: La Révolution Moderne, Paris: Gallimard, Gavexer, Marcel (2007). {27 Gaver, Marcel (2007). La démocratie d'une crise & autre. Paris: Cécile Défaut. 29 ERE ROSANYALION laicidade, é facilmente identificdvel, ainda que tremendamen- te dilatado, o esquema explicativo de passagem a modernidade politica estabelecido por Tocqueville ~ a quem Gauchet pagou 0 inevitavel tributo em Tocqueville, ‘Amérique et nous: sur la génese dés societés démocratiques.® Pierre Rosanvallon, por sua vez, partilha da mesma concep- cio basica do politico, quando define o mundo da politica como segmento do mundo do politico, operado pela mobilizagao dos me- canismos simbélicos de representacao.” No entanto, ele discorda de Gauchet no diagnéstico. Para ele, a democracia nao experi- mentaria qualquer crise nos dias de-hoje ~ a0-contrario, a.crise seria da teoria politica tradicional, a qual nao teria se dado conta do carter permanentemente aberto daquela forma politico-social ¢ por isso teria perdido a capacidade de dar conta das transfor- mages por ela softidas nas iiltimas décadas. Dai a necessidade de remodelar a teoria recorrendo, ndo mais a categorias abstratas, mas ~ fiel & ligdo de Lefort — & histéria e a0 comparatismo, meios finicos de aprender a democracia em suas formas conecretas.” Ao recusar a oposigéo enire democracia direta e democracia re- presentativa, em que o debate se-polarizava quando da publica- go de suas primeiras obras, Rosanvallon j4 revelava um trago constante de sua obra: a crenca de que o politico é um fendmeno que s6 poderia ser compreendido a partir das dificuldades e dos 28 Gaucur, Marcel (2005). La condition politique, Paris: Gallimard 29 Rosanvatton, Pierre (2002). Pour une histoire conceptuelle du politique. Pa- ris: Colldge de France. 30 Rosavatton, Pierre (2006). La contre-démocratie: la politque a W'ige de la Aéfiance. Pars: Le Seuil, p.31. ae POR UMA HISTORIA D0 POLNCO problemas substantivos da vida democratica, Esta caracteristica faria dele um critico consideravel da teoria normativa que domi- nava o cenério intelectual internacional pelo intermédio de au- tores como John Rawls e Jiirgen Habermas. Motivado assim por tum enfoque histérico ou sociolégico da democracia, Rosanvallon envidou esforcos pela reabilitago dos autores realistas da pri- meira metade do século, relancando as obras classicas de Michels e Ostrogorski sobre os partidos politicos. Em 1992, Rosanvallon assumiu a diregao do Centro Aron, posto por ele ocupado duran- te mais de dez anos, quando passou ao Colégio de Franca. Deum modo geral, pode-se dizer que sua reflexdo até o inicio da presente década girou em tomo dé trés eixos central, que Ihe per- mitiram acumuiar o capital intelectual que ele julgava indispensa- vel para reestruturar a teoria da democracia. O primeiro deles passa pela interpretagio.e evolugio das instituigdes de solidariedade social e da teoria da justica. Segundo Rosanvallon, a reflexao democratica 4 insepardvel da discussdo sobre as condigées priticas do contrato social, que hoje passam, inevitavelmente, por um acérdo Sobre a re- distribuigio da renda e pelos problemas da solidariedade em geral™ segundo eixo de sua reflexdo reside na hist6ria do que acabou por denominar o “modelo politico francés”, que, no contexto de de- dlinio do marxismo e, concomitante, proximidade do bicentenario da Revolugio Francesa, no intento de melhor aprender a cultura 31 Rosanvatiox, Pierre (1976). L’age de Vautogestion. Paris: Le Seuil. Ro- “SaNVALLON, Pierre (1981). La crise de I'état-providence, Paris: Le Seuil. Este Liltimo foi traduzido no Brasil: RosaNvALLON, Pierre (1997). A crise does- tado-providéncia, Tradugio de Joel Ulhoa. Goiania: UFG. Sobre o mesmo assunto: La nouvelle question sociale: repenserI‘état-providence (1995). os PERE ROSAMWALLON liberal, 0 impeliu ao se debrucar desde a natureza do capitalismo até a trajetéria do Estado na Franca? O eixo mais notério de sua obra, entretanto, foi aquele dedicado & reconstituico da historia intelec- tual da democracia francesa e sua correspondente cultura politica desde 1789. Foi ele que deu origem ao famoso tritico sobre a cida- dania, a representagao e a soberania, que 0 consagrou no circuito internacional.” Ao cabo de vinte anos estudando o Estado ea cultu- 1a politica, Rosanvallon julgou que jé poderia retomar seu objetivo inicial de reconstruir a teoria geral da democracia. Partiu, entio, para a elaboragéo de uma nova trilogia, destinada a abordar as transfor- mages da atividade democritica, da legitimidade politica e da base territorial do Fstado-nagao.