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Francis A. Schaeffer VERDADEIRA Espiritualidade rlel Editora Fiel da Missao Evangélica Literaria Caixa Postal 30.421 01051 Sao Paulo, SP VERDADEIRA ESPIRITUALIDADE Traduzido do original em inglés: TRUE SPIRITUALITY Copyright © Tyndale House Publishers Quarta edi¢géo em portugués - 1993 Todos os direitos reservados. E proibida a reproducdo deste livro, no todo ou em parte, sem permissdo escrita dos Editores. Editora Fiel da Missaéo Evangélica Literdria Caixa Postal 81 Sao José dos Campos, SP 12201-970 INDICE Parte I - Liberdade Presente dos Lacos do Pecado Consideragdes Sobre a Verdadeira Espiritualidade 1.ALeiealeido Amor .............. 9 2. A Centralidade da Morte .............. 26 3. Através da Morte, Rumo 4 Ressurreicfo ... . 41 4. No Poder do Espirito ...............0. 58 Unidade Biblica e a Verdadeira Espiritualidade 5. O Universo Sobrenatural ......... 6. Salvacdo: Passado - Futuro - Presente A Pratica, Momento Apos Momento, da Verdadeira Espiritualidade 7. A Esposa Prolifera. 2.2... ......00000. 97 Parte II - Liberdade Presente dos Resultados dos Lacos do Pecado A Separagéo do Homen de Se Mesmo 8. Liberdade das Amarras da Consciéncia .. 108 9. Liberdade na Vida do Pensamento ...... 124 10. Cura Substancial dos Problemas Psicoldégicos . 144 11. Cura Substancial da Personalidade Total ... 157 A Separacdéo do Homen do Seu Semelante 12. Cura Substancial nas RelagGes Pessoais .. . 173 13, Cura Substancial na Igreja. 2.2... 192 Prefacio Este livro estd sendo publicado depois de um bom nu- mero de outros, mas em certo sentido ele devia ter sido o meu primeiro livro. Sem o material de que consta esta obra nao existiria “L’ Abri”. Em 1951 e 1952 enfrentei uma crise espiritual em minha vida. Muitos anos antes, eu me convertera do agnosticismo tornando-me cristdo. Servi como pastor durante dez anos nos Estados Unidos. Depois, minha esposa Edith e eu trabalhamos varios anos na Euro- pa. Durante esse tempo todo eu sentia avolumar-se pesada carga pela posigao crista histdrica e pela pureza da Igreja visivel. Contudo, gradualmente fui-me dando conta de um problema -- o problema da realidade. Esta se compunha de duas partes: Primeira — parecia-me que entre muitos daqueles que sustentavam a posicao ortodoxa via-se pouca prdtica real das coisas que a Biblia claramente diz que de- viam resultar do cristianismo, Segunda — aos poucos fui tomando consciéncia de que em mim mesmo a realidade era menor do que havia sido nos primeiros dias depois de haver-me tornado cristao. Percebi que, a bem da honesti- dade, eu tinha de retornar e repensar toda a minha posi- ¢a0. Nesse tempo viviamos em Champéry. Eu disse 4 Edith que, para ser honesto, eu tinha de percorrer todo o cami- nho de volta a meu agnosticismo e considerar a matéria toda, de comego a fim. Tenho certeza que foi uma época dura para ela, e que ela orou muito por mim naqueles dias. Eu vagava pelas montanhas quando o tempo o per- mitia, e quando fazia tempo chuvoso eu andava para 14 e para c4 no celeiro do velho chalé em que mordvamos. Andava, orava e repassava o pensamento pelos ensinos da 5 Escritura, fazendo também revisao de minhas préprias ra- z6es para ser cristo. Ao repensar minhas raz6es por que ser cristo, vi de no- vo que havia razGes totalmente suficientes para saber que o Deus pessoal e infinito existe e que o cristianismo é ver- dadeiro, Prosseguindo, vi algo mais, que fez profunda di- ferenga em mirha vida. Pesquisei para discernir o que diz a Biblia a respeito da realidade, do ponto de vista do cris- tao. Paulatinamente entendi que o problema estava nisto: com todo 0 ensino que eu tinha recebido depois de fazer- me cristéo, eu ouvira pouco do que a Biblia diz acerca do significado da obra consumada por Cristo para nossa vida presente. Gradativamente 0 sol raiou — e com ele a cangao. Notavelmente, embora de h4 muito eu nao escrevesse ne- nhuma poesia, nesse tempo de alegria e canto, senti que a poesia comecava a fluir de novo — poemas acerca da certe- za, da afirmacao da vida, da gratidao e do louvor, Era sem divida poesia muito inferior, mas expressava a cancdo de minha alma, cancao maravilhosa para mim. Esta foi e é a verdadeira base de “L’Abri”. Ensinar as respostas cristas histéricas e dar respostas honestas a per- guntas honestas sao cruciais, mas foi dessas lutas que bro- tou a realidade. Sem isso, uma obra incisiva como “L’Abri” jamais teria sido possivel. Nés sé podemos estar agradecidos por isto. Os principios que elaborei em Champéry foram primei- ramente apresentados em forma de palestras num acam- pamento biblico que funcionou num velho celeiro de Da- kota, USA. Isto foi em julho de 1953. Foram anotados em tiras de papel no poro da casa do pastor. Dessas men- sagens o Senhor deu algo muito especial, e até hoje retino aqueles que, quando jovens, tiveram seu pensamento e sua vida transformadas ali. Depois do inicio de ‘*L’Abri” em 1955, preguei aquelas mesmas mensagens em Huémoz. Mais tarde elas foram escritas de modo mais desenvolvido e completo na Pennsylvania, em outubro e novembro de 1963. Apresentei-as outra vez em Huémoz no fim do inverno e comeg¢o da primavera de 1964. Essa foi sua for- ma final e a forma em que estado registradas nas fitas de gravagado de “L’Abri”. O Senhor tem usado as gravacdes 6 de um modo que nos tem comovido profundamente, nao somente com relacdo aos que tinham problemas especifi- camente espirituais mas também aos que tinham necessi- dades psicolégicas. Oramos rogando que a presente forma escrita desses estudos seja tio til como o tém sido as gra- vac6es em muitas partes do mundo. Huémoz, Suiga