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do trabalhador brasileiro.
Letras
São Carlos
2007
2
Agradeço
__________________________________
Orientando: Bruno Molina Turra
__________________________________
Orientadora: Profª Drª Vanice Maria Oliveira Sargentini
5
Sumário
1. Introdução.............................................................................................................06
2. Metodologia...........................................................................................................08
2.1. Sobre a Análise do Discurso.......................................................................08
2.2. Articulações entre Memória, História e Discurso......................................14
2.3. Identidade e Subjetividade..........................................................................17
2.4. Dispositivos de análise................................................................................22
2.4.1. Formação Discursiva e Gênero Discursivo.................................22
2.4.2. Ethos e Estereótipo........................................................................27
2.4.3. Oposições temáticas......................................................................29
2.5. O Arquivo e o Corpus..................................................................................33
3. Resultados e Discussões.....................................................................................36
3.1. Algumas discursividades sobre o malandro.............................................36
3.1.1. Sob o olhar das Ciências Sociais.................................................37
3.1.2. Sob o olhar da História..................................................................39
3.2. Zé Carioca, Zé Pequeno e outros Zés: discursos que constroem uma
identidade heterogênea......................................................................................41
3.3. O Samba como lugar da Malandragem......................................................54
3.4. Deslizamentos: um novo gênero, novos efeitos de sentido....................64
3.5. A construção temática da Resistência – A Navalha.................................84
4. Considerações sobre a pesquisa........................................................................88
5. Referências Bibliográficas...................................................................................91
6. Obras e sites consultados para a coleta do corpus..........................................97
7. Discografia............................................................................................................98
8. Anexo - Corpus (por ordem de análise)............................................................101
6
1. Introdução
1
Este tratamento corresponde ao resultado de pesquisa desenvolvido sobre o tema ―A Memória do malandro na
imagem do trabalhador brasileiro‖, ano de 2005, apoio CNPq. Para maior esclarecimento, uma versão resumida
se encontra no item 4.2. deste relatório.
7
apagamento da figura do malandro durante o Governo Vargas e os efeitos que tais práticas
produziram na construção de identidade do trabalhador brasileiro.
Nessa primeira análise do corpus, observamos também que o discurso da malandragem
foi mais amplamente divulgado por meio do samba, o que nos vez pensar num novo
tratamento para este material, atentando então para os gêneros discursivos nos quais os
discursos da malandragem e do trabalho são veiculados e quais efeitos de sentido esses
gêneros podem produzir nos discursos que sustentam.
Faremos, no capítulo seguinte, uma exposição do quadro teórico-metodológico com o
qual trabalharemos.
8
2. Metodologia
2
GREGOLIN, M. R. Análise do Discurso: Os Sentidos e Suas Movências. In: GREGOLIN, Maria do Rosário,
CRUVINEL, Maria de Fátima e KHALIL, Marisa Teresa (orgs.). Análise do Discurso: entornos do sentido; São
Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2001, p.12
3
Traduzido para o português por Eni Pulcinelli Orlandi com o Título de Semântica e Discurso, uma crítica à
afirmação do óbvio.
4
Um estruturalismo especulativo onde são classificados ―trabalhos com fortes matizes ideológicas e filosóficas,
reincorporando as teses estruturalistas problemáticas de Freud e de Marx, em relação ao sujeito e à História‖
como aponta Gregolin, M. em Foucault e Pêcheux na análise do discurso – diálogos e duelos, 2004. p. 25.
9
5
MALDIDIER, D. (Re)Ler Michel Pêcheux Hoje; GREGOLIN, Maria do Rosário (trad.) In: MALDIDIER, D.
(org.) L‟inquietude du discours. Paris: ed. des Cendres, 1990, p. 05.
6
GREGOLIN, M R. op. cit., 2001, p. 18.
10
Fortemente ancorado em Althusser, Michel Pêcheux reafirma que ―os indivíduos são
interpelados em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas
que representam na linguagem as formações ideológicas que lhes são correspondentes‖ 8. Já
com base em Lacan, neste mesmo livro, Pêcheux reformula a teoria dos dois esquecimentos
dizendo que os ―traços inconscientes do Significante‖ não são esquecidos como era suposto,
mas operam entre o sentido e o não-sentido.
Em Semântica e Discurso, uma crítica à afirmação do óbvio, Pêcheux destina ainda
grande parte de sua atenção para o que será um dos principais questionamentos do segundo
momento da AD francesa: o sujeito e sua determinação pela história. Este ponto da teoria
pecheutiana é de suma importância para a análise do processo de construção da identidade do
malandro, pois acreditamos ser fundamental o papel da história nessa constituição identitária.
Um último conceito introduzido por Michel Pêcheux no livro de 1975 é o de
intradiscurso, que surge como conseqüência dos outros conceitos. Sendo intradiscurso, o
―funcionamento do discurso em relação a si mesmo‖, ou seja, a relação do que é dito agora
com o que já foi e o que será dito9.
Na segunda fase da AD francesa, percebemos uma forte influência da política na
teoria. O grupo de Pêcheux trava uma batalha contra o reformismo, o que na teoria resultaria
no ataque ao logicismo gerativista e à sociolingüística. Nesse período toda a teoria da AD foi
repensada e alguns conceitos reformulados.
Pêcheux, em uma comunicação no México em 1977, intitulada Remontémonos de
Foucault a Spinoza, faz uma crítica a Foucault por este não aceitar a idéia marxista da
contradição. Pêcheux reformula, então, o conceito de formação discursiva dizendo que esta,
assim como as formações ideológicas, não pode ser pensada como um ―bloco homogêneo‖. É
a partir desta reformulação da noção foucaultiana de FD e sobre a reflexão das relações entre
ideologia dominante e ideologia dominada, que começa a nascer a idéia de heterogeneidade.
7
GREGOLIN, Maria do Rosário. Foucault e Pêcheux na análise do discurso – diálogos & duelos; São Carlos:
Clara Luz, 2004a, p. 63.
8
PÊCHEUX , M. (1975). Les vérités de la Palice. Paris: Maspero. Trad. Bras. Eni Orlandi. Semântica e
discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. 3ª. Ed. Campinas: Unicamp, 1997, p. 161.
9
MALDIDIER, D. op. cit. 1990, p. 24.
11
10
A fase arqueológica de Foucault compreende as seguintes obras: História da Loucura na Idade Clássica
(1962), O Nascimento da Clínica (1963), As Palavras e as Coisas (1966) e Arqueologia do Saber (1969).
12
Mots e les Choses. Em muitos pontos, ele é diferente, permitindo também diversas correções e
críticas internas‖ 11.
Ao discorrer sobre o conceito de enunciado, Foucault, no capítulo III de Arqueologia
do Saber, o considera a unidade elementar do discurso. O autor prossegue sua explanação
contrapondo o conceito de enunciado a três outros conceitos: a proposição, a frase e os atos de
linguagem (speech acts).
Com relação ao primeiro conceito, o autor o difere de enunciado por este – o
enunciado – estar no plano do discurso, não podendo ser submetido a provas de
verdadeiro/falso por não apresentar formulações equivalentes, o que ocorre com a proposição.
O enunciado se diferencia da frase, pois este não está necessariamente estruturado sob uma
forma lingüística canônica. Uma árvore genealógica, um livro contábil, uma tabela constituem
enunciados sem, entretanto, serem construídos sob a estrutura sujeito – verbo – predicado, por
exemplo. Com relação ao terceiro conceito o qual é contraposto ao conceito de enunciado por
Foucault, os atos de linguagem são, segundo o autor, os que mais se aproximam do enunciado.
Entretanto, em seu método, o autor não propõe visar o ato material (falar e escrever), nem a
intenção do indivíduo que está falando e nem o resultado eventual do que foi dito. Foucault
visa descrever
a operação que foi efetuada pela própria fórmula, em sua emergência (...). O ato
ilocutório não é o que ocorreu antes do momento do enunciado; não é o que se pôde
produzir, depois do próprio enunciado no sulco que deixou atrás de si e nas
conseqüências que provocou; mas sim o que produziu pelo próprio fato de ter sido
enunciado – e precisamente este enunciado (e nenhum outro) em circunstâncias bem
determinadas12.
11
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber; 2.ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986, p. 19.
12
Idem, p. 94.
13
Idem, p. 98.
13
Portanto, o que faz com que uma proposição, uma frase ou um ato de linguagem se
torne enunciado ―é o fato de ele ter sido produzido por um sujeito, em um lugar institucional,
14
determinado por regras sócio-históricas‖ . A essa propriedade do enunciado de não ser
apenas formado por elementos gramaticais e/ou lógicos, mas também de se constituir do
sujeito que o (re)produz, da posição que este sujeito assume e de ser cruzado por regras sócio-
históricas é o que chamamos de função enunciativa.
Outro ponto fundamental para a compreensão do conceito de enunciado proposto por
Foucault é o fato de ele estar inserido numa trama complexa composta por outros enunciados,
atestando assim sua historicidade. A essa série de formulações que margeiam o enunciado,
Foucault denomina campo associado. Segundo o autor:
O campo associado que faz de uma frase ou de uma série de signos um enunciado e que
lhes permite ter um contexto determinado, um conteúdo representativo específico, forma
uma trama complexa. Ele é constituído, de início, pela série das outras formulações, no
interior das quais o enunciado se inscreve e forma um elemento (...). É constituído,
também, pelo conjunto das formulações a que o enunciado se refere (implicitamente ou
não), seja para repeti-las, seja para modificá-las ou adaptá-las, seja para se opor a elas,
seja para falar de cada uma delas; não há enunciado que, de uma forma ou de outra, não
reatualize outros enunciados (...). É constituído, ainda, pelo conjunto das formulações
cuja possibilidade ulterior é propiciada pelo enunciado e que podem vir depois dele
como sua conseqüência, sua seqüência natural, ou sua réplica (...). É constituído,
finalmente, pelo enunciado em questão, entre as quais toma lugar sem consideração de
ordem linear, com as quais se apagará, ou com as quais, ao contrário, será valorizado,
conservado, sacralizado e oferecido como objeto possível, a um discurso futuro (...).
Pode-se dizer, de modo geral que uma seqüência de elementos lingüísticos só é
enunciado se estiver imersa em um campo enunciativo em que apareça como elemento
singular15.
14
GREGOLIN, M. R. O enunciado e o arquivo: Foucault (entre)vistas. In: SARGENTINI, Vanice &
NAVARRO, Pedro. Foucault e os domínios da linguagem: discurso poder e subjetividade. São Carlos: Claraluz,
2004b. pp. 23 – 44, p. 26.
15
FOUCAULT, M. op. cit. 1986, pp. 112 – 113.
14
estabelecer regularidades. É a partir destes conceitos que Foucault constrói seu método
arqueológico de análise.
16
SARGENTINI, Vanice Maria Oliveira. Discurso e História: A construção de identidade do trabalhador
brasileiro. In: GREGOLIN, Maria do Rosário, CRUVINEL, Maria de Fátima e KHALIL, Marisa Teresa (orgs.).
Análise do Discurso: entornos do sentido; São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2001. (pp. 249 – 261), p. 249.
17
GREGOLIN, M. R. op. cit. 2004a, p. 165.
15
Ainda com base em Foucault, podemos dizer que a descontinuidade só foi possível de
ser trabalhada ao se tirar o sujeito do centro do fazer histórico. Pois
Este novo modo de se trabalhar a história acaba com o ―sono tranqüilo‖ do sujeito e
implica também um novo modo de se olhar para os documentos. Trata-se agora de
monumentalizá-los, de estudar não os documentos neles mesmos, mas suas condições de
produção, interpretando assim, o modo como uma sociedade se representa. Para Foucault:
O documento não é mais, para a história, essa matéria inerte através da qual tenta
reconstruir o que os homens fizeram ou disseram. (...) ela procura, no interior do
próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações.20
18
FOUCAULT, M. op. cit. p. 06.
19
Idem, p. 14.
20
Idem, p. 07.
16
(...) a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças
sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das
grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e
dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são
reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. 23
Essa citação nos remete ao belo texto de Courtine (1999), O Chapéu de Clémentis, no
qual faz algumas observações sobre o lugar da memória no campo do discurso político, mais
precisamente o discurso político endereçado aos cristãos, mostrando-nos como se dão esses
apagamentos na materialidade lingüística.
Em nosso trabalho, mostraremos algumas marcas de apagamento do que poderíamos
chamar de ―filosofia da malandragem‖ principalmente na Era Vargas, quando se tentava
instaurar uma nova ideologia do trabalho, numa tentativa de modificar a memória coletiva.
Na AD francesa, adota-se também o termo memória discursiva quando se refere aos
sentidos socialmente cristalizados nos quais se baseiam os discursos, tirando destes sentidos já
cristalizados sua identidade24. Nesse mesmo caminho, Payer afirma que
21
GREGOLIN, Maria do Rosário. Recitações de mitos: a História na lente da mídia. In: GREGOLIN, M. do
Rosário (org.). Filigranas do discurso: as vozes da história. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2000. pp. 19
– 34, p. 21.
22
Pierre Nora apud LE GOFF, J. ―Memória‖. In História e Memória. 3a. ed.. Trad. Bernardo Leitão et al..
Campinas: Ed. Da Unicamp, 1994, p. 472.
23
LE GOFF, J. op. cit. 1994, 426.
24
BARONAS, R. L. Configurações da memória discursiva em slogans políticos. In: GREGOLIN, M. do Rosário
(org.). Filigranas do discurso: as vozes da história. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2000. pp. 69 – 84.
17
25
PAYER, Maria Onice. Memória da língua-imigração e nacionalidade. Campinas, SP: UNICAMP – IEL,
1999, p. 22.
26
Mercer, 1990, 43 apud HALL , Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 5ª.ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2001, p. 09.
27
HALL, S. op. cit. 2001, p. 26.
18
28
Idem. Ibidem.
