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A CRISE DO PLANEJAMENTO URBANO FiAvto Vitsaca Profesor Titular da Faculdade de Arguitetura ¢ Urbanismo da USP © Brasil, o que se pode chamar de “planejamen- N to urbano” tem dois componentes fundamentais € bastante independentes um do outro. Um € 0 zoncamento e 0 outro, o planejamento representado pela figura do plano diretor e seus equivalentes. Vamos tocar de leve no primeiro ¢ centrar nossa atengio no segundo. Entende-se porzoneamento a legislagio urbanistica que varia no espago urbano, Em sua forma mais “completa”, toda a srea urbana ¢ de expansio urbana & dividida em zonas, sendo que para cada uma a lei define: o coeficien- te maximo de aproveitamento dos terrenos (relagio entre 1 Grea total construfda e a drea do terreno); a taxa méxi- ‘ma de ocupagiio dos terrenos (relagio entre a drea ocupa- da por edificagdes ¢ a drea do terreno); ¢, finalmente, os usos (atividades que vio ser desenvolvidas no terreno ou na edificago) permitidos e proibidos na zona, Esta for- ma completa de zoneamento foi utilizada pioneiramente em Sao Bernardo do Campo (SP), através da Lei 1.183 de 27/9/63) ¢ apenas foi aplicada no municipio de Sao Paulo quase uma década depois, através da Lei 7.805 de V/11/72. Antes disso houve, a partir do final do século passado, vérias formas rudimentares ¢ outras incomple- tas de zoneamento em vérias capitais brasileiras — desde leis proibindo cortigos ou casas operdrias nos centros das cidades, até zoneamento por ruas, zoneamento apenas para algumas partes das cidades (s6 bairros das elasses de alta renda, por exemplo), zoneamento de toda a cidade mas para um uso exclusive (zoneamento industrial, em Sao Paulo), entre outras. zoneamento é a forma mais tradicional de planeja- ‘mento urbano © muitos, até hoje, chamam-no de “plano diretor”; outros 0 consideram parte indispensavel de um plano diretor. Paradoxalmente, entretanto, os planos di- retores elaborados no pafs, em sua absoluta maioria, nfo foram os responsaveis pela implantacio do zoneamento has respectivas cidades. Este tem uma hist6ria prépria, ‘que passa ao largo dos planos diretores, sendo implanta- do através de leis independentes desses planos. Em Sio Paulo, por exemplo, € equivocada a posigéo de Levy (1985:47) quando sugere que o zoneamento implantado na cidade em 1972 teria derivado do PUB (Plano Urba- nistico Basico) e do PDDI (Plano Diretor de Desenvolvi- mento Integrado). Na verdade, 0 “zoneamento comple- to” implantado com a Lei 7.805 deriva antes das vérias transformagGes (ou, se quiserem, “aprimoramentos”) das leis anteriores de zoneamento parcial, que dos planos dos ‘quais os vereadores jamais tiveram conhecimento (PUB) u que aprovaram num perfodo de terrar (PDD. O zoneamento nao esté em crise € nio é dele que trata- mos aqui. Ele tem uma hiist6ria na qual nao € dificil de- tectar 0s interesses envolvidos, embora nao tenba sido ainda estudada, Em que pese essa lacuna, é possivel afir- mar que o zoneamento resulta de claros conflitos de inte- resses e da agao concreta dos governos municipais, atra- vés de leis aprovadas mesmo em perfodos democriticos. © zoneamento insere-se, portanto, na esfera da politica. plano diretor nao. plano diretor esta em dele que vamos tratar. No Brasil, o plano diretor, entendido por suas preten- sées mesmas de “generalidade”, “globalidade”, de “pla- no geral,” data de final do século passado. E claro que seus graus de globalidade variaram muito ao longo das décadas (assim como 0 zoneamento também variou), mas pode-se considerar o plano de 1875 para a cidade do Rio de Janeiro como marco do nascimento dos planos direto- ¢ hé muitas décadas e & ‘Ska Pano wt Pasrtcava, 92) 1995 res no pats, embora esse nome nao existisse na época. Ele foi fruto da Comissio de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, que tinha por incumbéncia “organizar