* Os dois primeiros volumes jé vieram a lume, faltando o terceiro, que deve ser lancado em 2011. 32 Rosanvatron, Pierre (1979). Le ctpitalisme utopique: histoire de Widée de ‘marché. Paris: Le Seuil. Esse livro foi traduzido no Brasil como: RosaN- vvatzow, Pierre (2002). literalismo econdmico: histéria da ideia de mercado, ‘Tradugio de Anténio Penalves Rocha, Bauru: Edusc. Sobre o mesmo as- sunto: Rosawvaitow, Pierre (1985). Le moment Guizot, Paris: Gallimard; ‘e Rosanvatzon, Pierre (1994), La monarchie impossible. Histoire des chartes de 1814 et 1830. Paris: Fayard. Hé ainda duas obras, digamos, programé~ ticas: Rosanvatron, Pierre (1990). L'Eiat en France, de 1789 a nos jours. Paris: Le Seuil; ¢ Rosaxvatton, Pierre (2004), Le modele politique francais: Ia socitté civile contre le jacobinisme de 1789 a nos jours, Paris: Le Seuil. 33. Rosanvatton, Piette (1992). Le saore du citoyen: histoire du sufrage universel ent France Paris: Gallimard, RossNvaLion, Pierre (1998). Le peuple introuoa- Dies histoire de a eprésentation démocratique en France. Paris: Gallimard, Ro- sawvazton, Pierre (2000). La démocratie inachenée: histoire de la souveraineté du peuple en France. Paris: Gallimard. 34 Rosaxvattow, Pierre (2006). La contre«iémocratie: a politique a age de la dé- fiance, Paris: Le Seuil. Rosanvatton, Pierre (2008). La légitimité démocrati- ‘que: impartialit,réflexioite, proximité, Paris: Le Seuil. 32 POR UMA HISTORIA DO POLMICO Rosanvalion, historiador do politico Das reflexes ou notas de trabalho escritas e divulgadas por Rosanvallon ao longo de seu trabalho como historiador emergiram os dois artigos que compéem o presente volume: “Por uma histé- ria filos6fica do politico” e “Por uma historia conceitual do politi- co". O primeiro deles é essencialmente metodolégico e representa «uma consolidagSo expandida de um artigo anterior, chamado “Por ‘uma histéria conceitual do politico - nota de trabalho”, publicado em 1996 na Revue de Synthese. J4 o segundo artigo foi redigido por Rosanvallon como conferéncia para servir de ligdo inaugural a chtedra de Histétia Moderna e Contemporinea do Politico do Colégio de Franca, que passou a ocupar em 2002. Para além da rea- firmagéo metodolégica, o texto contém o seu programa de pesqui- sa da disciplina naquela instituigéo, atualmente em plena e exata execugio.# Nio fica clara, no entanto, a razfo que levou o autor de ‘um artigo a trocar a qualificago de sua abordagem historiogrética de “filoséfica” para “conceitual”. Esta ahservagin parece necessé- ria, entre outros motivos, porque o “filoséfico” remete ao conceito lefortiano do politico, ao passo que o “conceitual” sugere uma in- clinagio para a Begriffegeschichte de Koselleck. A diferenga parece, todavie, ndo guardar maiores significados. Primeiro, porque Rosanvallon emprega as duas expresses demodo intercambiével. Além disso, sob uma expresso ou outra, ele jamais se distancia das postulagies de Lefort, ao paso que assinalou allu- res.as diferencas entre sua historia do politico e aquela praticada na 35. KOSANVALLON, Pierre (2002). Carew hibtuire mere et contemporaine du poli tique, Legon inaugurle fut le jeudi 28 mars 2002. Peis: Collége de France. 33 PRR ROSANVALLON Alemanha pelo falecido autor de Critica e crise. Rosanvallon queria fazer “uma histéria compreensiva das ideias e desenvolver uma compreensio da racionalidade dos atores politicos. Nunca preten- di separar uma histéria renovada das ideias de uma historia pro- priamente politica”. Ainda em materia tedrico-metodolégica, em Por uma historia filocofica do politico, Rosanvallon deixa entrever as diferencas de sua abordagem tanto em relagio ao contextualismo linguistico de Quentin Skinner quanto do normativismo de Rawls e Habermas: “Nao é possivel se contentar com uma abordagem nor- mativa que nos fornega uma visio puramenite ideal da politica e da democracia”, ele reitera noutro lugar. “E preciso redefinir 0 enfo- que normativo para suprimir o hiato existente entre a histéria e a teoria’.