Maio de 1971. A Lei e a Lei do Amor A questGo que temos diante de nds é em que consiste de fato a vida cristd verdadeira, a genuina espiritualidade, a vida espiritual auténtica, e como pode ser vivida num cendrio do século vinte. O primeiro ponto a estabelecer € que é impossivel sequer comegar a viver a vida crista, ou mesmo saber algo da vida espiritual auténtica, antes de que a pessoa se torne crista. E 0 unico meio de tornar-se cristao no é tentar viver alguma espécie de vida crista, nem esperar por algu- ma espécie de experiéncia religiosa, mas, sim, é aceitar a Cristo como o Salvador. Nao importa quéo complicados, instrutdos ou sofisticados nds sejamos, ou quao simples nds sejamos, todos temos que percorrer o mesmo caminho, no que diz respeito a tornarmo-nos cristaos. Assim como os reis e os poderosos da terra nascem fisicamente, exata- mente do mesmo modo como os mais simples seres hu- manos, também a pessoa do mais elevado gabarito intelec- tual tem de tornar-se crista exatamente da mesma maneira que a pessoa mais simples. Esta verdade vale para todos os seres humanos, em toda parte, através de todo o espaco e de todos os tempos. Nao hd excegdes. Jesus disse uma pa- lavra totalmente exclusiva: “Ninguém vem ao Pai sendo por mim”. A 1azao disto € que todos os homens estao separados de Deus por causa de sua real culpa moral. Deus existe, Deus tem cardter, Deus é santo, e quando os homens pe- cam (e todos nds temos que reconhecer que cometemos pecado nao s6 por engano ou erro mas também por inten- ¢4o), tém real culpa moral diante do Deus que existe. Esta 9 culpa ndo corresponde ao conceito moderno de sentimen- tos de culpa — ao sentimento culposo de natureza psico- logica no ser humano. E verdadeira culpa moral diante do Deus pessoal, infinito e santo. Somente a completa e vi- caria obra de Cristo na cruz, como o Cordeiro de Deus — na histéria, no tempo e no espaco — é que é suficiente pa- ra remové-la. Nossa verdadeira culpa, esse céu de bronze que se estende entre nds e Deus, s6 pode ser removida com fundamento na obra acabada de Cristo, e mais nada de nossa parte. Toda a énfase da Biblia é que nenhuma nota human({stica deve ser acrescentada em ponto algum, na aceitagdo do Evangelho. O valor infinito da obra com- pleta de Cristo, a segunda pessoa da Trindade, na cruz — mais nada — é que é a unica base da remogdo de nossa culpa. Quando chegamos assim, crendo em Deus, a Biblia afirma que somos declarados justificados por Deus; a cul- pa é retirada, e somos reconduzidos 4 comunhio com Deus — 0 que constitui a primordial e precisa realidade para a qual fomos criados. Exatamente como a nica base para a remocdo de nos- sa culpa é a completa obra de Cristo na cruz, que é um fa- to histérico, nada mais sendo requerido para isso, assim 0 unico instrumento para a aceitagdo da obra completa de Cristo na cruz é a fé. Nao se trata da fé no conceito do presente século ou no conceito kirkegaardiano de fé co- mo um salto no escuro; nao 6 uma solucdo a base de fé na fé. E crer nas promessas especrficas de Deus: nao mais voltar-lhes as costas, ndo mais chamar Deus de mentiroso, mas, sim, Jevantar as maos vazias num movimento de fé e aceitar a obra completa de Cristo da maneira como foi realizada historicamente na cruz. Diz a Biblia que, no momento em que tomamos essa atitude, passamos da morte para a vida, do reino das trevas para 0 reino do bem-amado Filho de Deus. Tornamo-nos, individualmente filhos de Deus. Dessa hora em diante somos filhos de Deus. Repito: ndo hd nenhum meio de comegar a vida crista exceto através da porta do nascimento espiritual, do mes- mo modo como ndo ha meio algum de comegar a vida fi- sica exceto através da porta do nascimento fisico. Contudo, havendo dito isso sobre 0 comego da vida 10 crista, precisamos compreender que, embora 0 novo nas- cimento seja necessdrio como inicio, é apenas 0 inycio. Temos que evitar 0 pensamento de que, porque aceitamos a Cristo como Salvador e, portanto,somos cristdos, isso é tudo o que hd na vida crista. Num sentido, o nascimento ffsico é a parte mais importante de nossa vida fisica, por- que enquanto nao nascemos nfo vivemos no mundo exter- no. Todavia, em outro sentido, é 0 aspecto menos impor- tante de nossa vida, porque ¢ s6 o comeco, ficando logo no passado. Depois do nascimento, o importante é que nossa vida se desenvolva em todas as suas relagGes, poten- cialidades e capacidades. Dé-se exatamente a mesma coisa com 0 novo nascimento. Em certo sentido, o novo nasci- mento é a coisa mais importante em nossa vida espiritual, porque enquanto nao nascemos de novo nao somos cris- tdos. Noutro sentido, porém, depois de nos havermos tor- nado cristaos, isso tem que ser reduzido a suas proporcdes reais, posto que nao devemos ficar com a mente posta sempre em nosso novo nascimento apenas. Depois de nas- cermos espiritualmente, o mais importante é viver. Hé um novo nascimento e, depois, ha a vida crist@ para ser vivida. Esta ¢ a area da santificagdo, a partir do novo nascimento, através da presente vida, até que Jesus venha ou até que morramos. Quando uma pessoa nascida de novo pergunta: “Que farei agora? ", com freqiiéncia recebe em resposta uma lista de coisas, em geral de natureza limitada e primaria- mente negativa. Freqiientemente é-lhe dada a idéia de que se ela nao praticar essa série de coisas (qualquer que seja, relacionada ao pafs, ao lugar e ao tempo especificos em que a pessoa vive), serd uma pessoa espiritual. Nao é assim. A verdadeira vida cristé, a verdadeira espirituali- dade, néo é meramente um nao-fazer negativista de qualquer pequena lista de coisas. Mesmo que a lista come- ce sendo uma relacdo deveras excelente de coisas das quais é bom acautelar-nos em determinada condicio histérica, precisamos salientar que a vida crista, a vida espiritual auténtica, é mais do que abster-nos de alguma lista exter- na de tabus, de modo mecanico. Porque isto é verdade, quase sempre se forma outro ll grupo de cristdos que se levanta e se pGe a trabalhar con- tra as listas de tabus. Assim, ha’a tendéncia que favorece © surgimento de contenda nos circulos crist@os entre os que adotam certa lista de tabus e os que, achando nisso alguma coisa errada, dizem: “Fora com todos os tabus, fora com todas as listas de proibigdes!”