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Roberto Cardoso de Oliveira Ji ie ensaios sobre etnicidade e multiculturalismo NEC Paralelo 15 Direitos exclusives para esta edigio: Fundagio Editora Unesp Copyright © 2006 by Roberto Cardoso de Oliveira - [ f&ttare pee U NESP Praga da Sé, 108 1001-900 So Paulo SP Fone: (11) 32427171 - Fax: (11) 32427172 wwnweeditoraunesp.com.br - feu@editora.unesp.br SRTVN 701 - Centro Empresarial Norte, Torre B, sala 820 70719-903 Brasilia DF Fone: (61) 3328 5370 - (61) 3478 1816 - Fox: (61) 3328 8514 e-mail: paralelo15@uol.com.br PREPARACKO Dos OrrcINals: Paralelo 15, Cara: Roland, sobre fotografias de Jussara Gruber e cartaz publicitério de Miré para a revista vanguardista catala Avant, 1918, ISBN 85-7139-683-3 Ficha catalogréfica Cardoso de Oliveira, Roberto Caminhos da identidade: Ensaios sobre etnicidade e multiculturalism. Sio Paulo: Editora Unesp; Brasilia: Paralelo 15. 2006. 258p. Inclui indice analitico. 1. Antropologia. 2. Antropologia social e cultural. 3. Etnicidade. 4, Multiculturalismo. I. Cardoso de Oliveira, Roberto. II.Titulo. CDU 070.17 (des)caminhos da identidade idade e multiculturalismo) evo esclarecer preliminarmente sobre os termos “caminhos” ¢ “descaminhos”,utilizados metaforicamente para designar uma am- bigitidade, aos quais estou recorrendo para intitular este capitulo. facdo das duas palavras, sintetizada numa tinica expressio —“(des)ca- ” — sugere a direcio que desejo dar aquilo que entendo como ponto estratégico sobre o qual o estudioso melhor podera fixar a do em sua tentativa de elucidar a identidade vista como um ob- investigacao antropolégica. Esse ponto estratégico é precisamente do “ponto cego” - que todos nés, que vivemos nesta época pelo automével, sabemos tratar-se de uma cegueira momenta- do, no trinsito, no conseguimos vislumbrar 0 que vem por de- laterais, onde o espelho retrovisor fica absolutamente anulado... trazer essa imagem tio cotidiana e trivial nio é um desses re- rrentes a que se socorrem alguns importantes filésofos britdni- carem mio de historietas — como bem ironiza Geertz — para suas reflexdes. Para mim, neste momento, a imagem s6 se ex- se aplica — pelo fato de ter sido ela que me levou a questionar ‘0 melhor enxergar ou visualizar esse fendmeno “sociocultural” os identidade, quando ele est4 escondido, escamoteado, olhar do homem da rua, mas também — e muitas vezes — pelo ticado do cientista social. E ao aduzir ao termo identidade a “sociocultural” j4 estou indicando que irei examinar um fend- cuja inteligibilidade nio se pode esquivar sem contextualizé-lo 87 Roberto Cardoso de Oliveira no interior das sociedades que 0 abrigam, E dando um rumo diferent aquele dado por mim no capitulo anterior ou por um fildsofo coil Charles Taylor, valha 0 exemplo, quando escreve seu celebrado livro fontes do selfA construgio da identidade moderna,’ minha intengio aqui nid. focalizar 0 Eu, mas o Nés, explorando precisamente aquelas instincl empiricas em que identidades globalizadoras se manifestam. Como deriamos melhor abordar o fendmeno sem construirmos um foco esi tégico para sua elucidagiio? Pareceu-me — e essa ¢ uma questo que acompanha ha bastante tempo — que devemos procurar equacionar nas a situagdes de extrema ambivaléncia. Sfio scus descaminhos, en} ainda nfo necessariamente equivocados, pois, cm regra, tendem a sel Gnicos possiveis — conjunturalmente possiveis -, na medida em qu proceso de identificagio pessoal (quando o Self é o grande estratey ou grupal (quando os Selves estiio enredados numa mesma teia de s cages), esse proceso chega a estar mais condicionado pela socied envolvente do que pelas “fontes” origindrias dessas mesmas identidil sejam elas agora consideradas como “coletividades” (Talcott Parson “jdentidade de grupo basico” (Harold Isaacs), ou, ainda, “identidadl tais” (Ali Mazrui).? Imagino que tratar aqui, topicamente, de uns pol casos empiricos possa nos auxiliar a compreender que a focalizagil crises identitérias relativas a nacionalidades ou a etnias, portanto Loyola, 1997. 2 CE, por exemplo, H. R. Isaacs, (H.R. Isaacs, “Basie group identity The: nihan (orgs.), Ethnicity; Theory and University Press, 1975), reaninda p Daniel Bell, Milton Gorton, Daniel Hses potenciais. Procurarei deixar isso mais claro no decor- consideragées. ae que chamarei condicGes de possibilidade de etnizagio das identi- nais de imigrantes residentes em sociedades anfitrids, Natu- lar de etnizagio € socorrer-nos do conceito de etnicidade — alidades inseridas no espago de um Estado-Na- a maneira mais simplificada, o termo etnicidade poderia ainda lo a modalidades de interago bem menos complexas, como a “forma de interagio entre grupos culturais atuando em contex- Inis comuns”.* Nao obstante, por mais simplificada que possa ser meepeio de etnicidade, ela no deve deixar de considerar pelo dois aspectos tedricos — como aponta o antropdlogo noruegués, H, Eriksen —, quando diz que, primeiramente, nicidade é uma propriedade de uma formagio social ¢ um aspecto de Intera¢ao; ambos niveis sistémicos podem ser simultaneamente compre- mndidos. Secundariamente, diferengas étnicas envolvem diferengas cul- lurais que possuem impacto comparativamente [coss-culturally] variével J] sobre a natureza das relagdes sociais.4 er Cohen, “Introduction: The lesson of ethnicity", in Abner Cohen (018), ban Ethnicity, ASA 12, Londres, Tavistock Publications, 1974, Pp. homas H. Eriksen, “The cultural contexts of ethnic differences”, Journal of the | Anthropological Institute, Vol. 26, n. 1, 1991, p. 131. 89 Roberto Cardoso de Oliveira Esses dois aspectos tém,a meu ver, o mérito de tornar mais sensivel ou sofisticada a classica definigAo de outro noruegués, Fredrik Barth, ao re- velar © carter contrastivo da identidade étnica, como j4 se mencionou no capitulo anterior. Mas 0 que me parece importante de se levar em conta aqui é que interagdes sociais desse teor tém sido observadas em diferen- tes latitudes do planeta, envolvendo formagées sociais nas mais variadas modalidades de interagio, incluindo grupos de migrantes — que, neste capitulo, serio alvo de maior atencdo. E isso porque, no mundo moderno, a observaco desses grupos oferece uma oportunidade privilegiada para o estudo daquelas formas de interagio, onde a articulagéo entre identidade, etnicidade e nacionalidade se impde como foco de inegivel valor estraté- gico para uma investigag%o que se pretenda capaz de elucidar os mecanis- mos de identificagio pelos outros, tanto quanto de auto-identificacio, nio obstante sendo esta reflexo daquela. Darei destaque, inicialmente, como base para minha argumenta¢io, a situacdes observadas nos Estados Unidos da América junto a imigrantes brasileiros. Naturalmente que me apoiarei em trabalhos de antropdlogos que recentemente pesquisaram nas costas leste e oeste estadunidenses, especialmente em lugares de expressiva imigracio brasileira. Vale acentuar que pesquisas de brasileiros sobre os Estados Unidos tém ocorrido com certa freqiiéncia somente nestes iltimos anos. Mas, pelo menos desde os anos 1950, a tomarmos em conta a importante comunicagio de Oracy Nogueira ao XXXI Congresso Internacional de Americanistas, intitulada “Preconceito racial de marca € preconceito racial de origem”,® a compa- ragdo entre as sociedades brasileira ¢ estadunidense ja mostrava 0 quanto ambas se distinguiam no que se refere 4 estrutura interna de cada uma no processo de absor¢’o de suas minorias étnicas ou raciais. Com o seu inte- resse voltado para 0 “preconceito racial”, Oracy Nogueira péde tragar, nio obstante, os lineamentos daquilo que ele chamou “flagrante contraste entre o clima de relagdes inter-raciais que predomina nos Estados Unidos 5 Oracy Nogueira, “Preconceito racial de marca € preconceito racial de ori gem”, in Anais do XXXI Congresso Internacional de Americanistas, Herbert Baldus (org,), Sio Paulo, Editora Anhembi, 1955. 