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Universidade Federal de São Carlos

Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa

Coordenadoria de Iniciação Científica

Samba, Rap e Malandragem:

Uma relação entre gêneros e formação discursiva na construção da identidade

do trabalhador brasileiro.

Bruno Molina Turra

Letras

São Carlos
2007
2

Agradeço

Aos meus pais por compreenderem a aparente falta de afeto e de atenção;


Ao André, amor da vida inteira, ouvinte e contestador irredutível dos meus argumentos,
fundamental para o desenvolvimento deste trabalho;
Aos amigos que contribuíram com discussões as quais só enriqueceram minha pesquisa, em
especial à Jacqueline Jorente e à Mirian Ito.
À profª Vanice, cuja orientação foi primordial para a realização deste trabalho;
À prof ª Lúcia Barbosa pelas indicações de leitura sobre a historiografia da música popular
brasileira;
Ao prof. Roberto Baronas pelas frutíferas e esclarecedoras discussões teóricas;
À FAPESP cuja bolsa de estudos financiou a pesquisa.
Odoyiá mamãe, senhora do meu orí.
3

―Os deuses são deuses


Porque não se pensam‖
Ricardo Reis
4

__________________________________
Orientando: Bruno Molina Turra

__________________________________
Orientadora: Profª Drª Vanice Maria Oliveira Sargentini
5

Sumário

1. Introdução.............................................................................................................06
2. Metodologia...........................................................................................................08
2.1. Sobre a Análise do Discurso.......................................................................08
2.2. Articulações entre Memória, História e Discurso......................................14
2.3. Identidade e Subjetividade..........................................................................17
2.4. Dispositivos de análise................................................................................22
2.4.1. Formação Discursiva e Gênero Discursivo.................................22
2.4.2. Ethos e Estereótipo........................................................................27
2.4.3. Oposições temáticas......................................................................29
2.5. O Arquivo e o Corpus..................................................................................33
3. Resultados e Discussões.....................................................................................36
3.1. Algumas discursividades sobre o malandro.............................................36
3.1.1. Sob o olhar das Ciências Sociais.................................................37
3.1.2. Sob o olhar da História..................................................................39
3.2. Zé Carioca, Zé Pequeno e outros Zés: discursos que constroem uma
identidade heterogênea......................................................................................41
3.3. O Samba como lugar da Malandragem......................................................54
3.4. Deslizamentos: um novo gênero, novos efeitos de sentido....................64
3.5. A construção temática da Resistência – A Navalha.................................84
4. Considerações sobre a pesquisa........................................................................88
5. Referências Bibliográficas...................................................................................91
6. Obras e sites consultados para a coleta do corpus..........................................97
7. Discografia............................................................................................................98
8. Anexo - Corpus (por ordem de análise)............................................................101
6

1. Introdução

Houve, no Brasil, durante as décadas de 20 e 30 do século XX, a construção mais


evidente da figura do malandro, sendo materializada pelo norte-americano com a imagem do
Zé Carioca. A mise en scène do malandro nessa época pode ser explicada historicamente pelo
início do desenvolvimentismo no Brasil, iniciando uma substituição na ideologia do trabalho
da época. Uma ideologia intimamente ligada ao escravismo que considerava o trabalho uma
função típica de escravos, passa a ser substituída por uma ideologia que via no trabalho o
progresso, sendo, portanto algo digno, o que, conseqüentemente atribuía ao malandro um
lugar de marginalidade, de resistência a essa nova ideologia.
Tínhamos como suposição para o nascimento do malandro, a figura do bom selvagem.
Porém, depois das leituras feitas para este trabalho, pudemos observar que o malandro está,
não somente ligado ao bom selvagem brasileiro, mas também a Pedro Malazartes, personagem
da cultura ibérica, e a princípios reguladores das atividades humanas comuns entre os
colonizadores e os colonizados.
Essa imagem do malandro que tem como embriões Pedro Malazartes e o indígena
brasileiro e como sustentáculo uma ideologia do trabalho que permitisse tal figura, vai ter na
Era Vargas um momento de crise. É nesse período que conjunturas históricas e poderes
políticos fazem circular um discurso de necessidade de controle da organização estatal sobre o
trabalhador. Esse controle pode ser percebido nos discursos de Vargas, nos quais o então
presidente tem como interlocutor o trabalhador, apagando, portanto, o discurso endereçado ao
―não-trabalhador‖.
A partir dessas observações, e a fim de observar como se dão as produções de
identidade do trabalhador brasileiro, adotamos como corpus canções brasileiras produzidas
desde o início do século passado até a atualidade que veiculassem os discursos da
malandragem e do trabalho.
Um primeiro tratamento1 que demos ao corpus foi a análise das posições sujeito que os
enunciadores das canções assumiam ao enunciar. Com isso, pudemos observar a não
homogeneidade dos discursos tanto do trabalhador quanto do malandro, as práticas de

1
Este tratamento corresponde ao resultado de pesquisa desenvolvido sobre o tema ―A Memória do malandro na
imagem do trabalhador brasileiro‖, ano de 2005, apoio CNPq. Para maior esclarecimento, uma versão resumida
se encontra no item 4.2. deste relatório.
7

apagamento da figura do malandro durante o Governo Vargas e os efeitos que tais práticas
produziram na construção de identidade do trabalhador brasileiro.
Nessa primeira análise do corpus, observamos também que o discurso da malandragem
foi mais amplamente divulgado por meio do samba, o que nos vez pensar num novo
tratamento para este material, atentando então para os gêneros discursivos nos quais os
discursos da malandragem e do trabalho são veiculados e quais efeitos de sentido esses
gêneros podem produzir nos discursos que sustentam.
Faremos, no capítulo seguinte, uma exposição do quadro teórico-metodológico com o
qual trabalharemos.
8

2. Metodologia

2.1 Sobre a Análise do Discurso

Consideramos ser importante a retomada da história da Análise do Discurso a fim de


elucidar a origem dos conceitos utilizados, evitando assim, contradições metodológicas.
Vemos na ordem cronológica uma maneira eficaz de construirmos essa retomada histórica por
atender mais prontamente a nossa finalidade de evidenciar a construção dos conceitos
estudados, ressaltamos, porém, que a ordem cronológica não é a única nem sempre a melhor
maneira de olharmos para a História.
A Análise do Discurso (AD) Francesa, adepta dos conceitos elaborados pelo grupo de
Michel Pêcheux, teve início com um rompimento epistemológico proposto pelo autor a
respeito do corte saussuriano. Pêcheux reformula a dicotomia langue/parole de Saussure,
acreditando que o estruturalismo, ao ter a langue como objeto, abandonava as investigações
sobre o sentido. Os questionamentos acerca da parole e do seu dispositivo teórico para a
análise da produção de sentidos criam ―um novo objeto, que não é dado empírico, que é
diferente de ‗enunciado‘, que é diferente de ‗texto‘ pois vai ser colocado em relação com a
História‖ 2.
Dividiremos nossa exposição da história da AD francesa em três fases, baseando-nos,
principalmente, na obra de Michel Pêcheux. A primeira fase, nomeada de Análise Automática
do Discurso (AAD69), é costumeiramente delimitada por duas publicações pecheutianas,
iniciando com o livro publicado em 1969, intitulado Análise Automática do Discurso e, Les
Verités de la Palice3 de 1975 que encerra esse momento. Neste período, Pêcheux ainda está
fortemente ligado ao estruturalismo4, tentando criar um dispositivo automático capaz de
separar a leitura da subjetividade (a machine à lire). Michel Pêcheux baseia sua pesquisa na

2
GREGOLIN, M. R. Análise do Discurso: Os Sentidos e Suas Movências. In: GREGOLIN, Maria do Rosário,
CRUVINEL, Maria de Fátima e KHALIL, Marisa Teresa (orgs.). Análise do Discurso: entornos do sentido; São
Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2001, p.12
3
Traduzido para o português por Eni Pulcinelli Orlandi com o Título de Semântica e Discurso, uma crítica à
afirmação do óbvio.
4
Um estruturalismo especulativo onde são classificados ―trabalhos com fortes matizes ideológicas e filosóficas,
reincorporando as teses estruturalistas problemáticas de Freud e de Marx, em relação ao sujeito e à História‖
como aponta Gregolin, M. em Foucault e Pêcheux na análise do discurso – diálogos e duelos, 2004. p. 25.
9

reformulação do corte saussuriano, nomeando discurso, a fala saussuriana ―desembaraçada de


suas implicações subjetivas‖ 5.
É mister dizer que a Análise do Discurso constitui-se como disciplina transversal
ancorada basicamente na Lingüística (Saussure relido por Pêcheux), no Materialismo
Histórico (Marx relido por Althusser) e na Psicanálise (Freud relido por Lacan). O conceito de
discurso proposto por Michel Pêcheux foi altamente influenciado por essas outras ciências,
dando ao discurso um constituinte exterior a ele próprio, ou seja, as condições de produção
(externas ao discurso) possibilitam seu estudo sem que se esbarre no subjetivismo.
Ainda no livro de 1969, Michel Pêcheux expõe um dos pontos principais de sua teoria:
a hipótese da relação entre o discurso e o já-dito (pré-construído), assim como a idéia do não-
dito constitutivo. Através dessas análises, Pêcheux aponta, no discurso, a existência de
elementos discursivos anteriores cujos enunciadores já foram esquecidos6, derivando assim a
idéia de que todo discurso parte de um discurso já-lá, de um interdiscurso. É através dessa
noção de pré-construído que observaremos neste trabalho, como ocorre a amarração dos
diferentes discursos sobre/do malandro e sobre/do trabalhador na música brasileira.
Pouco antes da publicação do livro Les Vérités de la Palice que abriria outra fase na
AD, Pêcheux e Fuchs escrevem o artigo Mises aux points et perspectives à propos de
l‟Analyse Automatique du Discours no qual é explicitado o caráter de disciplina transversal
vinculada à ―tríplice aliança‖: Saussure, Freud e Marx. É ainda nesse artigo que Pêcheux
aprimora as relações entre língua, discurso, ideologia e sujeito, com profunda influência da
fórmula althusseriana (―a ideologia interpela o indivíduo em sujeito‖), propondo sua teoria dos
dois esquecimentos na qual afirma que o sujeito pensa que é a fonte do dizer, pois seu dizer se
apresenta como uma evidência.
O fim da AAD69 é marcado, como já foi dito, pela publicação de Les Verités de la
Palice (1975). Neste livro, Michel Pêcheux

propõe uma teoria materialista do discurso (1988, p. 91 – 94): ‗é sobre a base


lingüística que se desenvolvem os processos discursivos, mas, ao mesmo tempo, todo

5
MALDIDIER, D. (Re)Ler Michel Pêcheux Hoje; GREGOLIN, Maria do Rosário (trad.) In: MALDIDIER, D.
(org.) L‟inquietude du discours. Paris: ed. des Cendres, 1990, p. 05.
6
GREGOLIN, M R. op. cit., 2001, p. 18.
10

processo discursivo se inscreve numa relação ideológica de classe, enfatizando,


entretanto, que essas relações são contraditórias‘. 7

Fortemente ancorado em Althusser, Michel Pêcheux reafirma que ―os indivíduos são
interpelados em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas
que representam na linguagem as formações ideológicas que lhes são correspondentes‖ 8. Já
com base em Lacan, neste mesmo livro, Pêcheux reformula a teoria dos dois esquecimentos
dizendo que os ―traços inconscientes do Significante‖ não são esquecidos como era suposto,
mas operam entre o sentido e o não-sentido.
Em Semântica e Discurso, uma crítica à afirmação do óbvio, Pêcheux destina ainda
grande parte de sua atenção para o que será um dos principais questionamentos do segundo
momento da AD francesa: o sujeito e sua determinação pela história. Este ponto da teoria
pecheutiana é de suma importância para a análise do processo de construção da identidade do
malandro, pois acreditamos ser fundamental o papel da história nessa constituição identitária.
Um último conceito introduzido por Michel Pêcheux no livro de 1975 é o de
intradiscurso, que surge como conseqüência dos outros conceitos. Sendo intradiscurso, o
―funcionamento do discurso em relação a si mesmo‖, ou seja, a relação do que é dito agora
com o que já foi e o que será dito9.
Na segunda fase da AD francesa, percebemos uma forte influência da política na
teoria. O grupo de Pêcheux trava uma batalha contra o reformismo, o que na teoria resultaria
no ataque ao logicismo gerativista e à sociolingüística. Nesse período toda a teoria da AD foi
repensada e alguns conceitos reformulados.
Pêcheux, em uma comunicação no México em 1977, intitulada Remontémonos de
Foucault a Spinoza, faz uma crítica a Foucault por este não aceitar a idéia marxista da
contradição. Pêcheux reformula, então, o conceito de formação discursiva dizendo que esta,
assim como as formações ideológicas, não pode ser pensada como um ―bloco homogêneo‖. É
a partir desta reformulação da noção foucaultiana de FD e sobre a reflexão das relações entre
ideologia dominante e ideologia dominada, que começa a nascer a idéia de heterogeneidade.