um plano geral (grifo nosso) para o alargamento e retifica- de varias ruas ¢ para a abertura de novas pragas e ruas com o fim de melhorar suas condicdes higiénicas e facili- tara circulagiio entre seus diversos pontos, dando ao mes ‘mo tempo mais beleza ¢ harmonia a suas construgies” Segundo Reis (1977:15-17), esse foi “o primeiro plano de conjunto (grifo nosso) do Rio de Janeiro”. E claro que © que se entendia por “geral” ou “conjunto” em 1875 6 diferente do que se entendia em 1975, mas a idéia ja esta- va presente. Os planos de entto se propunham a ser—e cram — de “melhoramento ¢ embelezamento” Esse tipo de concepgdo perdura até a década de 30, quando comega a ser substitufda pela idéia do “plano di- retor”," com crescentes ambig6es quanto ao que viria a ser “conjunto”. Tem inicio uma nova fase no planejamento urbano no Brasil, com pretenses cada vez mais globalizantes, tan- to em relagio aos setores abordados (satide, educagio, desenvolvimento econdmico, seguranga publica, sanea- ‘mento, etc.) quanto aos niveis de governo aos quais eram enderegadas suas “recomendagdes”, Com isso, 0 planejamento urbano, tal como aqui con- ceituado, comega a entrar em crise © que mais chama a atengdo nos antigos planos de “melhoramento e embelezamento” é que eles tinam con- tinuidade e eram executados. O plano encomendado por Pereira Passos para o Rio de Janeiro, em 1903, nada mais, foi que a consolidagdo, o aprimoramento e a atvalizagio do plano de 1875 (Needell, 1993:288). Alias, 0 proprio Pereira Passos integrara a Comissio que elaborou 0 Pla- no de 1875 (idem:53). Referindo-se a este plano, Reis (1977:17-18) declarou: “E realmente impressionante a coincidéncia, para nio dizer a exatidio, entre a obra efe- tivamente executada e 0 plano elaborado”. Isso nunca mais vird a ocorrer. Nao seria isto suficien- te para caracterizar 0 inicio de uma crise? Na verdade, os planos preservam as caracteristicas de melhoramento, embelezamento e remodelaco até 1930 e continuam sendo razoavelmente executados até a déca- da de 40, como os de Agache, para o Rio de Janeiro, ¢ 0 de Prestes Maia, para Sao Paulo, Os planos em execugao nas décadas de 40 e 50 ainda so remanescentes dos de 1930. Entretanto, j& na década de 50, a crise era visfvel e © novo tipo de plano que sera defendido a partir de entao est claramente caracterizado: é o plano que nunca atin- gird seus objetivos e que passaré a ser, como € ainda hoje, © plano-discurso, o plano inconsequente ‘A crise que tem inicio na década de 30 pode ser caracte- rizada pelo crescente agravamento das seguintes situagoes: - erescente descrédito entre os politicos quanto a essa novidade chamada “plano diretor”; ~crescente complexidade, sofisticagio técnica e niveis de abrangéncia dos aspectos urbanos abordados nos planos diretores, que atingem seu climax nos “superplanos”, cha- ‘mados de “Planos Locais Integrados” do periodo militar, 0s requintados diagn6sticos e prognésticos técnicos pas- sam a ter enorme destaque nos planos; - total incapacidade dos planos diretores de corresponde- rem a0 discurso sobre si préprios. Os planos se revelam incapazes de ir além do discurso. O destino dos planos & a prateleira onde, na melhor das hipéteses, funcionam como obras de consulta académica; ~adiso6rdia entre os urbanistas, quanto ao que seja plano diretor. Assim, a questo do planejamento urbano esti a exigit profunda teflexdo e radical revisdo em suas bases. O abis- ‘mo que, no Brasil, separa o discurso sobre o plano diretor de sua pritica ¢ to imenso que nio é possivel, a qualquer pessoa minimamente interessada na questio, permanecer indiferente a ele. Essa crise representa o fim de uma era do planejamen- to urbano brasileiro. Neste ponto, seria até relativamente simples adotar uma atitude pseudo-intelectual, apenas repetindo as reflexes que nos vém do Primeiro Mundo ¢, acomodadamente, sem filtré-las para