* Rosanvallon esclarece assim a sua posicio intermédia en- tre aqueles autores, na medida em que, enxergando na historia uma ferramenta indispensdvel para uma reflexio realistica do politico, se vé compelido a se afastar tanto dos excessos do historicismo, que dispensam a reflexdo do presente, quanto do normativismo teérico, _gue, ao rechagar a histéria, rechacaria a realidade. Para Rosanvallon, a tarefa do historiador é a de tentar restituir 490 passado sua dimensao de presente, isto é, de indeterminacdo, Para tanto, é preciso resgatar a experiéncia politica dos atores, seus sistemas de aco, representacao e contradi¢aio, de tal sorte que © presente do passado nos ajude a melhor refletir sobre 0 nos- so presente e nao apenas a explicar simplesmente o presente ou 36 Rosawvarzow, Pierre (2006), “Itingraire et role de V'intellectuel”. Revista de Libvos. Reprodugio no site do Collége de France. Madri, 28 de setem- bro de 2006(a. POR UMA HISTORIA DO POLITICO ‘0 que ele foi. Meio de compreender os dilemas da democrada essa histéria filosdfica ou conceitual do politico se estabelece a pattt dos vinculos conceituais entre as questdes candentes de uma so” ciedade e suas representacées politicas no decorrer da historia Sujeito ¢ titular da democracia, 0 povo somente afirma sua exis téncia politica através das ideias que ele faz de si mesmo, que! dizer, na medida em que seus componentes se percebem come um todo coerente. As representacdes dat decorrentes se refletet! diretamente nas concepgies institucionais adotadas, pois sao elas que conferem visibilidade as ideias que o povo nutre a respeito do exercicio legitimo do poder. A tarefa de recuperar essas for mas histdricas de auto-representago impée, por conseguinte, # recusa em distinguir 0 espago para onde, de um lado, convergt a representagio ~ a politica -, e, de outro, aquele onde a rept” sentagao é produzida ~ o politico. Como experiéncia concreta § historia social e a historia intelectual sao insepardveis: 0 mundodi politica nao passa de um segmento do mundo do politico, que opet® pela mobilizacao dos mecanismos simbélicos de representaci@ Esperamos que a publicacao dos presentes textos em lingua poF tuguesa contribua para a maior difusao das reflexdes dessa Esco? Erancesa do Politico, ainda incipientes entre nés. 35 POR UMA HISTORIA FILOSOFICA DO. POLiTICO* Por Piorre Rosanvalion “Tradugho de Chestan Eaward Cyst Lynch. 1 Nos Uurmmos ViNTE ANOS TEMOS TESTEMUNHADO um “retorno a0 politico”, frase hoje ja banalizada pelo uso. Tal retomo pode ser explicado pela concorréncia de dois fatores. Primeiro, ele perter- ce a um momento na historia quando, simultaneamente, desco- brimos a centralidade do tema da democracia e de sua proble- matica natureza. Até 0 final da década de 1960, a visto de uma divisdo ideolégica fundamental serviu para organizar 0 espayy intelectual em tomo da oposicao entre duas vis6es hegeménices de mundo: a marxista e a liberal. Os advogados da democracia parlamentar classica e os campedes da “verdadeira” democracia, cada um de sua parte, acreditavam que os modelos cujos méri- tos proclamavam correspondiam a um ideal completamente re- alizado, Na década de 1970, uma nova verséo da critica do tota- litarismo alterou essas conviegdes, Ievando a uma anélise mais profunda do problema da democracia. Desde 0 fim dos anos 1980, num contexto caracterizado pela ascensdo do nacionalismo e pela crise do Estado de Bem Estar, a necessidacle de um novo 39 FERRE ROSANVALLON conirato social prolongou essa busca, contribuindo para tornar as questées politicas novamente centrais. Mas 0 “retorno do po- Itico” também tem uma dimensdo metodolégica: ele acompanha © desencantamento com as ciéncias sociais, visivel na década de 1980. Postas de lado, de certa forma, a sociologia e a antropologia, a filosofia pareceu a alguns oferecer um caminho melhor para, a0 ‘mesmo tempo, entender e formular os problemas das sociedades contemporaneas. E nesse contexto que se pode apreciar melhor a emergéncia daquilo que chamo a histéria filos6fica do politico. Neste ensaio abordo tal questo tornando explicita a aborda- gem metodolégica e as intengdes subjacentes de certo ntimero de publicagdes de minha autoria, em particular L’état em France: de 1789 4 nos jours, bem como Le sacre dy citoyen.t Um ponto pre- liminar, todavia, merece énfase. A identificagéo de uma nova historia filosdfica do politico reside em uma definicdo do domi- nio politico distinta daquela geralmente assumida pela ciéncia politica, para a