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Canone e¢ canones: um plural singular Maria Eunice Moreira Pontificia Universidade Catdlica (PUCRS) Harold Bloom abre o prefacio de seu O cAnone ocidental, o mais famoso livro sobre o assunto na contemporaneidade, valorizando o cinone pela relacio que estabelece entre o homem e sua finitude. Ao promover a defesa do cinone em meio a seus colegas norte-americanos e sobretudo aqueles vinculados aos estudos culturais, desvalorizados por Bloom, diz esse que a existéncia do c4none resulta da impossibilidade humana de ler todos os livros disponiveis: Aguele que le, deve escolher, posto que literalmente no hd tempo sufciente para se ler tudo, ainda que nao se fixesse outra coisa na vida, Frente 4 contingéncia humana, em que sabe que seu tempo é limitado, o homem tem de selecionar o que quer ler e, nessa tarefa, ele acaba por organizar o cinone individual. Quando Bloom se refere ao cénone ou quando nés falamos de c4none (ou cinones), estamos tratando especificamente de que entidade? O que entendemos por tal designacio? Para compreender seu sentido, é necessério recuar no tempo e tentar recuperar o significado primeiro da palavra, entre os gregos. Etimologicamente, cinone procede de canon, que designava uma vara ou canudo reto de madeira que os carpinteiros usavam para mensurar o espaco de trabalho. No transcurso do tempo, a regiiinha passou a significar lei ou norma de conduta, abrangendo em seu sentido uma conotagio moral. Quando o termo chegou & 4rea da filosofia, os fildsofos alexandrinos o utilizaram para identificar a lista de obras escolhidas por sua qualidade e empregadas para orientar o uso Tetras n° 26— Lingua ¢ Literatura: Limits ¢ Fronteiras 89 da lingua, consideradas exemplares ou modelares, isto é, dignas de imitasio. No ambito religioso e especialmente no que concerne as Escrituras, a palavra cinone foi empregada a partir do século trés depois de Cristo, embora seja possivel verificar seu uso mais antigo com o sentido de regras ou leis da vida religiosa, chamadas cAnones, para distinguir das regras da vida civil. Do substantivo cdnone, procede 0 adjetivo candnico e o verbo canonizar, que se refere tanto & recepgio de um texto como a identificagio de um homem religioso, considerado como santo ou escolhido. O uso religioso do termo dominou até o século XVI, quando a palavra recuperou seu significado primitivo, voltando a ser utilizada no sentido que lhe atribuiram os fildlogos alexandrinos, isto é, como confecgio de lista dos autores (escritores e oradores) mais significativos para estudo da lingua, sentido com 0 qual ingressou no campo histérico. Nessa retomada, porém, conservou do seu nucleo original pelo menos dois aspectos: 1. 0 cinone pode ser entendido como norma ou regra e, por conseqiiéncia, transforma-se em modelo; 2. 0 cinone expressa-se numa rela¢io ou lista de autores que contém em si a idéia de selegio, uma vez que essas obras destinam-se 20 estudo ou A imitagio. Segundo Harold Bloom, a palavra religiosa cinone converte-se, entio, num processo de eleigio entre textos que competem para sobreviver, ainda que se entenda que essa eleigio possa ser influenciada e realizada por grupos sociais dominantes, instituigdes educativas, tradigdes criticas ou até mesmo por condicionantes individuais. © conceito e a significagio que Bloom atribui a palavra cinone remete a uma questo extremamente significativa no contexto contemporineo, O autor de O cdnone ocidental chama a atengao para o fato de que cinone, hoje, vincula-se de forma estreita e direta com as instituigdes responsdveis por sua subsisténcia e manutengio, Ao contrario da Igreja, que administrava 0 uso e o sentido da palavra, na atualidade a administragio do canone nio esta afeta a apenas uma instituigio, mas nela se envolvem circulos culturais diferenciados. Se a universidade constitui um espaso privilegiado nessa tarefa, outras instdncias atuam diretamente na selegao ¢ preservagio de obras e autores: editoras, grupos sociais comprometidos com a critica literéria; organismos e sociedades literdrias definem suas escolhas, permitindo a entrada de alguns ¢ a retirada ou a nfo aceitagio de outros. Numa outra acepeio do termo, Frank Kermode! afirma que determinados textos obtém, de algum modo, uma certa autorizapio para sua exegese, permanecendo sempre prontos e disponiveis para interminaveis explicagdes. A formagio do