nossa realidade, “explicar” a crise e encerrar a questio, Poderiamos citar Harvey, por exemplo, para quem 0 modernismo acabou, dando inicio a era p6s-moderna que representa, segundo cle, “uma ruptura com a idéia modernista de que o plane- Jjamento € 0 desenvolvimento devem concentrar-se em planos urbanos de larga escala, de alcance metropolita- no, tecnologicamente racionais e eficientes” “O pés-modernismo”, diz Harvey, “cultiva, em vez disso, um conceito de tecido urbano como algo necessi- riamente fragmentado, um ‘palimpsesto” de formas pas- sadas superpostas € uma ‘colagem’ de usos correntes”. Ele faz. referéncia ao artigo “Requiem for large-scale planning models", que jé em 1973 “previa corretamente a queda do que considerava os fiiteis esforgos dos anos 60 para desenvolver modelos de planejamento de larga eseala, abrangentes e integrados para regides metropoli- tanas” (Harvey, 1993:69 ¢ 46). Assumindo acriticamente essa teoria, seria possfvel de- cretar a morte do planejamento urbano global e de longo prazo, dando-o por “superado”. Aqueles que adotam uma tal postura, comum entre nés, encaram o plano diretor em si, enquanto idéia, enquanto formulagao académica, sem considerar que estes quase nunca levaram a decisdes po- Iiticas € que raramente safram das prateleiras ou foram responsdveis por agGes concretas sobre nossas cidades. Se fOssemos nos guiar por aquelas teorias, bastaria pas- sar do modernismo para 0 pés-modernismo, substituindo © planejamento global pelo planejamento fragmentado (p6s-moderno). Com isto, estarfamos, na melhor das hips- teses, simplesmente substituindo uma ideologia por ou- tra, como oportunamente alerta Otilia Arantes (1993). Bla chama a atencio para o fato de a expresso “planejamen- (0 urbano” ter sido mesmo substituida por “desenho utba- no” (a expresso “urbanismo” nao foi substituida por “pla- ngjamento urbano”?) e manifesta sua divida “quanto as chances do desenho urbano se converter num instrumen- to eficiente de desenvolvimento da vida da cidade”, Sabia dvida. Nao desprezamos as teorias que 0 Pri- meiro Mundo desenvolve sobre 0 pés-modernismo. Ape~ nas achamos que elas precisam passar pelo teste de nossa realidade? (pois hi, no minimo uma diferenga de timing entre as transformagdes econdmicas e sociais fundamen- tais no Primeiro Mundo e no Brasil), 0 que ainda nao foi feito. Até prova em contrario, a crise do planejamento urbano tem uma ligagio muito mais longénqua do que se imagina com as transformagies do capitalismo nacional internacional associadas 4 acumulagao flexivel e ao pOs- fordismo. Partamos, entdo, para uma andlise de nossa re~ alidade concreta. Nosso ponto de partida é exatamente a concepgio modernista de plano diretor, ainda hoje a mais difundida entre nossos intelectuais, urbanistas, escolas de arquite- tura e imprensa, Trata-se de uma conceituagio tradicional, pedante pretenciosa, segundo a qual: ~ o plano diretor é um momento do processo continuo de planejamento, envolvendo controle, revisio e atualizagio periddicos; © plano diretor se funda num diagndstico ¢ num prog- néstico cientificos da realidade urbana; ~ a caracterfstiea fundamental do plano diretor ~ e que 0 diferencia de outros planos, particularmente os setoriais 6 sua visio de conjunto e de longo prazo dos problemas urbanos. Nas cidades médias e grandes, o plano deve abor- dar de forma integrada um significativo leque de proble- mas ~ de natureza fisico-territorial, social, administrati- va e econ6mico-financeira; = como todo plano, ele deve conter metas ~ se possivel quantificadas ~ e prazos. Dentre as metas, destacam-se aquelas referentes & futura organizagio territorial da ci- dade, o chamado Plano de Futura Estrutura Urbana. Com relagao a este tiltimo, os modelos mateméticos de larga escala, cujo “requiem” jé foi rezado em 1973, tém uma importancia vital; ~ plano tem de ser aprovado por lei