7
GREGOLIN, Maria do Rosário. Foucault e Pêcheux na análise do discurso – diálogos & duelos; São Carlos:
Clara Luz, 2004a, p. 63.
8
PÊCHEUX , M. (1975). Les vérités de la Palice. Paris: Maspero. Trad. Bras. Eni Orlandi. Semântica e
discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. 3ª. Ed. Campinas: Unicamp, 1997, p. 161.
9
MALDIDIER, D. op. cit. 1990, p. 24.
11

O marco inicial da terceira fase da AD pecheutiana é o colóquio Materialidades


Discursivas, nele o reencontro de Michel Pêcheux com Jean-Marie Marandin foi bastante
importante por ter sido ele o elo entre Pêcheux e as idéias foucaultianas. Outro encontro
bastante frutífero foi com Jacqueline Authier e seu estudo sobre ―um discurso outro dentro do
próprio discurso‖. A partir desses (re)encontros e da tese de Jean Jacques Courtine intitulada
Analyse du discours politique: le discours communiste adressé aux chrétiens, que aponta a
não homogeneidade dos discursos, pode-se avançar na discussão a respeito dos limites das
formações discursivas, inserindo-se a noção de memória discursiva que será mais bem
explicada posteriormente.
Outro autor bastante importante para a AD é o filósofo Michel Foucault,
principalmente em sua fase arqueológica10 quando ele mais explicitamente se dedicou à
problemática do discurso, propondo princípios para sua análise. Nos três trabalhos iniciais
dessa fase, Foucault busca construir uma história dos saberes que têm o homem como objeto.
Na primeira delas, História da Loucura na Idade Clássica (1962), através da análise
de discursos acerca da loucura, o autor vai em busca da estruturação dos saberes, retomando o
―grau zero‖ da loucura, momento em que ela ainda não era pensada opondo-o a um momento
em que o homem, ao entender a loucura, expulsa o louco do convívio social. Em seu segundo
livro, O Nascimento da Clínica (1963), adotando o critério da descontinuidade histórica,
Foucault tenta construir uma história do saber médico. Não se trata, entretanto, de uma
história que remonta uma progressão ou uma evolução da medicina, mas de uma história que
analisa os diversos tipos de transformações capazes de fazer com que uma positividade
desapareça e surja outra.
Já em As palavras e as Coisas (1966) Foucault traz como tema a auto-tematização do
homem enquanto objeto e sujeito da ciência. Tal estudo é realizado através de um percurso da
arqueologia da episteme ocidental desde a era medieval até o século XIX. É então na
Arqueologia do Saber que Foucault se dedicará ao quadro teórico-metodológico de seus
trabalhos anteriores. Entretanto, segundo o autor, ―Este trabalho não é a retomada e a
descrição exata do que se pode ler em Histoire de la Folie, Naissance de la Clinique ou Les

10
A fase arqueológica de Foucault compreende as seguintes obras: História da Loucura na Idade Clássica
(1962), O Nascimento da Clínica (1963), As Palavras e as Coisas (1966) e Arqueologia do Saber (1969).
12

Mots e les Choses. Em muitos pontos, ele é diferente, permitindo também diversas correções e
críticas internas‖ 11.
Ao discorrer sobre o conceito de enunciado, Foucault, no capítulo III de Arqueologia
do Saber, o considera a unidade elementar do discurso. O autor prossegue sua explanação
contrapondo o conceito de enunciado a três outros conceitos: a proposição, a frase e os atos de
linguagem (speech acts).
Com relação ao primeiro conceito, o autor o difere de enunciado por este – o
enunciado – estar no plano do discurso, não podendo ser submetido a provas de
verdadeiro/falso por não apresentar formulações equivalentes, o que ocorre com a proposição.
O enunciado se diferencia da frase, pois este não está necessariamente estruturado sob uma
forma lingüística canônica. Uma árvore genealógica, um livro contábil, uma tabela constituem
enunciados sem, entretanto, serem construídos sob a estrutura sujeito – verbo – predicado, por
exemplo. Com relação ao terceiro conceito o qual é contraposto ao conceito de enunciado por
Foucault, os atos de linguagem são, segundo o autor, os que mais se aproximam do enunciado.
Entretanto, em seu método, o autor não propõe visar o ato material (falar e escrever), nem a
intenção do indivíduo que está falando e nem o resultado eventual do que foi dito. Foucault
visa descrever

a operação que foi efetuada pela própria fórmula, em sua emergência (...). O ato
ilocutório não é o que ocorreu antes do momento do enunciado; não é o que se pôde
produzir, depois do próprio enunciado no sulco que deixou atrás de si e nas
conseqüências que provocou; mas sim o que produziu pelo próprio fato de ter sido
enunciado – e precisamente este enunciado (e nenhum outro) em circunstâncias bem
determinadas12.

Foucault ainda relaciona o enunciado com o conceito de língua, colocando-os em


níveis diferentes de existência, pois ―não se requer uma construção lingüística regular para
formar um enunciado; mas não basta tampouco qualquer realização material de elementos
lingüísticos, ou qualquer emergência de signos no tempo e no espaço, para que um enunciado
apareça e passe a existir‖ 13.

11
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber; 2.ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986, p. 19.
12
Idem, p. 94.
13
Idem, p. 98.
13

Portanto, o que faz com que uma proposição, uma frase ou um ato de linguagem se
torne enunciado ―é o fato de ele ter sido produzido por um sujeito, em um lugar institucional,
14
determinado por regras sócio-históricas‖ . A essa propriedade do enunciado de não ser
apenas formado por elementos gramaticais e/ou lógicos, mas também de se constituir do
sujeito que o (re)produz, da posição que este sujeito assume e de ser cruzado por regras sócio-
históricas é o que chamamos de função enunciativa.
Outro ponto fundamental para a compreensão do conceito de enunciado proposto por
Foucault é o fato de ele estar inserido numa trama complexa composta por outros enunciados,
atestando assim sua historicidade. A essa série de formulações que margeiam o enunciado,
Foucault denomina campo associado. Segundo o autor:

O campo associado que faz de uma frase ou de uma série de signos um enunciado e que
lhes permite ter um contexto determinado, um conteúdo representativo específico, forma
uma trama complexa. Ele é constituído, de início, pela série das outras formulações, no
interior das quais o enunciado se inscreve e forma um elemento (...). É constituído,
também, pelo conjunto das formulações a que o enunciado se refere (implicitamente ou
não), seja para repeti-las, seja para modificá-las ou adaptá-las, seja para se opor a elas,
seja para falar de cada uma delas; não há enunciado que, de uma forma ou de outra, não
reatualize outros enunciados (...). É constituído, ainda, pelo conjunto das formulações
cuja possibilidade ulterior é propiciada pelo enunciado e que podem vir depois dele
como sua conseqüência, sua seqüência natural, ou sua réplica (...). É constituído,
finalmente, pelo enunciado em questão, entre as quais toma lugar sem consideração de
ordem linear, com as quais se apagará, ou com as quais, ao contrário, será valorizado,
conservado, sacralizado e oferecido como objeto possível, a um discurso futuro (...).
Pode-se dizer, de modo geral que uma seqüência de elementos lingüísticos só é
enunciado se estiver imersa em um campo enunciativo em que apareça como elemento
singular15.

Caracterizado o enunciado, Foucault considera o discurso um conjunto de enunciados


apoiados numa mesma formação discursiva, sendo, portanto, um conjunto limitado de
enunciados construídos na unidade/descontinuidade da história dentre os quais podemos

14
GREGOLIN, M. R. O enunciado e o arquivo: Foucault (entre)vistas. In: SARGENTINI, Vanice &
NAVARRO, Pedro. Foucault e os domínios da linguagem: discurso poder e subjetividade. São Carlos: Claraluz,
2004b. pp. 23 – 44, p. 26.
15
FOUCAULT, M. op. cit. 1986, pp. 112 – 113.
14

estabelecer regularidades. É a partir destes conceitos que Foucault constrói seu método
arqueológico de análise.

Nosso trabalho se insere no terceiro momento da Análise do Discurso, quando


Pêcheux aproxima-se de algumas noções foucaultianas importantes como acontecimento,
possibilitando pensar a formação discursiva enquanto regularidade e dispersão de enunciados,
atentando, então para a heterogeneidade desta.
Nos itens seguintes do presente capítulo discutiremos mais detalhadamente algumas
noções que serão fundamentais para nossas análises.

2.2 Articulações entre Memória, História e Discurso.

A AD francesa considera o discurso o lugar da articulação entre língua e História e da


materialização do processo enunciativo16. Deste modo, pelo fato de a História estar
intrinsecamente ligada ao objeto de nossa teoria, consideramos importante ressaltar neste
campo interdisciplinar no qual se inscreve a AD francesa, o modo como essas disciplinas se
relacionam.
O descontentamento com as análises históricas tradicionais, que eram sempre
reduzidas a uma linearidade de fatos, fez com que os historiadores Marc Bloch e Lucien
Febvre criassem a École des Annales a fim de discutir a história enquanto ciência e
proporcionar um maior diálogo com ciências vizinhas. Essa escola, fundadora da Nova
História, não considera mais a história como um contínuo, mas ao estudá-la a partir da
irrupção dos acontecimentos e tendo em vista que cada ―estrato de acontecimentos exige sua
17
própria periodização‖ , passa-se a estudá-la em sua descontinuidade. Foucault, ao comparar
a Nova História (história do pensamento, dos conhecimentos, etc.) com o paradigma
tradicional da História (ou história propriamente dita) afirma:

16
SARGENTINI, Vanice Maria Oliveira. Discurso e História: A construção de identidade do trabalhador
brasileiro. In: GREGOLIN, Maria do Rosário, CRUVINEL, Maria de Fátima e KHALIL, Marisa Teresa (orgs.).
Análise do Discurso: entornos do sentido; São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2001. (pp. 249 – 261), p. 249.
17
GREGOLIN, M. R. op. cit. 2004a, p. 165.
15

(...) a história do pensamento, dos conhecimentos, da filosofia, da literatura, parece


multiplicar as rupturas e buscar todas as perturbações da continuidade, enquanto que a
história propriamente dita, a história pura e simplesmente, parece apagar, em
benefício das estruturas fixas, a irrupção dos acontecimentos. 18

Ainda com base em Foucault, podemos dizer que a descontinuidade só foi possível de
ser trabalhada ao se tirar o sujeito do centro do fazer histórico. Pois

A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito: a


garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo
nada dispersará sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa de que o
sujeito poderá, um dia – sob a forma da consciência –, se apropriar, novamente, de
todas essas coisas mantidas à distancia pela diferença, restaurar seu domínio sobre
elas e encontrar o que se pode chamar sua morada. 19

Este novo modo de se trabalhar a história acaba com o ―sono tranqüilo‖ do sujeito e
implica também um novo modo de se olhar para os documentos. Trata-se agora de
monumentalizá-los, de estudar não os documentos neles mesmos, mas suas condições de
produção, interpretando assim, o modo como uma sociedade se representa. Para Foucault:

O documento não é mais, para a história, essa matéria inerte através da qual tenta
reconstruir o que os homens fizeram ou disseram. (...) ela procura, no interior do
próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações.20

Além dessas noções trazidas da Nova História, utilizaremos algumas outras,


igualmente interdisciplinares, como a noção de memória, mais especificamente, os conceitos
de ―memória coletiva‖ e ―memória discursiva‖. Assim como o discurso, estas estão também,
intrinsecamente ligadas à história por ser a história, enquanto ciência, a responsável pela

18
FOUCAULT, M. op. cit. p. 06.
19
Idem, p. 14.
20
Idem, p. 07.
16

―passagem da ‗memória coletiva‘ para a ‗memória histórica‘ com o trabalho do historiador


que lê o documento como monumento.‖21
Podemos entender por memória coletiva ‗o que fica do passado no vivido dos grupos,
ou o que os grupos fazem do passado‘22. A partir desta definição de memória coletiva é
interessante pensarmos nos órgãos responsáveis pelo que é feito do ―que fica do passado‖
levando em conta a teoria marxista das lutas de classe, como afirma Le Goff:

(...) a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças
sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das
grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e
dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são
reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. 23

Essa citação nos remete ao belo texto de Courtine (1999), O Chapéu de Clémentis, no
qual faz algumas observações sobre o lugar da memória no campo do discurso político, mais
precisamente o discurso político endereçado aos cristãos, mostrando-nos como se dão esses
apagamentos na materialidade lingüística.
Em nosso trabalho, mostraremos algumas marcas de apagamento do que poderíamos
chamar de ―filosofia da malandragem‖ principalmente na Era Vargas, quando se tentava
instaurar uma nova ideologia do trabalho, numa tentativa de modificar a memória coletiva.
Na AD francesa, adota-se também o termo memória discursiva quando se refere aos
sentidos socialmente cristalizados nos quais se baseiam os discursos, tirando destes sentidos já
cristalizados sua identidade24. Nesse mesmo caminho, Payer afirma que

(...) a memória discursiva não se esgota na ordem do ‗efetivamente ouvido‘, do


‗realmente formulado‘, ela se apresenta no domínio das identificações/filiações
discursivas como uma base que regulariza a possibilidade de qualquer dizer 25.

21
GREGOLIN, Maria do Rosário. Recitações de mitos: a História na lente da mídia. In: GREGOLIN, M. do
Rosário (org.). Filigranas do discurso: as vozes da história. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2000. pp. 19
– 34, p. 21.
22
Pierre Nora apud LE GOFF, J. ―Memória‖. In História e Memória. 3a. ed.. Trad. Bernardo Leitão et al..
Campinas: Ed. Da Unicamp, 1994, p. 472.
23
LE GOFF, J. op. cit. 1994, 426.
24
BARONAS, R. L. Configurações da memória discursiva em slogans políticos. In: GREGOLIN, M. do Rosário
(org.). Filigranas do discurso: as vozes da história. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2000. pp. 69 – 84.
17

2.3. Identidade e Subjetividade

(...) a identidade somente se torna uma questão


quando está em crise, quando algo que se supõe
como fixo, coerente e estável é deslocado pela
experiência da dúvida e da incerteza26.