29
Idem, p. 31.
30
Idem, pp. 34 – 35.
19
de Saussure que argumentava que, em nenhum sentido, o sujeito é autor de seu dizer. A língua
é um sistema social e não individual, e deste modo preexiste ao sujeito. O desenvolvimento do
pensamento saussuriano considera o ―falar uma língua‖ não como pura e simples
representação do pensamento, mas também a ativação de ―uma imensa gama de significados
que já estão embutidos em nossa língua e em nossos sistemas culturais‖31.
O quarto descentramento ocorre a partir dos estudos do filósofo Michel Foucault que
compreendia ―as microrrelações sociais como relações de poder guiadas o tempo todo pelo
desejo (inconsciente, inefável) de controle e de verdade‖32. O quinto descentramento é o
impacto do feminismo por ter questionado a distinção clássica entre o ―dentro‖ e o ―fora‖, o
―privado‖ e o ―público‖. Esse movimento tinha como slogan ―o pessoal é público‖ o que,
segundo Hall, abriu para a contestação novos campos da vida social como a família, a
sexualidade, o trabalho doméstico, a divisão do trabalho doméstico, etc. Colocou como
questão também o modo pelo qual somos formados e produzidos enquanto sujeitos
generificados, politizando a subjetividade, a identidade e os processos de identificação (como
homem/mulher, mãe/pai, filho/filha). O que começou como uma contestação da posição social
das mulheres resultou no questionamento da formação das identidades sexuais e de gênero.
Foi, portanto, através dessas rupturas com o pensamento moderno que o sujeito deixou
de ser entendido como possuidor de uma identidade fixa e estável e passou a uma concepção
de sujeito que é dada no inconsciente, comprovando assim a incompletude e a
heterogeneidade. É dessa forma que a AD francesa compreende o sujeito pós-moderno, um
sujeito cindido, disperso, heterogêneo, que mais é dito do que diz. E é nesse sujeito que
observamos os efeitos da globalização.
Hall, retomando os estudos de Harvey33, entende esse fenômeno como uma
compressão do espaço e do tempo e que identidades são representações em curso das quais
tempo e espaço são coordenadas básicas. A desestruturação destas coordenadas básicas
evidencia os vazios de subjetividade que outrora eram mascarados pela concepção de sujeito
soberano. Esse desmascaramento resulta em dois processos que assumem caminhos opostos:
de um lado o processo de afirmação de identidades locais como forma de resistência à
31
Idem, p. 40.
32
CORACINI, M. J. Subjetividade e identidade do(a) professor(a) de português. In: _______. (org.) Identidade e
Discurso – (des)construindo subjetividades. Campinas: Unicamp/Argos, 2000, pp. 241 – 242.
33
HARVEY, D. The Condition of Post-Modernity. Oxford: Oxford University Press, 1989.
20
34
ROLNIK, Suely. Toxicômanos de identidade – subjetividade em tempo de globalização. In: LINS, Daniel
(org.) Cultura e Subjetividade – Saberes Nômades. Campinas, SP: Papirus, 2000. (pp. 19 – 24), p. 20.
35
Idem, p. 22.
21
Rolnik conclui que tanto de um lado, resistindo às identidades globais, tanto de outro,
ultrapassando o limiar da suportabilidade deste vazio que deve ser preenchido, o que se tenta
fazer é domesticar as forças. E para ambos os sentidos, o sucesso inexiste. Inscrever-se na
pós-modernidade é ―enfrentar os vazios de sentido provocados pelas dissoluções das figuras
em que se reconhecem a cada momento. Só assim poderão investir a rica densidade de
universos que as povoam, de modo a pensar o impensável e inventar possibilidades de vida‖.39
É com essa concepção de sujeito pós-moderno que observaremos como se comporta o
que num primeiro momento chamamos de identidade do malandro e identidade do trabalhador
e como essas identidades apresentadas como homogêneas vão ao longo do tempo se
esfacelando e se tornando discursos que compõem identidades heterogêneas.
36
Idem. Ibidem.
37
Idem. Ibidem.
38
Idem, pp. 22 – 23.
39
Idem, p. 24.
22
40
GUILHAUMOU, J. Os historiadores do discurso e a noção-conceito de formação discursiva: narrativa de uma
transvaliação imanente. In: RODRIGUES, A. (coord.) Revista ECOS. Lingüísticas e Literaturas. Cáceres – MT:
Editora Unemat, 2005. pp. 107 – 115.
41
BARONAS, R. L. Formação discursiva em Pêcheux e Foucault: uma estranha paternidade. In: SARGENTINI,
Vanice & NAVARRO, Pedro. Foucault e os domínios da linguagem: discurso poder e subjetividade. São Carlos:
Claraluz, 2004. pp.45 – 62.
42
Texto apresentado em forma de comunicação oral no evento intitulado Mots, Discours, Ideologie: de l‟analyse
du discours à celle de l‟ideologie lês formations discoursives, Montpellier, 26 – 27 de abril de 2002.
43
Foucault traz como unidades o que compreendemos como a gramática, a economia, a medicina, etc.
23
possibilidades estratégicas que mobilizam temas diversos, que Foucault entende a FD como
um conjunto de enunciados que apresentam regularidades em sua dispersão. Em suas palavras,
Enquanto Pêcheux, bem mais próximo dos estudos lingüísticos e do marxismo relido
por Althusser, concebia a construção de uma teoria do discurso intimamente ligada a um
projeto de intervenção na luta de classes. Desse modo, é em 196845 de forma ainda
embrionária que cunha o termo formação discursiva, tendo como hipótese ainda que a
produção de traços discursivos em um corpus é dominada por apenas uma ―máquina
discursiva‖. Já em 197146, sustentando a crítica feita aos lingüistas pós-saussurianos, Pêcheux
desenvolve o conceito de formação discursiva ancorado em sua leitura dos clássicos do
marxismo entendendo a formação ideológica como tendo um de seus componentes ―une ou
plusieurs formations discoursives interreliées, qui déterminent ce qui peut et doit être dit
(articulé sous la forme d‟une harangue, d‟un sermon, d‟un pamphet, d‟un exposé, d‟un
programme, etc.) à partir d‟une position donnée dans une conjoncture donnée”47. Pêcheux
ainda ressalta a produção de sentido dada pelas construções nas quais as palavras se
combinam, ou seja, ―les mots „changent de sens‟ en passant d‟une formation discoursive à
une autre‖48
É então em 1975, com a publicação de Les Verités de La Palice, instaurando um
segundo momento na AD, como já apresentamos em 3.1., o autor reformula esta noção,
entendendo-a não mais como um lugar homogêneo, mas permeado de discursos vindos de
44
FOUCAULT, M. 1986, p. 43.
45
Referimo-nos ao texto Lexis et metalexis: les problemes des determinants escrito juntamente com C. Fuchs.
In: CULIOLI, A. (org.) Cahiers pour l‟analyse, Editions du Seuil, n.9, juillet 1968.
46
Referimo-nos ao texto La sémantique et la coupure saussurienne: langue, langage, discours. In :
MALDIDIER, D. L‟inquietude du Discours : textes de Michel Pêcheux. Édition du Cendres, 1990, p. 133 – 153.
47
PECHÊUX, M. La sémantique et la coupure saussurienne: langue, langage, discours. In : MALDIDIER, D.
L‟inquietude du Discours : textes de Michel Pêcheux. Édition du Cendres, 1990, p. 133 – 153, p. 148. grifos do
autor.
48
Idem. Ibidem.
24
outros lugares, de outras formações discursivas. Diante disso, surge a noção de interdiscurso
para designar ―‗o exterior específico‘ de uma FD enquanto este irrompe nesta FD para
construí-la em lugar de evidência discursiva, submetida à lei da repetição estrutural
fechada‖49, mantendo ainda um fechamento da maquinaria discursiva.
Com o prosseguimento dos estudos do discurso, que já se aproximam da Nova História
e da Psicanálise, instaurando o que se denominou de terceiro momento da AD, o grupo de
Pêcheux acredita não ser mais possível se pensar numa maquinaria discursiva estrutural, nem
mesmo, talvez (como coloca o próprio Pêcheux), no conceito de FD uma vez que esta, por ser
constituída de discursos outros, produzidos em outros lugares, não pode mais determinar suas
fronteiras.
Quanto à noção de Gênero Discursivo (GD), produzido em condições bem diferentes
das quais foi pensada a noção de FD, trata-se de uma questão latente em toda a obra de
Mikhail Bakhtin, mas elaborada somente em 1952-1953 no artigo intitulado Os Gêneros do
Discurso, presente no livro Estética da criação verbal, uma compilação feita de textos deste
pensador russo. Neste artigo, Bakhtin compreende enunciado como sendo a materialidade da
utilização da língua a partir da interação de integrantes de uma esfera da atividade humana,
sendo ele concreto e único.
Ainda segundo o autor, ―o enunciado reflete as condições específicas e as finalidades
de cada uma dessas esferas‖50. Tais condições e finalidades são marcadas por três elementos
que Bakhtin considera fundamentais e indissolúveis no ―todo do enunciado‖51, sendo eles
conteúdo temático, estilo e construção composicional, marcados pela especificidade de uma
esfera de comunicação. Por se tratar, portanto, de especificidades de esferas de comunicação,
enunciados produzidos a partir de uma esfera apresentam regularidades, caracterizando assim,
o que o autor chama de GD. Nas palavras de Bakhtin, ―cada esfera de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros
do discurso‖52.
49
PECHÊUX, M. (1983) A Análise do Discurso: Três épocas. In: GADET, F. e HAK, T. (orgs.) Por uma
Análise Automática do Discurso – Uma Introdução à obra de Michel Pêcheux, Campinas: Editora da UNICAMP,
1997. (pp. 311 – 318), p. 314.
50
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 2000. (pp. 279 – 326), p. 279.
51
Idem. Ibidem.
52
Idem. Ibidem.
25
É importante ressaltar ainda que a noção de GD não foi elaborada por Bakhtin para
funcionar como um mecanismo taxonômico dos discursos, mas para se pensar o dialogismo na
emergência do enunciado, o enunciado sempre em relação de resposta a outro enunciado, e
―dimensionado como manifestação da cultura‖53.
Uma propriedade bastante interessante do gênero é sua ―expressividade determinada,
típica‖54. Para o autor, cada gênero comporta circunstâncias e temas típicos fazendo com que
as palavras obtenham significações determinadas pelo gênero no qual são inseridas. Essa
propriedade faz-nos aproximar a noção de GD à de FD de Pêcheux, quando este propõe, como
já mencionamos anteriormente, que as palavras mudam de sentido de acordo com a FD na
qual estão inseridas. Assim, conforme aponta Baronas, acreditamos que
53
MACHADO, Irene. Gêneros discursivos. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin – conceitos-chave. São Paulo:
Contexto, 2005 (pp. 151 – 166), p. 158.
54
BAKHTIN, M. op. cit. 2000, p. 312.
55
BARONAS, R. L. op. cit. 2004, p. 60.
56
PÊCHEUX, M. op. cit. 1990.
26
Bakhtin tem como norte apontar para a interação verbal, em seus níveis mais amplos,
opondo-se a um modelo comunicacional, além de avançar em seu tempo ao posicionar-
se contra um modelo que desconsidere o acontecimento. Foucault, na busca de
compreender a arquegenealogia, e a forma como se constroem as relações históricas
entre os saberes e os poderes em temáticas variadas (a loucura, o sistema prisional, a
sexualidade), atua na análise de discursos em campo vasto. M. Pêcheux pauta-se na
unidade discurso para propor modos de leitura, sobretudo do discurso político, com
vistas à militância da esquerda comunista. Para esses autores, o discurso mostra-se
central e, embora, apresentem a noção de discurso imbricada a de enunciado (enunciado
concreto [Bakhtin], função enunciativa [Foucault]), não limitam tal noção à situação
imediata de enunciação, e sim considerando as condições de emergência de
enunciados.57
57
__________. Bakhtin, Pêcheux e Foucault: é preciso escolher nossas heranças. In: Revista de Estudos
Lingüísticos, 2006. Disponível em: http://gel.org.br/4publica-estudos-2006/sistema06/vmos.pdf, acessado em 15
ago. 2006.
58
BRANCA, S. R. Formation Discursive: une notion trop ambigue? 2003 (mimeo), p. 07 apud. BARONAS,
2004, op. cit. p. 57.
59
Idem. Ibidem.
27
análise, uma vez que nossa proposta é observar a afinidade existente naquilo que chamamos
de FD da malandragem e GDs do samba e do rap.
60
AMOSSY, Ruth (org.), Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Editora Contexto, 2005.
Amossy, p. 09
61
KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine, L‘Énonciation de la subjectivité dans le langage. Paris: Colin, 1980, p.
32.
62
DUCROT, Oswald. Le dire e le dit. Paris: Minuit, 1984.
28
O ethos está ligado a L, o locutor como tal: é como origem da enunciação que ele se
vê investido de certos caracteres que, em contrapartida, tornam essa enunciação
aceitável ou recusável63
O ‗fiador‘, cuja figura o leitor deve construir com base em indícios textuais de
diversas ordens, vê-se, assim, investido de um caráter e de uma corporalidade, cujo
grau de precisão varia conforme os textos. O ‗caráter‘ corresponde a um feixe de
traços psicológicos. Quanto à ‗corporalidade‘, ela é associada a uma compleição
corporal, mas também a uma forma de vestir-se e de mover-se no espaço social. O
ethos implica assim um controle tácito do corpo, apreendido por meio de um
comportamento global. Caráter e corporalidade do fiador apóiam-se, então, sobre um
conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, de
estereótipos sobre os quais a enunciação se apóia e, por sua vez, contribui para
reforçar ou transformar. Esses estereótipos culturais circulam nos registros mais
63
Idem, p. 201.