. Ambos esses grupos podem estar certos ou errados, dependendo de como abordam a matéria. Fiquei impressionado com isto numa noite de sabado em “L’Abri”, durante uma de nossas segGes de discussdes. Naquela noite especifica, todos os presentes eram cristaos, muitos deles pertencentes a grupos de regides onde as tais “‘listas” eram muito acentuadas. Comegaram a falar contra o uso de tabus. A principio, ao ouvi-los, eu bem que con- cordei com eles, na diregao que seguiam. Mas, depois de ouvi-los um pouco mais sobre isso, e ao falarem contra os tabus predominantes em suas terras, ficou bem claro para mim que 0 que eles queriam era simplesmente poder pra- ticar as coisas proibidas pelos tabus. O que de fato que- riam era uma vida cristd mais frouxa. Mas precisamos entender que, ao eliminar essas listas, ao sentir as limita- gGes da mentalidade de “listas” de proibigdes, é preciso que nds nao o fagamos s6 para podermos ter vida mais folgada: é preciso haver razdo mais profunda. E por isso que eu acho que ambas as partes dos que fazem estas discuss6es podem estar certas e ambas as partes podem estar erradas. Nao alcancamos a verdadeira espiritualidade, a vida crista verdadeira, apenas guardando uma lista res- tritiva. Tao pouco a alcancaremos simplesmente rejeitando a lista para entao encolher os ombros e levar vida licencio- sa. Se nos pusermos a considerar coisas externas com vis- tas 4 vida espiritual auténtica, colocamo-nos face a face, ndo com um pequeno cédigo de usos e costumes, mas com 0 conjunto global dos Dez Mandamentos e todos os outros mandamentos de Deus. Em outras palavras, se eu vejo a lista como um muro, e digo que ele € trivial, morto e barato, e jogo fora o muro, o que acontece em seguida nao é que eu fico face a face com algo que é mais frouxo; defronto-me, sim, com todos os Dez Mandamentos e com 12 tudo que eles abrangem. Também vejo diante de mim aquilo que podemos chamar de Lei do Amor ~— 0 fato de que devo amar a Deus e a meus semelhantes. | Na Carta aos Romanos, capitulo 14, versiculo 15, le- mos: “‘Se por causa da comida o teu irmio se entristece, j4 ndo andas segundo o amor fraternal. Por causa da tua comida nao fagas perecer aquele a favor de quem Cristo morreu”’. Esta é a lei de Deus. Num sentido bem real, nao ha liberdade alguma aqui. E uma declaragdo em termos abso- lutos de que néstemos que praticar isto. Sem divida nés no podemos ser salvos por praticd-lo gracas as nossas prdprias forgas, e que nenhum de nds o pratica perfeita- mente nesta existéncia. Contudo, é um imperativo. E o mandamento absoluto de Deus. O mesmo se verifica em 1 Corintios 8.12,13:‘‘E deste modo, pecando contra os irmdos, golpeando-thes a consciéncia fraca, 6 contra Cristo que pecais. E por isso, se a comida serve de escandalo a meu irmao, nunca mais comerei carne, para que nao ve- nha a escandalizé-lo”. Portanto, quando pego o muro que é uma lista de restrigdes arcaicas e digo que isto é mui- to superficial e o ponho de lado, eu preciso saber bem 0 que estou fazendo. Ndo me confronta um conceito liber- tino; confronta-me o conjunto global dos Dez Mandamen- tos e da Lei do Amor. Deste modo, mesmo que estejamos tratando sé de mandamentos externos, ndo nos movemos para uma vida mais frouxa; movemo-nos para alguma coi- sa muito mais profunda e que nos examina o fundo do coragdo. Na verdade, quando agimos honestamente em nossa luta diante de Deus, com muita freqtiéncia vere- mos que estamos observando em nossa conduta ao menos alguns dos tabus dessas listas. Aprofundando-nos mais todavia, perceberemos que os observamos por uma razdo completamente diferente. Curiosamente, giramos em circulo passando por nossa liberdade, passando pelo estudo do ensino mais profundo, e acabamos entendendo que realmente desejamos guardar essas coisas. Mas agora ndo pela mesma razdo — qual seja a da pressdo social. Ja nao se trata de apegar-nos a uma lista de restrigdes s6 pa- ra que os cristaos pensem bem de nos. 13 Contudo, chega a ocasido em que a vida cristd e a ver- dadeira espiritualidade nao devem ser consideradas como exiernas, mas sim como internas. O climax do Decdlogo éc Décimo Mandamento: ‘‘Nao cobigards a casa do teu préximo. Nao cobicards a mulher do teu préximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertenga ao teu proximo” (Exodo 20.17). O mandamento que ordena nao cobicar refere-se a uma coisa inteiramente interna. Pela propria natureza do caso, cobigar jamais € uma coisa externa. E fator que nos chama a atencdo que este é o ultimo man- damento que Deus nos dé nos Dez Mandamentos, consti- tuindo assim o cerne de toda a matéria. O ponto final do assunto é que chegamos a uma situacdo interna ¢ nao a uma situagéo meramente externa. A verdade é que nds quebramos este ultimo mandamento — 0 de nao cobigar — antes de quebrarmos qualquer outro, Toda vez que que- bramos um dos outros mandamentos de Deus, significa que j4 quebramos este antes, cobigando algo. Significa igualmente que toda vez que quebramos um dos outros