e deve ser elaborado democraticamente, com ampla participacdo popular. A Cue po Pasay Urnnaso Isso nos parece suficiente para evitar mal-entendidos, XE preciso deixar claro que nfo estamos falando nem de zoneamento urbano, nem de plano de governo, nem de planos transportes, saneamento ou energia, nem de pla- nos nacionais de desenvolvimento, etc, No caso do 20- neamento (controle do uso e ocupacao do solo), em parti- cular, é muito comum a confuséo com plano diretor. Afirma-se, por exemplo, que Porto Alegre tem plano d retor desde os anos 50 quando, na verdade, o que existe, na melhor das hipsteses, é um certo controle do uso do solo urbano. No caso de Curitiba, é altamente discutivel que acidade tenha tido um plano diretor que minimamente se aproxime do conceito acima exposto. A esse respeito, aliss, cabe registrar que muitas das criticas dirigidas ao projeto de plano diretor de Sao Pau- lo, encaminhado pelo Executivo a Camara Municipal no final de 1992, estavam fundamentadas na alegagio de que niio se tratava de um “plano diretor” propriamente dito, Jiique nao atendia a alguns daqueles requisitos. Essa definicdo ¢ aproximada mas reflete satisfatoria- mente a conceituagio de plano diretor mais difundida no Brasil entre certos profissionais, intelectuais ¢ a impren- sa, Embora ja conhecida no exterior e mesmo no Brasil, por grandes urbanistas jé na década de 30, a idéia ganha corpo no pafs nas décadas de 40 e 50. Vale chamar a atengio para um fato tio misterioso quanto intrigante relacionado a essa conceituagao. Por que ela se formou e se arraigou tao profunda e vigorosamente nas mentes da imprensa e da intelectualidade brasileiras, de manciraa sobreviver e manter-se forte ainda hoje, ape- sar de estar morta na Europa ¢ na América do Norte? O PLANO DIRETOR E AS ELITES Essa concepetio de plano diretor é altamente ideol6gi- cae tecnocritica. Ela foi accita ¢ difundida por uma clas- se dominante que procura veicular a ideologia de que a boa técnica tem o poder magico de resolver os problemas urbanos. Sé assim é possivel entender o inexplicavel pres- tigio de que o plano diretor ainda desfruta em certos meios, especialmente na imprensa, entre liderangas da alta classe média ¢ intelectuais orginicos, que Ihe conferem poderes to mitolégicos quanto confusos, misteriosos € inexplicados. A titulo de exemplo, tomemos a Folha de S. Paulo de 16 de margo de 1988, em que aparece uma avaliagao da administragfo Janio Quadros ¢ um editorial sobre 0 mes mo assunto, A tOnica da matéria € 0 planejamento e a manchete (p.A16) &a seguinte: JANIO ADMINISTRA BEM A CIDADE MAS NAO PLANEIA 0 FUTURO. Depois de compa- rar 0 entao prefeito de Sao Paulo a um “competente ad- ministrador de empresas”, 0 jornal opina que isto nilo é ‘Ska Pauuo ex Penstecnvn, 92) 1995 suficiente. Critica-o por nio ter um “projeto para a cida- de, a curto, médio e longo prazos” © prossegue: “O pre- feito nio dispée de um instrumento precioso: o plano di- retor, as linhas mestras de sua administragao, voltadas para equacionar problemas criados pela expansdo permanente de Sao Paulo”, ‘Mais curioso ainda é 0 editorial com 0 titulo PREFEI- ‘TURA SEM PLANEJAMENTO, que prescreve: “Nada é mais, necessirio 4 administragio de So Paulo do que ident cat 0s problemas crdnicos da cidade e equacioné-los com preciso dentro de uma perspectiva que transcenda os horizontes do imediatismo — tarefa que pressupée a for- mulagdo de um conjunto de diretrizes e agdes que, inte- grado a um imprescindivel planejamento do desenvolvi. ‘mento urbano, possa representar, a médio ¢ longo prazos, solugSes duradouras”. Note-se o tom tecnocritico ¢ apo- logético com que se aborda as virtudes ¢ a racionalidade do plano: a razdo ¢ a ciéncia identificariam “com pres silo” os problemas crdnicos da cidade ~ como se estes nao fossem mais do que conhecidos, inclusive (¢ precisamente) por serem crdnicos. O