Tratar da presença de uma memória do malandro na imagem do trabalhador brasileiro


é, sem dúvida, trabalhar com identidades em curso, é analisar processos de subjetivação que
constituem a falsa unidade identitária que tanto busca o sujeito contemporâneo. Entretanto,
antes de falarmos sobre identidades e processos de subjetivação, preferimos explicitar o que
entendemos por sujeito e como o vemos em tempos de globalização. Esboçaremos, apoiados
nos estudos de Hall (2001), um breve panorama sobre trajeto pelo qual percorreu a concepção
de sujeito.
O sujeito, até o Renascimento, tinha suas bases ―divinamente estabelecidas‖, não
estando sujeitas, portanto a mudanças profundas. O rompimento com essa origem divina do
sujeito se dá por alguns acontecimentos dos quais destacaremos a reforma e o protestantismo,
o Humanismo, as revoluções científicas e finalmente o Iluminismo.
Os dois primeiros acontecimentos contribuíram para o desvencilhamento da idéia da
Igreja como intermediadora do ser humano com Deus, libertando sua consciência individual
das instituições religiosas. Rompido este forte pilar que sustentava a noção de sujeito pré-
moderno, permitiu-se que o Homem fosse posto no centro do universo, como medida para
todas as coisas, sendo o Humanismo o conjunto de acontecimentos que possibilitaram esse
deslocamento. Contribuíram também para a consolidação deste sujeito soberano, as
revoluções científicas que, nas palavras de Hall, ―conferiram ao Homem a faculdade e a
capacidade de inquirir, investigar e decifrar os mistérios da Natureza‖27 e o Iluminismo
―centrado na imagem do homem racional, científico, libertado do dogma e da intolerância, e

25
PAYER, Maria Onice. Memória da língua-imigração e nacionalidade. Campinas, SP: UNICAMP – IEL,
1999, p. 22.
26
Mercer, 1990, 43 apud HALL , Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 5ª.ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2001, p. 09.
27
HALL, S. op. cit. 2001, p. 26.
18

diante do qual se estendia a totalidade da história humana, para ser compreendida e


dominada‖28.
Entretanto conforme as sociedades modernas foram se tornando mais complexas, o
sujeito soberano e individual entra nas maquinarias burocráticas e administrativas do estado
moderno, passando a adquirir uma forma mais coletiva e social. Dois fatos que contribuíram
para essa concepção mais social do sujeito moderno foram a biologia darwiniana que
―biologizou‖ o sujeito conferindo-o bases naturais; o outro fator foi o surgimento das novas
ciências sociais. Esse segundo fato produziu resultados um tanto divergentes. Por um lado, o
sujeito soberano permaneceu no centro da economia e das leis modernas, além do surgimento
da psicologia que privilegiou o estudo do indivíduo e de seus processos mentais, o que
reforçava a idéia de um sujeito soberano. Por outro lado, a sociologia ―localizou o indivíduo
em processos de grupo e nas normas coletivas as quais subjaziam a qualquer contrato entre
sujeitos individuais‖29.
Concomitantemente com essa visão sociológica interativa do sujeito, nascia uma visão
perturbadora de sujeito. Oriundo de movimentos estéticos e intelectuais ligados ao
Modernismo, esse novo sujeito era isolado, exilado ou alienado e inserido numa multidão
anônima impessoal, o que contribuiu para o início da morte do sujeito moderno e sociológico.
Segundo a visão dos que sustentam a fragmentação do sujeito, cinco são as rupturas do
conhecimento moderno que contribuíram para tal. A primeira delas, referente ao pensamento
marxista, relido por Althusser tira o homem do centro da história, pois ―os indivíduos não
poderiam de nenhuma forma ser os autores ou agentes da história, uma vez que eles podiam
agir apenas com base nas condições históricas criadas por outros e sob as quais eles nasceram,
utilizando os recursos materiais e de cultura que lhes foram fornecidos por gerações
anteriores‖30.
O segundo descentramento do pensamento ocidental foi a releitura de Freud por Lacan,
que partindo da descoberta freudiana do inconsciente sendo este a base de nossos processos
psiquicos e simbólicos responsáveis por nossas identidades, sexualidade e desejos, propõe que
as identidades são construídas como num jogo de espelhos, a formação do eu se dá no Outro e
nunca se completa. O terceiro descentramento é atribuído ao trabalho do lingüista Ferdinand

28
Idem. Ibidem.
29
Idem, p. 31.
30
Idem, pp. 34 – 35.
19

de Saussure que argumentava que, em nenhum sentido, o sujeito é autor de seu dizer. A língua
é um sistema social e não individual, e deste modo preexiste ao sujeito. O desenvolvimento do
pensamento saussuriano considera o ―falar uma língua‖ não como pura e simples
representação do pensamento, mas também a ativação de ―uma imensa gama de significados
que já estão embutidos em nossa língua e em nossos sistemas culturais‖31.
O quarto descentramento ocorre a partir dos estudos do filósofo Michel Foucault que
compreendia ―as microrrelações sociais como relações de poder guiadas o tempo todo pelo
desejo (inconsciente, inefável) de controle e de verdade‖32. O quinto descentramento é o
impacto do feminismo por ter questionado a distinção clássica entre o ―dentro‖ e o ―fora‖, o
―privado‖ e o ―público‖. Esse movimento tinha como slogan ―o pessoal é público‖ o que,
segundo Hall, abriu para a contestação novos campos da vida social como a família, a
sexualidade, o trabalho doméstico, a divisão do trabalho doméstico, etc. Colocou como
questão também o modo pelo qual somos formados e produzidos enquanto sujeitos
generificados, politizando a subjetividade, a identidade e os processos de identificação (como
homem/mulher, mãe/pai, filho/filha). O que começou como uma contestação da posição social
das mulheres resultou no questionamento da formação das identidades sexuais e de gênero.
Foi, portanto, através dessas rupturas com o pensamento moderno que o sujeito deixou
de ser entendido como possuidor de uma identidade fixa e estável e passou a uma concepção
de sujeito que é dada no inconsciente, comprovando assim a incompletude e a
heterogeneidade. É dessa forma que a AD francesa compreende o sujeito pós-moderno, um
sujeito cindido, disperso, heterogêneo, que mais é dito do que diz. E é nesse sujeito que
observamos os efeitos da globalização.
Hall, retomando os estudos de Harvey33, entende esse fenômeno como uma
compressão do espaço e do tempo e que identidades são representações em curso das quais
tempo e espaço são coordenadas básicas. A desestruturação destas coordenadas básicas
evidencia os vazios de subjetividade que outrora eram mascarados pela concepção de sujeito
soberano. Esse desmascaramento resulta em dois processos que assumem caminhos opostos:
de um lado o processo de afirmação de identidades locais como forma de resistência à

31
Idem, p. 40.
32
CORACINI, M. J. Subjetividade e identidade do(a) professor(a) de português. In: _______. (org.) Identidade e
Discurso – (des)construindo subjetividades. Campinas: Unicamp/Argos, 2000, pp. 241 – 242.
33
HARVEY, D. The Condition of Post-Modernity. Oxford: Oxford University Press, 1989.
20

globalização, de outro lado o consumo de identidades globais estabelecidas pelo mercado.


Sobre essas identidades produzidas pelo mercado, Rolnik afirma que

(...) a mesma globalização que intensifica as misturas e pulveriza as identidades


implica também na produção de kits de perfis-padrão de acordo com cada órbita do
mercado, para serem consumidos pelas subjetividades, independentemente do
contexto geográfico, nacional, cultural etc. Identidades locais fixas desaparecem para
dar lugar a identidades globalizadas flexíveis, que mudam ao sabor dos movimentos
do mercado e com igual velocidade.34

Essa instabilidade produzida pela necessidade que a globalização impõe de se produzir


e pulverizar identidades faz com que os vazios de sentido se tornem insuportáveis, pois tais
vazios são vividos não como o esvaziamento de um efeito da proliferação de forças que
transbordam aos limites da subjetividade, mas como esvaziamento da própria subjetividade.
Esse sentimento de esvaziamento e despersonalização se transforma, segundo Rolnik, num
grande mercado consumidor de drogas dos mais variados tipos que sustentam e produzem essa
demanda de ilusão.
Ainda segundo a autora, estão disponíveis para o consumo drogas propriamente ditas
(as produzidas pela indústria farmacológica) sendo essas de pelo menos três tipos: as oriundas
do narcotráfico; as fórmulas da psiquiatria biológica que tratam destes distúrbios de identidade
como disfunções hormonais ou neurológicas, e as ―miraculosas vitaminas que nos vacinam
contra o stress e a finitude‖35. Existem ainda outros tipos de droga disponíveis no mercado,
porém que não se apresentam como tal. A autora destaca a droga oferecida pela mídia:

Identidades prêt-à-porter, figuras glamorizadas imunes aos estremecimentos das


forças. Mas quando são consumidas como próteses de identidade, seu efeito dura
pouco, pois os indivíduos-clones que então se produzem, com seus falsos-self
estereotipados, são vulneráveis a qualquer ventania de forças um pouco mais
intensa. Os viciados nessa droga vivem expostos a mitificar e consumir toda

34
ROLNIK, Suely. Toxicômanos de identidade – subjetividade em tempo de globalização. In: LINS, Daniel
(org.) Cultura e Subjetividade – Saberes Nômades. Campinas, SP: Papirus, 2000. (pp. 19 – 24), p. 20.
35
Idem, p. 22.
21

imagem que se apresente de forma minimamente sedutora, na esperança de


assegurar seu reconhecimento em alguma órbita do mercado. 36

Aponta também a droga oriunda da literatura de auto-ajuda (inclui-se neste grupo a


literatura esotérica e o boom evangélico) que prometem ―exorcizar os abalos das figuras em
vigência‖37 e por fim, as drogas oferecidas pelas tecnologias diet/light:

Múltiplas fórmulas para uma purificação orgânica e a produção de um corpo


minimalista, maximamente flexível. É o corpo top model, fundo neutro em branco e
preto sobre o qual se vestirá diferentes identidades prêt-à-porter.38

Rolnik conclui que tanto de um lado, resistindo às identidades globais, tanto de outro,
ultrapassando o limiar da suportabilidade deste vazio que deve ser preenchido, o que se tenta
fazer é domesticar as forças. E para ambos os sentidos, o sucesso inexiste. Inscrever-se na
pós-modernidade é ―enfrentar os vazios de sentido provocados pelas dissoluções das figuras
em que se reconhecem a cada momento. Só assim poderão investir a rica densidade de
universos que as povoam, de modo a pensar o impensável e inventar possibilidades de vida‖.39
É com essa concepção de sujeito pós-moderno que observaremos como se comporta o
que num primeiro momento chamamos de identidade do malandro e identidade do trabalhador
e como essas identidades apresentadas como homogêneas vão ao longo do tempo se
esfacelando e se tornando discursos que compõem identidades heterogêneas.

2.4. Dispositivos de análise

Para melhor localizarmos e analisarmos os discursos que constroem identidades do


malandro e do trabalhador, apoiar-nos-emos mais detidamente nos conceitos de formação
discursiva e gênero discursivo pensados no interior da AD, e também nos conceitos de ethos e
estereótipo formulados na Antiguidade Clássica e trazidos para a AD, como mostraremos a
seguir.

36
Idem. Ibidem.
37
Idem. Ibidem.
38
Idem, pp. 22 – 23.
39
Idem, p. 24.
22

2.4.1. Formação Discursiva e Gênero Discursivo

A noção de formação discursiva, doravante FD, formulada no final da década de 1960


na França, foi deixada de lado pelos historiadores analistas do discurso franceses após os anos
80 por ter sido considerada, segundo Guilhaumou40, um mecanismo essencialmente
taxionômico, bem como pelas divergências teóricas provocadas por sua dupla paternidade: de
um lado M. Pêcheux e o materialismo histórico e de outro M. Foucault e a dispersão.
Mais relevante neste momento que traçarmos um percurso a fim de verificar quem foi
o primeiro a propor a noção de FD, é buscarmos as condições que levaram cada autor a pensar
essa noção. Seguindo o caminho percorrido por Baronas41, buscaremos entender as diferenças
e semelhanças geradas por essa dupla paternidade e em seguida mostraremos como essa noção
vem sendo trabalhada, principalmente a partir das reflexões de Sonia Branca-Rosoff42,
articulando-a à noção de gênero discursivo.
Foucault, por estar mais envolvido com questões da História e da Filosofia, não tinha
como objetivo construir uma teoria do discurso. Suas temáticas bastante amplas relacionavam
os saberes e os poderes na história da sociedade ocidental como, por exemplo, o surgimento
das ciências humanas, a história do saber clínico e da loucura, a construção histórica das
subjetividades. É pensando estas questões, e na tentativa encontrar um caminho para descrever
relações entre enunciados tidos como pertencentes a uma mesma unidade (ou família de
enunciados)43, que Foucault propõe a noção de formação discursiva.
Pelo fato de seus trabalhos mostrarem que tais unidades não se dão na forma de
domínios de objetos fechados e contínuos mas como séries lacunares e emaranhadas, não num
―tipo definido e normativo de enunciação‖ mas em formulações e funções bastante diferentes
simulando uma figura única, ―uma espécie de texto ininterrupto‖, não em uma ―arquitetura de
conceitos suficientemente gerais e abstratos‖ mas ―na presença de conceitos que diferem em
estrutura e regras de utilização‖ e também não na permanência de uma temática mas em

40
GUILHAUMOU, J. Os historiadores do discurso e a noção-conceito de formação discursiva: narrativa de uma
transvaliação imanente. In: RODRIGUES, A. (coord.) Revista ECOS. Lingüísticas e Literaturas. Cáceres – MT:
Editora Unemat, 2005. pp. 107 – 115.
41
BARONAS, R. L. Formação discursiva em Pêcheux e Foucault: uma estranha paternidade. In: SARGENTINI,
Vanice & NAVARRO, Pedro. Foucault e os domínios da linguagem: discurso poder e subjetividade. São Carlos:
Claraluz, 2004. pp.45 – 62.
42
Texto apresentado em forma de comunicação oral no evento intitulado Mots, Discours, Ideologie: de l‟analyse
du discours à celle de l‟ideologie lês formations discoursives, Montpellier, 26 – 27 de abril de 2002.
43
Foucault traz como unidades o que compreendemos como a gramática, a economia, a medicina, etc.
23

possibilidades estratégicas que mobilizam temas diversos, que Foucault entende a FD como
um conjunto de enunciados que apresentam regularidades em sua dispersão. Em suas palavras,

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante


sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os
conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem,
correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que
se trata de uma formação discursiva.44