64
MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth (org.), Imagens de si no
discurso: a construção do ethos. São Paulo: Editora Contexto, 2005.
65
Mainguenau propõe uma primeira apresentação em Genèse du discours (Mardaga, 1984.) que foi reelaborada
em Novas tendências em análise do discurso (São Paulo, Pontes, 1987) e em L‟Analyse du discurs (Paris,
Hachete, 1991).
66
Idem, p. 75.
29
67
Idem, p. 72.
30
portanto, solidamente. O autor observa também que, no Brasil, o movimento da ordem para a
desordem e vice versa não implica um choque de consciência :
Carnaval e Dia da Pátria constituem-se nos dois rituais de maior duração no Brasil,
sendo somente comparáveis à Semana Santa, devotada aos ritos que recriam a Paixão
e Ressurreição de Cristo. Essas três semanas festivais sugerem um ‗triângulo ritual
brasileiro‘ muito significativo, sobretudo nas suas implicações políticas, uma vez que
temos festas devotadas à vertente mais institucionalizada do Estado Nacional (suas
Forças Armadas), festas controladas pela Igreja (outra corporação crítica na formação
da sociedade brasileira) e, finalmente, as festas carnavalescas, consagradas à vertente
mais desorganizada da sociedade civil, ou melhor, da sociedade civil enquanto povo
ou massa. (...) Teríamos então um ciclo de festividades que vão do povo ao Estado,
passando pela Igreja, numa forma organizatória típica de um sistema muito
preocupado com o ‗cada qual no seu lugar‘ e o ‗cada macaco no seu galho‘. 69
Essas três festividades têm seus respectivos mecanismos básicos: o esforço (Dia da
Pátria), a neutralização (Semana Santa) e a inversão (Carnaval), e como personagens
característicos respectivamente, o caxias, o renunciador e o malandro. Nessa linha de
raciocínio o malandro aparece como personagem típico dos rituais coletivos de inversão da
ordem social – os carnavais.
68
CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: _________. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas
Cidades, 1993, pp. 50 – 51.
69
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis – para uma sociologia do dilema brasileiro. 5. ed. Rio de
Janeiro: Guanabara Koogan, 1990, p. 44.
31
Vale ressaltar também o recurso metodológico que nos será bastante útil: a dicotomia
casa x rua. Roberto Da Matta estabelece diversas oposições entre esses dois domínios sociais
básicos de forma a construir este interessante instrumento de análise do mundo social
brasileiro.
Dentre as oposições feitas, destacaremos três que julgamos mais significativas para
nosso trabalho:
- Caracterização:
(...) a categoria rua indica basicamente o mundo, com seus imprevistos, acidentes e
paixões, ao passo que a casa remete a um universo controlado, onde as coisas estão
nos seus devidos lugares. Por outro lado, a rua implica movimento, novidade, ação, ao
passo que a casa subentende harmonia e calma.73
- Processo de hierarquização:
70
Idem, p. 74.
71
Idem, p. 225.
72
Idem, p. 247.
73
Idem, p. 73.
32
Uma conseqüência disso é que na rua é preciso estar atento para não violar hierarquias
não-sabidas ou não-percebidas. E para escapar do cerco daqueles que nos querem
iludir e submeter, pois a regra básica do universo da rua é o engano, a decepção e
malandragem, essa arte brasileira de usar o ambíguo como instrumento de vida (...) 75
- Formas de controle:
O traço distintivo do domínio da casa parece ser o maior controle das relações sociais,
o que certamente implica maior intimidade e menor distancia social. (...) Mas a rua
implica uma certa falta de controle e um afastamento. É o local do castigo, da ‗luta‘ e
do trabalho. Numa palavra, a rua é o local daquilo que os brasileiros chamam de ‗dura
realidade da vida‘. Em suma, a rua – enquanto categoria genérica em oposição à casa
– é o local público, controlada pelo ‗Governo‘ ou pelo ‗destino‘, essas forças
impessoais sobre as quais o nosso controle é mínimo. 76
Com base nestes traços distintivos entre a casa e a rua propostos por Da Matta, e
pensando na relação existente entre esses domínios sociais e os personagens com os quais
trabalharemos – o malandro e o trabalhador – entendemos que ambos se constituem como
personagens da rua, entretanto, a relação do trabalhador com casa é afirmativa, ou seja, é para
a manutenção dela que o indivíduo se lança à rua caracterizando-se como trabalhador, em
contrapartida, a relação estabelecida entre o malandro e a casa é de negação, e caracteriza-se,
por estabelecer , no domínio da rua, relações que normalmente seriam encontradas na casa.
Outro texto que acreditamos ser bastante relevante em nossa pesquisa é o artigo
―Dialética da Marginalidade – caracterização da cultura brasileira contemporânea‖, de João
Cezar de Castro Rocha, publicado a 29/02/2004 no jornal Folha de São Paulo. Neste artigo,
74
Idem. Ibidem.
75
Idem, p. 74.
76
Idem, p. 75.
33
Rocha propõe uma nova estética para a análise da produção cultural contemporânea – a
dialética da marginalidade, na qual não se trata mais de conciliar diferenças (como era na
dialética a malandragem), mas de evidenciá-las. Para o autor a política do ―deixa disso‖, da
paciência deslocou-se para a política do conflito, da violência, embora ainda seja evidente a
funcionalidade da lógica do favor, como ressalta em:
É com base nestes textos (e mais alguns outros), por nós considerados os discursos
fundadores da problemática da malandragem, que estudaremos, na música, as movências de
sentido no discurso do/sobre o malandro e a presença de traços destes discursos no discurso do
trabalhador.
O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento
dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz
com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa
amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não
desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras
distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se
mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas.78
77
ROCHA, José Cezar de Castro. Dialética da Marginalidade. In: Folha de São Paulo – Caderno Mais! 29 de
fevereiro de 2004. (pp. 4 – 8), p. 07.
78
FOUCAULT, M. op. cit. 1986, p. 149.
34
O arquivo, justamente por não ser uma ―massa amorfa‖, é construído, não como uma
mera reunião de textos, mas como uma ―seleção de documentos que atinjam um sentido
determinado‖79.E além disso, o arquivo, situado entre a língua (que define a construção das
frases possíveis) e o corpus (―que recolhe passivamente as palavras pronunciadas‖80),
possibilita o tratamento e a manipulação de enunciados enquanto acontecimentos discursivos.
Tendo em mente a impossibilidade da descrição do arquivo por completo,
entenderemos o corpus como um recorte significativo do arquivo a ser analisado. Não
podemos perder de vista, entretanto, que a organização e seleção do corpus não tem como ser
imparcial, ou seja, não é possível livrarmo-nos da influência sócio-histórica por estarmos nela
(e por ela) constituídos.
Amparados pela noção foucaultiana de arquivo, podemos trabalhar, em nossa pesquisa,
com um corpus representativo e não necessariamente quantitativo. Dessa forma,
abandonaremos a noção de um corpus fechado, focando nossa análise em séries arquivísticas.
Tal abandono já é efetuado por Guilhaumou e Maldidier (1979) ao denunciarem o caráter
tautológico da construção do corpus fechado: ―a co-variação entre formas da língua e
posicionamentos sociais aparece como uma conseqüência de montagem do corpus, o qual se
fundamenta inteiramente sobre um procedimento prévio‖81.
Guilhaumou, retomando as palavras de Deleplace, justifica o abandono do corpus
fechado:
Pour le jeune historien du discours Marc Deleplace, cet abandon, justifié par la
nécessaire ouverture au large éventail des publications imprimées et des sources
manuscrites, permet de passer du discours comme simple objet de l‘histoire au discours
constitué comme objet social en lui-même (Deleplace, 1996)82
79
SARGENTINI, Vanice Maria de Oliveira. Vozes Anarquistas: gênese do trabalhismo brasileiro. In:
GREGOLIN, Maria do Rosário (org.). Filigranas do Discurso: as vozes da História; São Paulo: Cultura
Acadêmica Editora, 2000. (pp. 213 – 229).
80
FOUCAULT, M. op. cit. 1986, p. 150.
81
CHARAUDEAU, P. e MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004,
p. 140.
82
GUILHAUMOU, J. Le corpus en analyse de discours perspective historique. 2004. Disponível em:
http://revel.unice.fr/corpus/document.html?id=8&format=print. Acesso em: 05 jan. 2006.
35
É no sentido de tomarmos o discurso como um objeto social nele próprio e não como
um simples objeto da história, que trabalharemos com a análise de séries arquivísticas. A
construção de nossa série (em anexo) apresenta como critérios de seleção o tema – enunciados
que constroem o ethos do malandro e do trabalhador –, o gênero discursivo – canção – e o
período dos textos – desde o início do século XX até os dias de hoje. É interessante ressaltar
que após o início das análises outra regularidade se fez evidente, o samba. Observamos que ao
se cruzar o tema da malandragem com o gênero canção, obtivemos uma precisão maior com
relação à regularidade do gênero, sendo o samba, mais especificamente, o gênero pelo qual o
malandro se constitui.
A partir das conclusões que apontam para um deslocamento do gênero no qual a FD da
malandragem era veiculada, uma nova série arquivística tornou-se necessária. Esta,
apresentando como critérios de seleção o gênero rap, a temática – o rap enquanto lugar
enunciativo do malandro -, e adotando o mesmo período da série anterior, tem por objetivo
evidenciar/ justificar as novas condições de produção do discurso da malandragem que, como
pudemos observar, se deslocou do samba para o rap.
Depois de traçado esse panorama teórico e explicitado nosso corpus, partiremos para a
análise dos discursos sobre o malandro que constroem a identidade do trabalhador brasileiro.
36
4. Resultados e Discussões
83
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel Sobre o Achamento do Brasil.
São Paulo: Martin Claret, 2002, pp. 118 – 119 – Grifo nosso.
84
Vogt, 2001 apud NAVARRO-BARBOSA, Pedro Luis Navarro. Navegar foi preciso? – O discurso do
jornalismo impresso sobre os 500 anos do Brasil. Araraquara: UNESP – FCL, 2004
37
Iniciaremos nossa busca por tais discursos com a retomada de um dos primeiros
estudos sobre a brasilidade, trata-se de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. A obra
publicada em 1933 gerou, como dizem alguns escritores da época, uma ―distabuzação‖ ou
―desrecalque‖86 pela presença de uma relativa valorização do mestiço. A mestiçagem
teorizada por Freyre proporcionou uma mudança nos estudos sobre a identidade do brasileiro,
pois rompeu com o pensamento de que a ―mistura de raças‖ seria responsável pelo atraso do
Brasil quando comparado à Europa.
Em 1936, Sérgio Buarque de Holanda publica Raízes do Brasil, outra obra que
contribuiu para a construção de um imaginário acerca do brasileiro. Apoiando-se em
dualismos como os princípios das atividades humanas (trabalho e aventura), o autor se
distancia de Gilberto Freyre ao se apoiar na cultura luso-ibérica para explicar a brasilidade.
O autor caracteriza o que ele próprio denomina de dois princípios reguladores das
atividades humanas baseando-se na figura do aventureiro e do trabalhador:
Para uns [os aventureiros], o objeto final, a mira de todo o esforço, o ponto de chegada
assume relevância tão capital, que chega a dispensar, por secundários, quase
supérfluos, todos os processos intermediários. Seu ideal será colher o fruto sem
plantar a árvore.
Esse tipo humano ignora as fronteiras. No mundo tudo se apresenta a ele em generosa
amplitude e onde quer que se erija um obstáculo a seus propósitos ambiciosos, sabe
transformar esse obstáculo em trampolim. Vive dos espaços ilimitados, dos projetos
vastos, dos horizontes distantes.
O trabalhador, ao contrário, é aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não
o triunfo a alcançar. O esforço lento, pouco compensador e persistente, que, no
entanto, mede todas as possibilidades de esperdício e sabe tirar o máximo proveito do
85
NAVARRO-BARBOSA, P. L. op. cit. 2004, p.289.
86
Em O Mistério do Samba, Hermano Vianna remonta a atmosfera da época de publicação de Casa Grande e
Senzala, retomando falas de alguns escritores da época.
38
insignificante, tem sentido bem nítido para ele.Seu campo visual é naturalmente
restrito. A parte maior do que o todo.87
Ainda neste estudo, Sérgio Buarque caracteriza os portugueses como um povo muito
mais aventureiro que trabalhador pelo fato de os portugueses terem uma inclinação maior para
a exploração em outros continentes a desenvolverem uma economia interna bem estruturada.
Como explicar, sem isso, que os povos ibéricos mostrassem tanta aptidão para a caça
aos bens materiais em outros continentes?
E essa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições e riquezas
fáceis, tão notoriamente característica da gente de nossa terra, não é bem uma das
manifestações mais cruas do espírito de aventura? 88
(...) Damião de Góis admitia que o labor agrícola era menos atraente para seus
compatriotas do que as aventuras marítimas e as glórias da guerra e da conquista.89
A respeito dos povos nativos de nossa terra, Sergio Buarque também os considera
muito mais aventureiros, e se justifica com base na má adaptação (resistência) do indígena ao
trabalho imposto pelos colonizadores.
87
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1975, p. 13.
88
Idem, p. 15.
89
Idem, p.19.
90
Idem, pp. 17 – 18.
39
Com base nos tipos do aventureiro e do trabalhador como reguladores das atividades
humanas e como sendo os portugueses e os indígenas, num primeiro momento, os principais
formadores do povo brasileiro, ambos regidos pelo princípio da aventura, sustenta-se um
discurso de que houve no Brasil um terreno ideologicamente propício ao desenvolvimento do
malandro.
Na mão deste mesmo discurso encontramos Pedro Malasartes, personagem folclórico
oriundo da Península Ibérica, o qual se adaptou muito bem ao folclore latino americano, sendo
encontrado inclusive entre os Apinayé, grupo indígena de língua Jê e com fortes laços com a
cultura brasileira91.