90 Os descaminhos da identidade © 0 que caracteriza o Brasil”.® © processo de estigmatizagio observavel Bum ¢ noutro cenirio inter-racial ou interétnico é por ele caracterizado la dicotomia aparéncia/ ascendéncia étnica:0 primeiro termo da dicotomia, nte no Brasil, expressa no preconceito de cor; o segundo termo, ma- festado nos Estados Unidos, exprime a presenca de preconceito de ori- m. Evoquemos um trecho de sua comunicagio: Quando 0 preconceito de raca se exerce em relagio 4 aparéncia, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestagées os tracos fisicos do individuo,a fisionomia, os gestos, 0 sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposi¢io de que o individuo descende de certo grupo étnico, Para que soffa as conseqiiéncias do preconceito, diz que é de origem.? Todavia, de meados do século passado para ci muito se investigou bre essas modalidades negativas de classificagio pelos outros ¢ de auto ifica¢4o, investigacdes essas que passaram a ser enfeixadas sob o tema identidade e de suas vicissitudes. E aprendemos que a estrutura das icGes interétnicas, inerente as sociedades hospedeiras, € muitas vezes rtemente institucionalizada. E tais relagdes, como se observa certamente is nos Estados Unidos do que no Brasil, estio reguladas tanto in mores mo in juris, o que lhes confere grande peso na configuracio das rela- es entre imigrantes de diferentes nacionalidades e/ou etnias junto a pulacio nativa. Para ficarmos apenas com a questio criada com os processos identits- ios observaveis entre imigrantes brasileiros residentes nos Estados Uni- s, consideremos, por exemplo, esse mecanismo identitirio que deno- nei etnizagao de identidades nacionai: Quero me referir, inicialmente, as servagdes feitas por Gustavo L. Ribeiro sobre imigrantes brasileiros em. n Francisco, California, onde 0 processo de etniza¢io — pelo menos indo minha leitura — fica bem aparente.® Sua Pesquisa tem o mérito Oracy Nogueira, op. cit, p. 415. Idem, p. 417, Gustavo L. Ribeiro, “Goiinia, California, vulnerabilidade, ambigiiidade e cida- dania transnacional”, Série Antropologia, n. 235, Departamento de Antropologia, Universidade de Brasilia, 1998; Idem, “O que faz 0 Brasil, Brazil. Jogos identité.. or Roberto Cardoso de Oliveira de realgar o poder da sociedade local na determinagio das regras do jogo identitario, gracas as caracteristicas dos novos contextos no interior dos quais os imigrantes passam a viver suas condig6es de exist@ncia. © autor mostra-nos, primeiramente, que as identidades regionais brasileitas, sig- nificativas no 4mbito interno da comunidade imigrante — como a de goiano, mineiro, paulista ou carioca — passam a ser englobadas pela po- pulacio hospedeira nio necessariamente na de brasileiros — 0 que seria o natural — mas na de hispdnicos, o que significa submeter a identidade a um inefivel processo de etnizagio, uma vez que, nesse caso, hispanico nio € nacionalidade, é ctnia. Hi, portanto, 0 que se pode reconhecer como sujei¢io dos processos identitarios a um sistema social estrutural- mente segmentado em etnias — ou, mesmo, grupos raciais... Nas palavras do antropélogo: A segmentagio étnica americana implica uma luta permanente por vi- sibilidade na cena politica, econémica ¢ cultural mais ampla. Em um pais onde a politica da diferenga é dominada por uma elite branca anglo- saxa, os segmentos étnicos procuram tornar visiveis seus pertencimentos a herangas culturais diferenciadas para adquirir distincio e acumular capital simbélico e politico como atores no contexto da chamada politi- ca da identidade e da ideologia do multiculturalismo.” Os brasileiros sio apanhados pela rede de classificagio étnica local e, “muito a contragosto — continua Ribeiro —,sio, assim, confundidos com. hispanicos”.!” Mas essa identificag3o nio fica restrita 4 costa oeste estadu- nidense. Ana Cristina Braga Martes, em seu livro sobre a imigra¢ao brasi- leira em Boston, Massachusetts,"! observa também semelhante rejeicio rios em San Francisco”, Série Antropologia, n. 237, Departamento de Antropolo- gia, Universidade de Brasilia, 1998. Idem, “Identidade brasileira no espelho inte- rétnico. Essencialismos ¢ hibridismos em San Francisco”, Série Antropologia, n. 241, Departamento de Antropologia, Universidade de Brasilia, 1998. 9 Gustavo L. Ribeiro, “Goiinia, California, vulnerabilidade, ambigiiidade ¢ cida- dania transnacional”, op. cit., p. 15. 10 Idem, op. cit., p. 13. 11 Ana C. Braga Martes, Brasileiros nos Estados Unidos: Um estudo sobre imigrantes em Massachusetts, Sio Paulo, Paz e Terra, 2000. 92 Os descaminhos da identidade da identidade hispanica. Afirma, assim, que nos depoimentos que obteve sobre imigragZo aparece nitidamente a tendéncia 4 negacio dos entrevis- tados com os hispanicos (hispanics). De fato, parecem existir poucas afini- dades entre os dois grupos: Os brasileiros no moram nos mesmos bairros desfrutam de uma con digo econémica relativamente melhor do que o restante da populacio latina em Boston [...]. Por outro lado, grande parte dos brasileiros, assim como os demais grupos latinos, querem ter uma identidade propria lutam por isso. Entretanto, tal recusa esti também associada as desvanta~ gens que o rétulo “hispinico” pode acarretar, por tratar-se de um “gru- po” que parece, também aos olhos dos brasileiros, desvalorizado nos Estados Unidos. Este comportamento, no entanto, reforga © preconceito contra os latinos ¢, por decorréncia, contra os proprios brasileiros que também tendem a ser vistos como “hispinicos”.!* Diante desta ambigitidade, que se manifesta no processo identitario imigrante, poder-se-ia questionar 0 porqué daqueles brasileiros dos tores mais pobres ¢ mais despreparados da comunidade de imigrantes Go assumirem a identidade étnica hispinica— como politica pessoal iden- dria — , quando ela pode significar, por exemplo, uma eventual partici- Ao nas quotas da affirmative action? Ao menos, seria uma maneira de nipulagio positiva da identidade...!3 Porém, tal manipulagio encontra~ © seu obsticulo na crénica dificuldade de regularizar, ou melhor, lega- ar a situagio de imigrante, desde que sem a documentagio necessaria — Green Card ~, torna-se impossivel participar naquelas quotas e benefici- -se de eventuais vantagens do status de minoria étnica. Trata-se, por nseguinte, da extrema vulnerabilidade com que esse grupo de imi- tes convive quando se equilibra sob a linha ilegal/legal. E isso pode generalizado para todos os imigrantes ¢ nao apenas para os brasileiros, is cruzar essa linha em dirego & legalidade faz que suas oportunidades ‘Ana C. Braga Martes, op. cit., pp. 172-173. Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, Identidade, etnia e estrutura social, Sio Paulo, Pioneira, 1976, especialmente 0 Capitulo 1 sobre a questio da manipulasao da identidade; enqnanto, para as demais consideragées a respeito do caso descrito por Martes, consulte-se seu livro supracitado. 