editorial prossegue afirmando que Janio abandonou “as modernas préticas da administragao urbana e qualquer preocupagio em ordenar as obras pti- blicas segundo as hierarquias estabelecidas por um plano diretor”. Nio temos conhecimento de nenhum plano di- retor que tenha proposto uma listagem hierarquizada de obras piiblicas. A vinica conclusdo que se pode tirar dessa afirmagio é que o jornal imagina que tal hierarquia teria de ser, obrigatoriamente, seguida pelo prefeito, ou seja, ele teria de adotar um plano do estilo “camisa de forga” violentando a autonomia do Executivo, ainda que apro- vado por lei. Segundo o editorial, em oposigio a essas “modernas priticas de administragiio urbana”, Jinio ado- tava “conduta antiquada e dispersiva ~ na qual se incluf- am atos ridiculos, provincianos e discriminat6rios como a proibicio do ingresso de homossexuais na Escola Mu- nicipal de Bailado ow a tentativa de desapropriar a casa do empresério Abram Szajman”, Conclusao: um plano diretor teria evitado esses disparates; um plano dirctorseria “aarma mais poderosa para combater 0 arbitrio e a dema- gogia populista; niio se combate a demagogia, 0 arbitrio © atraso administrative com agées politicas, mas com boa técnica. ‘Vejamos agora o que diz outro porta-voz da alta clas- se média, A Gazeta de Pinheiros, na edigio de 4 de se- tembro de 1993, Uma matéria da primeira pagina, refe- rindo-se a Vila Madalena, diz.que “os moradores rectamam, que 0 comércio esté invadindo éreas consideradas estri- tamente residenciais” para concluir que “a falta de um plano diretor e uma legislagfo arcaica fazem com que haja muito desrespeito ¢ confusio em torno da Lei de Zonea- mento”. O plano diretor teria, entio, o poder mégico de 48 garantir o cumprimento da Lei de Zoneamento ¢ acabar com a confusio em torno dela. que importa destacar nos dois exemplos é 0 modo como o plano diretor ¢ idealizado € como uma idéia € montada sem qualquer vinculo com a realidade, com tan- tos poderes e perfeicdes quantos a imaginagio humana possa conceber. O plano € uma mera construcio mental, que despotitiza a questto do planejamento. F ideolégico no sentido de uma idéia dominante que se autonomiza, descola da realidade, ocultando-ae, com isso, facilitando a dominagio das classes populares. ‘Como entender tao fervorosa convicgao nas qualida- des desse instrumento magico em uma cidade que nunca experimentou um plano diretor? Alids, diga-se de passa- gem, a absoluta maioria ~ se nfo a totalidade ~ das cida- des brasileiras jamais experimentou um plano diretor que se aproximasse minimamente dos termos ja definidos ou da linha tragada pela imprensa. Em Sao Paulo fala-se de plano ditetor com uma fami- liaridade ¢ uma confianga surpreendentes, embora nenhum tenha sido jamais adotado e utilizado. O Plano de Prestes Maia de 1930, por exemplo, no se enquadra em quase nenhum aspecto, nos requisitos convencionados: nunca foi para a Cémara Municipal, nunca foi debatido, nio ti nha programagiio de obras, nem prazos e metas, nem z0- neamento. Alids, como jé destacamos, 0 conceito de pla no diretor estava ainda sendo gestado na época. 0 PUB encomendado por Faria Lima em 1968 niio tinha uma pro- gramagao unificada de obras, nem uma proposta clara de zoneamento e jamais foi enviado & Camara. O PDDI de 1971 também nfo tinha programa de obras, nem prazos ou metas ¢ ndo integrava os diversos aspectos da realida- de urbana, embora mencionasse quase todos: foi aprova- do pela Camara Municipal, mas nunca foi livremente de~ batido nem dentro nem fora dela, pois estivamos sob férrea ditadura militar e a Camara fora expurgada de varios ve~ readores; vigorow, ignorado pela sociedade paulistana, inclusive por técnicos ¢ politicos, até ser substituido pelo plano director de 1988, claborado na gestio Janio Quadros. Este foi aprovado por decurso de prazo (expediente her- dado do regime