91
DA MATTA, R. op. cit. 1990.
92
WISSENBACH, M. C. Cortez, Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível. In:
SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil 3 – República: da Belle Époque à era do Rádio.
São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 59.
40
(...) Perseguições que se sucederam contra os vadios, os que não tinham residência ou
trabalho fixos, os curandeiros, os feiticeiros, os candomblezeiros, alvos preferenciais
de uma política que procurava disciplinar as ruas e os hábitos populares95.
93
Idem, p. 57.
94
É interessante observar que Da Matta classifica o malandro como personagem da rua (dentro da dicotomia rua
x casa) e que Wissenbach observa que o discurso urbanístico de lar da época se choca com a concepção popular
de moradia (favelas e cortiços), classificando a moradia popular como ―não-casas‖. Essa classificação reforça a
idéia de Da Matta que constitui o malandro como personagem da rua.
95
WISSENBACH, M. C. op. cit. 1998, pp. 126 – 127.
41
como é o caso do cantor e compositor Bezerra da Silva que canta o malandro marginal
principalmente nas décadas de 1980 e 90.
Como já foi dito, nossa análise enfoca canções desde a década de 20 até hoje. Vale
ressaltar, entretanto, que nosso estudo não vai analisar, neste primeiro momento, a melodia
dessas canções, apesar de termos consciência de que estas, assim como as letras, são bastante
importantes para a produção de sentido da canção. Reservamos para tanto, o item seguinte
(3.3.) que tem a finalidade de analisar os sentidos que a melodia pode determinar no que Tatit
(2004) denomina gesto cancional.
Segundo este autor, a prática musical brasileira é ―uma espécie de oralidade musical
em que o sentido só se completa quando as formas sonoras se mesclam com as formas
lingüísticas inaugurando o chamado gesto cancional. Tudo ocorre como se as grandes
elaborações musicais estivessem constantemente instruindo um modo de dizer que, em última
instância, espera por um conteúdo a ser dito‖96.
Devemos considerar também, para nossas análises, a função social da música popular
no Brasil. Para Roberto DaMatta,
No caso da sociedade brasileira, a música popular tem uma importância capital como
instrumento de dramatização da vida política, dos valores sociais, dos papéis sexuais, do
poder, dos infortúnios, da morte e da doença, do amor, do ciúme, da vingança, da
indiferença, do trabalho, do trabalhador, da boemia e da malandragem, da cidade e do
campo, etc. importância que, nas sociedades burguesas tradicionais, é desempenhada
pela literatura97.
Antes de iniciarmos as análises das letras das canções, é importante considerar ainda
que não teremos como intenção elencar características a fim de criar um estereotipo, uma
96
TATIT, Luis. O Século da Canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004, p. 69.
97
DA MATTA, R. O poder mágico da música de carnaval (decifrando Mamãe eu quero). In: DA MATTA,
Roberto. Conta de mentiroso: sete ensaios de antropologia brasileira. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. (pp. 59 – 89),
p. 61.
42
imagem una, compacta. Na tentativa de não cairmos no senso comum em que é visto o
malandro, trabalharemos com o choque entre os discursos sobre o malandro a partir da
perspectiva dele mesmo e do outro (na maioria das vezes, o trabalhador).
Outro ponto importante é de que tal imagem, por ser constituída a partir de vários
lugares, não é pontual. Como poderemos ver a seguir, diferentes construções de ethé98
recebem a designação de ―malandro‖, estas construções estabelecem, segundo Da Matta
(1990), um continuum, tendo como extremos de um lado o malandro ―astuto‖, como é o caso
de Leonardinho, Malasartes e Zé Carioca, e do outro, o malandro marginal, tal qual Zé
Pequeno e seu bando no filme Cidade de Deus. Segundo DaMatta:
Entretanto, neste trabalho não pensaremos o malandro como uma identidade ―esticada
numa linha‖, mas ethé que se designam como malandro e que não estão dispostas
―bidimensionalmente‖, seu funcionamento é mais complexo, ainda nos utilizando da metáfora
cartesiana, diríamos que seu funcionamento estaria na ordem do tridimensional. Essa nossa
concepção de malandro é pautada no fato de que as fronteiras das formações discursivas não
são fixas, não sendo possível, portanto, prever todos os discursos que as constituem. Dessa
forma, não temos como precisar se há um deslocamento de uma ―imagem de si‖ para outra e
se este deslocamento é linear, afirmamos, portanto que tais ethé se constroem como ―nós
numa rede‖ de discursos.
Para abrangermos um maior número de ethé que se designam/ são designados pelo
termo malandro, analisaremos primeiramente a construção da imagem do malandro por
canções que apresentam como enunciador aquele que se nomeia malandro, posteriormente
analisaremos canções em que o outro (trabalhador) é quem constrói tal imagem.
98
Adotaremos a forma grega do plural de ethos
99
DA MATTA, R. op. cit. 1990, pp. 220 – 221.
43
100
As letras das canções estas disponibilizadas na íntegra em anexo.
101
Vianna, Letícia C. R. Bezerra da Silva: produto do morro: trajetória e obra de um sambista que não é santo.
Rio De Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1999.
44
da Matta de ser o malandro um personagem102 da rua (na dicotomia casa x rua) pelo fato de
não constituir família.
Já o segundo, por sua vez, tem sua meta, não sabe guardar segredo (cagüeta), não tem
moral, não consegue se relacionar com as mulheres, nunca tem dinheiro, é azarado,
desconsiderado e ainda ―tem muito que aprender‖. Podemos notar, na designação do mané a
predominância de características negativas, isso ocorre porque, como afirma Sérgio Buarque
de Holanda, os princípios reguladores das atividades humanas são antagônicos a ponto de
características de um princípio não serem aceitas ou nem valorizadas pelo outro, ou pelo viés
da Análise do Discurso, podemos dizer que a FD na qual o sujeito enunciador se insere regula
o que, por ele, pode e deve ser dito.
Na segunda canção podemos notar, principalmente no refrão, a alusão ao consumo de
drogas ―Vou apertar, mas não vou acender agora/ Se segura malandro, pra fazer a cabeça tem
hora‖, no qual os termos ―apertar‖, ―acender‖ e ―fazer a cabeça‖ remetem ao preparo e
consumo do cigarro de maconha.
É interessante observar que o co-enunciador deste texto não é um malandro astuto tal
como se espera de todo malandro, pois este vai ―acender‖ sem ver se o ambiente é propício
para tal ato (―É que você não está vendo/ que a boca tá assim de corujão‖), pois por se tratar
de algo ilícito (ou do mundo da Desordem) os ―corujões‖ podem denunciá-lo aos ―home da
lei‖.
Outra característica interessante, e que distingue o primeiro ethos do malandro deste, é
observada nos dois primeiros versos da última estrofe nos quais podemos constatar o domínio,
pelo sujeito enunciador, do Código Penal Brasileiro e de suas alterações. Ao produzir o
enunciado ―É que o 281 foi afastado/ O 16 e o 12 no lugar ficou‖, o enunciador retoma o
discurso jurídico do advento da Lei de Tóxicos (Lei 6368/76). Segundo Rodrigues103, ―O
artigo 281 do antigo Código Penal Brasileiro previa o crime de tráfico de entorpecentes, mas
não o de uso. Quando do advento da Lei de Tóxicos (Lei 6368/76) os artigos 12 e 16 desta lei
passaram a cominar, respectivamente, as penas para tráfico e uso de entorpecentes‖.
Encontramos aqui a presença de um discurso outro, produzido em outro lugar (um discurso
102
Termo utilizado por Da Matta
103
RODRIGUES, Eugênia. Nas regras da arte -- O Direito e as letras de samba, 2003. Disponível em
http://www.samba-choro.com.br/print/debates/1050388933/index_html, acessado em 22 de março de 2007.
45
104
Sigla para Assistente de Porcaria Nenhuma
46
O malandro na estrofe acima é aquele que finge ser regular, profissional, que finge,
portanto ser trabalhador. Entretanto, não é somente por se passar por trabalhador que este
ethos é constituído, ele tem também cargo político (―aparato de malandro oficial‖) e é
candidato a um cargo federal. Todo esse léxico, o aparato oficial, a candidatura ao cargo
federal, o contrato, a gravata, o capital, remete a uma memória discursiva do político corrupto,
o malandro ―que nunca se dá mal‖, inserido numa memória de que no Brasil, os políticos
corruptos ficam sempre impunes por seus atos, onde ―tudo acaba em pizza‖.
O distanciamento do enunciador é bastante importante neste momento de nossa
análise. Quando o enunciador assume a posição de morador de favela, por exemplo, apesar de
ser trabalhador, não vê o malandro como algo ruim à sociedade, como podemos notar na
canção ―Assombração de Barraco‖ (anexo, p. 101) de Élson Gente Boa e José Carlos gravada
por Bezerra da Silva em 1992:
(...)
No trecho acima citado, observamos, através da crítica feita aos serviços públicos
como a previdência social e a saúde, a presença de enunciados como ―uma pá de aspone‖,
―mamando na teta‖, ―PCs105 na mamata fazendo mutreta‖ que remetem a uma memória
discursiva de corrupção política, sendo seu praticante designado como ladrão de gravata e não
de malandro como na canção de Chico Buarque.
Um outro aparecimento do léxico ―malandro/ malandragem‖ para designar político
corrupto ocorreu na propaganda eleitoral do PSB na qual o enunciador, que se instaura na
posição sujeito de político não corrupto, diz:
Podemos concluir que é apenas o enunciador inserido numa posição sujeito mais
elitizada tais como os enunciadores de ―Homenagem ao malandro‖ e da propaganda política é
que designam o político corrupto também como malandro, enquanto que os enunciadores
inseridos em posições sujeito como a do malandro e a do trabalhador mal remunerado não
nomeiam o político corrupto de malandro.
A existência deste terceiro ethos nomeado como malandro reforça nossa suposição de
que a identidade do malandro não se apresenta num continuum, pois, retomando a metáfora
cartesiana, a variante proposta por Da Matta é a violência e, neste último ethos, não é um
aumento ou diminuição da agressividade que o diferencia dos demais. A diferença é de outra
ordem, de classe talvez. Desse modo reafirmamos que os ethé designados sob o termo
malandro constroem-se como ―nós numa rede‖.
Tendo observado como o malandro se constitui/é constituído, analisaremos então de
que forma traços do que pudemos apreender como malandragem aparecem no discurso do
105
Paulo César Farias, ex-tesoureiro da campanha presidencial de Fernando Collor de Melo e testa de ferro de
Collor, responsável pelo desvio de dinheiro público que tinha como beneficiário, o então presidente Collor.
48
trabalhador. Acreditamos que o aparecimento do termo ―malandro‖ nas letras das canções que
analisaremos a seguir não seja imprescindível para a retomada dos discursos da malandragem.
Consideramos que, com as análises realizadas até este momento, pudemos cercar alguns
enunciados que remetam a discursos da malandragem, deste modo, nas análises que seguem,
retomaremos os discursos da malandragem através destes outros enunciados e não mais,
necessariamente, do aparecimento do termo ―malandro‖.
Na canção composta por Zeca Pagodinho e Jorge Aragão e intitulada ―Não sou mais
disso‖ (anexo . p.101) podemos perceber logo na primeira estrofe a retomada do ambiente da
casa106 na ―regeneração‖ do malandro. Podemos concluir tal retomada, pois é a partir da
esposa (―ela‖) que ocorre a transição. Vale lembrar que a mulher, neste texto, remete às
relações que funcionam no ambiente da casa como as relações consangüíneas e as
matrimoniais. Nessa primeira estrofe o enunciador constrói sua imagem de malandro como
pé-de-cana, vagabundo e de pouca fé em Cristo, e foi pela mudança destas características que
o enunciador justifica sua mudança de malandro a trabalhador.
Na segunda estrofe, o enunciador fala de sua rotina de trabalhador:
Na hora de trabalhar
Levanto sem reclamar
E antes do galo cantar
Já vou
À noite volto pro lar
Pra tomar banho e jantar
Só tomo uma no bar
Bastou
106
Nos referimos aqui à dicotomia casa x rua apresentada em DA MATTA, 1990, 5ªed. Ao ambiente da casa
ficam reservadas as práticas sociais de maior controle e estabilidade, e os processos de hierarquização ocorrem
pelo sangue, pelo sexo e pela idade.
49
Para quem este enunciador enuncia? Para quem este enunciador precisa provar algo?
É um co-enunciador criado pelo discurso dominante, que inserido na FD dominante, a pró-
trabalho, determina o que pode e deve ser dito.
Já na ―Canção do Trabalhador‖ (anexo p.102) de Ary Kerner, composta em 1940, o
enunciador constrói um ethos heróico do trabalhador através da seleção de predicações do tipo
―a voz do progresso‖
O trabalhador é ―a esperança do Brasil‖
―Incansável, febril‖
―[a ] Expressão verdadeira/ Do lema altivo/ Da nossa bandeira‖
50
presente, concluímos, portanto que a felicidade e o trabalho não são compatíveis, pois se
encontram em tempos diferentes, o que evidencia a presença do discurso do malandro.
Por fim, na canção ―Um filho e um cachorro‖ de Zeca Baleiro (2002) (anexo p. 102)
encontramos um ethos de trabalhador feliz, entretanto consciente de sua mediocridade. Nas
duas primeiras estrofes, o enunciador caracteriza a vida do trabalhador de classe média
utilizando o enunciado ―me sinto como num comercial de margarina‖ que remete a uma
memória discursiva de família feliz.
Na terceira estrofe o enunciador toma consciência de que a vida boa de que desfruta, às
vezes pode ser má. Entretanto, essa conscientização só pode ser efetuada através das lentes
―dos óculos de grau‖, ou seja, a elaboração do sistema de divulgação de discursos que
induzem a população a se comportar como ―num comercial de margarina‖ é tão sutil e
distribuída pela sociedade que não pode ser percebida a olho nu.