canone, nesse caso, nfo se dé através de um trabalho de aceitago dentro de um conjunto severamente limitado de textos dotados de autoridade, mas através de sua introdugZo num coléquio eritico continuado. Seguindo essa argumentagio, as ressonincias histéricas de um texto (sua maior ou menor relago com outros textos), a multiplicagio de seus significados (0 grau de sua polivaléncia), a habilidade com que é introduzido na esfera critica (através de um patrocinador adequado) e a congruéncia de seus possiveis significados e as preocupages atuais dos criticos, todos esses elementos atuam para determinar o grau de interesse que um determinado texto pode suscitar e durante quanto tempo isso persistird. Programa de Pés-Graduagéo em Letras ~ PPGL/UFSM 90 Colocado na discussio da contemporaneidade, em que varios fatores interferem na definigio e construgio do discurso historiografico, a historia da literatura seleciona textos que, no agrupamento de seus semelhantes, vio formando o cénone. Esse, tal qual a formagio discursiva de que se origina (a hist6ria da literatura), altera sua formulacio, transformando seu singular - cdnone ~ num plural - c’nones - mais condizente com as teorias e a proposigdes que norteiam a escrita historiografica. Quantos sio 0s canones? Num texto fundamental para o estudo e a compreensio do cinone, inclusive por sua reiterada citagio na discussio sobre o tema, intitulado Literatura européia e Idade Média e publicado em 1948, Ernst Robert Curtius’ atribui sentidos diferenciados 4 palavra cinone, dependendo do circulo ou do ambiente de onde ela provém. Para Curtius, hd tés tipos de canone: o cénone da igreja, o c’none medieval e os cinones modernos. Privilegiando os dois primeiros, no que se refere & igreja e 4 Biblia, Curtius utiliza cinone como listas literdrias autorizadas, com variagdes de um periodo a outro ou de um pats a outro; no cinone moderno, considera, especialmente, as relagdes entre as obras que a Itélia, Franga, Alemanha e Espanha definiram como cléssicas, tratadas num capitulo sintomaticamente intitulado Classicismo, um termo que depende, nio do grau de apoio autorizado, mas do grau de Romantismo da literatura de cada pais. Em 1979, Alastair Fowler’ escreveu um artigo em que distingue seis tipos de canones que, pelo menos no meio europeu, encontrou ampla aceitacao.‘ Para Fowler, os tipos de cAnone sio os seguintes: 1 — potencial, que compreende teoricamente todo o corpus literdrio escrito, incluindo a literatura oral que ainda disponivel; 2 - acessied, parte do cAnone potencial e disponivel num dado momento; 3 - seltive, o chnone eleito para uma antologia, programa, resenhas e estudos; 4 - ofidal, resultante da mescla das listas anteriores; 5 — pessoal, 0 conjunto de obras que os leitores selecionam, porque conhecem valorizam; 6 ~ critic, construido em fungio das obras selecionadas pelos estudos, artigos e livros de valor critico. A utilidade da taxionomia de Fowler é logo relativizada quando submetida a um exame mais atento, uma vez que para ela acorrem critérios diferenciados; conceitos que carecem de maior explicitagio e categorias que necessitam de maior expansio. A fragilidade da proposta é logo notada, bastando que se pergunte, por exemplo, qual é 0 conceito de literatura que a orienta ou como os individuos compéem seus cinones pessoais, ou até mesmo onde incluir obras e autores que nio respondam ao modelo apresentado. O que ocorre com autores e obras que durante séculos e séculos recebem reconhecimento especial? O que fazer com autores contempordneos que fogem 20 padrio liter4rio e consagram-se, independentemente da academia ou da universidade? Que conhecimento literario é exigido para organizagio do cénone? No canone incluem- se os escritores nacionais ou o conjunto da produgio literaria da humanidade? Inclui-se Aristételes? Cicero? Menciona-se Homero, Milton, Dante? E, na literatura brasileira, comega-se por Bento Teixeira ou por Anchieta? Consideram-se as obras e 0s autores do letras n° 26 — Lingua e Literatura: Limites ¢ Fronteiras 1 periodo anterior 4 independéncia, quando o Brasil vivia o perfodo colonial? E se assim for, relacionam-se os escritores nascidos no Brasil ou os portugueses que aqui viveram e escreveram? Que critérios, entio, orientam a organizagio do cAnone? As varias perguntas que a discussio e a organizagio do c4none suscitam e para as quais as respostas nfo chegam tio prontamente