mandamentos, quebramos o ultimo também. Desta ma- neira, nao importa qual dos Dez Mandamentos vocé que- bre, vocé quebra dois: aquele mesmo, ¢ este mandamento: “Nao cobicards”. Este faz o papel de cubo da roda. Em Romanos 7.7-9, Paulo estabelece com bastante cla- reza que este foi o mandamento que Ihe deu a nogao de que era pecador: “Que diremos pois? E a lei pecado? De modo nenhum. Mas eu n4o teria conhecido o pecado, se a lei nao dissera: Nao cobicards. Mas 0 pecado, tomando ocasido pelo mandamento, despertou em mim toda sorte de concupiscéncia; porque sem lei esta morto 0 pecado. Outrora, sem a lei, eu vivia; mas, sobrevindo o preceito, reviveu 0 pecado, e eu morri”. Pois bem, ele ndo quis dizer que era perfeito antes; isto esta claro no que Paulo disse: O que Paulo est4 afirmando aqui é: “Eu nao sabia que eu era um pecador; eu pensava que ia sair-me bem porque guardava essas prdticas externas e ia indo muitissimo bem, comparado com outra gente”. O padrao de que se servia para se medir era a forma exte- tiorizada dos mandamentos que os judeus tinham em sua 14 tradigdo. Mas, quando abriu os Dez Mandamentos e leu que o Ultimo deles era: “nao cobigards”, viu que era peca- dor. Quando aconteceu isso? Ele nfo o revela, mas eu pessoalmente acho que Deus estivera trabalhando no inti- mo dele, fazendo-o sentir esta lacuna antes mesmo de sua experiéncia no caminho de Damasco — que ele ja se ti- nha visto como pecador e ficara perturbado a luz do Dé- cimo Mandamento — e entao Cristo lhe falou. Cobigar € 0 iado negativo dos mandamentos positivos: “Amards o Senhor teu Deus de todo o teu coragao, de to- da a tua alma, e de todo o teu entendimento. ...Amaras « teu proximo como a ti mesmo”. (Mateus 22.37,39). O amor é interno, nao externo. Pode haver manifesta- ges externas, mas o amor mesmo serd sempre um fator interno. A cobica é sempre interna; a manifestacdo exter- na é um resultado dela. Precisamos entender que amar a Deus de todo 0 coragao, mente e alma ndo é exercer cobi- ga contra Deus; e amar as pessoas, amar o proximo como ands mesmos, nao é exercer cobiga contra o homem. Quando nao amo ao Senhor, como devo, estou tendo co- biga ofensiva ao Senhor. E quando nao amo a meu proxi- mo como devo amé-lo, o que tenho é cobica em prejuizo dele. “Nao cobigards” é 0 mandamento interno que revela ao homem que se considera moral que ele precisa de um Salvador. O tipo médio de tal homem “‘morai”’, que vive comparando-se com outras pessoas e comparando-se com listas de regras, alias relativamente faceis (ainda quando lhe causem alguma dor e dificuldade), pode sentir, como Paulo antes de sua conversdo, que vai indo muito bem. Mas, de repente, ao deparar com o mandamento interno — nao cobigards — sente-se compelido a cair de joelhos. E precisamente isto que acontece conosco, cristdos. Este conceito 6 fundamental, se é que pretendemos ter com- preensao ou pratica real da verdadeira vida crista, da vida espititual auténtica. Posso tomar listas de regras prepara- das pelos homens, posso dar a aparéncia de que as cumpro, sem que, para fazé-lo, meu coracdo seja humilhado. Mas quando sou atingido pelo aspecto interior dos Dez Man- damentos, quando sou alcancado pelo aspecto interno da 15 Lei do Amor, se ougo, ainda que pobremente, a diregao dada pelo Espirito Santo, nao poderei mais sentir orgulho. Sinto-me impulsionado a cair de joelhos. Nesta existéncia eu nunca posso dizer: ““Cheguei; esté concluido; olhem-me — sou santo”. Quando falamos da vida crista ou verdadei- ra espiritualidade, quando falamos sobre a libertagao dos lagos do pecado, falamos da luta que temos que travar com os problemas intimos relacionados com nao ter co- bicga ofensiva a Deus e aos homens, relacionados com amar a Deus e aos homens, e relacionados com 0 nfo nos limitarmos a um mero sistema de prdticas externas. Isto faz logo levantar-se uma pergunta: Isto significa que qualquer desejo é cobiga e, portanto, ¢ pecaminoso? A Biblia ensina claramente que a coisa nao é assim. Nem todo desejo é pecado. Pode-se, entao, perguntar: Quando é que o desejo propriamente dito passa a ser cobica? Creio que a resposta pode ser simplesmente esta: O dese- jo torna-se pecado quando deixa de incluir o amor a Deus ou aos nossos semelhantes. Além disso, penso que ha dois testes praticos para ver se estamos exercendo a cobiga contra Deus ou contra os homens: Primeiro: devo amar a Deus 0 bastante para sentir-me satisfeito; segundo: devo amar o préximo o suficiente para nao sentir inveja. Vejamos aonde nos levam esses dois testes. Primeiro, com relacao a Deus: Devo amar a Deus 0 su- ficiente para sentir-me satisfeito. Certo, porque, doutro modo, mesmo os nossos desejos naturais e legitimos le- vam-nos a revoltar-nos contra Deus. Deus criou-nos com a capacidade de termos desejos validos, mas, se nao ha um verdadeiro contentamento de minha parte, na medida em que este falta eu estou em rebeliao contra Deus e, eviden- temente, a rebelido ocupa lugar central no problema do pecado. Quando me falta o vero contentamento, de duas uma: ou esqueci que Deus é Deus, ou deixei de ser-lhe submisso. Estamos falando do teste pratico que nos ajuda a discemir se estamos tendo cobica ofensiva a Deus, ov nao. Uma disposigao serena e um cora¢ao que freme em ages de gracas a todo e qualquer momento € 0 teste real que serve para demonstrar até que ponto amamos a Deus naquele momento. Gostaria de dar ao leitor algumas pala- 16 vras contundentes extrafdas da Biblia, nao suceda nos esquegamos que a Escritura é 0 padrao divino para o cris- tao. E af vao: “Mas a impudicfcia e toda sorte de impure- zas, ou cobiga, nem sequer se nomeie entre vos, como