Na última estrofe, o enunciador caracterizado por um ethos de trabalhador de classe
média expõe seu contentamento com a vida que vive mesmo tendo consciência do mal que
esta pode lhe causar. Esse processo de conformismo do povo brasileiro teve forte influência da
política varguista, como explica Lima (1990):
Durante nossas análises nos deparamos com textos cujos discursos do malandro e do
trabalhador se unem sem que um seja equívoco no outro, como já observamos em algumas
análises, mas que aparecem de forma explícita e consciente, sendo a união intencional destes
dois discursos a base do processo de construção de uma outra identidade.
Por se tratar, portanto, de um ethos que se constitui no sincretismo dos discursos do
malandro e do trabalhador de forma que não poderiam ser classificados nem como a
107
LIMA, Maria Emilia A. T., A Construção discursiva do povo brasileiro – Os discursos de 1º de Maio de
Getúlio Vargas. Campinas: Editora da Unicamp, 1990, p. 60.
52
que se caracteriza também por unir os dois discursos por nós analisados. Os dois primeiros
versos deste trecho reproduzem o discurso do malandro, pois justifica as atitudes tomadas no
Mundo da Desordem. Já o último verso reproduz o discurso do trabalhador, pois se constitui
como um contra-discurso do malandro que diz que ―o malandro sempre se dá bem‖.
53
fechadas. Acreditamos que no período em que as canções que produzem uma tentativa de
imagem homogênea circulavam, existia uma necessidade de se marcar um espaço, o malandro
em oposição ao trabalhador. Entretanto, no que se denomina pós-modernidade, a necessidade
da diferenciação de classes (malandro x trabalhador) passa a ser de outra ordem, o que antes
era uma (tentativa de) identidade homogênea passa a ser uma posição sujeito heterogênea.
Ocorre uma hibridez na construção discursiva que sustenta os discursos a respeito do
malandro e do trabalhador passando a trabalhador-malandro/ malandro-trabalhador.
A análise de canções que materializam os discursos do malandro e do trabalhador nos
despertou para uma outra questão: os gêneros nos quais os discursos do malandro e do
trabalhador são representados. Tendo analisado um número significativo de canções com a
temática da malandragem, notamos que em sua maioria tratava-se de sambas. Considerando
que ―É porque se trata de certo discurso que o suporte lingüístico é o que é‖ 108, e ampliando
esse suporte para um nível intersemiótico, voltaremos nossa atenção para o estudo do samba
enquanto gênero discursivo que apresenta como temática a malandragem.
Por esse motivo, estudaremos o samba sob uma perspectiva histórica a fim de
entendermos a intima ligação existente entre o gênero discursivo samba e a formação
discursiva da malandragem.
108
POSSENTI, Sírio. Os Limites do Discurso. Curitiba: Criar, 2002, p. 25.
109
Samba Original, Elton Medeiros e Zé Ketti, 1963
55
e Tom Jobim em 1962. Na análise, o autor chama a atenção para o uso de notas mais
alongadas para sustentar um discurso de sofrimento amoroso, como nos versos ―Ah, por que
estou tão sozinho/ Ah, por que tudo é tão triste?‖ em que as notas se estendem.
Wisnik (1992), também no caminho de justificar o intenso diálogo entre letra e
melodia, compara o samba de Noel Rosa ―Com que roupa?‖ ao Hino Nacional. Segundo o
autor, na época da composição do samba, um amigo de Noel lhe havia dito que o primeiro
verso de seu samba tinha a mesma melodia do primeiro verso do Hino Nacional, apresentando
apenas algumas diferenças: o samba começa com um desenho melódico descendente enquanto
que o hino tem em seu início um torneio ascendente e de o primeiro ser recortado pela sincopa
do samba e o segundo pelo padrão impositivo do hino.
A partir disso, Wisnik pede a seu leitor que tente cantar os versos mencionados com as
melodias invertidas, e conclui que
Cantada segundo a figura rítmica do Hino, a frase ‗Agora vou mudar minha conduta‘
ganha um acento marcial e corporativo. Não é mais a fala individual e irônica do
‗cidadão precário‘, o sujeito do samba, que afirma entre negaceios sincopados a sua
disposição irrisória de se afirmar na vida, mas uma espécie de voz coletiva que brada
com acentos épicos uma vontade de autotransformação. Vontade de transformação que
tem por objeto e cenário de sua operação enérgica o próprio corpo submetido ao ritmo
reticulado, em que os acentos métricos convergem sobre os tempos fortes do compasso
de maneira inequívoca, como golpes de martelo que disciplinam seu movimento regular
de subida e descida ‗de maneira a extrair dele o seu maior rendimento‘ 110.
É a partir de uma análise discursiva do que propõem Wisnik (1992) e Tatit (1994),
apoiada na noção bakhtiniana de gênero discursivo, que passaremos a entender o samba. Vale
ressaltar, entretanto, que nosso trabalho não visa (não em caráter de iniciação científica) uma
análise pormenorizada das notas melódicas como propõe Tatit. Analisaremos, neste momento,
a melodia como um todo producente de sentido.
Segundo Bakhtin, todo gênero discursivo é composto por um conteúdo temático, um
estilo verbal e uma estrutura composicional. Portanto, para trabalharmos com o samba
enquanto gênero discursivo, consideraremos seu estilo verbal organizado, geralmente, na
110
WISNIK, José Miguel. Algumas questões de música e política no Brasil. In: BOSI, Alfredo (org.). Cultura
Brasileira – temas e situações. 2ª.ed. São Paulo: Ática, 1992. (pp. 114 – 123), p. 117.
56
111
TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. 1ª. Ed. bras. São Paulo: Ed. 34,
1998, pp. 263 – 264.
57
Aqui a ‗grande família‘ se realiza via candomblé, que é um dos herdeiros do sistema de
filiação étnica. Seus membros pertencem à mesma família: a família de santo. Esta seria
substituta da linhagem africana para sempre desaparecida (Queiroz, 1988)112. No Rio, no
início do século, os valores de origem étnica constituem a base da sociabilidade ‗Nós os
da raça... sabíamos onde se reunir‘113. É clara a consciência de família via etnia. A casa
das tias aparece como espaço de reunião num tempo e numa cidade onde não havia lugar
112
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. 1988. ―Viajantes do século XIX: negras escravas e livres no Rio de
Janeiro‖. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, (28): 53-76. (Edição comemorativa do
centenário da abolição da escravatura).
113
Os trechos entre aspas dentro da citação referem-se ao Depoimento de Meninazinha de Oxum, ialorixá do Ilê
Omolu e Oxum, em 10 de novembro de 1989.
58
para ‗os da raça‘. Só através da ‗festa familiar‘ é que se cria esse espaço, onde é possível
comer, sambar, divertir, casar ou amigar. Tudo em família... As moradias populares
normalmente não são vistas como espaço da privacidade — conforme o modelo burguês
— mas sim da reunião, do convívio social e da luta cotidiana114.
Pelo fato de as moradias populares não serem vistas como um espaço privativo e sim
como um lugar de convívio social freqüentado por pessoas de diferentes classes sociais e
culturais, os ambientes das casas ficavam fortemente marcados, materializando uma curiosa
metáfora social. A casa era construída longitudinalmente, havendo uma sala de entrada,
seguida de vários quartos, ligados por um comprido corredor que desembocava no quintal
depois de passar pela sala de jantar e cozinha. Tal disposição dos cômodos permitia a
manutenção das diferenças de classes,
Ou seja, na sala ficavam os mais velhos e bem-sucedidos, que constituíam o partido alto
da comunidade, cultivavam seus versos improvisados entre ponteados de violão,
lembrando sambas sertanejos de roda à viola; os mais novos, já urbanizados, tiravam seu
samba corrido cantando em coro na sala de jantar, aos fundos, e no quintal os brabos
amantes da capoeira e da pernada, divertiam-se em rodas de batucada ao ritmo de
estribilhos marcados por palmas e percussão 115.
Um outro motivo para a existência de tais casas e de toda a significação que elas
carregam deve-se ao fato de que o samba foi perseguido pelo governo por muito tempo,
inclusive durante a Era Vargas, o que reforçou seu caráter de resistência, principalmente ao
ideário estado-novista. Entretanto, no mesmo caminho de Sodré (1998), acreditamos que a
resistência que caracteriza o samba não se limita à simples oposição à cultura dominante,
sendo também ―um movimento de continuidade e afirmação de valores culturais negros‖116.
Por se tratar de um movimento de resistência e representação de valores negros, a elite
brasileira evitava a difusão do samba pelas rádios, com medo de que a imagem do Brasil no
exterior fosse construída a partir de elementos negros. Entretanto, ainda na década de 1920,
114
VELLOSO, Mônica Pimenta. As Tias Baianas tomam conta do pedaço – espaço e identidade cultural no Rio
de Janeiro. Este artigo foi desenvolvido como parte de um projeto de pesquisa financiado pela ―Fundação Carlos
Chagas‖ (SP) durante o ano de 1989. Disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/75.pdf, acessado em 12
mai. 2006, p. 08.
115
TINHORÃO, J. R. op. cit. 1998, p. 276.
116
SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998, p. 56.
59
impulsionada pela onda nacionalista que banhava os meios políticos e intelectuais, a indústria
fonográfica passou a produzir discos do gênero os quais foram bastante consumidos pela
classe média nacional.
A presença deste novo setor da sociedade na indústria do samba fez com que este fosse
sofrendo algumas alterações de forma a enquadrar-se em seu gosto. Com isso, as letras foram
se tornando mais sofisticadas, tendo em vista que muitos jovens universitários de classe média
passaram a compor sambas e seu ritmo foi perdendo os traços de maxixe e ganhando arranjos
mais ―sofisticados‖ vindos das jazz-bands norte-americanas.
Sobre a resistência da elite nacional na aceitação do samba enquanto gênero musical de
qualidade, Haroldo Barbosa e Janet de Almeida compuseram, em 1956, a canção ―Pra que
discutir com Madame‖ (anexo p. 103). Na canção, o enunciador reporta, por meio do discurso
indireto, os argumentos dados pela ―madame‖ para a extinção do samba. Segundo o que
enunciador reporta do discurso da ―madame‖, ―a raça não melhora/ (...) Por causa do samba‖,
ainda diz que o samba tem ―mistura de raça, mistura de cor /(...) é música barata/ sem nenhum
valor‖. Diante destes versos podemos reconhecer a construção de um ethos elitista tanto pelo
termo ―madame‖ quanto pelo teor ideológico de supremacia branca neles expresso, que
caracterizou o pensamento da elite brasileira até meados de 1930.
No refrão, que segue a primeira estrofe, o enunciador se mostra obedecer ao gosto da
―madame‖, ―Vamos acabar com o samba/ Madame não gosta que ninguém sambe/ Vive
dizendo que o samba é vexame/ Pra que discutir com Madame‖, entretanto, na estrofe
seguinte ao refrão, o enunciador se mostra irônico ao descrever um carnaval ao gosto da elite:
―No carnaval que vem também com o povo/ Meu bloco de morro vai cantar ópera/ E na
avenida entre mil apertos/ Vocês vão ver gente cantando concerto (...)‖.
A letra da canção acima sucintamente analisada, além de materializar o discurso da
elite brasileira com relação ao samba no início do século XX, comprova também o valor de
crônica da sociedade observado por DaMatta (1993). A ―madame‖ referida na canção é
construída a partir de enunciados bastante enunciáveis na época, que refletem uma dada
posição enunciativa de quem diz do interior de uma determinada classe social117. Entretanto,
117
Enunciados ditos por Magdala da Gama de Oliveira, crítica de rádio, que assinou uma coluna do jornal Diário
de Notícias por muitos anos. Tratando-se de um jornal de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro,
Magdala ou Mag, como assinava sua coluna, tornou-se famosa pelos intensos ataques ao samba, ataques muitas
vezes calcados no preconceito e sem o menor critério técnico .
60
apesar da não aceitação do novo ritmo pela elite, o samba, na década de 1930, foi o gênero
mais gravado, correspondendo a 52% das composições prensadas, mas era ainda restrito à
cidade do Rio de Janeiro ainda não tendo um alcance nacional. Em São Paulo, por exemplo,
os ritmos regionais, principalmente o sertanejo, eram mais consumidos que o samba.
Ainda na década de 1930, o governo Vargas, e sua tentativa de controle das massas,
cria, em 1931, um departamento para controlar os meios de comunicação, o Departamento
Oficial de Propaganda (DOP), sendo substituído em 1934 pelo Departamento de Propaganda e
Difusão Cultura (DPDC) e em 1939 pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), nas
palavras de Cunha,
118
Garcia, N. J. O Estado Novo: ideologia e propaganda política. São Paulo, Loyola, 1982.
119
CUNHA, Fabiana Lopes da. Negócio ou ócio? O samba, a malandragem e a política trabalhista de Vargas.
Este artigo é baseado em partes da dissertação de mestrado Da Marginalidade ao Estrelato: O Samba e a
Construção da Nacionalidade(1917-1945) defendida na Universidade de São Paulo (USP ) sob a orientação do
Prof. Dr. Nicolau Sevcenko. Disponível em, acessado em 23 mai. 2006, p. 08.
61
dos grandes concertos promovidos pelo Estado e por Villa-Lobos nos estádios de futebol
e, em última instância, através dos concursos carnavalescos‖120.
Porém, antes mesmo da criação do DIP, compositores de classe média, como Mário
Lago, Noel Rosa e Ari Barroso, já se mostravam preocupados em adotar novas temáticas,
principalmente as de cunho ufanista, a fim de que o samba se tornasse mais aceito
nacionalmente.