93 % Roberto Cardoso de Oliveira mudem radicalmente."* Em suma, 0 que se pode observar € que essa ambigiiidade inerente ao processo identitario que se verifica entre os imigrantes abre uma via para o surgimento de crises de identidade, sejam elas reais ou virtuais, Mas se a identidade desses imigrantes mais carentes sofrem seus des- caminhos, h4 de se reconhecer que os imigrantes de classe média, mesmo bem qualificados profissionalmente, nao escapam de certas armadilhas do processo identitério. A andlise do tema feita por uma imigrante uruguaia, professora Helen Regueiro Elan, a partir de sua propria experiéncia de membro do corpo docente de uma universidade estadunidense, é extre- mamente aguda ¢ € muito esclarecedora sobre aspectos pouco conheci- dos do processo identitario. Seu ensaio, “El indio ausente y la identidad nacional uruguaya”,"" descreve o que ela denomina de identidade desplazada ou deslocada, como chamariamos em portugués. Tendo sem- pre se considerado uma pessoa cosmopolita, associada ao fato de ser pro- fessora de um departamento de inglés — razio de espanto dos norte-ame- ricanos, que sempre Ihe perguntavam por que nio ensinava num depar~ tamento de espanhol —, a autora é levada a se classificar como possuidora de uma identidade deslocada, uma vez que, se na retérica da identidade ser de nacionalidade uruguaia nio faz nenhum sentido, nem por isso con- segue se ajustar 4 identidade hispdnica (gragas ao forte cariter etnicista da categoria) e, muito menos, na de latina; e, esta iltima, ndo sé pelos mes- mos motives de discriminagio étnica, como ainda pelo fato de no se sentir semelhante a qualquer membro do segmento majoritario de imi- grantes latino-americanos possuidor de ancestralidade fortemente indi- gena. Para Helen Regueiro, estar desplazada, ou deslocada, & movimentar-se em espagos que estio sempre no meio, dos quais no se pode dizer que sejam nem uma coisa nem outra, dos que nao se pode 14 Gustavo L. Ribeiro, “Goiénia, California, vulnerabilidade, ambigitidade e cida- dania transnacional”, op. cit., p. 9. 15 Helen Regueito Elan, “El indio ausente y la identidad nacional uruguaya”, in J.Jorge Klor de Alva et alii (orgs.), De la palavra y obra en el Nuevo Mundo, n. 4, “Tramas de la identidad”, Madri, Siglo XXI de Espaiia Editores $. A., 1995. 94, Os descaminhos da identidade dizer que encaixem, sem residuo e sem critica interna, 4 adequagio do nome e de uma identidade. [Comenta, assim, que] a necessidade nos Estados Unidos de localizar, de nomear e de definir é tao intensa que se torna dificil permanecer fora das categorias estabelecidas. Nem a iden- tidade étnica nem a nacional podem ser o que eram no antigo pais: 0 conceito de ser uruguaio carece de sentido nos Estados Unidos, e no Uruguai [simplesmente] se assume. E 0 conceito de identidade étnica carece de sentido no Uruguai, e é vital nos Estados Unidos dos finais do século XX. Tanto a identidade étnica como a nacional sio constructos com um propésito: no caso da identidade nacional, a coesio de um pais por meio da narragio de sua cultura e de sua historia, e no caso da identidade étnica, a narragio a partir da margem da histéria ¢ da cultu- ra daqueles que precisamente sio excluidos da narrativa da primeira."* Estaria a autora expressando a virtualidade de uma crise identitaria? arece-me que sim. E, de certa maneira, sua andlise complementa bem as consideragSes que fiz sobre os imigrantes brasileiros nos Estados Unidos, vez que muito do que Helen Regueiro escreveu pode se aplicar — inda que nfo necessariamente se aplica — ao imigrante brasileiro de clas- anédia, profissionalmente qualificado, submetido 4 mesma légica iden- it4ria inerente ao sistema de classificagdo étnica estadunidense. en ae Gostaria de me voltar agora para um cenério bastante diferente, mas ue poder ajudar a melhor compreender a dinamica das identidades, ra me detendo mais na questio das nacionalidades e no espago euro- u. Quero me referir 4 Catalunha, uma regio da Espanha que tem Bar- elona por sua capital e possui stattis juridico autonémico desde a queda ditadura franquista. Claro que essa escolha nao é casual. Pois, se o meu ‘objetivo é refletir sobre o tema da identidade baseando-me em etnogra- is que domino — uma vez que mesmo relativamente aos Estados Unidos nha vivéncia naquele pais agugou minha sensibil dade no exame dos dos fornecidos pelos autores que naquele pais fizeram suas investiga- 16 Helen Regueiro Elan, op. cit., pp. 320-322. 95 Roberto Cardoso de Oliveira Ges —, agora com telagio A identidade catald e 3s demais identidades que com ela interagem, é natural que essa seja a minha escolha, jf que pase estudi—ta diretamente na cidade de Barcelona em 1992.7 Mas, obviames- fe, nem por isso deixarei de me socorrer de obras de colegas catalies Questiono-me, inicialmente: no que 0 exame da identidade catali pode ra ampliar a compreensio sobre as relagdes entre identidades e seus Pectivos contextos? Entendo que a consideracio da tealidade barcelo: sa, considerada com referénci: envolvendo portanto identidades étnicas ¢ tegionais do territério es; nhol, possa iluminar um dos pontos Cegos do proceso identitirio, p Samente aquele que eu chamaria dupla dimensao da identidade rela ‘a a0 seu movimento migratério int. madamente 41% da populacio de Barcelona, por volta dos ancs 1970, composta de imigrantes; ¢ se forem excluidos os falantes de diferew reduziriamos esse percentual de imigrantes internos a0 pais a 30,62% g exprimiriam os falantes de castelhano ~ a lingua oficial da Espanha, ain ane 0 catalfo seja, atualmente, uma segunda lingua oficial na Catalunha. diferenca entre ambos os percentuais seria da ordem de mais de 11 logo um percentual significativo de individuos classificdveis como et minoritérias relativamente 4 Populagio catala barcelonesa, Se apenas as etnias mais numerosas, ter-se-iam, em nimeros redondos © nko despreziveis, 46.918 galegos e 17.962 bascos como membros de Stupos étnicos sujeitos 4 condicio de héspedes da sociedade catalé domi- 17 Roberto Cardoso de Oliveira, “Identidade catald ¢ ideologia étnica”, Mana Estudos de Antropolegia Socal Vol. 1, n. 1, 1995; Idem, “A etnicidade como fator Ge estilo”, Cademos de Histéra de Filosofia e Filosofia da Ciéncia,Vol. 3, n. 5, 1995. além destas referencias, dedico-me, no proximo capitulo, amplo do processo identitirio catalio, discotrendo sobre « historia das idéizs sata, sobre sua propria identidade © as caracteristicas atuais de ideologia da catalanidade em sua oposigio a identidade castelhans, @ um tratamento mass 96 Os descaminhos da identidade zante, sofrendo, por conseguinte, toda ordem de preconceitos comuns Aquelas situacGes caracterizadas como de etnicidade. Uma descrigdo feliz Sse quadro marcado pela etnicidade faz 0 decano dos antropélogos aes Claudio Esteva Fabregat. Para ele, Barcelona é uma sociedade pluricultural e poliétnica: est4 constituida de uma base étnica catali e de etnias resultantes de imigragdes massivas, de maneira que 4 sua complexidade socioeconémica relativa soma-se a com plexidade etnocultural relativa. Como proceso, Barcelona é um conjun- to de interagées sociais governadas por uma estrutura cultural comum,a urbana ¢ a correspondente ao sistema politico administrative do Estado espanhol. Mas esse conjunto esta formado por subconjuntos étnicos com suas culturas especificas, cada um dos quais obedece a uma orientagio de comportamento que lhe é propria. Referimo-nos, neste caso, ao modo cultural de ser de cada etnia, 2 sua diferenciacio interna enquanto, pelo menos, lingua ¢ folclore, e, ademais,a um modo de ser, a uma axiologia a uma consciéncia histérica, isto 6 enquanto um grupo etnicamente polarizado nas ocasides de contrastes."