Enquanto Pêcheux, bem mais próximo dos estudos lingüísticos e do marxismo relido
por Althusser, concebia a construção de uma teoria do discurso intimamente ligada a um
projeto de intervenção na luta de classes. Desse modo, é em 196845 de forma ainda
embrionária que cunha o termo formação discursiva, tendo como hipótese ainda que a
produção de traços discursivos em um corpus é dominada por apenas uma ―máquina
discursiva‖. Já em 197146, sustentando a crítica feita aos lingüistas pós-saussurianos, Pêcheux
desenvolve o conceito de formação discursiva ancorado em sua leitura dos clássicos do
marxismo entendendo a formação ideológica como tendo um de seus componentes ―une ou
plusieurs formations discoursives interreliées, qui déterminent ce qui peut et doit être dit
(articulé sous la forme d‟une harangue, d‟un sermon, d‟un pamphet, d‟un exposé, d‟un
programme, etc.) à partir d‟une position donnée dans une conjoncture donnée”47. Pêcheux
ainda ressalta a produção de sentido dada pelas construções nas quais as palavras se
combinam, ou seja, ―les mots „changent de sens‟ en passant d‟une formation discoursive à
une autre‖48
É então em 1975, com a publicação de Les Verités de La Palice, instaurando um
segundo momento na AD, como já apresentamos em 3.1., o autor reformula esta noção,
entendendo-a não mais como um lugar homogêneo, mas permeado de discursos vindos de

44
FOUCAULT, M. 1986, p. 43.
45
Referimo-nos ao texto Lexis et metalexis: les problemes des determinants escrito juntamente com C. Fuchs.
In: CULIOLI, A. (org.) Cahiers pour l‟analyse, Editions du Seuil, n.9, juillet 1968.
46
Referimo-nos ao texto La sémantique et la coupure saussurienne: langue, langage, discours. In :
MALDIDIER, D. L‟inquietude du Discours : textes de Michel Pêcheux. Édition du Cendres, 1990, p. 133 – 153.
47
PECHÊUX, M. La sémantique et la coupure saussurienne: langue, langage, discours. In : MALDIDIER, D.
L‟inquietude du Discours : textes de Michel Pêcheux. Édition du Cendres, 1990, p. 133 – 153, p. 148. grifos do
autor.
48
Idem. Ibidem.
24

outros lugares, de outras formações discursivas. Diante disso, surge a noção de interdiscurso
para designar ―‗o exterior específico‘ de uma FD enquanto este irrompe nesta FD para
construí-la em lugar de evidência discursiva, submetida à lei da repetição estrutural
fechada‖49, mantendo ainda um fechamento da maquinaria discursiva.
Com o prosseguimento dos estudos do discurso, que já se aproximam da Nova História
e da Psicanálise, instaurando o que se denominou de terceiro momento da AD, o grupo de
Pêcheux acredita não ser mais possível se pensar numa maquinaria discursiva estrutural, nem
mesmo, talvez (como coloca o próprio Pêcheux), no conceito de FD uma vez que esta, por ser
constituída de discursos outros, produzidos em outros lugares, não pode mais determinar suas
fronteiras.
Quanto à noção de Gênero Discursivo (GD), produzido em condições bem diferentes
das quais foi pensada a noção de FD, trata-se de uma questão latente em toda a obra de
Mikhail Bakhtin, mas elaborada somente em 1952-1953 no artigo intitulado Os Gêneros do
Discurso, presente no livro Estética da criação verbal, uma compilação feita de textos deste
pensador russo. Neste artigo, Bakhtin compreende enunciado como sendo a materialidade da
utilização da língua a partir da interação de integrantes de uma esfera da atividade humana,
sendo ele concreto e único.
Ainda segundo o autor, ―o enunciado reflete as condições específicas e as finalidades
de cada uma dessas esferas‖50. Tais condições e finalidades são marcadas por três elementos
que Bakhtin considera fundamentais e indissolúveis no ―todo do enunciado‖51, sendo eles
conteúdo temático, estilo e construção composicional, marcados pela especificidade de uma
esfera de comunicação. Por se tratar, portanto, de especificidades de esferas de comunicação,
enunciados produzidos a partir de uma esfera apresentam regularidades, caracterizando assim,
o que o autor chama de GD. Nas palavras de Bakhtin, ―cada esfera de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros
do discurso‖52.

49
PECHÊUX, M. (1983) A Análise do Discurso: Três épocas. In: GADET, F. e HAK, T. (orgs.) Por uma
Análise Automática do Discurso – Uma Introdução à obra de Michel Pêcheux, Campinas: Editora da UNICAMP,
1997. (pp. 311 – 318), p. 314.
50
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 2000. (pp. 279 – 326), p. 279.
51
Idem. Ibidem.
52
Idem. Ibidem.
25

É importante ressaltar ainda que a noção de GD não foi elaborada por Bakhtin para
funcionar como um mecanismo taxonômico dos discursos, mas para se pensar o dialogismo na
emergência do enunciado, o enunciado sempre em relação de resposta a outro enunciado, e
―dimensionado como manifestação da cultura‖53.
Uma propriedade bastante interessante do gênero é sua ―expressividade determinada,
típica‖54. Para o autor, cada gênero comporta circunstâncias e temas típicos fazendo com que
as palavras obtenham significações determinadas pelo gênero no qual são inseridas. Essa
propriedade faz-nos aproximar a noção de GD à de FD de Pêcheux, quando este propõe, como
já mencionamos anteriormente, que as palavras mudam de sentido de acordo com a FD na
qual estão inseridas. Assim, conforme aponta Baronas, acreditamos que

(...) a articulação entre FD e GD possibilita mostrar que uma FD possui uma


autonomia dependente tanto das instituições a partir das quais os discursos são
produzidos quanto do gênero, isto é aquilo que pode e deve ser dito, sofre uma espécie
de regulação, de contrainte tanto do GD quanto do posicionamento institucional dos
sujeitos.55

É delicado, entretanto, deslocar conceitos formulados em nascedouros diferentes e


aplicarmos em uma outra disciplina, portanto, para não fazermos da menção a Bakhtin apenas
um ―fetiche teórico‖56, procuraremos esclarecer a heterogeneidade entre Bakhtin, Pêcheux e
Foucault, bem como apontar semelhanças nas quais nos basearemos para articular os
conceitos de FD e GD.
Em artigo elaborado a partir da mesa redonda ―Bakhtin, Pêcheux e Foucault: é preciso
escolher nossas heranças‖ (Revista dos Estudos Lingüísticos, 2006) realizada no 53º
Seminário do GEL, Sargentini sugere como ponto de articulação existente entre estes três
estudiosos do discurso a noção de acontecimento. Para isso, a autora retoma os conceitos de
enunciado/discurso de cada um desses autores, e constata que apesar de terem objetivos
diferentes e serem produzidos em épocas diferentes (no caso de Bakhtin), apresentam certa
similitude.

53
MACHADO, Irene. Gêneros discursivos. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin – conceitos-chave. São Paulo:
Contexto, 2005 (pp. 151 – 166), p. 158.
54
BAKHTIN, M. op. cit. 2000, p. 312.
55
BARONAS, R. L. op. cit. 2004, p. 60.
56
PÊCHEUX, M. op. cit. 1990.
26

Bakhtin tem como norte apontar para a interação verbal, em seus níveis mais amplos,
opondo-se a um modelo comunicacional, além de avançar em seu tempo ao posicionar-
se contra um modelo que desconsidere o acontecimento. Foucault, na busca de
compreender a arquegenealogia, e a forma como se constroem as relações históricas
entre os saberes e os poderes em temáticas variadas (a loucura, o sistema prisional, a
sexualidade), atua na análise de discursos em campo vasto. M. Pêcheux pauta-se na
unidade discurso para propor modos de leitura, sobretudo do discurso político, com
vistas à militância da esquerda comunista. Para esses autores, o discurso mostra-se
central e, embora, apresentem a noção de discurso imbricada a de enunciado (enunciado
concreto [Bakhtin], função enunciativa [Foucault]), não limitam tal noção à situação
imediata de enunciação, e sim considerando as condições de emergência de
enunciados.57

É considerando o enunciado juntamente com suas condições de emergência e opondo-


se ao estruturalismo, ou seja, analisando o enunciado em seu acontecimento, juntando à
análise o sujeito e a história, que Bakhtin, Pêcheux e Foucault se encontram, havendo,
portanto, uma possibilidade de articulação entre eles.
Branca, tendo em vista a noção de FD em M. Foucault destacando-a como ―une
invitation fructuese à se déprendre des catégories de l‟histoire des idées et à remettre en
cause notamment les notions d‟objet et de sujet du discours”58 e em M. Pêcheux retomando o
momento em que se reconhece ―la présence forte de l´interdiscours, la prise en compte du fait
que le discours est en réaction, en réactivité aux discours qui le bordent, le travail consistant
à tranquer la présence de l´altérité au coeur des énoncés59, sugere que as fronteiras ou
bordeamentos externos das FDs sejam traçadas não somente pela ideologia mas também pelo
GD na qual esta FD pode se materializar.
É, portanto, considerando a heterogeneidade entre os três autores aqui comentados,
bem como seus pontos comuns, que nos arriscamos a trabalhar com esses conceitos à primeira
vista bastante divergentes, mas que articulados podem trazer resultados interessantes a nossa

57
__________. Bakhtin, Pêcheux e Foucault: é preciso escolher nossas heranças. In: Revista de Estudos
Lingüísticos, 2006. Disponível em: http://gel.org.br/4publica-estudos-2006/sistema06/vmos.pdf, acessado em 15
ago. 2006.
58
BRANCA, S. R. Formation Discursive: une notion trop ambigue? 2003 (mimeo), p. 07 apud. BARONAS,
2004, op. cit. p. 57.
59
Idem. Ibidem.
27

análise, uma vez que nossa proposta é observar a afinidade existente naquilo que chamamos
de FD da malandragem e GDs do samba e do rap.

2.4.2. Ethos e Estereótipo

Por tratarmos, nesta pesquisa, da análise de processos identitários e construções de


imagens entre co-enunciadores, achamos que seria bastante produtivo nos utilizarmos das
noções de ethos e esteriótipo.
A noção de ethos foi inicialmente pensada por Aristóteles como sendo a construção de
uma imagem de si destinada a garantir o sucesso do empreendimento oratório, o que nos leva
a pensar essa concepção como um processo intencional determinado por regras de retórica,
porém como nos mostra Ruth Amossy:

A apresentação de si não se limita a uma técnica apreendida, a um artifício: ela se


efetua, freqüentemente, à revelia dos parceiros, nas trocas verbais mais corriqueiras e
mais pessoais.60

Após a exclusão do sujeito na concepção saussuriana, a noção de imagem de si no


discurso é retomada, na lingüística, por Émile Benveniste que recoloca o sujeito nos estudos
da língua. Dando continuidade a esses estudos da inscrição do sujeito na língua, Catherine
Kerbrat-Orecchioni examina os procedimentos lingüísticos ―pelos quais o locutor imprime sua
marca no enunciado, se inscreve na mensagem (implícita ou explicitamente) e se situa em
relação a ele (problema da distancia enunciativa)‖61.
O primeiro estudioso da linguagem a retomar o termo ethos é Oswald Ducrot62 em sua
teoria polifônica da enunciação. Nela, Ducrotse preocupa em separar o sujeito falante real da
instância discursiva do locutor, dando enfoque à segunda. Ao trabalhar o locutor enquanto
instância discursiva, Ducrot separa o locutor L, ―ficção discursiva‖, do locutor , ―ser do
mundo‖. É no locutor L ao qual o autor relaciona a noção de ethos:

60
AMOSSY, Ruth (org.), Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Editora Contexto, 2005.
Amossy, p. 09
61
KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine, L‘Énonciation de la subjectivité dans le langage. Paris: Colin, 1980, p.
32.
62
DUCROT, Oswald. Le dire e le dit. Paris: Minuit, 1984.
28

O ethos está ligado a L, o locutor como tal: é como origem da enunciação que ele se
vê investido de certos caracteres que, em contrapartida, tornam essa enunciação
aceitável ou recusável63

Já nos estudos em Análise do Discurso, ao se entender a interlocução como interação,


e supor a imagem de si construída no e pelo discurso através da influência de ambos os
interlocutores (agora, interactantes), Dominique Maingueneau64 amplia a noção de ethos a fim
de refletir sobre a adesão de sujeitos a uma certa posição discursiva65.

O enunciador não é ponto de origem estável que se ‗expressaria‘ dessa ou daquela


maneira, mas é levado em conta em um quadro profundamente interativo, em uma
instituição discursiva inscrita em uma certa configuração cultural e que implica
papéis, lugares e momentos de enunciação legítimos, um suporte material e um modo
de circulação para o enunciado66

Segundo Maingueneau, a subjetividade não se manifesta por meio do discurso apenas


como ―um estatuto ou papel‖, mas também como ―voz‖ que implica, por sua vez, um corpo do
enunciador. À materialização dessa corporalidade e também do caráter do enunciador, atribui
o nome de fiador.

O ‗fiador‘, cuja figura o leitor deve construir com base em indícios textuais de
diversas ordens, vê-se, assim, investido de um caráter e de uma corporalidade, cujo
grau de precisão varia conforme os textos. O ‗caráter‘ corresponde a um feixe de
traços psicológicos. Quanto à ‗corporalidade‘, ela é associada a uma compleição
corporal, mas também a uma forma de vestir-se e de mover-se no espaço social. O
ethos implica assim um controle tácito do corpo, apreendido por meio de um
comportamento global. Caráter e corporalidade do fiador apóiam-se, então, sobre um
conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, de
estereótipos sobre os quais a enunciação se apóia e, por sua vez, contribui para
reforçar ou transformar. Esses estereótipos culturais circulam nos registros mais

63
Idem, p. 201.
64
MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth (org.), Imagens de si no
discurso: a construção do ethos. São Paulo: Editora Contexto, 2005.
65
Mainguenau propõe uma primeira apresentação em Genèse du discours (Mardaga, 1984.) que foi reelaborada
em Novas tendências em análise do discurso (São Paulo, Pontes, 1987) e em L‟Analyse du discurs (Paris,
Hachete, 1991).
66
Idem, p. 75.
29

diversos da produção semiótica de uma coletividade: livros de moral, teatro, pintura,


escultura, cinema, publicidade...67

É considerando a noção de ethos, como sendo ―voz‖ e ―corpo‖ do enunciador


materializados na figura do fiador calcados em estereótipos culturais, e entendendo por
estereótipo uma representação coletiva cristalizada da qual o enunciador se utiliza para
construir a imagem de si no discurso, analisaremos a construção das imagens do malandro e
do trabalhador na música brasileira.