No sentido de ―encaixar‖ o samba nos modelos impostos pelo Estado Novo, Ari
Barroso lança, em 1939, um novo tipo de samba, o samba-exaltação intitulado ―Aquarela do
Brasil‖ que ganhou concurso promovido pelo DIP daquele ano. É interessante observar que
além da temática ufanista, a musicalidade da canção se distancia dos arranjos dos sambas da
época. É como se o samba, vestindo seu traje de gala para falar da ―grandiosidade do país‖,
dispensaria instrumentos regionais como pandeiros e reco-recos, adotando uma roupagem de
big-band norte americana, com o arranjo tendo dedos do grande maestro Radamés Gnattali. A
canção torna-se então, símbolo do Brasil no exterior.
No mesmo ano, Carmem Miranda faz sua primeira viagem aos Estados Unidos com o
propósito de mostrar ao Tio Sam o que é que a baiana tem. Retornando ao Brasil no ano
seguinte por um curto período, já com propostas para cantar na Broadway e filmar em
Hollywood, Carmem se apresenta no famoso Cassino da Urca, no Rio de Janeiro, onde é
vaiada. Iniciando sua apresentação com um ―Good night, my people!‖ e tendo como primeira
música de seu repertório ―South American Way‖, num período em que a valorização do que é
nacional era evidente, as vaias foram inevitáveis. A ―pequena notável‖ voltou americanizada
ou, como diziam na época, ―americanalhada‖.
O que ocorreu com Carmem Miranda evidencia (ou escancara) as transformações que
ocorreram com o samba de modo que este se descaracterizou na tentativa de alcançar o gosto
da elite e do exterior. Isso gerou um certo estranhamento e um sentimento de
―desidentificação‖ com o que já era parte da identidade do brasileiro, o que resultou em vaias
à ―Brazilian Bombshell‖ no Cassino da Urca.
Na contramão da universalização e conseqüente descaracterização do samba, Noel
Rosa, Francisco Alves e Ismael Silva já em 1933, compõem ―Não tem tradução‖ (anexo p.
120
Idem, p. 07.
62
Carmem também na tentativa de apagar esta cicatriz estrangeira que lhe foi impressa,
canta no espetáculo seguinte à apresentação da Urca, a canção de Vicente Paiva e Luís
Peixoto, intitulada ―Disseram que voltei americanizada‖ (anexo p. 103). Nela, o enunciador
constrói um ethos defensivo. Na primeira estrofe, em discurso indireto (―disseram que ...‖), o
enunciador retoma enunciados que teriam sido produzidos num momento anterior a
enunciação, denotando possíveis críticas feitas a este enunciador como ―voltei
americanizada‖, ―estou muito rica‖, ―não suporto mais o breque de um pandeiro‖, ―E fico
arrepiada ouvindo uma cuíca‖, ―já não tenho molho, ritmo, nem nada‖ e ―E dos balangandãs/
Já nem existe mais nenhum‖. Na segunda estrofe, evidenciando este ethos defensivo, o
enunciador utiliza símbolos nacionais a fim de legitimar sua brasilidade, como podemos
observar em:
samba] hei de morrer‖, criando um ciclo quase que natural e incorruptível, como comprovam
os versos que seguem: ―E não há riqueza que me faça/ Enfrentar o batedor/ Pois quem é rico
nunca foi trabalhador/ (e é por isso que eu vivo na malandragem)‖.
Durante as análises realizadas no item 3.2. deste trabalho, percebemos que as canções
que traziam enunciados acerca da malandragem inseriam-se, em sua maioria, no gênero
samba. Entretanto, com o passar do tempo e devido aos fatores já mencionados anteriormente,
a veiculação de enunciados sobre a malandragem diminuiu sensivelmente, ressurgindo de
maneira bastante significativa num outro gênero, o rap. Na tentativa de entendermos tal
deslizamento, optamos por trazer uma breve retomada de fatos que contribuíram para a
consolidação deste gênero.
Movimento surgido nos subúrbios de Nova Iorque no final dos anos 60, o Hip Hop foi
fortemente incorporado à causa negra, tomando como ícones as figuras de Martin Luther King
e Malcom X. Neste primeiro momento, o movimento era caracterizado pela violência com que
os jovens, organizados em gangues segundo suas etnias ou ideais, se confrontavam e
interagiam com os outros segmentos da sociedade. Foi a partir de 1968, com a influência do
DJ jamaicano Afrika Bambaataa, que o movimento se afirma enquanto resistência cultural,
transferindo a violência dos jovens para diferentes formas de expressão artística. Afrika
Bambaataa foi responsável também pela criação da organização pacifista Zulu Nation presente
em vários países inclusive no Brasil.
O Hip Hop (do inglês hip, saltar e hop, movimentar os quadris) é composto por quatro
elementos: o DJ (disc-jóquei) compondo a parte rítmica do movimento, o MC (mestre de
cerimônia), responsável pela voz e pela letra das canções, esses dois elementos compõem a
parte musical – o Rap – que é seguida pelo Break, representante da dança e o Grafite, a arte
gráfica dos muros. Apesar do Hip Hop ser um movimento que abrange diferentes formas de
expressão, neste trabalho focaremos apenas o rap, por ser este o representante musical do
movimento e não pelo seu grau de importância ou significância dentro do Hip Hop.
Como aponta Jovino (2005), o rap mescla tecnologia e oralidade. A tecnologia vem
das pick-ups dos DJs, nas quais estes fazem seus arranjos musicais e a oralidade é
65
característica dos MCs pois estes dizem (e não cantam) suas letras, aproximando-se bastante
da fala. Tal oralidade, segundo Oliveira (2002), reflete a herança cultural africana presente no
movimento, herança cultivada na palavra dita e na memória.
No Brasil, o Hip Hop, juntamente com o Funk e o Soul, começou a ser consumido a
partir de meados dos anos de 1970. O primeiro contato dos ritmos de periferia estadunidense
com a periferia brasileira, em particular a paulistana, que vai até o início da década de 1980, é
caracterizado mais pela assimilação do movimento yankee do que pela produção de material
nacional. Durante este período, os encontros para se escutar e discutir o movimento era
realizado nos fundos de quintais, como aponta Azevedo & Silva, 1999, o que faz surgir outra
semelhança entre o rap e o samba, lembrando que o samba teve como berço as casas das tias
baianas, como já dissemos anteriormente.
O movimento Hip Hop saiu dos fundos de quintais em direção às ruas no início da
década de 1980 e teve como marco geográfico o centro da cidade de São Paulo, como
apontam Azevedo & Silva,
Alguns dos protagonistas do hip hop, que hoje definem as suas práticas como
Movimento Cultural de Rua, já podiam ser notados pelas ruas centrais da cidade, logo
nos primeiros anos da década de 80, como Nelson triunfo, Marcelinho, Thaíde, Hélio,
Cícero, Marcelo Pinguinha, Luizinho, Dj Hum. Todos tornavam a rua território para
viver, se divertir, criar, encontrar os manos, sobreviver e fazer arte. Ao seu modo,
seguiram reinventando a tradição dos pretos paulistanos de usar os espaços públicos
como território legítimo para as manifestações musicais‖121
Nos anos de 1990, o rap inicia sua busca por espaço na grande mídia. É a partir dessa
época que a indústria fonográfica começa a colocar no mercado LPs do gênero 122. Com isso,
outras camadas da sociedade começam a consumir os elementos do Hip Hop, em especial o
Rap. Segundo Azevedo, 1999, foi com a execução das canções ―Fim de semana no parque‖ e
―Homem na estrada‖ pelas grandes rádios de São Paulo com veiculação nacional, em 1993,
que jovens brancos de classe média passaram a ouvir rap.
A absorção do rap pela classe média é retratada na canção ―As meninas dos jardins‖
(anexo p. 104), composta por Zeca Baleiro, 2002. Na canção, o enunciador afirma: ―As
meninas dos Jardins gostam de rap/ as meninas dos Jardins gostam de rap/ as meninas dos
121
AZEVEDO & SILVA, 1999 apud SIQUEIRA, Cristiano T. de, Construção de saberes, criação de fazeres:
educação de jovens no hip hop de São Carlos. São Carlos: UFSCar, 2006, p. 31.
122
Racionais MC‘s em 1988, Pavilhão 9 em 1990, Xis, Thaide e DJ Hum em 1992 e Planet hemp em 1993.
66
Jardins gostam de happy end‖. Com tal afirmação, o enunciador remonta um paradoxo da
classe média, aqui caracterizada pela especificação ―dos Jardins‖, remetendo a uma região
nobre da cidade de São Paulo. A heterogeneidade presente na posição sujeito ―meninas dos
Jardins‖ é explicitada pela utilização de um complemento verbal que remete a formações
discursivas distintas. O primeiro, ―rap‖, remete a uma FD de resistência à sociedade burguesa,
enquanto que o segundo, ―happy end‖ [final feliz], remete uma FD romântico-burguesa.
A incorporação do rap pela classe média resultou numa intensificação da divulgação
do gênero pela mídia. Como aponta Siqueira, 2006, o rap passa a compor trilha sonora de
filmes como ―O Invasor‖ de 2001, surgem programas de TV como o YO! MTV e rádios
especializadas, a 105,1 MHz de São Paulo. Interpretamos esta incorporação como um
mecanismo da classe dominante de absorver a resistência de modo a descaracterizá-la como
tal.
Quanto às letras dos raps, estas retratam, geralmente, o cotidiano da juventude pobre e
negra, consolidando-se como lugar de denúncia dos problemas sociais vivenciados por estes
jovens. Na busca por identificação e legitimidade, os rappers inserem em suas letras os nomes
dos bairros, favelas ou regiões onde moram. Com isso, além do estabelecimento de um lugar
geográfico, estabelece-se também um lugar discursivo no qual o sujeito se insere para
enunciar. Pela simples localização geográfica do enunciador é possível construir um ethos
deste. Um enunciador que se estabelece (geograficamente) no Morumbi ou no Leblon constrói
um ethos bastante distinto de um enunciador que se insere numa posição sujeito de morador
da Vila Brasilândia ou do Andaraí123. Richard Shusterman ressalta que:
O hip hop realmente trata de temas universais como a injustiça e a opressão, mas ele se
situa orgulhosamente como uma ‗música de gueto‘, adotando como temática suas raízes
e seu compromisso com o gueto negro urbano e sua cultura. A maioria dos rappers
define seu domínio com termos bem precisos, frequentemente não apenas citando a
cidade como também o bairro de sua origem, como Compton, Harlem, Brooklin ou
Bronx. Mesmo quando ganha uma dimensão internacional, o rap continua
orgulhosamente local; encontramos no rap francês, por exemplo, a mesma precisão de
origem de bairros e a mesma atenção voltada a problemas exclusivamente locais124.
123
Os bairros Morumbi e Leblon, o primeiro da cidade de São Paulo, o segundo do Rio de Janeiro, são
caracterizados por habitantes de alto poder aquisitivo, enquanto que Vila Brasilândia e Andaraí são regiões
habitadas por pessoas de baixo poder aquisitivo, respectivamente em São Paulo e no Rio de Janeiro.
124
Shusterman, 1998, p. 153 apud JOVINO, Ione da Silva. Escola: as minas e os manos têm a palavra. São
Carlos: UFSCar, 2005, p. 06.
67
Essa característica também pode ser notada em alguns sambas nos quais podemos
observar também a necessidade de demarcação geográfica. Essa questão tornou-se bastante
evidente durante a famosa discussão entre os compositores Wilson Batista e Noel Rosa, na
qual o segundo era criticado por fazer samba sendo ele oriundo de um bairro de classe média
(Vila Isabel, no Rio de Janeiro).
Outra característica das letras de rap que encontram um ponto comum no samba é o
improviso. Segundo Andrade, ―o mestre de cerimônia (MC) criava as letras da música no
instante das festas. Tal improvisação na construção musical transferia as atenções dos jovens
das gangues, transformando o confronto armado em confronto artístico125‖, o mesmo ocorria
nas rodas de samba das décadas iniciais do século passado quando a autoria ainda não era algo
a ser reivindicado e as composições eram coletivas.
Seguindo um trajeto semelhante ao do samba, o rap, ao chegar ao Brasil, foi bastante
criticado e desvalorizado, sendo caracterizado como violento e representante das classes mais
pobres. É através dessas semelhanças apresentadas neste breve panorama acerca do samba e
do rap, tendo sido ambos gerados nas camadas economicamente menos favorecidas da
população, e servindo, ainda que apenas inicialmente, como lugar de resistência e de
representação de classes marginalizadas, que acreditamos ser viável se pensar no rap como um
novo gênero ao qual a FD da malandragem se incorporou. Para justificar nossa hipótese,
analisaremos algumas das canções gravadas pelo rapper Marcelo D2, desde o lançamento de
seu primeiro álbum solo, em 1998, pois a partir deste momento, o deslizamento da FD da
malandragem do samba para o rap torna-se mais evidente, assim como o que podemos chamar
de parentesco entre os dois gêneros.
A primeira canção a ser analisada, intitulada ―1967‖ (anexo p. 104) e lançada em 1998,
evidencia um fenômeno bastante comum nas letras de rap, a construção de um ethos para o
enunciador que se aproxima da imagem discursiva de si construída pelo cantor. Nesta canção,
bem como na maioria das outras canções que serão analisadas, o enunciador é construído a
partir de enunciados que constroem uma imagem com a qual o cantor se identifica,
materializando, da forma mais explícita possível, o ethos que se tenta construir na canção. Nos
versos iniciais da composição
125
ANDRADE, 1996, apud SIQUEIRA, Cristiano T. de. Op. cit. 2006, p. 27.
68
o pronome pessoal oblíquo tônico mim e o pronome possessivo minha não se referem apenas
ao enunciador, mas também a essa imagem construída discursivamente do compositor e cantor
Marcelo D2 fazendo com que o ethos do enunciador tenha voz e corpo da forma mais evidente
que isso possa acontecer.