qual a politica constitui uma subarea do sistema social como um todo. Max Weber, por exemplo, considerava que a ordem politica, entendida como o exercicio do monopélio le- gitimo da violéncia, estava em oposigao & economia e & ordem social. Cada esfera de atividades estaria sujeita a instituigdes e principios reguladores proprios. Seria possivel mencionar mui- {as outras definig&es do que seja a politica. Mas 0 que caracteri- za as ciéncias sociais é que elas a considera em termos de sua 1 Pierre Rosanvallon, L’état en France: de 1789 @ nos jours (Paxis, 1990); Pierre Rosanvallon, Le sacre du citoyen — histoire du suffrage universel em France (Paris, 1992). 40 POR UMA HISTORA DO PoLIICO. especificidade: a coeréncia inerente do dominio politico emana de uma qualidade particular do poder como um meio de mol- dar a organizacao e a hierarquia da fabrica social. Na contramio dessa definigéo, a histéria filoséfica do politico “implica por outro lado a nogéo de um principio ou um conjunto de principios engendrando es relagSes que as pessoas mantéi en- treelasecom omundo” Vista deste éngulo, tomando como ponto de referéncia a dimensao simbdlica caracteristica da sociedade, nao se trata apenas de desenhar uma linha entre o que é politico eo que 6 social. Embora a insergao do politico no interior dessa estrutura simbélica seja incontestAvel (e, diga-se de passagem, é este 0 fato que torna fundamental a relacio entre o politico e 0 religioso), é necessdrio, porém, ser ainda mais exato. Aqui podemos nos referir as observagdes muito esclarecedoras de Claude Lefort, que define © politico como 0 conjunto de procedimentos a partir dos quais desabrocha a ordem social. Interpretado nesse sentido; o politico © 0 social sao indissoliveis, este derivando daquele seu significa- do, sua forma e sua realidade. Essa definigo do politico baseia-se numa dupla premissa: a primeira é o reconhecimento da natureza problemitica da elaboragao das regras por meio das quais a comu- nidade pode viver em paz, evitando desse modo o dissenso e sua prépria ruina, na perspectiva de uma guerra civil. A definigao clas- sica de Aristoteles na Politica é aqui apropriada: “Quando hé uma azo para a igualdade e uma razo para a desigualdade, entio entramos no reino da diivida e da filosofia politica”? 2 Claude Lefort, Essat sur la politique, XIXe-XXe sites (Panis, 1980), p. 8. 3. Aristételes, Politics (IL, 1282 B 21), 4 PERE ROSANALLON Compreendido dessa forma, o politico pode ser definido como uma esfera de atividades caracterizada por conflitos irre- dutiveis. O politico resulta da necessidade de estabelecer uma norma para além do ordinario, norma que, entretanto, nao pode de modo algum ser derivada de algo natural. O politico pode, portanto, ser definido como 0 processo que permite a constitui- do de uma ordem a que todos se associam, mediante delibe- ragao das normas de participacao e distribuigdo. “A atividade politica”, como observa Hannah Arendt em idéntica linha, “est subordinada & pluralidade da atividade humana... A ativi politica diz respeito & comunidade e com o modo pelo qual ser diferente afeta as respectivas partes” + 1 Podemos aempre comegar com casa definigso cldssica do po- litico. Mas é também necessério enfatizar que ela adquire um novo significado na sociedade moderna. De fato, na definicao de Aristételes, 0 aspecto problematico da participacao e da dis- tribuigdo é mantido dentro de certos limites pela crenga, que ela pressupSe, numa certa ordem natural das coisas e da socieda- de. Nesse caso, o sistema de diferengas é, em parte, um dado ja presente. Em contraste, o politico nas sociedades modernas ésta sendo ampliado ~ pode-se dizer, inclusive, que ele esta sendo li \berado. Ha duas razées para isso. A transicfo de uma sociedad 4 Hannah Arendt, Qu’est-ce que la politique? (Paris, 1995), p. 31. POR UMA HEsTORIA DO OLIMCO corporativa para uma sociedade de individuos produz, em pri- meiro lu Zo. Desse modo, 0 politico é convocado a ser o agente que “representa” uma socie- dade cuja natureza ndo esté dada de forma imediata. Segundo Marx, na Idade Média as classes sociais eram imediatamente meiro lugar, um tipo de d politicas.’ Nas sociedades modernas, em contraste, medidas po- sitivas tém sido tomadas no sentido de promover a representa- so da sociedade, face a necessidade de que uma sociedade de individuos se tome visivel e notavel, e que assim o povo adqui- ra.uma face. O imperativo da representacao, portanto, distingue a politica moderna da antiga, Ao mesmo tempo, deve-se chamar ¢ a atengao para uma segunda diferenga fundamental, a diferenca que deriva do principio de igualdade ligado ao advento de uma visio da ordem social como produto de convengdes (0 que im- plica a igualdade entre individuos perante a lei). Nas socieda- des modernas ja nao hé limites que possam ser impostos ~ soja pela natureza, seja pela histéria — contra processos igualitérios, A igualdade subverte todas as tentativas de legitimar as diferen- gas em razo de alguma ordem natural, A vida social é caracteri- zada por dois processos, baseados em novas reivindicagées por igualdade econémica e pela redugao das diferencas antropold- gicas. Esses dois aspectos da modernidade levam assim a uma ampliagdo consideravel do dominio pratico do politico, quando comparado & perspectiva aristotélica. 5 CEK. Manx, Critique of Hegel's ‘Philosophy of right’, edited by J. O'Malley (Cambridge, 1970), p.723. PEE KOSAMWALLON Visto desta perspectiva, 0 objetivo da historia filoséfica do po- Litico é promover um entendimento acerca do modo por que sio projetados e se desenvolvem os sistemas representativos, que per- item aos individuos ou grupos sociais conceber a vida comuni- tiria Na medida em que essas representagSes nascem de um pro- cesso em que a sociedade esta constantemente se reexaminando, € que elas nfo sio exteriores as consciéncias dos atores, a histéria filoséfica do politico objetiva, primeiramente, entender como uma época,uin pas ox um grupo social tenta construr respostas pera aquilo que, com maio¥ ou menor precisao, elas percebem conio um es, ¢ das formas de elacionamento e de controle social. Ela é uma histéria filoséfica porque lida com conceitos incorporadas & auto- ncas decorrentes da transformagio das institui representagao da sociedade, tais como igualdade, soberania, de- mocracia, etc., que permitem organizar e verificar a inteligibilidade dos eventos e seus princ{pios subjacentes. Tal définicao jistifica por ‘que privilegiar dois grandes momentos histéricos: a perda de auto- nomia da ordem social entendida como um organismo corporativo 6 O termo histéria politica & preferido & histérie intelectual porque o tetmo ‘histria intelectual possi um sentido muito estrito no mundo anglo-sa- que trata a histéria como sendo uma dimensio separada da pro- dugao intelectual e dos circulos intelectuais. = POR UMA HSTORIA BO POLITICO ~ahist6ria do politico na medida em que este esté relacionado com © afrouxamento da representacdo orginica da ordem social - e 0 subsequente periodo democratico. Esses dois grandes momentos so muito diferentes um do outro, Um consiste na historia da ori- gem das formas contemporaneas do politico, do Estado, paralela- mente & emergéncia do individuo; 0 outro é a histéria do que se pode chamar “experiéncia democrattica”, Contrariamente & historia das ideias cléssicas, 0 material para essa hist6ria filos6fica do politico nao pode ser limitado a uma and- lise e comentario de grandes textos, muito embora, em certos casos, eles possam justificadamente ser considerados centrais na medida em que ilustram as questées suscitadas em determinado perfodo historico e as respostas entao oferecidas. A histitia filoséfica do po- Iitico segue a histéria das mentalidades, ao preocupar-se em incor- pporar todos os elementos que produzem este objeto complexorque Esta tarefa certaiienife includ o modo por que grandes textos tedricos so lidos, mas também a atencao as obras literdrias, a imprensa e os movimentos de opinio, panfletos e dis- cursos parlamentares, emblemas e signos. Ainda mais largamente, a histéria dos eventos e instituigies deve ser apreendida como algo ‘em permanente construgéo, de tal modo que, assim considerada, no ha objeto que possa ser considerado alheio para.esse tipo de historia do politico. Ela consiste em reunir todos aqueles materiais empregados, cada um de modo separado, por historiadores das ideias, das mentalidades, das instituigées e dos eventos. Por exem- plo, a relagdo entre liberalismo e democracia durante a Revolugao Francesa no pode ser resalvida camo um debate de alto nivel travado entre Rousseau e Montesquieu. Deve-se fazer um esforco an

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