* Nessas ocasides é que se atualiza a identidade étnica enquanto identi- le contrastiva — de conformidade, alids, com o que nos ensina a teoria thiana relativa 20 processo de identificagio étnica.'® A situacio das mi- rias étnicas residentes em Barcelona corrobora claramente essa teoria, quanto identidades coletivas submetidas, fieqiientemente, 4 humilha- Go quando nio a desonra. E h4 maneiras as mais diversas de desconside- cio moral.” E & comum ouvir-se admoestacées dirigidas a imigrantes Esteva Fabregat, Estado, etnicidad y biculturalismo, Barcelona, Ediciones Peninsula, 1984, p. 150. CEE Fredrik Barch, Ethnic group and boundaries: The social organization of culture difference, Oslo, Johansen & Niclsen Boktrykeri, 1969; Roberto Cardoso de Oliveira, Identidade, ctnia e estrutura social, op. cit. Cf Roberto Cardoso de Oliveira (““Identidade, ctnicidade ¢ nacionalidade no Mercosul”, Politica Comparada: Revista Brasiliense de Politicas Comparadas,Vol. 1, n. 2, 1997, p. 5), quando, apoiado em Charles Taylor, procura elucidar essa impor~ tante questo sobre a desconsideragio moral na andlise de um caso concreto relativamente ao Canadi, escreve: “[...] as demandas de reconhecimento tém pelo menos duas caracteristicas importantes que se manifestam de mancira acentuada no caso do Quebec: 1, um forte conteiido simbélico que torna 97 Roberto Cardoso de Oliveira gue ndo dominam o catalao, como: “Tens que aprender o catalao, se nic volte para tua terra”; ou, passando de um argumento lingiifstico para um. de ordem econémica:“Volte para tua terra! Tu vens para nos tirar 0 pao” = Além dos mecanismos mudos de mercado, que por si s6 atuam de mode +2 colocar esses imigrantes nos servigos menos qualificados, observa-se um undo de representages negativas que marcam 0 etnicismo catalio frente 20s inigtantes de um modo geral, sejam eles galegos, bascos ¢, sobretudo, de lingua castelhana, como aqueles provenientes da Andaluzia ou de sstilha, ademais de serem formadores dos contingentes mais numerosos S imigrantes. se toda a relacao social é uma via de mio dupla, o etnicismo do pelos catalaes nao deixa de envolvé-los quando s&o levados a se mirem enquanto identidade étnica — portanto sociologicamente mi- sitiria ~ frente aos castelhanos emigrados de Madti e possuidores de = respeitabilidade, particularmente quando sio fancionirios do Esta- ‘sspanhol. E quando a Catalunha,'stesmo desfiutando 0 regime autond- criado apés 4 morte do ditedor Franco, passa a se relacionar nos os da opressiva dependéncia secular que caracteriza sua interagdo os castelhanos. Como procurei mostrar algures, essa interagao catala/ thana ¢ uma verdadeira antinomia que, por sua vez, fundamenta a da catalanidad.” As representagdes negativas vao colhé-los com 10 carter de desconsideracdo moral que vitimaram galegos, bascos stros imigrantes regionais. Tanto estes como os castelhanos chegam, sm determinadas situagdes, a tratar os cataldes com as mais variadas for- sbsolutamente indissociével a relagio entre direitos e valores; ¢, 2. a dificuldade (Ee serem satisfeitas fora de condigdes dialégicas minimas, nas quais 0 reconhe- Siento do interlocutor reflita uma aceitacio genuina da(s) particularidade(s) © outro. Enquanto a primeira caracteristica indica que a falta de reconheci- mento, ainda que essencialmente simbélico, de desconsideragto — do outro -, pode ameagar direitos através de traduzidos na rejei¢io ou na desvalorizagio da identi- » 2 segunda sugere que a eventual reparagio da desconsideragao © pode ser plenamente efetivada por meios exclusivamente legais”, Fabregat, op. cit., p. 103. == Roberto Cardoso de Oliveira, “Identidade catali e ideologia étnica”, op. cit. 98 Os descaminhos da identidade de descortesia: quando irritados com a lingua catali, assim se expres~ :“a mim, fale-me como cristio!” ou “os catalaes falam como cies!”;¢ ando politicamente indignados, interpelam:“‘nao quereis ser espanhois!” “sois uns separatistas!”; ¢ parecem, ainda, buscar explicagdes que, de 1m modo, possam lev4-los a melhor compreender os donos do lugar, endo: “os catalies sio muito egofstas e fechados!” ou “falais em catalio que nao os entendamos!”.** Diante dessas inversées da etnicidade bservavel em Barcelona, pode-se deduzir que a identidade catali en- enta dois desafios: de um lado, 0 de sustentar 0 seu dominio sobre os pos imigrantes ingressados no territdrio catalio; de outro,o de marcar soberania frente aos castelhanos, representantes reais ou simbélicos do Estado espanhol. Ao estar entre duas frentes na sustentagio de sua dentidade, os catalies — conforme as circunstancias de sua insergio no enario interétnico — vivem a ambigiiidade de sua dupla situagio: a de membros de uma sociedade anfitrid — diante das etnias imigrantes — ¢ a “povo héspede” do Estado espanhol, dominado pelos castelhanos. Isso me leva a considerar ainda mais um ponto que talvez ajude a larecer melhor aquilo que mencionei ha pouco relativamente aos va- ores vigentes para os cataldes, quando inseridos no quadro da nacionali- de espanhola.'Tomo por referéncia uma ampla pesquisa européia sobre lores, que inclui a Catalunha em sua amostragem. Com o titulo “O ema de valores dos catalies” e, por subtitulo, “Catalunha dentro da quisa européia de valores dos anos 90”, 0 livro resultante cobre uma pla variedade de topicos que descrevem os valores catalies associados objetivos sociais ¢ vitais, 4 familia, 4 ética ¢ moral, a religido, aos movi- mentos sociais € institui¢Ges, 4 politica, ao trabalho e 4 economia. Vou-me ‘ter apenas nos valores relativos aos “sentimentos de identidade catali”, te do tépico sobre valores politicos. Para evitar sobrecarregar esta ex- posicio, fiagirei da interpretacio das imimeras tabelas estatisticas em que a Esteva Fabregat, op. cit,, p. 102. Institut Catala D’Estudis Mediterranis, El sistema de valors dels Catalans: Catalunya dins Venquesta europea de valors dells anys 90, Barcelona, Generalitat de Catalunya, 1991. Roberto Cardoso de Oliveira Catalunha é comparada ao conjunto da populagio do pais, bem como com as diferentes etnias, autonomias ou nacionalidades que compéem esse mesmo conjunto. As entrevistas feitas com catalaes que se podem considerar inicialmente — ¢ com brevidade — referem-se a respostas rela~ tivas a duas questdes:““A quais destes agrupamentos geogrificos [relacio- nados na pergunta] vocé diria que pertence, em primeiro lugar?”; e, se- gunda pergunta, “E depois?” As respostas 4 primeira questo (sobre o lugar de pertencimento) possuem indubitavelmente um peso maior com- parativamente 4s respostas 4 segunda questio (sobre o lugar que o entre- vistado escolheria secundariamente) A equacio resultante da combinacio das respostas a essas duas questées indica que: Para 0 total da Espanha, 0 que predominava na primeira mengio era a teferéncia 4 localidade, povoado ou cidade onde se vivia. Em continua— io se mencionava © pais em conjunto, Espanha; ¢ finalmente a regio, o pais [em seu sentido de Catalunya, Pais Base etc.] ou a autonomia. Para a Catalunha a ordem é diferente: sio menos importantes os sentimentos locais referentes ao povoado ou A cidade onde se vive.” Isso significa que, comparada 4 Espanha como um todo,a Catalunha se caracteriza por um “menor localismo” — isto é, identificagio com 0 po- voado ou cidade em que nasceu —, paralelamente a uma “acentuagio da identidade regional ou da nacionalidade catali”.