Nos versos que seguem, o enunciador remonta sua história citando nomes de lugares e
de pessoas. É por meio destes elementos e da narração de alguns fatos que o enunciador
constrói sua imagem, uma imagem específica, particularizada, porém metonímica. A partir
dessa imagem com nome, idade e endereço, consegue-se alcançar os discursos que compõem
a posição-sujeito do rapper, do morador da periferia. A construção de tal imagem pode ser
percebida nos versos que seguem:
Outras características que constroem este ethos são a pichação, o consumo de maconha
(baforada) e a execução de pequenos furtos que, como justifica o enunciador, não são pecado.
A canção, além de construir um ethos de rapper, podemos pensar aqui, talvez, uma
atualização de Lenço no Pescoço, de Wilson Batista, composta em 1933, apresenta-se como
metatexto, utilizando o rap para falar de rap.
Nos versos que seguem, o enunciador enumera elementos constituintes do movimento
Hip Hop ressaltando a função social do movimento:
No trecho acima, o enunciador fala da íntima relação que apresenta com o skate e da
sensação gerada por realizar determinadas manobras. Além disso, cita ícones do hip hop,
como Grandmaster Flash e Afrika Bambaata, precursores do movimento e o álbum ―Planet
Rock – Afrika Bambaataa and Soulsonic Force‖, lançado em 1986 agrupando as primeiras
produções de rap dispersas em singles. Em seguida, enuncia sobre o movimento hip hop
propriamente dito, suas vertentes artísticas e sua função social, a de denúncia da miséria e da
exclusão por meio da voz do miserável e do excluído (―Cantando a vida/ mas vista de um
outro lado‖). Nos últimos versos do recorte, podemos observar a construção do co-
enunciador, estabelecido ―do lado‖ em oposição ao ―outro lado‖ ocupado pelo enunciador.
―No lado‖ em que se insere o co-enunciador, as rimas feitas pelo rapper não são agradáveis,
não fazem rir. Elas vêm ―do outro lado‖, da rua, em oposição à casa, aos incluídos.
É ainda interessante destacar a presença do diálogo desta canção com outra, o samba
―O samba da minha terra‖ (anexo p. 105) de Dorival Caymmi. Este diálogo evidencia um
entrosamento, uma familiaridade entre o samba e o rap, fazendo com que a canção de Caymmi
componha a memória discursiva do enunciador.
A partir da análise dos versos que promovem este diálogo, podemos observar, por
meio de um simples raciocínio tautológico, que quem é bom da cabeça e são do pé, é um bom
71
sujeito. Diante disso, o enunciador do rap constrói uma imagem de si de bom sujeito,
informado (―sempre ligado‖) e decidido (―sabendo o que quer‖).
A presença do samba na construção de um ethos rapper, como mostrado acima, fica
mais evidente na canção ―Samba de Primeira‖ (anexo p. 106) de Rodrigo Nuts e Marcelo D2,
que apesar do título, pode ser classificada melodicamente como um rap. Diante disso,
podemos inferir que para o enunciador um samba bom, ―de primeira‖ deva ter a melodia do
rap. Importante ressaltar, neste momento, que nosso objeto é redimensionado, de forma a nos
preocuparmos, neste momento, com o que Tatit, 2004, propõem como gesto cancional, ou
seja, a canção em sua materialidade intersemiótica e não apenas o texto verbal.
No primeiro verso da canção, o enunciador diz:
―Entrar no samba‖ nos remete ao samba de roda, ao qual se podia participar, interferir.
Nesta vertente do samba, ele é geralmente composto no momento de sua execução, aceitando
contribuições (tanto na letra quanto na melodia) dos componentes da roda. Esta modalidade
do samba é uma das mais antigas e das que mais se aproximam da criação do gênero. Em ―e
não deixo cair‖ o enunciador se iguala aos demais componentes da roda, pois não deixa a
canção parar, dá continuidade a ela fazendo tudo isso com humildade, sem exibicionismo. A
partir destes versos iniciais podemos depreender uma certa familiaridade entre o enunciador
rapper (caracterizado pela melodia e pela materialidade auditiva do enunciado) e o gênero
samba.
Nos versos seguintes o enunciador explica seu jeito de fazer samba:
Nã nã nã nã nã não
Acho que já deu pra entender
É Hip Hop com Samba
126
Do inglês, amostra. No contexto do rap, o sample seria um fragmento de música utilizado para a produção de
uma outra música através da mixagem.
73
No trecho acima, o enunciador dialoga com um samba de Serginho Meriti e Beto Sem
Braço, intitulado ―Quando eu contar‖ (anexo p. 106). No samba, o enunciador se mostra
indignado com a violência e a injustiça que vê tanto no morro quanto na cidade, e por isso, vai
para um terreiro de macumba, pedir proteção a seu Orixá e fechar seu corpo protegendo-se,
assim, de tudo o que viu.
No rap, o enunciador se utiliza desta intertextualidade para justificar mais uma vez o
papel social de denúncia exercido pelo rap e legitima sua voz através da metáfora ―Quebrando
pedra eu levo minha vida em frente‖, construindo um ethos sofredor, com legitimidade para
fazer denúncias. Estas feitas das mais variadas formas possíveis ―Falando, cantando, gritando
situações dramáticas‖ e por meio de seu ―dialeto nato‖, ―sem medo de ofender a gramática‖. É
interessante a colocação do enunciador com relação à gramática se a considerarmos um
74
instrumento de poder, daquilo que regula o como deve ser dito, tendo isso em vista e ainda
ressaltando o deficiente sistema educacional brasileiro, podemos inferir que este instrumento
de poder, ao prescrever como deve ser dito, prescreve também quem diz. Portanto, a partir do
rompimento com a gramática (entendida aqui como norma), o enunciador adquire liberdade
para falar.
A canção encaminha-se para o encerramento com o enunciador justificando a junção
do hip hop com o samba ―Tem samba no meu hip hop/ porque eu sou brasileiro‖. Tal
justificativa tem como suporte uma memória de identidade do brasileiro ligada ao samba.
Memória esta que foi gerada a partir da década de 1930, como já dissemos anteriormente.
Já na canção ―Batucada‖ (anexo p. 107), de Mário Caldato Jr., outra memória é
resgatada. Recupera-se, nela, a tentativa de silenciamento a qual o samba sofreu. Nesse
sentido, a canção é estruturada em dois momentos, no primeiro, a canção tem como base
melódica o samba com alguns elementos do rap e a letra, que segue, é cantada em coro por
mulheres.
cor‖, já desligado da questão étnica, entretanto ainda arraigado às classes mais pobres da
sociedade ―O samba floresce do fundo do nosso quintal‖, como era desde os quintais das tias
baianas.
No segundo momento da canção, no qual a base melódica se desloca do samba para o
rap e os vocais femininos são substituídos pela voz de um homem, um novo enunciador se
instaura, o que antes era um enunciador coletivo (―O samba floresce do fundo do nosso
quintal‖) passa a um enunciador individual (―Do fundo do meu quintal/ faço esse som pra
você‖).
A partir deste momento o enunciador traz temáticas metalingüísticas, explicando como
este produz seu rap:
Sobre esta canção ainda é relevante destacar a tentativa do enunciador de instaurar uma
nova identidade nacional, divulgada por meio da união do hip hop com o samba, como
podemos observar em:
77
127
BAKHTIN, M. op. cit. 2000, p. 286.
78
conhecimento dos interlocutores, é o próprio enunciador quem mistura o rap com o samba. O
enunciador, na tentativa de construir um ethos mais enfático segue dizendo ―eu disse samba‖,
de um modo imperativo, elimina qualquer dúvida ou mal entendido que possa surgir em seu
co-enunciador. Em seguida o enunciador inicia a construção de seu samba aproximando
símbolos característicos de ambos os GDs. O rap é retomado pelo Dj, pelo toca discos e pela
marcação do compasso (4x4), elementos da construção composicional do gênero e por peças
características do vestuário de um hip hopper, a calça larga e o boné para o lado. Enquanto o
samba é retomado pelo tamborim e pela síncopa, como podemos observar no trecho abaixo:
E pega um Dj e um tamborim
Então vem comigo
Meu Samba é assim
Tá bom pra mim
Nos toca-discos e um tamborim
A calça é larga, o boné pr'o lado,
4x4, mas sincopado
um equivoco, uma vez que o enunciador, na tentativa de construir um ethos que ainda seja
legítimo representante da voz do povo, não poderia atribuir ao ―4x4‖ um tom negativo.
O enunciador, na estrofe seguinte, continua a construção de uma imagem de si,
entretanto se apropriando da voz de outro:
Nos versos acima, além do retorno à primeira pessoa e ao papel social desempenhado
pelo enunciador, notamos também a imbricação de sentidos entre samba e rap. Ao se utilizar
do rap,o enunciador faz com que o samba não deixe de existir e ao se utilizar do samba, faz
80
com que o rap adquira maior visibilidade, ―tá lá‖, do outro lado, fortalecendo a corrente. Com
o último verso do trecho acima, o enunciador adiciona a seu ethos um caráter heróico, de
liderança, o que faz com que este reforce o papel social que lhe foi devolvido ―MD2 de novo,
a voz do povo‖.
Na segunda canção selecionada para comprovar a materialização das temáticas da
humildade e da volta às origens, encontramos também o malandro como elemento
representante dos dois gêneros por nós estudados e as transformações pelas quais este passou
a fim de adaptar-se à nova situação.
Já no primeiro verso, o enunciador supõe que seu co-enunciador disponha da mesma
memória discursiva que ele ao dizer ―Reza aquela lenda que malandragem não tem‖. A
utilização do pronome demonstrativo ―aquela‖ determina a lenda da qual fala o enunciador.
Não é uma lenda qualquer, é ―aquela‖ específica, a que diz que ―aquela tal malandragem não
existe mais‖128. Em seguida o enunciador traz argumentos que desmentem a lenda
mencionada:
Neste momento, toma voz sua consciência que o lembra que malandro não se deixa
influenciar e o questiona a respeito da busca pela ―batida perfeita‖:
Podemos observar nesta estrofe o que Pêcheux propõe em 1971 ao pensar a noção de
FD que ―les mots „changent de sens‟ en passant d‟une formation discursive à une autre”131 .
Neste momento, dois sentidos para o que é ser malandro são apresentados pela ―consciência‖:
―Fumar um, tirar onda, e encher o bolso de dinheiro” (enunciado pela ―consciência‖ a partir
do que foi dito pelo enunciador ele mesmo) e ―Malandro que é malandro tem a cabeça feita”
(enunciado pela ―consciência‖ a partir do que ela acredita ser um malandro). O primeiro
enunciado mais próximo do discurso do malandro marginal, e o segundo, mais próximo do
discurso do malandro astuto. Enquanto o enunciador, ele mesmo, se apropria de um discurso
de aproveitador, de renunciador das origens, sua consciência apropriando-se de um discurso
de retorno às origens o questiona, pois um indivíduo, representante do povo, segundo a
―consciência‖, não pode deste se distanciar. O diálogo prossegue:
129
Adotaremos o termo ―consciência‖ para designar a faculdade de estabelecer julgamentos morais dos atos
realizados; para tornar a análise mais clara, o que for enunciado pela ―consciência‖ apresentar-se-á em itálico.
130
Os trechos em itálico representam a voz da consciência do enunciador.
131
Pêcheux, M. op. cit. 1990, p.148.
82
literalmente uma conversa musicada, e por apresentar uma linguagem própria, compartilhada
pela rua (metáfora para excluídos) em oposição à casa.
No trecho seguinte, a consciência do indivíduo retoma um conceito de malandragem
elaborado por DaMatta (1990), o malandro domina as leis que regem o funcionamento da rua.
Vale ressaltar que, ainda segundo este autor, as leis da rua não são preestabelecidas, como as
da casa, são fluidas e difíceis de serem apreendidas.
Conversa fiada
Cada um com a sua viagem
Apenas o roteiro de Um Filme Malandragem
Aí personagem
Tem que ouvir a sua consciência
A maior malandragem do mundo
É viver
Ao concluir a canção desta forma, aquilo que tínhamos colocado como bastante
comum na construção do enunciador dos raps, a aproximação entre o ethos do enunciador e a
imagem discursiva de si do cantor, é rompido. A instauração de um outro EU-AQUI-AGORA
84
coloca o primeiro enunciador num plano fictício (um filme), distanciado deste novo
enunciador que se torna isento de qualquer acusação feita pela ―consciência‖.
Tal afastamento promove uma desidentificação da imagem discursiva de Marcelo D2
criada pela mídia como aquele que se deixou absorver pelo discurso dominante, da mesma
forma que a volta de Carmem Miranda dos Estados Unidos desencadeou a produção de
enunciados semelhantes. A análise nos mostra, portanto, um lugar semelhante entre o que
ocupou o samba no início do século passado e o que ocupa o rap atualmente. Um lugar de
resistência, um lugar que valida a voz do morro, da periferia, um lugar, enfim, em que reina o
―barão da ralé‖132
O que pretendíamos alcançar com estas análises era uma tentativa de se pensar as
noções de FD e GD como embricadas, de forma que um GD seleciona/ é selecionado por uma
FD e vice-versa, e quais efeitos de sentido estas seleções e os deslocamentos destas seleções
poderiam causar. Durante este trabalho encontramos um possível trajeto temático presente
neste movimento entre FDs e GDs, evidenciando, na materialidade da língua, o que
procuramos mostrar com estas nossas análises, é o que desenvolveremos no item que segue.
A noção de trajeto temático aparece no início dos anos 80 pela pena dos historiadores
do discurso, mais especificamente a de Jacques Guilhaumou, quando este propõe uma nova
maneira de leitura do arquivo. É por meio da observação de regularidades na materialidade da
língua seja ela de ordem sintática, lexical, morfológica, etc, que o trajeto temático vai se
interessar pelo novo no interior da repetição.