autoritério) e continua em vigor até hoje; porém, tal como seu antecessor, & desconhecido pela maioria absoluta dos arquitetos municipais, dos profiss onais liberais e dos vereadores (para nio dizer dos cida- dios). Esse plano também nao tinha prazos, metas, pro- grama de obras ou prioridades e tampouco foi debatido pela populagdo ou pelos vereadores. Para completar, a gestio de Luiza Erundina elaborou seu préprio plano, sem metas, prazos ou programas de obras. Portanto, nem a populagdo paulistana, nem seus Ifde- res —comunitétios, politicos, profissionais, religiosos, etc. ~ jamais experimentaram um plano diretor. A maioria dos politicos, entre os quais a quase totalidade dos vereado- res, nem mesmo na gestdo Luiza Erundina, nunca discu- ju um plano diretor. A mAquina administrativa munici- pal sequer sabe como € trabalhar e administrar com um plano diretor (embora tenha décadas de experiéncia com zoneamento). Os partidos politicos ndo sabem o que é fazer politica com plano diretor. Finalmente ndo h4, nem mesmo entre os profissionais mais ligados ao planejamento urbano — particularmente engenheiros, arquitetos © gedgrafos -, qualquer acordo quanto ao que venha a ser um plano diretor. Uma das maiores polémicas travadas em torno do projeto elabora- do na administragao Luiza Erundina era se o plano deve~ ria ou nao limitar-se a um conjunto de objetivos ¢ diretri- zes gerais, Nem quanto a esse rudimentar e fundamental aspecto havia consenso. Essa conclusio, note-se, nao i valida nossa hipétese inicial que propunha um conceito dominante de plano diretor, pois s6 recentemente € que se agravaram as divergéncias quanto a esse conceito, Além disso, embora 0 conceito tradicional de plano diretor te- nha sido contestado desde a primeira metade dos anos 90, em virias capitais ele continua predominando. O PLANO DIRETOR E OS POLITICOS Em contraste com o clima racional, ideal e ideolégico que perpassa as idéias acerca do plano diretor entre a in- tclectualidade, as elites ¢ a imprensa, destaca-se a atitude dos politicos. Estes nfo acreditam em plano diretore nunca © desejaram, Nao temos conhecimento de nenhum pre~ feito, liberal ou conservador, seja em perfodos de demo- cracia, semidemocracia ou ditadura, de esquerda ou di- reita, que se tenha esforgado e batalhado por uma administragio com base em um plano diretor. Em Sao Paulo, ha mais de vinte anos, a Secretaria Municipal de Planejamento elaborae reelabora, faz e desfaz, revé © atu- aliza planos diretores, mas nenhum prefeito jamais exi- giu um plano diretor. Seguindo a regra geral, 0 prefeito ‘conclui seu plano, envia-o & Camara no final do mandato e seu sucessor retira o projeto para revisio, O que foi encaminhado ao Legislativo na administragao Luiza Erundina jé foi retirado pelo atual prefeito ¢ esté sendo revisto pela Secretaria Municipal de Planejamento que, por sua vez, provavelmente deixaré para o final da gestio © encaminhamento de seu préprio projeto a Camara. A Folha de S, Paulo de 13 de fevereiro de 1989 (p.C 5) apregoava: PLANO DIRETOR NAO & PRIORIDADE PARA AS PREFEITURAS PAULISTAS, lembrando que ele obrigatério, pela Constituigao de 8, para as cidades de mais de 20 mil habitantes. Hoje, passados sete anos da promulgacao da atual Constituigio, a maioria absoluta das cidades continua sem A Che Do PLaNsiaveto Unana ter um plano diretor aprovado por lei, Sao Paulo prova- velmente prosseguiré, ainda por alguns anos, sua rotina de elaborar um plano a cada gesto sem aprovar nenhum, Como se explica isto? Para entender esse quadro, examinemos o jd mencio- nado Plano de Prestes Maia. Como jé dissemos, ele no se enquadrava na conceituacio de plano diretor que mais tarde se tornaria tradicional (modernista), mas era uma proposta de governo tal como nenhum prefeito que o su- cedeu jamais apresentou. A iniciativa de sua proposta coube ao Executivo, atra- vés do entio