** Mas no se pode dizer que as respostas, sobretudo 4s relativas 4 primeira questio, tenham sido claras e absolutas — razio pela qual houve necessidade de uma segunda questio; e tal fato levou os responsiveis da pesquisa a constatarem que “2 ambivaléncia é moeda corrente” entre os entrevistados catalies, o que, de certo modo, estaria a indicar crises virtuais no processo de identificag3q étnica. Em Altima anilise, isso fortalece a interpretagio sobre a relative ambigitidade da identidade étnica de povos, como 0 catalio, submetidos condigées de existéncia vigentes em cidades cosmopolitas como Barcel: na. E corroborando a essa constatagao, a mesma pesquisa vai demons 25. Institut Catala D’Estudis Mediterranis, op. cit., p. 213. 26 Idem, p. 214. 100 Os descaminhos da identidade gue em cidades “tipicamente” catalis, como Girona ou Tetragona (por- tanto mais conservadoras ¢ provincianas), 0 sentimento de catalanidade tende a ser muito mais forte, sendo que, praticamente, nelas nio se obser- iam indicadores expressivos de ambivaléncia na afirmacio da identi- de como se constata na propria Barcelona.” aR No intuito de explorar um pouco mais a natureza dos processos iden- ios, cabe dizer alguma coisa sobre 0 que considero ser, talvez, senio melhor, pelo menos um dos mais desafiantes cendrios de investigacio re a relagio dialética entre identidade étnica e identidade nacional. assim continuamos com a mesma orientagiio de explorar o poder de ermina¢io dos contextos em que se inserem identidades totais. Quero referir agora ao contexto de fronteiras, isto 6, de fronteiras entre paises. para quem se habituou ao significado de “fronteira cultural” ou ndaries, bastante difundido, cabe dizer que prefiro a expressio “limi- cultural” para dar conta do sentido do termo que lhe atribui Fredrik , teservando a palavra fronteira para expressar 0 conceito tradicio~ de “fronteira politica”, Naturalmente que nao se trata de realizar juisas a respeito de fronteiras, mas apenas realiz4-las na fronteira; e, caso de investigagdes sobre identidade étnica ou nacional, sublinhe- me a fronteira se impde — como jé disse — como um cenario privile- io. Mas antes de falar sobre pesquisas em fronteiras ¢ de sua relevan- especifica para © nosso tema sobre 0 caminhos ¢ descaminhos da tidade, ainda quero permanecer na realidade catali, porém nio mais Catalunha espanhola, mas no (inico pais oficialmente catalio: Andor- situado entre Espanha e Franga, um pafs inteiramente “de frontei- " Algumas reflexdes que sobre ele pretendo fazer servirio de passa~ “A proporgio maior dos que se sentem catalies encontra-se nas populagdes de Girona e Terragona; a proporcio maior dos que se sentem espanhdis se encontra em Barcelona” (Institut Catali d’Bstudis Mediterranis, op. cit. p. 217). IOI o Roberto Cardoso de Oliveira gem para o préximo e ultimo tépico desta exposi¢io, antes de empre- endermos as consideragées finais. Permanecenda, portanto, ainda com o tema catakio, gostaria de trata-lo agora numa outra dimensio, isto é, passando da questo da catalanidade para a da “andorranidade” — ou andorranitat, no idioma catalio. O que significa esse tiltimo termo? Segundo revela uma recente pesquisa reali- zada em Andorra, cabe destacar que a incorporacao de populagio estrangeira [que torna numericamente minoritérios os préprios andorranos] propicia um pro- cesso de construgo nacional em que se procura diferenciar a“andorra~ nidade” da “catalanidade” [...]. Ademais, 0 acelerado processo de mu- danga social, somado a heterogeneidade existente no pais [com a forte presenca de imigrantes de cidadania espanhola ou francesa], é um impe- dimento importante para a construcao de uma “identidade andorrana”, 8 que dificulta a apreensio do sentido de continuidade ¢ do sentido de comunidade que sio imprescindiveis para veicular a identidade.* Desde logo pode-se verificar que 0 quadro que contextualiza o pro- cesso identitario é bastante diferente do encontrado em Barcelona. Nesse pais de fronteira, menos do que se tratar da identidade étnica, a questo critica passa a estar na identidade nacional, portanto na construgao da nacio- nalidade andorrana sobreposta, por sua vez, 4 identidade — étnica — catala, pois que esta é observavel tanto na Espanha e na Franca, quanto em An- dorra. Mas nio sio apenas catalies espanhéis e franceses que emigram para Andorra. Também castelhanos, portugueses e emigrantes de varios outros lugares da Europa procuram se estabelecer nos belos vales dos Pireneus andorranos, tendo-se a destacar ainda a atragiio que a propria 28 Dolors Comas D'Argemir ¢ Joan Josep Pujadas, Andorra, un pais de frontena: Estudi etnogrific dels canvis economics, socials i culturals, Barcelona, Editorial Alta Fulla, 1997, p. 63. “O estudo etnografico dos Vales de Andorra teve como objetivo reconstruir os principais elementos que dio especificidade a socieda- de ¢ 4 cultura andorranas” (idem, p. 9). Foi encomendada pelo governo de Andorra e realizada em 1994-1995 por um casal de antropélogos, Dolors Co- mas D’Argemir e Joan Josep Pujadas, docentes da Universitat Rovira i Virgili de Terragona, da Catalunha espanhola. 102 Os descaminhos da identidade Andorra moderna e urbana exerce nos setores de comércio, finangas ¢ de curismo, Hoje — dizem os antropdlogos que a pesquisaram — ela “é uma ciedade opulenta, plenamente imersa no mundo do consumo e do cos- ‘opolitismo”” e onde trés linguas sio de uso corrente: 0 cataléo, como fioma oficial, mais o francés e 0 castelhano, sendo este tiltimo a principal Tingua de interacio ¢ intercimbio com os numerosos turistas que passam pelo pais. No contexto de Andorra, 0 castelhano tem um valor clara- mente instrumental mais que simbélico ou identitario (exceto para aqueles originirios de zonas de fala castelhana).” Diante desse quadro, as evidéncias que mais se impdem para a eluci- co da nacionalidade andorrana sio as seguintes: 1. Todo o universo cultural deste micro-Estado é catalio; 2. As pessoas nascidas na Catalunha espanhola ou seus filhos tém uma presenca muito numerosa no pais, superior a dos andorranos; 3. Mais de 70% da popu- lagdo residente € estrangeira (umas 45 mil pessoas), diante dos 19.653 cidadios do Estado; 4.A segunda residéncia da imensa maioria dos an- dorranos esti situada nas costas catalis [no mediterrineo]; 5. A imensa maioria dos visitantes e compradores em Andorra é catali; 6. Os meios de comunicacéo mais influentes em Andorra, por razdes lingiifsticas, sio catalis, sobretudo a Televisio da Catalunha.™ Diante disso, pode-se entender a necessidade dos andorranos de afir~ rem sua nacionalidade enquanto distinta da dos demnis catalies, fos- cles franceses ou espanhéis. Diferentemente da antinomia étnica catali/castelhana vigente na Ca- nha espanhola, hi pouco examinada, trata-se em Andorra de uma di- omia®? que nfio é étnica, mas nacional. Dafa andorranidade e 0 esforgo Dolors C. D'Argemir e Joan J. Pujadas, op. cit., p. 65. Idem, p. 63. Ibidem, p. 66. © uso do terme dicotomia em lugar de antinomia aponta para a diferenga de natureza da relagio catalio/castelhano comparada com a relagio catalio (espa~ nhol ou francés)/andorrano: a primeira relagio envolve conflito (étnico) quan do nio explicit, pelo menos virtual; a0 passo que a segunda relagio exprime apenas 0 cardter de diferenciagio (de nacionalidade) na interagio. 