con- vém a santos; nem conversac4o torpe, nem palavras vas, ou chocarrices, cousas essas inconvenientes, antes pelo contrdrio, agdes de graga”. (Efésios 5.3,4). Note-se que as “‘agdes de graga” contrapdem-se a toda a infeliz lista anterior. Em Efésios 5.20 a linguagem € ain- da mais forte: “Dando sempre gragas por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo”. Que é que abrange esse “‘tudo” da passagem, pelo que devemos dar gragas? Expressao semelhante ocorre também em Ro- manos 8.28: “Sabemos que todas as cousas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que s4o cha- mados segundo o seu propésito”. Nao se trata de uma espécie de magica — o Deus pessoal e infinito promete que Ele fard todas as coisas cooperarem para o bem dos cristaos. O que a Palavra de Deus me diz af é que, se eu sou cristéo de verdade, “todas as coisas” cooperam para 0 bem em meu ser e em minha vida. Nao fala de todas as coisas menos a tristeza; nem de todas as coisas menos a luta. Aplicamos as palavras “todas as coisas” de Romanos 8.28 a todas as coisas. Honramos de fato a Deus e 4 obra consumada por Cristo quando tragamos um circulo em torno de todo; todas as coisas cooperam para o bem da- queles que amam a Deus, daqueles que sao chamados se- gundo o Seu propésito. Mas, na medida em que tracamos — e fazemos bem — 0 “todas as coisas’? de Romanos 8.28 em volta de todas as coisas mesmo, vai envolvido nisto o “tudo” de Efésios 5.20: “Dando sempre gracas por tudo a nosso Deus e Pai. ...” Nao os podemos separar. O “tudo” de Efésios 5.20 € tao amplo como 0 “todas as coisas” de Romanos 8.28. E mister dar gracas por todas as coisas. Este é 0 padrao divino. Em Filipenses também se faz referéncia a isto. No ca- pitulo 4, versiculo 6, lemos: “‘Nao andeis ansiosos de cou- sa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas diante de Deus as vossas peticdes, pela oragao e pela stiplica, com 17 agGes de graga’”’. “No andeis ansiosos” aqui significa: Em nada vos dei- xeis dominar pela preocupacao e pela ansiedade, seja qual for 0 assunto; antes, vede que, pela oracdo e pela stiplica, com agGes de graca, sejam conhecidas diante de Deus as vossas petic¢des. E certo que essa é uma afirmagdo que tem em vista contzastar a oragdo com a ansiedade, mas ao mesmo tempo inclui a ordem expressa de dar gracas a Deus, “em tudo”, durante a oragao. Note-se também Colossenses 2.7: “Nele radicados e edificados, e confirmados na fé, tal como fostes instruf- dos, crescendo em agdes de graca”. Observe-se que este versiculo estd ligado ao anterior (v. 6): “Ora, como rece- bestes a Cristo Jesus, o Senhor, assim andai nele”’. Que é que significa andar em Cristo? Significa estar “‘nele radi- cados e edificados, e confirmados na fé” (e h4 muitos intérpretes que pensam que isto se da pela fé, sendo a fé o instrumento pelo qual andamos em Cristo), “crescendo em acdes de graca”. Em seguida vemos em Colossenses 3.15: “Seja a paz de Cristo o drbitro em vossos corag6es, 4 qual, também, fos- tes chamados em um sé corpo; e sede agradecidos”. No versiculo 17:“E tudo o que fizerdes, sejam em palavras, seja em aco, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por Ele gracas a Deus Pai”. E retornando a Colossenses, agora 4.2, lemos: “‘Perseverai na oragao, vigiando com agdes de graca”’. Estas palavras acerca das acGes de graca sfo duras, em certo sentido. Sao belas, mas nao nos permitem escapar desta verdade: a expressdo “todas as coisas” inclui todas as coisas mesmo. Em 1 Tessalonicenses 5.8 encontramos: “Em tudo dai gracas, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco”. Estas palavras ligam-se diretamente as do versiculo 19: “Nao apagueis o Espirito”. Certamente uma coisa é clara — Deus nos diz: em tudo dai gracas. Creio que podemos ver tudo isto em sua correta pers- pectiva se voltamos a Romanos 1.21: ‘‘Portanto, tendo conhecimento de Deus, nao o glorificaram como Deus, nem lhe deram gracas, antes se tornaram nulos em seus 18 pr6prios raciocinios, obscurecendo-se-lhes 0 coragdo insen- sato”. O ponto central esta nisto: nao foram agradecidos. Em vez de darem gracas, eles ‘“‘se tornaram nulos em seus pr6prios raciocinios, obscurecendo-se-lhes 0 coragao in- sensato”. Declarando-se sdbios, tornaram-se loucos. O principio da rebeliao dos homens contra Deus era, e ¢, a falta de um coracdo agradecido. Seus coragdes nao palpi- tavam apropriadamente, ndo eram agradecidos — 0 que os teria levado a ver-se como criaturas diante do Criador e a inclinar-se, nao s6 ajoelhando, mas dobrando-se também Nos seus coragées obstinados. Rebelido é a recusa delibe- rada a reconhecer-se como criatura diante do Criador a ponto de ser-lhe agradecido. O amor tem de fazer-se acompanhar de um “Obrigado!”, ndo de modo superficial ou “oficial”, mas sendo mesmo agradecido a Deus e di- zendo-lhe de fato -- em alta voz ou no pensamento — “Obrigado!”. Como veremos mais tarde, nao se confunda o ensino dado acima com a idéia de que devemos deixar de lutar contra as crueldades do mundo como ele é agora; 0 que queremos dizer é que devemos ter coragao agrade- cido ao Deus vivo e verdadeiro. Duas coisas estado diretamente envolvidas aqui — se é que devamos examinar isto do ponto de vista da estrutura crista, e ndo de uma estrutura nao crista. A primeira é que como cristaos dizemos que vivemos num universo pessoal, no sentido de que ele foi criado por win Deus pessoal. Ago- ta que aceitamos a Cristo como nosso Salvador, Deus Pai é nosso Pai. Quando dizemos que vivemos num universo pessoal e que Deus Pai é nosso Pai, na medida em que nossa atitude é inferior 4 de confianga negamos aquilo que afirmamos crer. Afirmamos que como cristaos tomamos por escolha o lugar de criaturas diante do Criador, mas quando mostramos falta de confianga, demonstramos que, naquele momento, na prdtica, nado fizemos de fato aque- la escolha. A segunda coisa que temos de entender a fim de com- preendermos 0 que é um coracdo satisfeito, numa estru- tura cristé em vez de numa estrutura ndo cristd, é ilustra- do pelo dilema de Camus em “A Peste”’. 