2.4.3. Oposições Temáticas

Durante a pesquisa, notamos que muito já se escreveu a respeito do malandro (foco de


nosso estudo), sendo abordado por diversas perspectivas e teorias. Encontramos na Sociologia
algumas oposições temáticas que podem nos ser bastante produtivas para caracterizar o
discurso do malandro. São elas a Dialética do Mundo da Ordem X do Mundo da Desordem de
Antônio Cândido, a Dicotomia Casa x Rua utilizada por Roberto Da Matta para analisar o
malandro e a Dialética da Marginalidade de João Cezar de Castro Rocha.
Antonio Candido escreve um ensaio intitulado ―Dialética da Malandragem‖ onde
analisa o livro ―Memórias de um Sargento de Milícias‖ de Manuel Antonio de Almeida. No
ensaio, Candido estabelece algumas comparações entre o pícaro espanhol e Leonardinho,
protagonista do livro. Dentre as comparações, destacamos a não existência do choque áspero
de Leonardinho com a realidade, o que no caso do pícaro, justificaria suas peripécias. Segundo
Candido, o pícaro é inicialmente ingênuo, enquanto o protagonista das Memórias ―nasce
malandro feito‖ além de não fazer nada para agradar os superiores, contrariando a meta dos
pícaros. Pela análise comparativa entre o pícaro e o personagem estudado, Candido afirma ser,
Leonardinho, o ―primeiro malandro que entra na novelística brasileira‖.
Candido utiliza a dialética da ordem e da desordem para analisar Leonardinho,
entendendo por ordem o respeito às normas estabelecidas (tudo o que diz respeito leis) e a
desordem a oposição ou pelo menos a integração duvidosa em relação a elas. Entende esses
dois lugares como extremamente relativos e ligados por inúmeros caminhos, articulando-se,

67
Idem, p. 72.
30

portanto, solidamente. O autor observa também que, no Brasil, o movimento da ordem para a
desordem e vice versa não implica um choque de consciência :

No Brasil, nunca os grupos ou os indivíduos encontraram efetivamente tais formas;


nunca tiveram a obsessão da ordem senão como princípio abstrato, nem da liberdade
senão como capricho. As formas espontâneas da sociabilidade atuaram com maior
desafogo e por isso abandonaram os choques entre a norma e a conduta, tornando
menos dramáticos os conflitos de consciência. 68

Em ―Carnavais, malandros e heróis‖, Roberto Da Matta nos apresenta uma visão do


malandro através da Sociologia Comparada. Nessa obra, o autor estabelece um ―triângulo
ritual brasileiro‖ tendo como vértices o Carnaval, o Dia da Pátria e a Semana Santa :

Carnaval e Dia da Pátria constituem-se nos dois rituais de maior duração no Brasil,
sendo somente comparáveis à Semana Santa, devotada aos ritos que recriam a Paixão
e Ressurreição de Cristo. Essas três semanas festivais sugerem um ‗triângulo ritual
brasileiro‘ muito significativo, sobretudo nas suas implicações políticas, uma vez que
temos festas devotadas à vertente mais institucionalizada do Estado Nacional (suas
Forças Armadas), festas controladas pela Igreja (outra corporação crítica na formação
da sociedade brasileira) e, finalmente, as festas carnavalescas, consagradas à vertente
mais desorganizada da sociedade civil, ou melhor, da sociedade civil enquanto povo
ou massa. (...) Teríamos então um ciclo de festividades que vão do povo ao Estado,
passando pela Igreja, numa forma organizatória típica de um sistema muito
preocupado com o ‗cada qual no seu lugar‘ e o ‗cada macaco no seu galho‘. 69

Essas três festividades têm seus respectivos mecanismos básicos: o esforço (Dia da
Pátria), a neutralização (Semana Santa) e a inversão (Carnaval), e como personagens
característicos respectivamente, o caxias, o renunciador e o malandro. Nessa linha de
raciocínio o malandro aparece como personagem típico dos rituais coletivos de inversão da
ordem social – os carnavais.

68
CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: _________. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas
Cidades, 1993, pp. 50 – 51.
69
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis – para uma sociologia do dilema brasileiro. 5. ed. Rio de
Janeiro: Guanabara Koogan, 1990, p. 44.
31

No que concerne ao personagem central de nosso trabalho – o malandro – é


interessante destacar algumas qualificações (definições) feitas por Da Matta, as quais nos
foram muito úteis em nossa pesquisa:

Malandragem ―arte brasileira de usar o ambíguo como instrumento de vida‖. 70

(...) [o malandro], personagem cuja marca é saber inverter todas as desvantagens em


vantagens, sinal de todo bom malandro e de toda e qualquer boa malandragem. 71

Dentre os personagens analisados [renunciador, caxias e malandro] , é somente o


malandro que vive do presente, usa do presente e, assim, liga o passado com o futuro,
abrindo outra alternativa para um sistema social não preocupado com as regras
impessoais (vale dizer, com o passado) ou com as relações pessoais e os traços de
genialidade e messianismo que correspondem a tal sistema (vale dizer, o futuro pleno
e aberto).72

Vale ressaltar também o recurso metodológico que nos será bastante útil: a dicotomia
casa x rua. Roberto Da Matta estabelece diversas oposições entre esses dois domínios sociais
básicos de forma a construir este interessante instrumento de análise do mundo social
brasileiro.
Dentre as oposições feitas, destacaremos três que julgamos mais significativas para
nosso trabalho:
- Caracterização:

(...) a categoria rua indica basicamente o mundo, com seus imprevistos, acidentes e
paixões, ao passo que a casa remete a um universo controlado, onde as coisas estão
nos seus devidos lugares. Por outro lado, a rua implica movimento, novidade, ação, ao
passo que a casa subentende harmonia e calma.73

- Processo de hierarquização:

70
Idem, p. 74.
71
Idem, p. 225.
72
Idem, p. 247.
73
Idem, p. 73.
32

Na casa, temos associações regidas e formadas pelo parentesco e relações de sangue;


na rua, as relações têm um caráter indelével de escolha, ou implicam essa
possibilidade. Assim, em casa, as relações são regidas naturalmente pelas hierarquias
do sexo e das idades, com os homens e mais velhos tendo a precedência; ao passo que
na rua é preciso muitas vezes algum esforço para se localizar e descobrir essas
hierarquias, fundadas que estão em outros eixos. 74

Uma conseqüência disso é que na rua é preciso estar atento para não violar hierarquias
não-sabidas ou não-percebidas. E para escapar do cerco daqueles que nos querem
iludir e submeter, pois a regra básica do universo da rua é o engano, a decepção e
malandragem, essa arte brasileira de usar o ambíguo como instrumento de vida (...) 75

- Formas de controle:

O traço distintivo do domínio da casa parece ser o maior controle das relações sociais,
o que certamente implica maior intimidade e menor distancia social. (...) Mas a rua
implica uma certa falta de controle e um afastamento. É o local do castigo, da ‗luta‘ e
do trabalho. Numa palavra, a rua é o local daquilo que os brasileiros chamam de ‗dura
realidade da vida‘. Em suma, a rua – enquanto categoria genérica em oposição à casa
– é o local público, controlada pelo ‗Governo‘ ou pelo ‗destino‘, essas forças
impessoais sobre as quais o nosso controle é mínimo. 76

Com base nestes traços distintivos entre a casa e a rua propostos por Da Matta, e
pensando na relação existente entre esses domínios sociais e os personagens com os quais
trabalharemos – o malandro e o trabalhador – entendemos que ambos se constituem como
personagens da rua, entretanto, a relação do trabalhador com casa é afirmativa, ou seja, é para
a manutenção dela que o indivíduo se lança à rua caracterizando-se como trabalhador, em
contrapartida, a relação estabelecida entre o malandro e a casa é de negação, e caracteriza-se,
por estabelecer , no domínio da rua, relações que normalmente seriam encontradas na casa.
Outro texto que acreditamos ser bastante relevante em nossa pesquisa é o artigo
―Dialética da Marginalidade – caracterização da cultura brasileira contemporânea‖, de João
Cezar de Castro Rocha, publicado a 29/02/2004 no jornal Folha de São Paulo. Neste artigo,

74
Idem. Ibidem.
75
Idem, p. 74.
76
Idem, p. 75.
33

Rocha propõe uma nova estética para a análise da produção cultural contemporânea – a
dialética da marginalidade, na qual não se trata mais de conciliar diferenças (como era na
dialética a malandragem), mas de evidenciá-las. Para o autor a política do ―deixa disso‖, da
paciência deslocou-se para a política do conflito, da violência, embora ainda seja evidente a
funcionalidade da lógica do favor, como ressalta em:

―As teorias de Candido e de Da Matta esclarecem formas particulares de mediação


social, com base, sobretudo no contato pessoal e no universo do favor, moedas
correntes no idioma próprio da dialética da malandragem e da ordem relacional. Mas
em que medida essas abordagens ainda constituem um modelo de interpretação válido
para o Brasil contemporâneo? É indiscutível a permanência da lógica do favor como
motor da vida social‖.77

É com base nestes textos (e mais alguns outros), por nós considerados os discursos
fundadores da problemática da malandragem, que estudaremos, na música, as movências de
sentido no discurso do/sobre o malandro e a presença de traços destes discursos no discurso do
trabalhador.

2.5. O Arquivo e o Corpus

Ao se pensar a História em sua descontinuidade, construída a partir da irrupção dos


acontecimentos, e do estudo monumentalizado dos documentos, é necessário agora pensarmos
num mecanismo de seleção e organização do material a ser estudado. Para isso retomemos
Foucault e a noção de arquivo:

O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento
dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz
com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa
amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não
desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras
distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se
mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas.78

77
ROCHA, José Cezar de Castro. Dialética da Marginalidade. In: Folha de São Paulo – Caderno Mais! 29 de
fevereiro de 2004. (pp. 4 – 8), p. 07.
78
FOUCAULT, M. op. cit. 1986, p. 149.
34

O arquivo, justamente por não ser uma ―massa amorfa‖, é construído, não como uma
mera reunião de textos, mas como uma ―seleção de documentos que atinjam um sentido
determinado‖79.E além disso, o arquivo, situado entre a língua (que define a construção das
frases possíveis) e o corpus (―que recolhe passivamente as palavras pronunciadas‖80),
possibilita o tratamento e a manipulação de enunciados enquanto acontecimentos discursivos.
Tendo em mente a impossibilidade da descrição do arquivo por completo,
entenderemos o corpus como um recorte significativo do arquivo a ser analisado. Não
podemos perder de vista, entretanto, que a organização e seleção do corpus não tem como ser
imparcial, ou seja, não é possível livrarmo-nos da influência sócio-histórica por estarmos nela
(e por ela) constituídos.
Amparados pela noção foucaultiana de arquivo, podemos trabalhar, em nossa pesquisa,
com um corpus representativo e não necessariamente quantitativo. Dessa forma,
abandonaremos a noção de um corpus fechado, focando nossa análise em séries arquivísticas.
Tal abandono já é efetuado por Guilhaumou e Maldidier (1979) ao denunciarem o caráter
tautológico da construção do corpus fechado: ―a co-variação entre formas da língua e
posicionamentos sociais aparece como uma conseqüência de montagem do corpus, o qual se
fundamenta inteiramente sobre um procedimento prévio‖81.
Guilhaumou, retomando as palavras de Deleplace, justifica o abandono do corpus
fechado:

Pour le jeune historien du discours Marc Deleplace, cet abandon, justifié par la
nécessaire ouverture au large éventail des publications imprimées et des sources
manuscrites, permet de passer du discours comme simple objet de l‘histoire au discours
constitué comme objet social en lui-même (Deleplace, 1996)82

79
SARGENTINI, Vanice Maria de Oliveira. Vozes Anarquistas: gênese do trabalhismo brasileiro. In:
GREGOLIN, Maria do Rosário (org.). Filigranas do Discurso: as vozes da História; São Paulo: Cultura
Acadêmica Editora, 2000. (pp. 213 – 229).
80
FOUCAULT, M. op. cit. 1986, p. 150.
81
CHARAUDEAU, P. e MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004,
p. 140.
82
GUILHAUMOU, J. Le corpus en analyse de discours perspective historique. 2004. Disponível em:
http://revel.unice.fr/corpus/document.html?id=8&format=print. Acesso em: 05 jan. 2006.
35

É no sentido de tomarmos o discurso como um objeto social nele próprio e não como
um simples objeto da história, que trabalharemos com a análise de séries arquivísticas. A
construção de nossa série (em anexo) apresenta como critérios de seleção o tema – enunciados
que constroem o ethos do malandro e do trabalhador –, o gênero discursivo – canção – e o
período dos textos – desde o início do século XX até os dias de hoje. É interessante ressaltar
que após o início das análises outra regularidade se fez evidente, o samba. Observamos que ao
se cruzar o tema da malandragem com o gênero canção, obtivemos uma precisão maior com
relação à regularidade do gênero, sendo o samba, mais especificamente, o gênero pelo qual o
malandro se constitui.
A partir das conclusões que apontam para um deslocamento do gênero no qual a FD da
malandragem era veiculada, uma nova série arquivística tornou-se necessária. Esta,
apresentando como critérios de seleção o gênero rap, a temática – o rap enquanto lugar
enunciativo do malandro -, e adotando o mesmo período da série anterior, tem por objetivo
evidenciar/ justificar as novas condições de produção do discurso da malandragem que, como
pudemos observar, se deslocou do samba para o rap.

Depois de traçado esse panorama teórico e explicitado nosso corpus, partiremos para a
análise dos discursos sobre o malandro que constroem a identidade do trabalhador brasileiro.
36

4. Resultados e Discussões

4.1. Algumas discursividades sobre o malandro

E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta


do que nesta terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela
me perdoe, pois o desejo que tinha de tudo vos dizer, mo
fez assim pelo miúdo. E pois que, Senhor, é certo que,
assim neste cargo que levo, como em outra qualquer
coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser
de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer
graça especial, mande vir da Ilha de São Tomé a Jorge
de Osório, meu genro – o que dela receberei de muita
mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto
Seguro de Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira,
primeiro dia de maio de 150083.