103 Roberto Cardoso de Oliveira civico de sua constru¢io. Para encerrar o exame dessa situacio de fro: ra, onde etnia ¢ nacionalidade se justapdem como varidveis no proc identitario, vale a pena tentarmos aqui indicar certas caracteristicas bast te esclarecedoras desse proceso, dotado, alias — como estou procui mostrar — , de profunda ambigiiidade. Essas caracteristicas esto bem: naladas pelos colegas catalies mencionados, D’Argemir e Pujadas. E a: que os contrastes entre nds ¢ eles, marcadores do jogo de exclusio ¢ inch silo que expressa a natureza da identidade contrastiva, podem ser obs vados com referéncia aos seguintes operadores simbélicos: 4. a terra ou territério é certamente o primeiro desses operadores, oni 0 nds sio os filhos da terra € os outros sio os recém-chegados; 6. como segundo operador simbélico, tem-se a histéria real ou supo que remontam a época de Carlos Magno, fundador Principado de Andorra; © sangute, como terceiro operador, passa a ser 0 marcador de w ancestralidade genética, isto €, ser “andorrano de raiz” (na express: —as lendas catala, andorrans de soca); d. lingua apatece como 0 quarto operador, pois se identifica univoca= mente todos os catalies de Espanha e Franca, possui um peso simbé- lico extremamente importante para a cidadania andorrana, uma vez que Andorra é 0 tinico Estado que tem o idioma catalio por lingua oficial; ¢ a propriedade, seja individual ou comunitiria, é um atributo de andor- ranidade que nfo se pode deixar de considerar; f finalmente temos o que se pode denominar de cardter, entendido como “o resultado da acumulagao histérica, [...] como uma variavel abstra- ta” de contetido psicoldgico, porém central na construgio simbélica da cidadania, a bem dizer da esséncia da identidade andorrana. * Em suma, a questo da nacionalidade, quando comparada com a da etnicidade, apresenta-se no mundo andorrano provavelmente como sua 33 Dolors C. D’Argemir e Joan J. Pujadas, op. cit., p. 134. 104 Os descaminhos da identidade expresso mais forte! Nesse sentido, poderiamos consideré-la como o extremo de um espectro (ou gradient) de identidades nacionais, onde a nacionalidade ganha contornos excepcionalmente nitidos, com grande poder de sinalizacio de individuos ou grupos no sistema societério en- volvente. E, naturalmente, no outro extremo do espectro, as identidades nacionais estariam bastante diluidas comparativamente as identidades ét- nicas, como, por exemplo — para ficarmos com 0 outro extremo do espec- tro —, as identidades de indios situados em regides de fronteira, observa- veis em nosso continente. O caso da identidade andorrana que estamos acabando de considerar serve-nos aqui de ilustragio de um “tipo ideal” de identidade nacional, como uma identidade sujeita a ser invocada quase quotidianamente, mesmo quando os cidadaos andorranos se encontram no interior de seu proprio pais; pois qual o sentido de alguém invocar sua nacionalidade quando dentro de seu proprio pais? Isso € algo que parece nao fazer sentido, salvo em 4reas de fronteiras comuns com outros paises, ‘onde a nacionalidade torna-se entio absolutamente operacional — que é, precisamente, o caso de Andorra. ee Interessado em aprofundar a elucidagio dessa questio das identidades &tnicas e nacionais nas situagSes fronteiricas, decidi iniciar um programa de pesquisa voltado precisamente 4s relagdes observaveis em diferentes fronteiras internacionais. Trata-se de um programa de pesquisa capaz de abrigar projetos individuais de investigagio comparada destinados, em sua maioria, i elaborag3o de dissertagdes de mestrado e de teses de dou- toramento, portanto tendo um cardter bastante exploratério.* Quanto as estratégias de investigagio, vale esclarecer que embora © programa tenha ‘tum marco te6rico bastante amplo, uma vez que se filia a0 campo da etni- 34 um programa que tem lugar no Centro de Pesquisa ¢ Pés-Graduagio sobre ‘as Américas da Universidade de Brasilia, destinado ao treinamento de pesquisa~ dores em ciéncias sociais brasileiros e estrangeiros, notadamente latino-ameri- canos. Roberto Cardoso de Oliveira Cidade ¢ das identidades sociais - como j4 pude explicitar em artigo™ — em nenhum momento ele pretende ter 0 monopélio de um ponto de vista, ainda que seja antropoldgico, que venha eliminar a possibilidade de participagZo de estudantes ou de colegas originarios de outras disciplinas, como a sociologia, a ciéncia politica, a psicologia social ou a histéria. O nosso interesse — dos membros deste programa —, é no apenas comparar situagdes de fronteira, a comegar pela compara¢ao de ambos 0s lados des- sa fronteira, mas também proceder a avaliacio das diferentes abordagens ou pontos de vista tedrico-metodolégicos exercitados no trato de uma mesma e€ ampla temitica. Abstraindo-nos dos aspectos estritamente académicos desse progra- ma, sua men¢ao nesta oportunidade se justifica porque nos conduz a um patamar de discussio raramente proporcionado entre nds: o da situagio vivida nas condigées de fronteira, a saber, quando individuos e suas fami- lias vivem compulsoriamente 0 contato com o Outro, aquele que esta “do outro lado”, submetido a outras leis, ditadas por outro Estado nacional, a outros costumes, em suma a outros padrées culturais, quando nao — em alguns casos como o das relagdes entre brasileiros e seus vizinhos hispa- no-americanos ~ a outros idiomas. Dai porque a situag%o de fronteira, assim vivida, diverge radicalmente da situago vivida por cidadios de um “pais de fronteira”, como vimos no caso de Andorra. Quais, portanto, as peculiaridades de cidades fronteiricas como as que podemos observar no espago latino-americano e que se encontram divi- didas — ou, melhor dizendo, unidas -, seja por uma rua (como Rivera e Santana do Livramento ou Chui e Xu, todas na fronteira Brasil-Uru- guai);seja por uma ponte (como Artigas ¢ Quarai ou Rio Branco e Jagua~ rio, na mesma fronteira; mais Uruguaiana e Pasos de los Libres ou Foz do Iguacu e Puerto Iguazu na provincia argentina de Misiones, ou, ainda, nessa mesma provincia, Posada e Cidade del Leste no Paraguai, bem como e também fora do Brasil, na fronteira Uruguai-Argentina, as cidades de 35 Roberto Cardoso de Oliveira, “Identidade, etnicidade ¢ nacionalidade no Mercosul”, op. cit. 106 Os descaminhos da identidade Salto ¢ Concérdia e as de Paysandi-Colén e Concepcién del Uruguai). Esses espagos fronteiri¢os, se bem que concentrados na regido do Merco- sul — pelo tinico motivo de que nessa dea esti se concentrando expressi- vo niimero de pesquisas —, tais espacos nio excluem outros, como 0 cons- titufdo pela articulagio das cidades de Leticia ¢ Tabatinga, praticamente unidas por uma pequena estrada entre Colémbia ¢ Brasil, ¢ por onde transitam indios Tiiktina e nao indios; ou, ainda, para exemplificar com grandes regiées e nao apenas com cidades, a area indigena Raposa/Serra do Sol, habitada pelos Makuxi, nas fronteiras brasileiras com a Guiana e a ‘Venezuela, uma drea que tem estado em grande evidéncia pela luta polf- fica para a sua demarcacao. Também, é importante assinalar que essas regies de fronteira, em maior ou menor grau, abrigam sistemas de interagio