Por nos inserirmos num momento da AD que já possui certo distanciamento daquele
no qual tal conceito fora proposto, momento este que abandonava a noção de FD e propunha
novas formas de análise do arquivo, acreditamos ser pertinente a utilização destes dois
conceitos – FD e trajeto temático – de forma complementar. Pensamos que a noção de FD a
qual adotamos, como exposto no item 2.4.1. deste trabalho, como heterogênea a ela mesma,
constituída pelo interdiscurso e articulada a noção de GD, não torna inválida nossa análise por
meio da noção de trajeto temático, pois é justamente através dessa noção que poderemos
132
Referência a canção de Chico Buarque intitulada A volta do Malandro, composta em 1985.
85
133
CHARAUDEAU, P. e MAINGUENEAU, D. op. cit. 2004, p. 480.
134
Essas análises podem ser encontradas em GUILHAUMOU, J. e MALDIDIER, D. Efeitos do Arquivo. A
Análise do Discurso no Lado da História (pp. 163 – 183). In.: ORLANDI, E. (org.) Gestos de leitura : da história
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Régine. Discours et Archive: experimantations en analyse du discours. Liege: Mardaga, 1994. -- (Philosophie et
Langage).
86
principal de uma subordinação adverbial condicional (―Se fosse um tempo atrás eu carregava
é navalha‖). Se atentarmos mais especificamente à oração principal (eu carregava é navalha)
observaremos uma outra subordinação, a oração ―é navalha‖ funcionando como objeto direto
do verbo carregar. Tal configuração promove um segundo deslocamento, a navalha aparece
numa rememoração e em sua impossibilidade de utilização: ―Se fosse um tempo atrás eu
carregava é navalha, ‗hoje não me cabe mais usá-la, uma vez que esta já foi aposentada‘‖.
Partindo destas configurações sintáticas, quais efeitos de sentido podem ser
construídos? Nossa leitura deste trajeto aponta para uma tentativa de silenciamento da
resistência seguida de uma tentativa de ressignificação da mesma, de modo que esta possa
emergir novamente. A primeira ocorrência de navalha constrói um ethos aparentemente
homogêneo e inconteste do malandro: uma resistência muito bem demarcada frente ao
discurso trabalhista que começava a se intensificar no período em que tal enunciado emergiu.
A segunda ocorrência de navalha, surgida ao final de um grande período de intenso
controle do dizer135, enunciada sintaticamente como objeto direto do verbo aposentar provoca
um deslocamento dessa resistência. O malandro neste segundo momento trabalha, tem mulher,
filhos e tralha, o que como já discutimos a partir da dicotomia casa X rua proposta por Da
Matta136, o insere numa FD pró-trabalho, marcando uma absorção da resistência pelo discurso
dominante, causando assim seu silenciamento.
A tentativa de ressignificação desta resistência ocorre na terceira emergência de
navalha. Neste momento, o condicional “se fosse um tempo atrás‖ enuncia a impossibilidade
de um retorno a uma resistência tal como era feita anteriormente (com a navalha). Tal
impossibilidade de retorno é reforçada pela utilização do verbo ser em ―eu carregava é
navalha‖ na qual o verbo marca a possibilidade (no primeiro momento – um tempo atrás) da
navalha em detrimento de tudo o que não a fosse, e conseqüentemente a impossibilidade de
seu retorno (Se fosse um tempo atrás eu carregava é navalha, ‗hoje não me cabe mais usá-la,
uma vez que esta já foi aposentada, portanto, eu utilizo outra coisa que não seja navalha‘‖).
Diante do que foi exposto, pudemos observar a pertinência de uma análise lingüística
para alcançarmos o nível discursivo. Dito de outra forma, o discurso é, a nosso ver,
materializado e localizável em estruturas lingüísticas e suas repetições.
135
Consideramos este período de intenso controle do dizer o correspondente a toda Era Vargas até o final da
Ditadura Militar em 1985.
136
DA MATTA, R. op. cit. 1990.
87
A canção popular, como aponta Da Matta, tem exercido um papel bastante importante
no registro da vida cotidiana do povo brasileiro. Nela são materializados discursos produzidos
em diversos lugares, alguns inclusive desautorizados por outras mídias. Tendo isso em mente
e considerando também que a identidade nacional brasileira vem sendo, há pelo menos um
século, construída por meio do embate entre o discurso do trabalho e o discurso da
malandragem, bastante evidente nas políticas de valorização nacional de Vargas e Lula por
exemplo, propusemos como objetivo de nossa pesquisa, observar como essa construção
identitária é materializada no cancioneiro popular.
Construímos nosso corpus, num primeiro momento, selecionando canções desde o
início do século passado até os dias de hoje acerca da temática da malandragem e do trabalho.
Entretanto, após as primeiras análises, observamos que novas regularidades se fizeram
pertinentes. Levamos em conta, portanto, além das temáticas acima mencionadas os gêneros
samba e rap.
Para fundamentamos nossas análises, pautamo-nos nos pressupostos teóricos da
Análise do Discurso de linha francesa, notadamente aquela elaborada a partir da produção de
Michel Pêcheux articulada a conceitos de Michel Foucault. Desta área do conhecimento
utilizamos os conceitos de memória, discurso e formação discursiva. Utilizamos também o
conceito de ethos formulado por Aristóteles e repensado no interior da AD por Dominique
Mainqueneau, bem como as dicotomias casa X rua e mundo da ordem x mundo da desordem
elaboradas no interior da Sociologia.
Nossa primeira questão, ao observar as construções identitárias do malandro e do
trabalhador, era de examinar como as políticas governamentais pró-trabalho da era Vargas
influenciaram a produção musical da época. Concluímos através das análises apresentadas no
item 3.2. Zé Carioca, Zé Pequeno e outros Zes: discursos que constroem uma identidade
heterogênea, que as tentativas de apagamento do discurso da malandragem não foram
efetivas, e por isso, passamos a analisar as marcas deixadas por essa dispersão de enunciados
que caracterizam os discursos da malandragem na memória discursiva do trabalhador
brasileiro de hoje.
89
Diante disso, concluímos que a busca por um espaço na mídia para veicular as
denúncias dos excluídos pode acarretar numa absorção desta voz pela sociedade, de forma que
esta não se torne mais excluída, ou pelo menos vista como tal, pois já conquistou seu lugar.
Tal fato resulta na deslegitimação dessa voz, ou seja, para que ela represente os excluídos ela
deve permanecer à margem da sociedade.
Além destes apontamentos, encontramos um caminho interessante a ser seguido, trata-
se da utilização do conceito de trajeto temático, como propõe, por exemplo, a análise de
Jacques Guilhaumou, e Denise Maldidier, no texto ―Efeitos do Arquivo. A Análise do
Discurso no Lado da História‖. Com este conceito observamos como se dá a atualização de
discursos que antes eram veiculados pelo samba e hoje circulam através do rap e os efeitos
que tal atualização provoca, como pudemos observar no trajeto temático que construímos a
partir da repetição do léxico navalha configurando o tema resistência. Ao analisarmos três
canções de três períodos diferentes (1933, 1975 e 2006) nas quais o termo navalha se faz
presente, pudemos perceber como o termo é preenchido de diferentes sentidos, mas
preservando sempre o tema da resistência. No primeiro momento a navalha retoma um ethos
de malandro bastante marcado como ícone da resistência ao trabalho, já na segunda ocorrência
do termo, este ―aposentado‖, caracteriza a incorporação do discurso do malandro pelo
discurso dominante, ressurgindo, num terceiro momento, como uma releitura do primeiro.
Estas últimas análises confirmaram o que vínhamos defendendo nos itens anteriores,
de que após a construção discursiva do malandro no início do século passado, houve uma
tentativa de seu apagamento, seguida de uma releitura deste, na tentativa de se manter como
discurso de resistência.
91
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7. Discografia
Homenagem ao Malandro
Chico Buarque, LP Ópera do Malandro, Polygram, Faixa 8, 1979.
Retrato do Velho
Coletânea, LP Documentos Sonoros – Nosso Século, Abril Cultural, Faixa 46, 1980.
Eu trabalhei
Orlando Silva, LP Orlando Silva, Funarte, Faixa 6, 1985.
Um filho e um cachorro
Zeca Baleiro, CD Petshopmundocão, MZA Music/ Abril Music, Faixa 8, 2002.
O Hacker
Zeca Baleiro, CD Petshopmundocão, MZA Music/ Abril Music, Faixa 3, 2002.
O pequeno burguês
Martinho da vila, LP Martinho da Vila, RCA, Faixa 5, 1969.
Americanizada
Carmen Miranda, CD Carmen Miranda – cd 5, EMI/ Odeon, Faixa 20, 1996.
1967
Marcelo D2, CD Eu tiro é onda, Chaos/ Sony Music, Faixa 2, 1998.
Samba de primeira
Marcelo D2, CD Eu tiro é onda, Chaos/ Sony Music, Faixa 6, 1998.
Batucada
Marcelo D2, CD Eu tiro é onda, Chaos/ Sony Music, Faixa 12, 1998.
Rebatucada
Marcelo D2, CD A procura da batida perfeita, Sony, Faixa 10, 2003.
Um filme malandragem
Marcelo D2, CD Meu samba é assim, Sony/ BMG, Faixa 9, 2006.
Malandragem dá um tempo
100
Samba, a gente não perde o prazer de cantar Muito respeito aos arquitetos da música brasileira
E fazem de tudo pra silenciar Os verdadeiro é aqueles que nunca tão de bobeira
A batucada dos nossos tantãs Que no quintal ou na escola o samba é de primeira
No seu ecoar, o samba se refez Poeta operário de segunda à segunda-feira
Seu canto se faz reluzir
Podemos sorrir outra vez Tá na hora de bater essa parada
Samba, eterno delírio do compositor Da mesa ser virada
Que nasce da alma, sem pele, sem cor De bora com a conversa fiada
Com simplicidade, não sendo fugaz Bate forte no meu peito
Fazendo da nossa alegria, seu habitat natural Do jeito que não tem fim
O samba floresce do fundo do nosso quintal Bate surdo agogo pandeiro e tamborim
Do fundo do meu quintal Sorria meu bloco vem bem descendo a cidade
faço esse som pra você vai haver carnaval de verdade
Duas vitrolas, vinil e uma SP o samba não se acabou
estilo variado fazendo a estrutura balançar
cantando rap samba láiá láiá láiá Sorria o samba mata a tristeza da gente
deixo a temperatura do recinto quente Quero ver o meu povo contente
com o microfone na mão Do jeito que o rei mandou
abalando tudo pela frente
eu entro no samba com meu hip-hop Então checa prá cá que o bloco chegou
o dj solta a base a mulata sacode O samba não se acabou
não precisa presta atenção no que eu to dizendo Não adianta reclamar que não tem caô
não tenho o que rimar O que passou passou
eu mando um remendo
agora lembrei de uma boa que rima com samba Um carnaval diferente foi o que o rei mandou
eu sou da nova geração e E é nesse que eu vou
minha ginga é de bamba E nem importa qual direção que eu tô
mas sempre influenciado pela velha guarda
veio do fundo do quintal essa parada S‘embora !
fronteira não há para nos impedir
108
Produto nacional de exportação do bom Se eu canto samba é que o meu rap agora tá lá
Identidade nacional só prá quem tem o dom Não adianta que o meu rap não vai parar
Vacilou sambou literalmente na parada Vamo que vamo que o som não pode parar (2x)
Essa é pra deixar qualquer cadeira quebrada
Meu samba é assim
Quem diz que o povo esquece facilmente Chega e fortalece a corrente
te engana novamente Vagabundo corre atrás porque eu já tô lá na frente
não quer que voce olhe prá frente Meu samba é assim
Força e coragem prá enfrentar tudo o que vem Luto por toda a minha gente
Diz que tem Tá ligado? RJ, tipo linha de frente
Diz que tem
Diz que tem também O canetão rodou o mundo
Assinatura (iiiiiii) tá lá no muro
Sorria.... Se eu quero fama? Não
Pergunte assim:
Muito respeito aos verdadeiros arquitetos O que é que é o samba?
da música brasileira Meu samba é assim
Comigo:
Eu digo Chico Science (Chico Science) Minha camisa é manifesto
Eu digo Cartola (Cartola) 33 e um terço
Eu digo Jovelina (Jovelina) Quem tem estilo reconhece que já vem de berço
Eu digo Tom Jobim (Tom Jobim) É força e branco
Eu digo Candeia (Candeia) fica no talento condins
Eu digo João Nogueira (João Nogueira) São as coisas simples da vida
Eu digo a Dona Neuma (Dona Neuma) Que me fazem feliz
Tim Maia (Meu Amigo)
Quem tem os beats e sabe o que faz
Meu Samba é assim Bota a mulhereda sambando e pedindo mais
(Marcelo D2, 2006) Me lembro muito bem de ouvindo João Nogueira
De um rap junto com samba
Quem é que mistura o rap com samba? Lá na quadra da Mangueira
Eu disse samba (samba) Do samba de primeira esquentando os tamborins
E pega um Dj (Dj) e um tamborim (tamborim)
Então vem comigo Meu som é assim
Meu Samba é assim Minha cara é assim
Tá bom pra mim Minha voz é assim
Nos toca-discos e um tamborim Eu sou assim
A calça é larga, o boné pr'o lado, E se quiser gostar mim, aê
4x4, mas sincopado Meu samba é assim
Mas continua o anel, a pulseira e o cordão Mantém a boca fechada com responsabilidade
Muda de conversa sem problema nenhum
Rolézinho a dois, de mustang 73 Eu nunca vi e nem vou ver esse neguinho fumar um
O Hip-Hop com samba é Bola da vez
Rap brasileiro, viajou o mundo, se encheu de A conduta certa você sabe eu também
prêmio e agora
nobre vagabundo Ahãm
Chega e tira onda, arrebenta as caixa
Entra lá na VIP e bebe cerveja na faixa Código de rua que a malandragem sabe bem