Ao adotarmos a idéia foucaultiana de arquivo e o estudo do documento como


monumento, ou seja, se considerarmos as condições de produção dos documentos e não
apenas o estudo do documento como fonte única do dizer faz-se necessária a contextualização
histórica de nosso objeto de estudo. Antes, entretanto, colocaremos em questão os processos
de construção de uma identidade nacional. Até que ponto história e mito se fazem presentes na
construção de identidades84?
A fim de não nos aventurarmos numa cega viagem em busca de ―fatos reais‖ que
possam justificar uma origem, tomaremos mito e história como discursos que, pertencentes a
uma memória coletiva, delimitam subjetividades. É neste caminho que Navarro-Barbosa
conclui que

Pensar em identidade é, pois, pensar em construção, em processo de produção e


efeito de discurso. Nesse sentido, sendo as identidades contraídas no e pelo

83
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel Sobre o Achamento do Brasil.
São Paulo: Martin Claret, 2002, pp. 118 – 119 – Grifo nosso.
84
Vogt, 2001 apud NAVARRO-BARBOSA, Pedro Luis Navarro. Navegar foi preciso? – O discurso do
jornalismo impresso sobre os 500 anos do Brasil. Araraquara: UNESP – FCL, 2004
37

discurso, é preciso compreendê-las como produtos de lugares históricos e de


instituições. É no interior de práticas discursivas e pelo emprego de estratégias
específicas que as identidades emergem85.

4.1.1. Sob o olhar das Ciências Sociais

Iniciaremos nossa busca por tais discursos com a retomada de um dos primeiros
estudos sobre a brasilidade, trata-se de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. A obra
publicada em 1933 gerou, como dizem alguns escritores da época, uma ―distabuzação‖ ou
―desrecalque‖86 pela presença de uma relativa valorização do mestiço. A mestiçagem
teorizada por Freyre proporcionou uma mudança nos estudos sobre a identidade do brasileiro,
pois rompeu com o pensamento de que a ―mistura de raças‖ seria responsável pelo atraso do
Brasil quando comparado à Europa.
Em 1936, Sérgio Buarque de Holanda publica Raízes do Brasil, outra obra que
contribuiu para a construção de um imaginário acerca do brasileiro. Apoiando-se em
dualismos como os princípios das atividades humanas (trabalho e aventura), o autor se
distancia de Gilberto Freyre ao se apoiar na cultura luso-ibérica para explicar a brasilidade.
O autor caracteriza o que ele próprio denomina de dois princípios reguladores das
atividades humanas baseando-se na figura do aventureiro e do trabalhador:

Para uns [os aventureiros], o objeto final, a mira de todo o esforço, o ponto de chegada
assume relevância tão capital, que chega a dispensar, por secundários, quase
supérfluos, todos os processos intermediários. Seu ideal será colher o fruto sem
plantar a árvore.
Esse tipo humano ignora as fronteiras. No mundo tudo se apresenta a ele em generosa
amplitude e onde quer que se erija um obstáculo a seus propósitos ambiciosos, sabe
transformar esse obstáculo em trampolim. Vive dos espaços ilimitados, dos projetos
vastos, dos horizontes distantes.
O trabalhador, ao contrário, é aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não
o triunfo a alcançar. O esforço lento, pouco compensador e persistente, que, no
entanto, mede todas as possibilidades de esperdício e sabe tirar o máximo proveito do

85
NAVARRO-BARBOSA, P. L. op. cit. 2004, p.289.
86
Em O Mistério do Samba, Hermano Vianna remonta a atmosfera da época de publicação de Casa Grande e
Senzala, retomando falas de alguns escritores da época.
38

insignificante, tem sentido bem nítido para ele.Seu campo visual é naturalmente
restrito. A parte maior do que o todo.87

Ainda neste estudo, Sérgio Buarque caracteriza os portugueses como um povo muito
mais aventureiro que trabalhador pelo fato de os portugueses terem uma inclinação maior para
a exploração em outros continentes a desenvolverem uma economia interna bem estruturada.

Como explicar, sem isso, que os povos ibéricos mostrassem tanta aptidão para a caça
aos bens materiais em outros continentes?
E essa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições e riquezas
fáceis, tão notoriamente característica da gente de nossa terra, não é bem uma das
manifestações mais cruas do espírito de aventura? 88

(...) Damião de Góis admitia que o labor agrícola era menos atraente para seus
compatriotas do que as aventuras marítimas e as glórias da guerra e da conquista.89

A respeito dos povos nativos de nossa terra, Sergio Buarque também os considera
muito mais aventureiros, e se justifica com base na má adaptação (resistência) do indígena ao
trabalho imposto pelos colonizadores.

Os antigos moradores da terra foram, eventualmente prestimosos colaboradores na


industria extrativa, na caça, na pesca, em determinados ofícios mecânicos e na criação
de gado. Dificilmente se acostumavam, porém, ao trabalho acurado e metódico que
exige a exploração dos canaviais. Sua tendência espontânea era para atividades menos
sedentárias e que pudessem exercer-se sem regularidade forçada e sem vigilância e
fiscalização de estranhos. Versáteis ao extremo, eram-lhes inacessíveis certas noções
de ordem, constância e exatidão, que no europeu foram como uma segunda natureza e
parecem requisitos fundamentais da existência social e civil. O resultado eram
incompreensões recíprocas que, de parte dos indígenas, assumiam quase sempre a
forma de uma resistência obstinada, ainda quando silenciosa e passiva, às imposições
da raça dominante.90

87
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1975, p. 13.
88
Idem, p. 15.
89
Idem, p.19.
90
Idem, pp. 17 – 18.
39

Com base nos tipos do aventureiro e do trabalhador como reguladores das atividades
humanas e como sendo os portugueses e os indígenas, num primeiro momento, os principais
formadores do povo brasileiro, ambos regidos pelo princípio da aventura, sustenta-se um
discurso de que houve no Brasil um terreno ideologicamente propício ao desenvolvimento do
malandro.
Na mão deste mesmo discurso encontramos Pedro Malasartes, personagem folclórico
oriundo da Península Ibérica, o qual se adaptou muito bem ao folclore latino americano, sendo
encontrado inclusive entre os Apinayé, grupo indígena de língua Jê e com fortes laços com a
cultura brasileira91.

4.1.2. Sob o olhar da História

Com a escravidão, e o monopólio da propriedade da terra, a transumância e toda a


ideologia do aventureiro passou a ser fundamental para a sobrevivência dos homens livres
pobres já que a mão de obra nos latifúndios era de escravos, não havendo, portanto meios da
sociedade absorver essa população desempregada.

É necessário pontuar as interseções entre a mobilidade e a sobrevivência de brancos


pobres, mestiços e forros: eram as transumâncias que lhes davam maleabilidade
necessária para escapar da penúria e da fome, da violência que se entrelaçava ao
mandonismo local e aos recrutamentos forçados, que permitiam que fosse contornada
a posse desigual das terras, dos latifúndios, fugir das intempéries que inviabilizavam o
sobreviver92.

Segundo Wissenbach (1998), as populações tradicionalmente nômades marcaram a


fisionomia de extensas regiões do Brasil colonial e imperial. Tal transumância, conservada por
séculos, imprimiu profundas marcas nos meios de vida e na recusa às criações e motivada
―por um sistema que relegava aos homens livres um viver à margem e um aproveitamento

91
DA MATTA, R. op. cit. 1990.
92
WISSENBACH, M. C. Cortez, Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível. In:
SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil 3 – República: da Belle Époque à era do Rádio.
São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 59.
40

residual. (...) A estrutura da sociedade escravocrata engendrou homens andarilhos, ‗sem


vínculos, despojados, a nenhum lugar pertenceram e a toda parte se acomodaram‘‖93.
Ao findar a escravidão, outra questão que contribui para a perpetuação da figura do
malandro foi a forte ligação que se estabeleceu entre o negro e o trabalho o que proporcionou
uma degradação do trabalho mecânico devido ao preconceito com relação ao negro. Soma-se
a isso o enorme êxodo rural provocado pelo fim da escravidão e o conseqüente inchamento
das cidades, tornando impossível a absorção dessa nova população urbana no mercado de
trabalho.
No início da república começou também uma forte perseguição aos ―vadios‖, ou seja,
às pessoas que não possuíam emprego nem residência fixa94, no intuído de disciplinar o povo.

(...) Perseguições que se sucederam contra os vadios, os que não tinham residência ou
trabalho fixos, os curandeiros, os feiticeiros, os candomblezeiros, alvos preferenciais
de uma política que procurava disciplinar as ruas e os hábitos populares95.

É, entretanto, a partir de Getúlio Vargas que a ideologia pró-trabalho se torna mais


forte a ponto de os discursos de Vargas excluírem os ―não trabalhadores‖. A ideologia do
trabalho e Vargas alcançam um estado quase que simbiôntico de tal forma que sua figura se
torne diretamente ligada ao trabalho, como podemos notar na música Retrato do Velho (1951)
de Haroldo Lobo e Marino Pinto.

―Bota o retrato do velho outra vez


Bota no mesmo lugar
O sorriso do velhinho
Faz a gente trabalhar, oi‖

Nos governos seguintes, a ideologia pró-trabalho se torna bastante arraigada na


população brasileira, isso faz com que a produção cultural sobre a figura do malandro diminua
sensivelmente, sendo expressiva somente em época de carnaval, ou na voz de alguns cantores

93
Idem, p. 57.
94
É interessante observar que Da Matta classifica o malandro como personagem da rua (dentro da dicotomia rua
x casa) e que Wissenbach observa que o discurso urbanístico de lar da época se choca com a concepção popular
de moradia (favelas e cortiços), classificando a moradia popular como ―não-casas‖. Essa classificação reforça a
idéia de Da Matta que constitui o malandro como personagem da rua.
95
WISSENBACH, M. C. op. cit. 1998, pp. 126 – 127.
41

como é o caso do cantor e compositor Bezerra da Silva que canta o malandro marginal
principalmente nas décadas de 1980 e 90.

4.2. Zé Carioca, Zé Pequeno e outros Zés: discursos que


constroem uma identidade heterogênea.

Como já foi dito, nossa análise enfoca canções desde a década de 20 até hoje. Vale
ressaltar, entretanto, que nosso estudo não vai analisar, neste primeiro momento, a melodia
dessas canções, apesar de termos consciência de que estas, assim como as letras, são bastante
importantes para a produção de sentido da canção. Reservamos para tanto, o item seguinte
(3.3.) que tem a finalidade de analisar os sentidos que a melodia pode determinar no que Tatit
(2004) denomina gesto cancional.
Segundo este autor, a prática musical brasileira é ―uma espécie de oralidade musical
em que o sentido só se completa quando as formas sonoras se mesclam com as formas
lingüísticas inaugurando o chamado gesto cancional. Tudo ocorre como se as grandes
elaborações musicais estivessem constantemente instruindo um modo de dizer que, em última
instância, espera por um conteúdo a ser dito‖96.
Devemos considerar também, para nossas análises, a função social da música popular
no Brasil. Para Roberto DaMatta,

No caso da sociedade brasileira, a música popular tem uma importância capital como
instrumento de dramatização da vida política, dos valores sociais, dos papéis sexuais, do
poder, dos infortúnios, da morte e da doença, do amor, do ciúme, da vingança, da
indiferença, do trabalho, do trabalhador, da boemia e da malandragem, da cidade e do
campo, etc. importância que, nas sociedades burguesas tradicionais, é desempenhada
pela literatura97.

Antes de iniciarmos as análises das letras das canções, é importante considerar ainda
que não teremos como intenção elencar características a fim de criar um estereotipo, uma

96
TATIT, Luis. O Século da Canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004, p. 69.
97
DA MATTA, R. O poder mágico da música de carnaval (decifrando Mamãe eu quero). In: DA MATTA,
Roberto. Conta de mentiroso: sete ensaios de antropologia brasileira. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. (pp. 59 – 89),
p. 61.
42

imagem una, compacta. Na tentativa de não cairmos no senso comum em que é visto o
malandro, trabalharemos com o choque entre os discursos sobre o malandro a partir da
perspectiva dele mesmo e do outro (na maioria das vezes, o trabalhador).
Outro ponto importante é de que tal imagem, por ser constituída a partir de vários
lugares, não é pontual. Como poderemos ver a seguir, diferentes construções de ethé98
recebem a designação de ―malandro‖, estas construções estabelecem, segundo Da Matta
(1990), um continuum, tendo como extremos de um lado o malandro ―astuto‖, como é o caso
de Leonardinho, Malasartes e Zé Carioca, e do outro, o malandro marginal, tal qual Zé
Pequeno e seu bando no filme Cidade de Deus. Segundo DaMatta:

O campo do malandro, assim, vai numa gradação da malandragem socialmente


aprovada e vista entre nós como esperteza e vivacidade, ao ponto mais pesado do
gesto francamente desonesto. É quando o malandro corre o risco de deixar de viver do
jeito e do expediente para viver dos golpes, virando então um autêntico marginal ou
bandido99.

Entretanto, neste trabalho não pensaremos o malandro como uma identidade ―esticada
numa linha‖, mas ethé que se designam como malandro e que não estão dispostas
―bidimensionalmente‖, seu funcionamento é mais complexo, ainda nos utilizando da metáfora
cartesiana, diríamos que seu funcionamento estaria na ordem do tridimensional. Essa nossa
concepção de malandro é pautada no fato de que as fronteiras das formações discursivas não
são fixas, não sendo possível, portanto, prever todos os discursos que as constituem. Dessa
forma, não temos como precisar se há um deslocamento de uma ―imagem de si‖ para outra e
se este deslocamento é linear, afirmamos, portanto que tais ethé se constroem como ―nós
numa rede‖ de discursos.
Para abrangermos um maior número de ethé que se designam/ são designados pelo
termo malandro, analisaremos primeiramente a construção da imagem do malandro por
canções que apresentam como enunciador aquele que se nomeia malandro, posteriormente
analisaremos canções em que o outro (trabalhador) é quem constrói tal imagem.