19 Como cristaos dizemos que vivemos num universo so- brenatural e que ha uma luta — desde a queda do homem — que esta luta pertence tanto ao mundo visivel como ao mundo invisivel. Isto é o que afirmamos crer; insisti- mos nisto contra os naturalistas e contra os anti-sobrena- turalistas. Se de fato cremos nisto, primeiro podemos estar satisfeitos sem deixar de lutar contra o mal, e segun- do, por certo que Deus tem direito de colocar-nos, como crist@os, na posicdo que lhe parece bem, na batalha. Na compreensao crista do contentamento, precisamos ver 0 contentamento em relacdo a estas coisas. Suma- riando, hd um Deus pessoal. Uma vez que eu tenha acei- tado a Cristo como meu Salvador, Deus é meu Pai. Certamente, ent@o, quando me falta confianga, estou negando o que digo que creio. Ao mesmo tempo, digo que hd um combate no universo, e Deus é Deus. Ora, se me falta confianga, o que realmente estou fazendo é negar na prdtica que Ele, como meu Deus, tem direito de usar- me onde e como queira na luta espiritual travada no mun- do visivel e no mundo invisivel. Confianga e contenta- mento pertencem 4 estrutura crista, mas, se esta apresenta formulagao adequada, 0 contentamento é profundamente importante. Se se vai o contentamento, e se as ages de graca vao-se, nao amamos a Deus como devemos amé-lo, e 0 desejo le- gitimo jd se transformou em cobiga ofensiva a Deus. Este territério interno é 0 primeiro lugar em que se dé a perda da vida espiritual auténtica. O externo é sempre o resul- tado disso. O segundo teste que serve para demonstrar quando o desejo legitimo torna-se cobica relaciona-se com nosso de- ver de amar a nossos semelhantes o suficiente para nado termos inveja. E nao se trata de invejar a posse de dinhei- ro apenas, mas, sim, de todo tipo de inveja. Por exemplo, a inveja pode ser de dons espirituais. E facil submeter isto a prova. Os desejos naturais deixam de o ser e se tornam cobiga em detrimento doutras criaturas de nossa espécie, contra um companheiro na existéncia humana, quando temos mentalidade que nos faz sentir secreto prazer pela desventura dele. Se alguém possui algo e o perde, alegra- 20 mo-nos no intimo? Sua perda causa-nos secreta satisfa- ¢a0? Nao responda muito depressa dizendo que nunca sentiu isso porque estard se mostrando mentiroso. Todos precisamos admitir que, mesmo quando estamos progre- dindo na vida crista, ainda nessas dreas sobre as quais afir- mamos que estamos ansiosos por ver mais viva a [greja de Jesus Cristo em nossa geragao, muitas vezes sentimos essa secreta satisfacdo pelo prejuizo sofrido por outras pessoas, mesmo quando se trata de prejuizo sofrido por irmaos em Cristo. Pois bem, se essa mentalidade toma conta de mim de algum modo, posso estar certo de que meus desejos naturais e vdlidos jd passaram a ser cobiga. No intimo é cobiga que tenho, e ndo amo meus semelhantes como de- vo. A cobica no {ntimo — que equivale 4 falta de amor ao proximo — logo tende a manifestar-se no mundo externo. Nao pode ficar guardada no ser interior de modo comple- to. Isto ocorre em diversos graus. Quando sinto uma tris- teza pecaminosa pelo fato de outros possuirem o que nao possuo, e dou asa a que essa tristeza cresga, rapidamente me fard malquerer as préprias pessoas envolvidas. Decerto todos temos sentido isto. Como o Espirito Santo faz que sejamos cada vez mais honestos conosco mesmos, temos de reconhecer que freqiientemente sentimos aversa0 por alguém porque tivéramos um desejo pecaminoso de algu- ma coisa que lhe pertence. Mais do que isto, se fico con- tente pensando que ele poderia sofrer alguma perda, o proximo passo no mundo externo estard em movimento, quer sutil, quer mais abertamente, no sentido de fazé-lo sofrer aquela perda, seja mentindo sobre ele, seja rouban- do-lhe algo ou seja de que modo for. Em 1 Corintios 10.23,24, a Palavra de Deus me diz que o amor deverd levar-me a procurar 0 interesse do proximo endo somente o meu. “Todas as cousas sao Ifcitas, mas nem todas convém; todas sao licitas, mas nem todas edi- ficam. Ninguém busque o seu préprio interesse; e, sim, 0 de outrem”. A mesma verdade transparece em 1 Corintios 13.4,5:“O amor é paciente, é benigno, 0 amor nao arde em citimes, ndo se ufana, nao se ensoberbece, no se con- duz inconvenientemente, nao procura Os seus interesses...” " 21 Quando lemos estas palavras e compreendemos que a falha nisso é cobica, é falta de amor, cada um de nds tem que cair de joelhos, como Paulo fez quando abriu os olhos pata o mandamento que proibe a cobica; aquela atitude destréi toda e qualquer idéia superficial da vida crista. Estas sao as dreas da vida espiritual auténtica. Estas sfo as Areas da verdadeira vida crista. Nao so basicamente extemas; sao internas, sao profundas; vao ao fundo, pe- netrando os recantos de nossa vida —aqueles recantos que nds gostamos de esconder de nés mesmos. A drea interna é o primeiro terreno que se perde da verdadeira vida crista, da vida espiritual auténtica; 0 ato pecaminoso externo é conseqiiéncia daquela perda. Se nos apegarmos firmemente a esta verdade — que o interno é 0 basico e que o externo sempre ¢ simples resultado ~ teremos lo- grado atingir um tremendo ponto de partida. Todavia, a genuina espiritualidade, a vida crista, esta