entre nacionalidades e etnias extremamente variadas, e no apenas indi- genas, como bem ilustram as 4reas Tiikiina e Makuxi — que acabei de mencionar—, mas também entre contingentes populacionais massivamente representados por imigrantes de diferentes nacionalidades. Essas areas de circula¢io latino-americana e de imigracio européia tanto quanto de pre- senca fragmentada de povos origindrios se apresentam, portanto, nessas warias regides como exemplos privilegiados de interag4o intercultural e nterétnica. Vou me permitir reproduzir aqui algumas consideragées jé feitas algu- sobre esses interessantes cendrios ¢ que se encontram abertos 4 pes- a. F assim que em ambos lados da fronteira se pode constatar a existéncia de contingentes populacionais nao necessariamente homogéneos, mas diferenciados pela presenca de individuos ou grupos pertencentes a dife- rentes etnias, sejam elas autéctones ou indigenas, sejam provenientes de outros paises pelo processo de imigragdo. Ora, isso confere 4 populacio inserida no contexto de fronteira um grau de diversificagao étmica que, somado 4 nacionalidade natural ou conquistada do conjunto populacio- nal de um e de outro lado da fronteira, cria uma situa¢3o sociocultural extremamente complexa. No caso das etnias — se me é concedido o direito de especular —, nao se trata mais de considera-las em si mesmas, isto é, enquanto tais, mas inseri-las num outro quadro de referéncia: 0 quadro (inter)nacional. A rigor, poder-se-ia dizer que tal quadro teria sua configuragio marcada por um processo transnacional, apontando 107 Roberto Cardoso de Oliveira esse termo para 0 cariter dinmico das relagdes sociais vividas em fron— teira. E & precisamente esse processo de transnacionalidade que, a meu ver, se imp@e ao observador como uma instincia empirica sujeita a des- crigdo sistematica. Portanto, no caso de uma situagio de fronteira, aquilo que surge como poderoso determinador social, politico e cultural — pro- vavelmente mais do que a etnicidade — passa a ser a nacionalidade dos agentes sociais. E quando nacionalidade ¢ etnicidade se interseccionam, tal qual identidades que passam a ocupar um mesmo espaco. E exata~ mente esse espaco ocupado pela nacionalidade que tende a se internacio- nalizar, gracas 20 processo de transnacionaliza¢io que nele tem lugar. ‘Torna-se um Ginico espago virtual ~ do ponto de vista social e cultural — ao longo de um processo histérico, onde — como seria de se esperar — apenas a dimensio politica, ou melhor, a identidade politica e, portanto, a nacionalidade, continuaria a marcar a identificagdo dos individuos num ou noutro lado da ftonteira.* Nesse sentido, vale considerar, no que tange ao processo identitario, que se trata de um espago marcado pela ambigitidade das identidades — um espago que, por sua prdpria natureza, abre-se A manipulacio pelas etnias e nacionalidades em conjungio. Vamos examinar mais detidamente 0 caso das etnias indigenas situadas em Areas de fronteira ~ e que constituiriam 0 outro extremo do espectro do processo identitério, ao qual me referi momentos atrés, a saber, em que as identidades nacionais estariam bastante dilufdas quando compara- das as identidades étnicas. No cenirio do alto rio Solimées, onde esto os Jj& mencionados Tiiktina, situados na triplice fronteita Brasil/Colémbia/ Peru, o que se pode observar & a grande facilidade com que esses indios transitam nas fronteiras onde a identidade indigena prepondera nitida- mente sobre as identidades nacionais. Se tomarmos a moeda como sim- bolo de interago entre os atores Tiikéina, veremos que o Real brasileiro, © Peso colombiano € 0 Sol peruano sio para as populacdes fronteiticas um objeto de desejo em nada diéfano, uma vez que as moedas tém sua procura determinada pela maior ou menor taxa cambial do momento! Esses Tiiktina — particularmente os que vivem as margens do Solimées, 36 Roberto Cardoso de Oliveira, “Identidade, etnicidade e nacionalidade no Mercosul”, pp. 13-14. 108 Os descaminhos da identidade uma verdadeira estrada fluvial, pois hd os que vivem mais afastados do grande rio, nos altos igarapés — bem sabem o valor de cada moeda ao cimbio do dia... Jé quanto 4 nacionalidade, como uma segunda identida- de, € claro que ela sera instrumentalizada de conformidade com situagdes concretas em que os individuos ou os grupos estiverem inseridos, como a de procurarem assisténcia a satide, 4 educacao dos filhos ou a uma eventu- al prote¢io junto a forcas militares de fronteira: seriam casos tipicos de manipulagio de identidade junto a representantes dos respectivos Esta- dos nacionais.” Em outros cenftios internacionais nos quais se encontram povos indi- genas, portanto em outras fronteiras, formas bastante inovadoras 4s cultu- ras tribais podem ser observadas, como a necessidade de passaporte invo- cadas por eles para circulacio regional. A divisio dos territérios étnicos por fatores exégenos, como a acao de Estados nacionais invasores, res- ponsiveis por reparti-los em varias jurisdigdes, conforme nos relata 0 antropélogo boliviano Xavier Albé, levaram indigenas de alguns paises, como os Guajiros da Colémbia- Venezuela ou os Shuar do Ecuador-Peru, a postular formalmente uma espécie de passaporte proprio que os permita transitar através do terri- t6rio, para um e outro lado das atuais fronteiras estatais.* O mesmo autor ainda comenta: A freqiiéncia com que ocorrem situagdes semelhantes também em ou- tros paises nos faz pensar que a proposta de um Estado plurinacional resultaria em algo mais vidvel dentro de uma confederagio interestatal a nivel andino ou continental.” Ainda que me pare¢a bastante utdpico, e, pelo que me consta, nao é uma reivindicagio das liderangas indigenas no Brasil, esse é um tema da 37 Em meu livro O indio e 0 mundo dos brances, 0 leitor encontrar’ informacdes cetmogrificas mais completas sobre a insergio desses indios no sistema monetirio, 38 Xavier Albé, “El resurgir de la identidad étnica: Desafios pricticos y tedricos”, in J. Jorge Klor de Alva et alii (orgs.), De la palavra y obra en el Nuevo Mundo, n. 4, “Tramas de la identidad”, Madi, Siglo XXI de Espafia Editores S.A., 1995, p. 431. Idem, p. 431. Roberto Cardoso de Oliveira maior importincia, mas que, infelizmente, extrapola os limites aos quais me impus nesta exposi¢io. Entretanto, é um tema que chama a atengio para varias questdes associadas, como as que se relacionam com o multi- culturalismo ou a sociedade plural, entre outras, todas elas estratégicas Para se pensar © pais ¢ a América Latina no ambito da problemética da construgao de uma sociedade ¢ de um Estado efetivamente democriticos. Mas nada mais interessante ressaltar relativamente as identidades mo- dernas dos “povos origindrios” ~ para adotarmos uma expressio “politi- camente correta”, no 4mbito do atual movimento pan-indigena —, é que os elementos culturais de recente desejo, como a moeda ou o Passaporte, So 0 resultado da necessidade que esses povos tém de incorporar em seu modo de vida meios de sobrevivéncia nesse novo mundo em que foram Obrigados a se inserir.“Softem entio, em nome de uma [suposta] cidada- nia universal, novas formas de colonialismo etnocéntrico”.” Mas o que talvez seja 0 pior é 0 efeito moralmente perverso do etnocentrismo colo- nial que tende a transformar a consciéncia indigena numa “consciéncia infeliz” — para usar essa mesma expressio hegeliana de que me vali em outro lugar —, levando “o indio a se ver com os olhos do branco”, do. colonizador.