ensinam apenas que é impossivel pensar num canone monolitico e homogéneo. A unidade do canone biblico sucede-se a variedade e diversidade das selegdes dos dias de hoje. Uma geragio conhece e 1é aquilo que a geragio antecedente lhe passou como legado - a impossibilidade de um cinone monolitico e continuo j4 cai por terra nessa simples constatagio. Além disso, em cada época atribuem-se valores distintos aos produtos artisticos, do que resulta que h4 géneros considerados mais canénicos que outros. O poema atravessa a literatura dcidental, desde a Grécia até a América, enquanto a epopéia perde seu valor em favor de outras categorias literdrias. Fatores diversos combinam-se, pois, para determinar a selegdo e a rejeigdo de nomes na organizagio dos cinones hodiernos. Valores politicos e ideoldgicos interferem na construgio das organizagdes estéticas. Por exemplo, é consoante com a atualidade a rejeicio de valores aristocraticos que cedem seu lugar a interesses considerados politicamente corretos, sejam cles ideolégicos (0 marxismo, por exemplo), de grupos (as feministas) ou comportamentais (a literatura dos gays) ou até mesmo de setores marginalizados da sociedade (a literatura produzida pelos presididrios). Ignorados até hd pouco tempo pela ofcialidade, esses produtos, no melhor dos casos, circulavam entre a comunidade dita alternativa, quando, na situagio pior, sequer eram conhecidos e aceitos, desconsiderando-se totalmente sua realidade. Oficiais ou marginais, restritos ou amplos, todos os cinones sio seletivos e, como tal, elitistas. Todo cinone est4 em processo e em permanente atualizagio e falar em abertura do cinone é uma redundancia, pois esse esté aberto, tanto para as exclusdes quanto para as inclus6es. Mas, para que servem os cinones? Que fungio exercem? O que se busca na seleco que o compée? Para que serve o canone? Entendido como uma relagio ou lista que conserva tudo aquilo que foi escrito, © cinone funciona como uma espécie de meméria literaria, uma espécie de Biblioteca de Alexandria que, caso ainda existisse, guardaria todo o patriménio literirio da humanidade. Trazido para o contexto da contemporaneidade, o cnone transforma seu conceito, pasando a ser entendido como uma lista seletiva desse material, na qual importa menos discutir os nomes de autores e de obras que o compéem, do que a fungio que se pode atribuir a essa relagio (ou c’none). Wendell Harris’, num estudo denominado La canonicidad, orienta-se pela idéia de que o cinone se constréi a partir do como determinadas obras sio lidas, ¢ nfo pelas obras em si mesmas. O cfnone, nessa concepgio, é entendido como uma metalinguagem, na qual o que é selecionado nao é 0 produto primeiro (a obra), mas leituras que se acumulam sobre esse objeto. Nessa linha, Harris atribui algumas fungdes ao c4none, assim resumidas: ‘Programa de Pés-Graduagao em Letras PPGL/UFSM 92 1 - Prover modelos e inspiragio - Por diferentes motivos, o cinone conserva seu caréter exemplar, ainda que as regras que nele se busquem mudem de um periodo para outro. Os alexandrinos, por exemplo, elegeram os textos que ofereciam modelos para usos gramaticais; Cicero e Quintiliano acreditavam que um orador precisava de textos que dessem corpo as distintas virtudes sociais; os professores do século passado buscavam nos escritos dos autores as regras para a formacio do pensamento ¢ da retérica de seus alunos. 2 - Transmitir a heranga do pensamento - O cinone carrega em si o conhecimento cultural basico para a interpretagdo dos textos do passado. Em certo sentido, o cinone responde pela cultura literdria e acionar a selecio feita pelo passado é dialogar com esse passado, visando reconhecer nele os valores que o conformaram. 3 - Criar marcos de referéncia - O cinone aproxima a comunidade interpretativa, da mesma forma que uma comunidade de crentes pressupde sua doutrina. Embora o cAnone nfo ofereca os critérios para a selegio das obras, expressa um conjunto de regras ou pontos comuns que sio compartilhados pelo grupo de homens de letras. Ler uma obra canonizada é por assim dizer, reconhecer as regras que declaram o literdrio. 4 ~ Legitimar a teoria - O canone contém textos que podem ser legitimados por diferentes teorias estéticas. Um critico adepto do new criticism, por exemplo, ou do marxismo, provavelmente selecionar4 os textos que, de modo mais adequado, ajustem-se a0 poder da teoria que preconiza. 