um passo além. Suposto que tenhamos deixado atrds 0 conceito de uma pequena e limitada lista de deveres e res- trigdes, e que tenhamos avancado para o conjunto global dos Dez Mandamentos e da Lei do Amor; supondo-se também que tenhamos passado do externo para o inter- no — ainda af, em ambos os casos tratamos principalmen- te daquilo que é negativo. Mas a vida espiritual auténtica, a vida cristé genuina, é mais do que certo conceito do ne- gativo, ainda que profundo e em termos apropriados. A verdadeira espiritualidade, a vida crista verdadeira, é final e cabalmente positiva. Tocamos nisto quando citamos Mateus 22.37,39: “Amards o Senhor teu Deus de todo o teu coragdo, de toda a tua alma, e de todo o teu entendi- mento. ... Amards 0 teu préximo como a ti mesmo”. Salientamos especialmente, porém, que a vida crista ge- nuina ndo se restringe ao negativo, nem mesmo o negati- vo em termos préprios e sondado nos mais profundos dominios do nosso ser. Hd realidades biblicas em termos negativos; também as ha em termos positivos. A medida que prosseguimos neste estudo, trataremos mais amplamente das passagens que damos a seguir; con- sideremo-las ligeiramente neste estagio. Romanos 6.4a. apresenta uma realidade negativa: 22 “Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo”. E uma experiéncia negativa. Fomos sepultados com ele na morte pelo batismo. Coisa semelhante encontramos na primeira parte do versfculo 6: “Sabendo isto, que foi cru- cificado com ele o nosso velho homem”. Quando aceitei a Cristo como o meu Salvador, quando Deus como Juiz de- clarou-me justificado, estas coisas tornaram-se legalmente verdadeiras. Na vida crista, minha vocagdo é para vé-las tornar-se reais em minha vida prdtica. A mesma verdade, com a mesma énfase negativa, vemos em Gdlatas 2.19b.: “Estou crucificado com Cristo”. Estas énfases negativas jamais deverao ser subestima- das, quer na justificagdo, quer na vida crist4; caso contra- rio, nao seremos capazes de compreender as verdades po- sitivas que anotamos em seguida. Eis o que se nos diz em Galatas 6.14: “Mas longe esteja de mim gloriar-me, senio na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo estd crucificado para mim, e eu para o mundo”. Esta é uma énfase negativa tremendamente forte. E nao é para ser recebida como simples proposigao tedrica; é (como veremos adiante) para ser praticada, com a gracga de Deus. Portanto, hd lugar para 0 aspecto negativo legitimo e bi- blico. Mas, vamos avante e notemos que a vida crista, a verdadeira espiritualidade, néo para no aspecto negativo. Ha também 0 positivo. Assim é que em Gdlatas 2.19 lemos de novo: “Estou crucificado com Cristo”. Depois hd uma pausa entre essa parte do versiculo e o versiculo seguinte, pausa que ressal- tei na Biblia que eu uso, sublinhando essa parte com linha dupla. Deste modo, a pausa fica bem evidente para mim, mesmo quando fago uma leitura rdpida. “Estou crucifica- do com Cristo (pausa) Jogo, jd n@o sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que agora tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim”. Desta maneira, hé af um elemento negativo,mas, ele desliza rapidamente para um elemento positivo. Parar no primeiro é perder o tema todo. A verda- deira vida crista ndo é uma vida externa ov mental fundada em (princfpios) negativos bdsicos; nao é odiar a vida, como tendemos a fazer quando sofremos depressfo ou outros 23 problemas psicoldgicos. A énfase negativa crista nao é uma énfase negativa niilista; hd uma énfase negativa bibli- ca legitima; mas a vida crista nao para afH4 uma verda- deira vida no presente como também no futuro. Na carta aos Romanos sentimos a mesma énfase (6:4): “Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo, para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela gloria do Pai, assim também andemos nés em novida- de de vida”. Este 6 o modo como devemos ler a parte final do versiculo: “para que andemos em novidade de vida’. E isto. E expressdo positiva. Hd possibilidade de andar em no- vidade de vida na presente existéncia, aqui e agora, entre o novo nascimento e a morte, ou entre o novo nascimento e a segunda vinda de Jesus. Em Romanos 6.6 é a mesma coisa: “Sabendo isto, que foi crucificado com ele 0 nosso velho homem, para que 0 corpo do pecado seja destrufdo, e nao sirvamos o pecado como escravos”’. Assim, morremos com Cristo mas ressuscitamos com Cristo. Essa é a énfase. A morte de Cristo é um fato histérico ocorrido no passa- do, e nds ressuscitaremos dos mortos na histéria futura; mas é preciso que haja uma demonstracao na histéria atual, agora, antes de nossa ressurreigao futura. Como ilustragdo, lemos a faceta negativa em Gdlatas 5.15: “Se vos, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede que nao sejais mutuamente destrufdos”. Paulo estd falan-- do de cristdos, Ar esté 0 lado negativo, Mas no versiculo 14 encontramos a énfase positiva: “Porque toda a lei se cumpre em um 86 preceito a saber: Amards 0 teu préxi- mo como a ti mesmo”. Também vemos 0 aspecto positivo nos versiculos 22 e 23 do mesmo capitulo: “Mas o fruto do Espirito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benigni- dade, bondade, fidelidade, mansidado, dominio préprio. Contra estas cousas nao hd lei”. Desta maneira 0 contexto leva-nos do negativo para 0 positivo em nossas considera- ¢Ges da vida crista. Resumindo, pois, o contetido deste capitulo — que é uma introdugio ao restante do livro: 1. A vida espiritual auténtica, a verdadeira vida crista, nao significa apenas que nascemos de novo. Tem de iniciar- se ai, mas significa muito mais. Nem significa apenas 24 que vamos estar no Céu. Significa isso e muito mais do que isso. A vida cristd genutna, a vida espiritual au- téntica na vida presente, significa mais do que sermos justificados e mais do que sabermos que estamos a caminho do Céu. 2. A vida espiritual auténtica nao consiste propriamente no desejo de livrar-nos da carga de tabus para vivermos vida mais facil e mais frouxa. Nosso desejo deve ser de vida mais profunda. E quando comego a pensar nisso, a Biblia me apresenta o conjunto global dos Dez Manda- mentos e da Lei do Amor. 3. A vida espiritual auténtica, a verdadeira vida crista, nao é apenas externa, mas interna; nao é cobicar em pre- juizo de Deus e dos homens. 