98
Adotaremos a forma grega do plural de ethos
99
DA MATTA, R. op. cit. 1990, pp. 220 – 221.
43

Em nossas análises pudemos observar que quando o enunciador nomeia-se malandro,


dois ethé são construídos, e ambos apesar de heterogêneos constroem-se sobre uma ilusória
homogeneidade. A presença de mais de um ethos designado pelo termo malandro nos fica
evidente ao contrapormos, por exemplo, as canções100 ―Malandro é malandro e mané é mané‖
(anexo p.101) de Neguinho da Beija-Flor, composta em 1980, e ―Malandragem dá um tempo‖
(anexo p. 102) de Popular P., Adezonilton e Moacyr Bombeiro, gravada em 1986.
Antes de iniciarmos as análises, gostaríamos de ressaltar que as composições gravadas
por Bezerra da Silva, como bem aponta Vianna (1999)101 são, em grande maioria, compostas
por moradores da favela que, para Bezerra são as pessoas que realmente tem legitimidade para
dizerem o que dizem as letras. Esse fato, às vezes ignorado, pode provocar confusões acerca
da autoria das músicas interpretadas por Bezerra. Para não nos arriscarmos, apontamos como
autores das canções aqueles que constam nos álbuns nos quais as canções foram gravadas. De
acordo com o LP de Bezerra da Silva, lançado no ano de 1986 e intitulado ―Alô malandragem,
maloca o flagrante‖, no qual a canção ―Malandragem dá um tempo‖ é a primeira faixa do lado
A, os compositores da referida canção são os já mencionados Popular P., Adezonilton e
Moacyr Bombeiro. Tais nomes aparecem também como autores desta canção no artigo ‗Nas
regras da arte: o direito e as letras de samba‘, de Eugenia Rodrigues, (http://www.samba-
choro.com.br/print/debates/1050388933/index_html). Para evitar futuras questões com relação
a esse assunto, disponibilizamos, em anexo, a imagem digitalizada do álbum referido. Cabe
ainda dizer que, por se tratar de uma análise discursiva com base lingüística, a autoria das
canções não interfere em nossas análises, pois o que nos propusemos a analisar são as
construções discursivas produzidas por estes textos e não seus autores reais.
Na primeira canção uma nítida distinção entre duas identidades socialmente
cristalizadas – o malandro e o mané – são retomadas na construção dos dois ethé presentes.
O primeiro, que remonta a identidade do malandro, é descrito como quem ―sabe das coisas‖,
―sabe o que quer‖, quem tem sempre dinheiro, ―é um cara maneiro‖ e ―não se amarra numa só
mulher‖, ou seja, este ethos de malandro, por saber das coisas e saber o que quer, sempre
consegue atingir seus objetivos, tem dinheiro, amizades e não estabelece relacionamento sério
com uma mulher. Essa última característica malandra remete à questão colocada por Roberto

100
As letras das canções estas disponibilizadas na íntegra em anexo.
101
Vianna, Letícia C. R. Bezerra da Silva: produto do morro: trajetória e obra de um sambista que não é santo.
Rio De Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1999.
44

da Matta de ser o malandro um personagem102 da rua (na dicotomia casa x rua) pelo fato de
não constituir família.
Já o segundo, por sua vez, tem sua meta, não sabe guardar segredo (cagüeta), não tem
moral, não consegue se relacionar com as mulheres, nunca tem dinheiro, é azarado,
desconsiderado e ainda ―tem muito que aprender‖. Podemos notar, na designação do mané a
predominância de características negativas, isso ocorre porque, como afirma Sérgio Buarque
de Holanda, os princípios reguladores das atividades humanas são antagônicos a ponto de
características de um princípio não serem aceitas ou nem valorizadas pelo outro, ou pelo viés
da Análise do Discurso, podemos dizer que a FD na qual o sujeito enunciador se insere regula
o que, por ele, pode e deve ser dito.
Na segunda canção podemos notar, principalmente no refrão, a alusão ao consumo de
drogas ―Vou apertar, mas não vou acender agora/ Se segura malandro, pra fazer a cabeça tem
hora‖, no qual os termos ―apertar‖, ―acender‖ e ―fazer a cabeça‖ remetem ao preparo e
consumo do cigarro de maconha.
É interessante observar que o co-enunciador deste texto não é um malandro astuto tal
como se espera de todo malandro, pois este vai ―acender‖ sem ver se o ambiente é propício
para tal ato (―É que você não está vendo/ que a boca tá assim de corujão‖), pois por se tratar
de algo ilícito (ou do mundo da Desordem) os ―corujões‖ podem denunciá-lo aos ―home da
lei‖.
Outra característica interessante, e que distingue o primeiro ethos do malandro deste, é
observada nos dois primeiros versos da última estrofe nos quais podemos constatar o domínio,
pelo sujeito enunciador, do Código Penal Brasileiro e de suas alterações. Ao produzir o
enunciado ―É que o 281 foi afastado/ O 16 e o 12 no lugar ficou‖, o enunciador retoma o
discurso jurídico do advento da Lei de Tóxicos (Lei 6368/76). Segundo Rodrigues103, ―O
artigo 281 do antigo Código Penal Brasileiro previa o crime de tráfico de entorpecentes, mas
não o de uso. Quando do advento da Lei de Tóxicos (Lei 6368/76) os artigos 12 e 16 desta lei
passaram a cominar, respectivamente, as penas para tráfico e uso de entorpecentes‖.
Encontramos aqui a presença de um discurso outro, produzido em outro lugar (um discurso

102
Termo utilizado por Da Matta
103
RODRIGUES, Eugênia. Nas regras da arte -- O Direito e as letras de samba, 2003. Disponível em
http://www.samba-choro.com.br/print/debates/1050388933/index_html, acessado em 22 de março de 2007.
45

jurídico) que atravessa o discurso do malandro, constituindo assim, no interdiscurso, a


heterogeneidade deste sujeito.
A presença do interdiscurso pode ser, neste caso, explicada pela oscilação do malandro
entre o Mundo da Ordem e o Mundo da Desordem, proposta por Antonio Candido, na qual o
malandro se move para o ―mundo‖ que lhe trouxer mais vantagens, neste caso, o
conhecimento do Código Penal pode permitir um movimento em suas brechas.
Nessa canção percebemos que neste segundo ethos construído sob a denominação de
malandro, além dos traços comuns ao primeiro ethos estudado, encontramos o consumo e
tráfico de drogas e o domínio do Código Penal, construindo assim, uma imagem mais
agressiva, violenta, o que ROCHA (2004) chamaria de marginal.
Seguindo a estratégia que escolhemos para as análises, ao mudarmos de enunciador,
agora o outro (geralmente o trabalhador) é quem fala sobre o malandro, pudemos notar três
ethé nomeados de malandro, e não apenas dois como quando o enunciador se designava como
tal.
A constituição da imagem do malandro pelo outro mantém as duas classificações
observadas quando ele enunciava a seu respeito – malandro ‗socialmente aceito e malandro
marginal – e acrescenta a imagem do político corrupto, vendo na ―astúcia‖ característica do
malandro, a mesma ―astúcia‖ que permite o crime de colarinho branco. É interessante
observar que o malandro, quando enuncia, não considera o político corrupto um malandro,
chamando-o de ―aspone‖104, ladrão de gravata ou assombração de barraco. Este terceiro ethos
só pôde ser observado na canção ―Homenagem ao Malandro‖ (anexo p. 101) de Chico
Buarque de Holanda, composta em 1978, e na propaganda política do PSB, exibida na Rede
Globo de Televisão no dia 25 de abril de 2005 às 21h51min.
Na canção de Chico Buarque, o enunciador se coloca como alguém que sabe o que é
malandragem, porém que não freqüenta o mesmo lugar que o malandro, como podemos
observar nas duas primeiras estrofes:

Eu fui fazer um samba em homenagem


À nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais

Eu fui à Lapa e perdi a viagem

104
Sigla para Assistente de Porcaria Nenhuma
46

Que aquela tal malandragem


Não existe mais

Na primeira estrofe o enunciador diz que conhece a malandragem de ―outros


carnavais‖ e por isso se dirige à Lapa, reduto dos malandros cariocas. Entretanto, este perde a
viagem, pois ―aquela tal malandragem/ não existe mais‖. Disso, podemos concluir que o
enunciador aponta uma mudança na ―tal malandragem‖ não podendo mais recuperá-la na
Lapa. É na terceira estrofe, como veremos a seguir, que o enunciador fala deste ―novo
malandro‖ que não mora mais na Lapa, que passa a ocupar colunas sociais e que tem gravata e
capital.

Agora já não é normal


O que dá de malandro regular, profissional
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
Que nunca se dá mal

O malandro na estrofe acima é aquele que finge ser regular, profissional, que finge,
portanto ser trabalhador. Entretanto, não é somente por se passar por trabalhador que este
ethos é constituído, ele tem também cargo político (―aparato de malandro oficial‖) e é
candidato a um cargo federal. Todo esse léxico, o aparato oficial, a candidatura ao cargo
federal, o contrato, a gravata, o capital, remete a uma memória discursiva do político corrupto,
o malandro ―que nunca se dá mal‖, inserido numa memória de que no Brasil, os políticos
corruptos ficam sempre impunes por seus atos, onde ―tudo acaba em pizza‖.
O distanciamento do enunciador é bastante importante neste momento de nossa
análise. Quando o enunciador assume a posição de morador de favela, por exemplo, apesar de
ser trabalhador, não vê o malandro como algo ruim à sociedade, como podemos notar na
canção ―Assombração de Barraco‖ (anexo, p. 101) de Élson Gente Boa e José Carlos gravada
por Bezerra da Silva em 1992:

Vejo que essa previdência


Não tem competência de ser social
O trabalhador adoece e morre na fila do hospital
Enquanto uma pá de ―aspone‖
Come e dorme mamando na teta
E os PCs na mamata sempre fazendo mutreta
47

Roubando o dinheiro do povo


E mandando pra Suíça na maior careta

(...)

E uma pá de cheque fantasma assustando o Planalto Central


Assombração de barraco é ladrão de gravata e não é marginal

No trecho acima citado, observamos, através da crítica feita aos serviços públicos
como a previdência social e a saúde, a presença de enunciados como ―uma pá de aspone‖,
―mamando na teta‖, ―PCs105 na mamata fazendo mutreta‖ que remetem a uma memória
discursiva de corrupção política, sendo seu praticante designado como ladrão de gravata e não
de malandro como na canção de Chico Buarque.
Um outro aparecimento do léxico ―malandro/ malandragem‖ para designar político
corrupto ocorreu na propaganda eleitoral do PSB na qual o enunciador, que se instaura na
posição sujeito de político não corrupto, diz:

―Estamos cansados de malandragem no governo‖

Podemos concluir que é apenas o enunciador inserido numa posição sujeito mais
elitizada tais como os enunciadores de ―Homenagem ao malandro‖ e da propaganda política é
que designam o político corrupto também como malandro, enquanto que os enunciadores
inseridos em posições sujeito como a do malandro e a do trabalhador mal remunerado não
nomeiam o político corrupto de malandro.
A existência deste terceiro ethos nomeado como malandro reforça nossa suposição de
que a identidade do malandro não se apresenta num continuum, pois, retomando a metáfora
cartesiana, a variante proposta por Da Matta é a violência e, neste último ethos, não é um
aumento ou diminuição da agressividade que o diferencia dos demais. A diferença é de outra
ordem, de classe talvez. Desse modo reafirmamos que os ethé designados sob o termo
malandro constroem-se como ―nós numa rede‖.
Tendo observado como o malandro se constitui/é constituído, analisaremos então de
que forma traços do que pudemos apreender como malandragem aparecem no discurso do

105
Paulo César Farias, ex-tesoureiro da campanha presidencial de Fernando Collor de Melo e testa de ferro de
Collor, responsável pelo desvio de dinheiro público que tinha como beneficiário, o então presidente Collor.
48

trabalhador. Acreditamos que o aparecimento do termo ―malandro‖ nas letras das canções que
analisaremos a seguir não seja imprescindível para a retomada dos discursos da malandragem.
Consideramos que, com as análises realizadas até este momento, pudemos cercar alguns
enunciados que remetam a discursos da malandragem, deste modo, nas análises que seguem,
retomaremos os discursos da malandragem através destes outros enunciados e não mais,
necessariamente, do aparecimento do termo ―malandro‖.
Na canção composta por Zeca Pagodinho e Jorge Aragão e intitulada ―Não sou mais
disso‖ (anexo . p.101) podemos perceber logo na primeira estrofe a retomada do ambiente da
casa106 na ―regeneração‖ do malandro. Podemos concluir tal retomada, pois é a partir da
esposa (―ela‖) que ocorre a transição. Vale lembrar que a mulher, neste texto, remete às
relações que funcionam no ambiente da casa como as relações consangüíneas e as
matrimoniais. Nessa primeira estrofe o enunciador constrói sua imagem de malandro como
pé-de-cana, vagabundo e de pouca fé em Cristo, e foi pela mudança destas características que
o enunciador justifica sua mudança de malandro a trabalhador.
Na segunda estrofe, o enunciador fala de sua rotina de trabalhador:

Na hora de trabalhar
Levanto sem reclamar
E antes do galo cantar
Já vou
À noite volto pro lar
Pra tomar banho e jantar
Só tomo uma no bar
Bastou

Notamos na segunda estrofe o silenciamento (e não apagamento) do discurso do


malandro. Ao adotarmos o método foucaultiano de análise dos enunciados, proposto em
―Arqueologia do Saber‖ no qual o analista deve se perguntar o porquê do aparecimento de um
enunciado e não de outro em seu lugar, podemos estabelecer algumas paráfrases que nos
ajudariam a perceber o discurso do malandro presente neste verso:

P1: Levanto reclamando


E: Levanto sem reclamar
P2: Levanto cantando

106
Nos referimos aqui à dicotomia casa x rua apresentada em DA MATTA, 1990, 5ªed. Ao ambiente da casa
ficam reservadas as práticas sociais de maior controle e estabilidade, e os processos de hierarquização ocorrem
pelo sangue, pelo sexo e pela idade.
49

Analisando as duas paráfrases (P1 e P2) e o enunciado E na ordem em que estão


dispostos, podemos notar uma gradação que vai do ―desprazer ao prazer‖, portanto, o
enunciador, ao dizer que levanta sem reclamar, não está necessariamente contente com o que
vai fazer, mas está, sim, sendo levado pelo discurso dominante (o pró-trabalho).
Nos versos seguintes dessa mesma estrofe, consideramos interessante ressaltar outro
momento de interferência do discurso do malandro no discurso do trabalhador, presente no
verso ―Só tomo uma no bar‖ que se apresenta em oposição aos dois versos anteriores ―À noite
volto pro lar/ pra tomar banho e jantar‖. Segundo Da Matta (1990), ―na rua se trabalha, em
casa descansa-se‖ (anexo p.101), na canção, entretanto, o enunciador ainda tem a necessidade
de ―descansar‖ na rua (―no bar‖), ainda que agora apenas ―uma‖ lhe basta.
Desta análise podemos evidenciar a presença do discurso do malandro no discurso
do trabalhador, podemos dizer ainda que o aparecimento do discurso do malandro se constitui
como resistência à tentativa de apagamento exercida pelo discurso pró-trabalho, mesmo que
na forma de equívoco.
Na última estrofe é relevante destacar o papel do co-enunciador a partir da escolha
do verbo provar pelo enunciador.