prefeito J. Pires do Rio. Prestes Maia, quan- do mais tarde veio a ser prefeito, assumiu totalmente 0 plano, Nenhum prefeito paulistano, nas iltimas seis dé- cadas, apresentou e cumpriu uma proposta de governo mais que Prestes Maia, O fracasso da concepefo tradicional de plano diretor reflete a lenta mas continua perda de lideranga e credibi: lidade de nossas elites na esfera urbana. Um prefeito hoje, assim como dez anos atras, ja no pode anunciar com antecedéncia, como fizeram Pereira Passos ¢ Prestes Maia, suas obras ou seu programa de governo, com seus minhocdes, tineis e vias expressas —¢ ‘muito menos um plano que inclua outros mandatos -, sim- plesmente porque se o fizesse enfrentaria uma enorme Teaco popular. A maioria dos prefeitos hoje nfo quer um plano precisamente para poder fazer obras que nao con- tam com 0 apoio popular. Prestes Maia marca o fim de um perfodo hist6rico no qual a elite brasileira, em nivel do governo urbano, ainda podia anunciar seus programas de obras com antecedén- cia, esperando contar com os aplausos, se ndo da maio- ria, pelo menos de uma minoria dirigente ainda com al- gum resquicio de credibilidade. O Plano de Prestes Maia (Estudo de um Plano de Ave- nidas para a Cidade de Sao Paulo) é um legitimo repre- sentante do pensamento urbanfstico da burguesia paulis- tada época, simbolizada nao s6 por Prestes Maia mas por varios outros técnicos (Leme, 1990). Significou um mo- mento de um processo, uma sintese da proposta de uma classe que, pelo menos em nivel urbano, ainda era lider & que, por isso mesmo, podia vir a pablico anunciar suas obras com antecedéncii Hoje isto é impossfvel, pois nao hd a menor sintonia entre as necessidades da maioria ¢ as propostas das clites para a cidade, Mesmo eleitos pelo voto direto, os prefei- tos, em sua maioria, ainda estio inescapavelmente amar- rados aos interesses e a0 modo de governar da minoria dominante, em que se destacam, em nivel urbano, os in- teresses do capital imobilidtio. Assim, os prefeitos ndo tém condigdes polfticas para anunciar com antecedéneia suas propostas ‘ko Pauno ex Penstectva, 9(2) 1995 PLANO DIRETOR, GOVERNO MUNICIPAL EESPAGO URBANO Faléncia do Modelo Modernista de Plano Diretor As concepgées de planejamento urbano devem ser re- vistas radicalmente. Mais do que de teorias de duvidosa aplicagio & nossa realidade, essa revisio deve partir dos problemas concretos da maioria da populagio, colocada na ilegalidade precisamente pela legislacio urbanistica e edilfcia, Esta, a0 contratio dos planos diretores, vem sen- do efetivamente implementada ha décadas, beneficiando a minoria que produz e ocupa a cidade legal. Enquanto isso, os planos diretores sfio ideologicamente utilizados para ocultar essa verdade. Algumas administragdes progressistas tentam explo- rar a elaboracdo do plano diretor como oportunidade po- Iitica para questionar, contestar e trazer a luz ~e, se pos- sivel, conseguir melhorias reais imediatas —os problemas concretos da maioria e da cidade, que é ilegal, como o da urbanizaco de favelas, da concessio do direito real de uso da terra, da redistribuigao da riqueza gerada pela va- lotizagio imobiliéria (coeticiente de aproveitamento tnico © igual a 1) e da criago de Zonas Especiais de Interesse Sovial (Zeis) ou da concessiio onerosa do potencial cons- trutivo. ‘Todas essas questdes sao privativas e especificas da competéncia municipal na gestdo do uso e ocupagio do solo urbano, que os ambiciosos planos integrados e glo- bais (0 “Plano-Diseurso”) sempre ignoraram, Para ter credibilidade, os planos tém de voltar a ser objetivos e politicos. Para isso, terdo de se concentrar em sua operacionalizacio, e no mais em discursos. Essa operacionalizagio e politizagso s6 ocorrerao se os planos forem conseqiientes, 0 que impde como condigao que se restrinjam & competéncia municipal (operacionalizagao) € exponham os conflitos