4. A vida espiritual auténtica é muito mais: é algo positivo. Realidade interior positiva e realidade exterior positiva resultante daquela. A realidade interior deve ser positi- va, e nao negativa; e entao, fluindo da realidade interna positiva, deve surgir sua manifestacao exterior. Nao é s6 0 estarmos mortos para certas coisas, mas sim, que devemos amar a Deus, viver para Ele e manter co- munh@o com Ele neste presente momento da historia. E devemos amar os nossos semelhantes, viver como se- res humanos para os seres humanos, e manter comuni- cacao com eles em nivel verdadeiramente pessoal, nes- te presente momento da histéria. Quando falo da vida crista, ou da libertagdo dos lagos do pecado, ou da vida espiritual auténtica, os quatro pon- tos acima enunciados constituem aquilo que diz a Biblia que nds devemos pretender. Menos que isso é menospre- zar Deus — é menosprezar Aquele que criou o mundo, é menosprezar Aquele que morreu na cruz. Isto é o que precisamos ter em mente ao comecar este estudo. Do contrdrio, nem vale a pena comegar a falar da liberdade vivencial dos lagos do pecado, ou da realidade vivencial da vida crista, ou da verdadeira espiritualidade. Se isto nfo estd em nossas mentes, ao menos em alguma po- bre compreensdo e ao menos em alguma pobre aspira- ¢4o, € melhor parar por aqui. Qualquer outra coisa é me- nosprezar a Deus, e, menosprezar a Deus é pecado. 25 2 A Centralidade da Morte Damos comec¢o aqui ao primeiro dos trés capitulos estreitamente interrelacionados em que discutimos as con- sideragGes basicas da vida crista, da vida espiritual auténti- ca. 34 fizemos alusdo aos aspectos negativo e positivo da vida crista. Retornaremos agora as consideracGes negativas. Estas podem resumir-se com as palavras de quatro versi- culos da Biblia: Romanos 6.4a: ““Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo”’. Romanos 6.6a: “Sabendo isto, que foi crucificado com ele o nosso velho homem”. Galatas 2.19b: “Estou crucificado com Cristo”. Gdlatas 6.14: “Mas longe esteja de mim gloriar-me, sendo na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo esta crucifi- cado para mim, e eu para o mundo”. Nestas afirmacgGes vemos que, como cristdos, morre- mos, a vista de Deus, com Cristo quando 0 aceitamos co- mo Salvador. Mas hd mais do que isto. HA também — e com énfase — a exigéncia de que na prdtica morramos dia- riamente. Este é 0 aspecto negativo que mencionamos no Capitulo 1 € que vamos desenvolver mais amplamente. Como ja dissemos, a Biblia dé-nos de fato agudissimas determinagSes negativas — das quais nao podemos fazer abstragdo, porque afetam profundamente nossa vida normal, Vimos que a Palavra é clara e definitiva em afirmar que em todas as coisas, incluindo as duras e desa- gradaveis, devemos manifestar contentamento e dizer 26 “Obrigado!” a Deus. Trata-se ar do aspecto negativo, e é negativo mesmo. E o negativo de dizer “no” ao dominio das coisas e do ego. Vemos também que a Biblia manda-nos amar nossos semelhantes, nado s6 em sentido romantico e idealizado, mas amé-los o bastante para nao sentirmos inveja. Aqui outra vez seria falso ndo expor que esta expressdo é insignificante e puramente romantica, nado passa de utopia no mav sentido, a menos que entendamos que isto envol- ve também um forte aspecto negativo. Se tomamos esta atitude acertada, significa que estamos dizendo “nao” em certas esferas muito definidas a certas coisas, e estamos dizendo “nao” a nés mesmos. De novo precisamos dizer que isto no é bem alguma coisa que possa ser tomada romanticamente, para instigar alguma espécie de emogdo dentro de nés. E uma palavra fortemente negativa. Devemos estar dispostos a dizer “‘ndo” a nés mesmos e devemos estar dispostos a dizer “nao” a certas coisas, a fim de que o mandamento do amor a Deus e ao préximo tenha significado real. Mesmo naquelas coisas que me sdo licitas e que nio rompem os Dez Mandamentos, nao devo procurar 0 meu préprio interesse, mas sim o de outrem. Ora, quem quer que este- ja pensando honestamente no que estamos dizendo reco- nhecerd neste ponto especifico que esta posico apresen- tada na Escritura parece muito pesada. Quando estamos firmados no circulo da perspectiva da vida comum 4 hu- manidade, e honestamente enfrentamos estes ensinos da Biblia, sentimos que temos que dizer uma destas duas coi- sas: Ou havemos de romantiz4-los, afirmando que na ver- dade visam a dar-nos um sentimento agraddvel, e que algum dia, remoto, no futuro reino de Cristo ou na eter- nidade celestial, terd significacdo prdtica. Ou, se no usa- mos esse recurso mas encaramos o sentido real dessas pa- Javras como a Biblia no-las comunica, havemos de sentir que estamos em situagdo bem dificil. Vocé nado pode ouvir de maneira confortavel esse tipo de passagem bibli- ca, essa arremetida negativa da Palavra de Deus acerca da vida cristé, a menos que vocé lhe dé interpretacg4o roman- tica. E o fato é que isto foi sempre assim, desde a queda 27

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