5 - Oferecer uma perspectiva histérica - Segundo uma concepcio tradicional, os textos literérios proporcionam luz 4 época em que foram escritos, da mesma forma que os fatos histéricos influem na composi¢&o das obras, na selecio de temas ou na interpretagio correta dos textos. As relagdes entre histéria e literatura até ent4o vigentes modificam-se ea mudanga de perspectiva sugere, atualmente, que a busca nio é da histéria que hé no texto, mas como e por que certos textos tém poder num determinado momento histérico. 6 - Pluralizar - Oferecer uma pluralidade, de modo que a lista entendida como c4none apresente um espectro variado da produgio literéria - temas, géneros, grupos, tendéncias, teorias e conceitos. Assim apresentado, um texto somente seria canénico se cumprisse as fungées acima descritas por Wendell Harris. Numa ligio mais simples, pode-se submeter 0 texto a uma velha pela qual deve passar para que se possa declaré-lo canSnica: somente poderd pleitear a condigio de escolhida a obra que, pelo menos, justifique sua releitura. A simplicidade da formula ensina isso: o livro que nunca mais foi lido nao faz jus ao ingresso no mundo dos eleitos. Por que o canone? Algumas razées parecem justificar a resposta: 1-O cdnone possibilita a recuperagio de uma histéria das hist6rias da literatura, isto é, a flise de como se constroem as narrativas que contam a histéria cronolégica do Tetras n° 26— Lingua ¢ Literatura: Limites ¢ Fronteiras 3 florescimento, do apogeu e da decadéncia das literaturas; como se escolhem autores ¢ obras, o que se destaca quando se estudam escolas e movimentos literdrios; que critérios norteiam essas organizagdes; como se distribuem e como delimitam épocas e periodos. 2-O cinone possibilita a legitimagao do discurso sobre a literatura (manifestos, revistas, antologias) e que produz conceitos (estéticos, tedricos, criticos). 3- O canone define as pautas de leitura e interpretagio, porquanto define modelos e estabelece critérios de valoragao. 4-O cinone revela as instituigdes em que se aloja a literatura e seu entremeado jogo de influéncias (universidade, academias) e as relagdes que essas instituigdes estabelecem com © piblico leitor, através de prémios, concursos e organismos sécio-culturais que sustentam os fatos literdrios. O cinone é isso e muito mais, Se 0 c’none existe porque somos mortais - volto agora ao ponto de partidase o cinone existe, porque somos mortais e porque nosso tempo é limitado, devemos escolher aquilo que ainda queremos (e podemos) ler. O cAnone, nesse sentido, é 0 ministro da morte, e seu tema central é a mortalidade ou a imortalidade das obras literiria’ . Se fSssemos literalmente imortais ou se nossa vida dobrasse de duragio quando atingissemos cento quarenta anos toda a discussio sobre 0 assunto seria vi teriamos o direito de abandonar o assunto, mas temos apenas um intervalo de tempo, nessa linha que entendemos por vida, e esse espaco de tempo deve ser preenchido com 08 bons textos que a humanidade produziu. Assim, se nosso tempo é limitado e curto, 0 que devemos reler? Desde Homero até Kafka hd uma viagem de trés milénios, na qual vamos encontrar muitos outros portos que justificam uma revisita. O cinone se compée, portanto, de muitos lugares, de variados espagos (as obras) que, de tempos em tempos, devem ser revisitados, e que, sobretudo, convidam a langar uma nova mirada em busca das descobertas que sé a literatura é capaz de provocar. Notas ' KERMODE, Frank. E/ control institwional de la interpretacién. In: SULLA, Enric (Org.). El canon literario. Madrid: Arco, 1998. p. 91-112. ? CURTIUS, Ernst Robert. Literatura europea y Edad Media latina. México: Fondo de Cultura Econémica, 1948. > FOWLER, Alastair. Géxero y canon literario. In; GARRIDO GALLARDO, M. E. Teoria de los géneros literarios, Madrid: Arco, 1988. p. 95-127. * Wendell Harris, no estudo intitulado La canonicidad, registra textualmente: La propuesta de Alastair Fowler de distinguir seis tipos de cAnones h4 encontrado amplia aceptacién. HARRIS, Wendell. La canonicidad. In: SULLA, Enric (Org.). El canon literario. Madrid: Arco/Libros, 1998. p. 48. 5 HARRIS, Wendell. op. cit. p. 37-60. ° BLOOM, Harold. Elegia af canon, In: SULLA, Enric (Org,). El canon literario. Madrid: Arco/Libros, 1998. p. 208. ” BLOOM, Harold. op. cit. p. 216. ‘Programa de Pés-Graduagio em Letras ~ PPGL/UFSM 94

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