fundamentais que se manifes- tam na esfera urbana e que sempre foram ocultados pelos panos diretores (politizagio). Isto diz respeito, fundamen talmente, ao controle do uso do solo urbano. Conseqiien- fomente, toca nos interesses do grande setor do capital, que Iucra com a produgio do espaco urbano e que sem- pre? se escondeu atrds do plano diretor inconseqiente: 0 setor imobilidrio. Sem isso, os planos diretores jamais te- ro credibilidade. Em vérias capitais brasileiras, os planos diretores ela- borados na primeira metade dos anos 90 destacaram esse aspecto. Embora nenhuma delas ~ por derrota politica — tenha efetivamente conseguido operacionalizar seus pla- 1nos, elas evidenciaram que a grande questo a ser enfren- tada pelo plano diretor do futuro é 0 conflito de interes- ses entre, de um lado, a cidade, 0 espaco urbano da maioria «, de outro, os interesses imobilirios. Esse conflito veio Aluz apenas nos anos 90, revelando a arena, os interesses envolvidos e os adversérios. Seré o fim da globalidade e do longo prazo modernis- tas € 0 inicio da fragmentacao pos-moderista? Pode até ser. Mas ndo vemos necessidade de invocar supostas trans. formagdes sociais ocorridas no Brasil “pés-moderno”, para compreender as transformagGes ocorridas que, aligs, vém se manifestando hé pelo menos 60 anos. ‘A questio do plano diretor € politica, de dominagio, especificamente brasileira, selvagem, de nossas classes populares na esfera do espaco urbano. Sao as forgas rea- ciondrias que se apegam & concepeao tradicional (moder- nista) de plano diretor e que, utilizando-se de uma facha- da tecnocratica e pseudocientifica, tem conseguido impedir importantes conquistas populares no Ambito do urbano, Enquanto, no Primeiro Mundo, os principios mo- dernistas — através de planos que foram razoavelmente implantados ~ modelaram concretamente 0 espaco urba- 10, no Brasil isso no ocorreu: os planos aqui nao passa- ram de discurso. NoTas 1. A expresso “paao drt" aparece pel primeira vez, pela gue & de nosso conhecimente, no Plano Agachs para Rio de Jano, em 1930. 2. Resyondendo a uma pergunta no Fsconro da Anpar, em Salvadr, 21991, Richa Wall, geratonorte-americanoe profesto da Universidad Cal. ‘ini, Berkeley akemou nao fer certen quamo apeabisade ao Bast day ‘eoras da chamada Escola Francesa da Regula ede suse considera sobre {cunulgto feateleresrstursso copacil ronal Se, cm poten Harvey, ‘it (ao minima) uma nina coreage ene neumolag lene ep tnodet nism, preferimosaguarda sua plena manifesto no Beal conterporinea a Confrnagdo da apicabidade se Teeio Mundo das torae sobre 0 es0350 ‘bane, Sua peodupsoe seu planejamento, 3A obrigatoiedade da elnborao de planos dictres para ods a eidades de ‘mais de 20 mi habitamtes,imposta pelo artigo 182 da Consiigso Federal de T9880 era revinicads por neohums actor popular. No inal das anes 80 sn auidaces populares nacionise viriaereplonatsencaminharam 20 Coagresso ‘Nacional ema proposta de Emenda Popular 8 Consuls com 160 mal tsa ‘ura de elettrs, contend a evinces ds lasses Popul urban ano 2 questes fundamen, como propiedade imobihirin erbana, acest ter, habitaglo,gestdo une, ete utes Para neuteazar ea predators Ses mebilrios inroduatam aa Cartas obrigatoriedadsdeeaboragto Uo pa Alietor, quem era eivindieada por nenhum grupo, sequer pelos iateresses mo. hilsies peo menos estensvameate (Macao, 1984 De Grazia 1990e Rok, 1994). REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS [AGACHE, A. Cidade do Rio de Joneira: extend, remodelaco, embelecmen to. Pai, Foyer Heten, 1930 |ARANTES, 0. Folha de, Pauls, Sho Palo, 05/0993, p6-10. HARVEY, D.A condi ps-moderna So Paulo, EAigies Layo, 1993, Tad ‘Ail Usrajara Soba, Maria Stla Gongalves DE GRAZIA, G. (ar). Plane diretor, Rio de Jancro, Fase, Federagto de Or gos para Asssnca Social Béusaeinal 190 LEME, M, Cd. 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