*' E para voltarmos a um autor ja citado aqui, Charles Taylor, vejamos 0 que ele diz: Apés geragdes, a sociedade branca deu uma imagem depreciativa 4 qual certamente nio tiveram forga para resistir. Desse ponto de vista, esta autodepreciacio tornou-se uma das armas mais eficazes de sua propria opressio. Seu primeiro objetivo deverd ser desembaragar-se dessa iden- tidade imposta e destrutiva. Recentemente, uma anilise semelhante foi feita pelos povos indigenas e colonizados em geral.!® E é verdade que, pelo menos a partir do final dos anos 1960, quando 0s movimentos sociais de afirmagio de identidade comecaram a eclodir — como, no caso dos indios, 0 pan-indianismo esti ai para confirmar -, a 40 Xavier Albé, op. cit., p. 432. 41 CE Roberto Cardoso de Oliveira, O indio ¢ 0 mundo dos brancos, 4. ed., Campinas, Editora da Unicamp, 1996 [1964], pp. 117ss 42 Charles Taylor, Multcultualisme: Diférence et démocatie, Batis, Aubier, 1994, p. 42. 110 Os descaminhos da identidade auto-afirmagio da identidade indigena passou a ser uma regra de aceita- go absoluta pelo movimento. O ser indio passou a ser fonte de dignidade € de auto-valoriza¢io do “Nés tribal”. Tal como no movimento negro norte-americano cunhou-se a expresso “Black is beautiful”, no movi- mento indigena expresses equivalentes comegaram a surgir! O reconhe- cimento da identidade do indigena enquanto ser coletivo passou entio a ser mais do que um direito politico, mas um imperativo moral. Diz’Taylor, que “o reconhecimento nao é simplesmente uma polidez que se faz 3s pessoas: é uma necessidade humana vital”.*? Pode-se dizer, com isso, que a ambigitidade histérica da categoria indio, enquanto termo identitario originalmente pejorative, acabou por se desfazer no bojo dos movimen- tos indigenas libertirios. aR £ 0 momento de conchuir. Pudemos ver que a despeito da variedade dos cendrios examinados — variedade essa propositadamente escolhida -, eles tém em comum um conjunto de pontos que vale ressaltar, De uma maneira muito sucinta, apontaria trés deles; 1. © reconhecimento da identidade étnica ou nacional seria o primeiro, uma vez que cle é fundamental em quaisquer dos cendrios escolhi- dos. Para todas essas manifestages de identidade étnica e nacional talvez se ajuste bem o conceito de identidades traduzidas, formulado originalmente pelo escritor paquistanés Salman Rushdie com a ex- pressio “homens traduzidos”, para exprimir a idéia de homens e mulheres que sao simultaneamente plurais ¢ parciais.!" Os diferentes casos examinados de um modo ou de outro expressam essas identi- dades traduzidas, ainda que com intensidade variével segundo os fa- tores de ordem simbélica, como a cultura, da qualidade do contato 43 Charles Taylor, op. cit., p. 42. 44 Apud Homi K. Bhabha (O local da cultura, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1998). Naturalmente que estou reformulande © conceito com toda liberdade, retendo muito mais 2 nogio de ambigiiidade nele contida. m Roberto Cardoso de Oliveira interétnico e/ou das nacionalidades em conjungéo, bem como se as telagGes entre os agentes sociais sio conflituosas ou nao. Natural- mente que 0 cariter critico da relacio entre 0 Nés € os Outros, gera- dor de crises reais ou potenciais, tem um papel definitivo. Nesse sen tido, pode-se imaginar uma gradacio desde 0 menor grau de viru- Iencia para a maior — como o dos imigrantes sul-americanos (os bra- sileiros e a professora uruguaia nos Estados Unidos) até a situag’io de fronteira vivida por povos indigenas (como os Tiiktna, os Guajiro ou os Shuar), pasando pelos cenarios habitados pelos catalies, em que pudemos visualizar a mencionada dialética entre a etnicidade ¢ a na- cionalidade (em Barcelona e em Andorra). O respeito a diferenga é outro elemento da interag%o social recorrente em todos os cendrios considerados. Evidentemente, também af se pode observar uma variagio no espectro do relacionamento entre Nés © os Outros, desde uma posi¢io em que se rejeita qualquer dife- renga (como no caso dos imigrantes sul-americanos “brancos”), pois ela tende a assumir uma forma étnica (hispanic) quando nio simples- mente racista, em lugar de privilegiar a nacionalidade que seria a natural reivindicagio de cidadio de um outro pais; até a aceitagio voluntitia da diferenga (como os indios na outra ponta do espec- tro), na medida em que ela seja absolutamente respeitada, JA nos cendrios marcados pelas identidades catali ¢ andorrana, o respeito a diferenga se exprime enquanto tolerancia reciproca aos costumes tra dicionais caracteristicos de uns e de outros, sejam eles catalies espa- nhdis, franceses ou andorranos, separados por suas respectivas nacio- nalidades. Como corolirio ético aos dois pontos anteriores, pode-se observar nos diversos cendrios uma expectativa dos agentes sociais, étnicos ou nacionais, quanto 4 elevacio daquilo que poderiamos chamar de “taxa de consideraséo”. E importante de se ter em conta que, enquanto os dois primeiros pontos sio de ordem politica — em que politicas pi blicas como a “agi afirmativa” ou o multiculturalismo, entre outras, teriam uma demanda certa —, este ponto é de ordem moral. E, por essa razio, talvez mais dificil de observagao empirica. Contudo, creio m2, Os descaminhos da identidade que ficou evidenciado no exame dos diferentes cendrios que é a con- sideragao, que esti na base do reconhecimento, aquela sim, mais do que este diltimo, “uma necessidade humana vital” — para repetirmos as palavras de Charles Taylor, agora aplicada 4 consideragio como condi¢io de moralidade nas relagées interétnicas ou entre nacionali- dades. Finalmente, seria esta mesma consideragio pelos Outros, in- dispensivel 4 propria auto-consideragao, como a verdadeira fonte de dignidade do Nés, tanto quanto do Self, seja ele étnico ou nacio- nal. E a énfase que estou pondo na dignidade das identidades desplazadas, traduzidas, ou mesmo estigmatizadas, inerentemente am- biguas devido aos azares dos novos contextos sociais e culturais em que se véem inseridas, espero que venha a ter um significado es- pecial para o desenvolvimento de pesquisas nesta direcdo, em que questées de moralidade, sobretudo quando associadas a processos identitarios como os que foram examinados, possuam a mesma espessura empirica que os demais fenémenos com os quais as cién- cias sociais esto habituadas a investigar. O que diagnostiquei como “(des)caminhos da identidade” nio significa mais do que um alvo de pesquisa e de reflexdo, mas pode ser dtil para estimular estudos nesta direcio. 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US Compreender finalmente que a etnicidade e os mecanismos identitarios subjacentes constituem, no mundo atual, fendmenos quase universais leva-me a acreditar que eles continuarao ainda por muito tempo a atrair a nossa aten¢4o, nao apenas como Cientistas sociais, mas também — e sobretudo — como cidadaos. Essa a principal razao que me animou a reumir estes ensaios com a expectativa de que, mesmo num mundo globalizado, sempre havera espaco para a diversidade étnica e cultural, nao importando a latitude em que estiverem localizadas as sociedades anfitrias. E que Os escritos aqui enfeixados possam ser uma pequena contribui¢ao a0 desenvolvimento e mesmo a renova¢ao de estudos sobre. essa relevante tematica. Hii

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