Provei pra você que eu não sou mais disso


Não perco mais o meu compromisso
Não perco mais uma noite à-toa
Não traio e nem troco a minha patroa

Para quem este enunciador enuncia? Para quem este enunciador precisa provar algo?
É um co-enunciador criado pelo discurso dominante, que inserido na FD dominante, a pró-
trabalho, determina o que pode e deve ser dito.
Já na ―Canção do Trabalhador‖ (anexo p.102) de Ary Kerner, composta em 1940, o
enunciador constrói um ethos heróico do trabalhador através da seleção de predicações do tipo

―a voz do progresso‖
O trabalhador é ―a esperança do Brasil‖
―Incansável, febril‖
―[a ] Expressão verdadeira/ Do lema altivo/ Da nossa bandeira‖
50

que remetem ao discurso trabalhista de Getúlio Vargas responsável pelo silenciamento do


discurso do malandro. Essa exaltação do trabalhador foi utilizada como estratégia do governo
para estreitar as relações com o povo, aumentando sua governabilidade.
O discurso trabalhista foi explorado de tal forma durante o governo Vargas que se
estabeleceu uma relação bastante significativa entre a figura de Vargas e o trabalho como
podemos constatar na canção ―Retrato do Velho‖ (anexo, p. 102) de Haroldo Lobo e Marino
Pinto, composta no final de 1950. Nessa marcha de carnaval, o enunciador recoloca o retrato
de Getulio Vargas na parede, o que simboliza o retorno de Vargas à presidência, e diz que o
sorriso do presidente é um estímulo para o trabalho:

Bota o retrato do velho outra vez


Bota no mesmo lugar
O sorriso do velhinho
Faz a gente trabalhar, oi

Essa grande veiculação do discurso trabalhista não conseguiu, entretanto, apagar o


discurso do malandro, que aparece, talvez como equivoco, na canção ―Eu trabalhei‖ (anexo p.
102) de Roberto Roberti e Jorge Faraj, composta em 1941. Neste texto de exaltação do
trabalho podemos observar a presença do discurso do malandro na forma de interdiscurso,
quando analisamos, por exemplo, os marcadores temporais (advérbios e tempos verbais)
utilizados:

Eu hoje tenho tudo, tudo que um homem quer


Tenho dinheiro, automóvel e uma mulher!
Mas, para chegar até o ponto em que cheguei
Eu trabalhei, trabalhei, trabalhei

Eu hoje sou feliz,


E posso aconselhar
Quem faz o que eu já fiz
Só pode melhorar...
E quem diz que o trabalho
Não dá camisa a ninguém
Não tem razão. Não tem. Não tem.

Ao observarmos os termos destacados, podemos notar que as ações relativas ao


trabalho estão no pretérito enquanto que as conquistas e a felicidade do enunciador estão no
51

presente, concluímos, portanto que a felicidade e o trabalho não são compatíveis, pois se
encontram em tempos diferentes, o que evidencia a presença do discurso do malandro.
Por fim, na canção ―Um filho e um cachorro‖ de Zeca Baleiro (2002) (anexo p. 102)
encontramos um ethos de trabalhador feliz, entretanto consciente de sua mediocridade. Nas
duas primeiras estrofes, o enunciador caracteriza a vida do trabalhador de classe média
utilizando o enunciado ―me sinto como num comercial de margarina‖ que remete a uma
memória discursiva de família feliz.
Na terceira estrofe o enunciador toma consciência de que a vida boa de que desfruta, às
vezes pode ser má. Entretanto, essa conscientização só pode ser efetuada através das lentes
―dos óculos de grau‖, ou seja, a elaboração do sistema de divulgação de discursos que
induzem a população a se comportar como ―num comercial de margarina‖ é tão sutil e
distribuída pela sociedade que não pode ser percebida a olho nu.
Na última estrofe, o enunciador caracterizado por um ethos de trabalhador de classe
média expõe seu contentamento com a vida que vive mesmo tendo consciência do mal que
esta pode lhe causar. Esse processo de conformismo do povo brasileiro teve forte influência da
política varguista, como explica Lima (1990):

No plano político e ideológico, a criação dos sindicatos ‗corporativistas‘ e outras


medidas tomadas relativas ao trabalho serão também importantes para o
assujeitamento dos ‗trabalhadores‘ ao Estado populista e para o enfraquecimento de
sua autonomia enquanto classe, na medida em que seu afrontamento com o Estado se
encontrou situado no interior do próprio Estado107.

Durante nossas análises nos deparamos com textos cujos discursos do malandro e do
trabalhador se unem sem que um seja equívoco no outro, como já observamos em algumas
análises, mas que aparecem de forma explícita e consciente, sendo a união intencional destes
dois discursos a base do processo de construção de uma outra identidade.
Por se tratar, portanto, de um ethos que se constitui no sincretismo dos discursos do
malandro e do trabalhador de forma que não poderiam ser classificados nem como a

107
LIMA, Maria Emilia A. T., A Construção discursiva do povo brasileiro – Os discursos de 1º de Maio de
Getúlio Vargas. Campinas: Editora da Unicamp, 1990, p. 60.
52

representação da imagem do malandro nem a do trabalhador, utilizaremos a expressão


―trabalhador malandro/ malandro trabalhador‖ para designar este novo ethos.
Para o analisarmos, selecionamos como corpus a canção ―O Hacker‖ (2002) de Zeca
Baleiro (anexo p. 102). Nela, podemos observar o sincretismo do discurso do malandro e do
discurso do trabalhador formando esse novo ethos. A primeira estrofe é construída com a
intercalação de enunciados que remetem ao discurso do malandro e de enunciados que
remetem ao discurso do trabalhador.

Vem meu amor


Vamos invadir um site
Vamos fazer um filho
Vamos criar um vírus
Traficar armas poemas de Rimbaud
(traficar armas escravos e rancor)

Observamos que o primeiro e o terceiro versos remetem ao discurso do trabalhador


considerando que tais versos caracterizam o ambiente da casa que, por sua vez, é o motivo
pelo qual um indivíduo se lança à rua, tornando-se trabalhador. Entretanto, os versos restantes
representam o discurso do malandro (marginal) por promover o crime (invadir sites, criar
vírus...).
Na segunda estrofe encontramos novamente a união dos dois discursos para a
construção do ―trabalhador malandro/ malandro trabalhador‖. Na construção ―tio
estelionatário‖, o enunciador traz um léxico da ―casa‖, pois compõe a hierarquização
característica deste ambiente, predicado por um léxico do Mundo da Desordem, da
ilegalidade. A estrofe segue com o dizer do tio do enunciador

Ladrão que rouba ladrão


Tem cem anos de perdão
Malandro também tem seu dia de otário

que se caracteriza também por unir os dois discursos por nós analisados. Os dois primeiros
versos deste trecho reproduzem o discurso do malandro, pois justifica as atitudes tomadas no
Mundo da Desordem. Já o último verso reproduz o discurso do trabalhador, pois se constitui
como um contra-discurso do malandro que diz que ―o malandro sempre se dá bem‖.
53

Nos dois primeiros versos da terceira estrofe o enunciador se utiliza de um anti-fiador


para construir seu ethos, presente também na canção ―O Pequeno burguês‖ (anexo p. 103) de
Martinho da Vila.

Vagabundo acha que eu tô rico


Nego pensa que eu sou bacana (O Hacker)

Dizem que sou um burguês muito privilegiado


Mas burgueses são vocês
Eu não passo de um pobre coitado (O Pequeno Burguês)

A utilização do discurso do outro, neste caso, reforça um ethos de classe média em


ambas as canções, pois este ―outro‖, que pode ser entendido como um malandro ou como um
indivíduo que circula entre as classes menos privilegiadas da sociedade, geralmente apresenta
um discurso, com relação à classe média, de que ela é rica e goza de boa vida desconsiderando
todo o caminho que resultou nesta acumulação de capital.
Os versos seguintes da terceira estrofe são a justificativa que o enunciador encontra
para o que foi dito pelo anti-fiador.

Quando a barra aperta eu faço bico


Eu aplico eu não fico sem grana
Eu me viro daqui eu me arranjo de lá
Quem só chora não mama
No meio do pega-pra-capá

Nesta justificativa do enunciador, encontramos a união do discurso do malandro e do


trabalhador em ―(...) eu faço bico/ eu aplico (...)‖, pois o bico se caracteriza como uma
atividade de curto prazo para se obter dinheiro e sem registro em carteira, típico do discurso
do malandro se pensarmos nele como é pensado na Sociologia, como um personagem móvel,
que teria no trabalho registrado essa movência prejudicada. Enquanto que ―aplicar‖
pressupõe-se um rendimento em longo prazo e que garante uma estabilidade ao aplicador,
característica do discurso do trabalhador.
A interpretação que damos para o surgimento de um ethos tão marcadamente
heterogêneo composto tanto por discursos do malandro como por discursos do trabalhador em
oposição aos ethé analisados anteriormente que tentavam se construir de forma homogênea é o
reflexo do que se vem chamando de pós-modernidade, nela não cabem mais identidades
54

fechadas. Acreditamos que no período em que as canções que produzem uma tentativa de
imagem homogênea circulavam, existia uma necessidade de se marcar um espaço, o malandro
em oposição ao trabalhador. Entretanto, no que se denomina pós-modernidade, a necessidade
da diferenciação de classes (malandro x trabalhador) passa a ser de outra ordem, o que antes
era uma (tentativa de) identidade homogênea passa a ser uma posição sujeito heterogênea.
Ocorre uma hibridez na construção discursiva que sustenta os discursos a respeito do
malandro e do trabalhador passando a trabalhador-malandro/ malandro-trabalhador.
A análise de canções que materializam os discursos do malandro e do trabalhador nos
despertou para uma outra questão: os gêneros nos quais os discursos do malandro e do
trabalhador são representados. Tendo analisado um número significativo de canções com a
temática da malandragem, notamos que em sua maioria tratava-se de sambas. Considerando
que ―É porque se trata de certo discurso que o suporte lingüístico é o que é‖ 108, e ampliando
esse suporte para um nível intersemiótico, voltaremos nossa atenção para o estudo do samba
enquanto gênero discursivo que apresenta como temática a malandragem.
Por esse motivo, estudaremos o samba sob uma perspectiva histórica a fim de
entendermos a intima ligação existente entre o gênero discursivo samba e a formação
discursiva da malandragem.

4.3. O Samba como lugar da Malandragem

Meu samba é um samba diferente/ Pois de fato minha


gente/ Ele é muito original/ Não fala das cadeiras da
mulata,/ do murmúrio da cascata,/ nem do amor no
carnaval/ Não cita frases célebres da história/ nem revive
a luta inglória dos sedentos de riqueza/ nem mesmo narra
a farsa de carinho/ emanada de um peito/ transbordante
de frieza/ podia falar do pandeiro e da cuíca/ ou do surdo
de barrica que já não existe mais/ ou mesmo de um
coração ferido/ solitário, comovido/ e dos seus doídos
ais/ não fala meus amigos de ninguém/ simplificando a
história/ não fala de mim também109

Tatit, no livro O Século da Canção, exemplifica a relação existente entre letra e


melodia através da análise da canção ―Garota de Ipanema‖, composta por Vinicius de Moraes

108
POSSENTI, Sírio. Os Limites do Discurso. Curitiba: Criar, 2002, p. 25.
109
Samba Original, Elton Medeiros e Zé Ketti, 1963
55

e Tom Jobim em 1962. Na análise, o autor chama a atenção para o uso de notas mais
alongadas para sustentar um discurso de sofrimento amoroso, como nos versos ―Ah, por que
estou tão sozinho/ Ah, por que tudo é tão triste?‖ em que as notas se estendem.
Wisnik (1992), também no caminho de justificar o intenso diálogo entre letra e
melodia, compara o samba de Noel Rosa ―Com que roupa?‖ ao Hino Nacional. Segundo o
autor, na época da composição do samba, um amigo de Noel lhe havia dito que o primeiro
verso de seu samba tinha a mesma melodia do primeiro verso do Hino Nacional, apresentando
apenas algumas diferenças: o samba começa com um desenho melódico descendente enquanto
que o hino tem em seu início um torneio ascendente e de o primeiro ser recortado pela sincopa
do samba e o segundo pelo padrão impositivo do hino.
A partir disso, Wisnik pede a seu leitor que tente cantar os versos mencionados com as
melodias invertidas, e conclui que

Cantada segundo a figura rítmica do Hino, a frase ‗Agora vou mudar minha conduta‘
ganha um acento marcial e corporativo. Não é mais a fala individual e irônica do
‗cidadão precário‘, o sujeito do samba, que afirma entre negaceios sincopados a sua
disposição irrisória de se afirmar na vida, mas uma espécie de voz coletiva que brada
com acentos épicos uma vontade de autotransformação. Vontade de transformação que
tem por objeto e cenário de sua operação enérgica o próprio corpo submetido ao ritmo
reticulado, em que os acentos métricos convergem sobre os tempos fortes do compasso
de maneira inequívoca, como golpes de martelo que disciplinam seu movimento regular
de subida e descida ‗de maneira a extrair dele o seu maior rendimento‘ 110.

É a partir de uma análise discursiva do que propõem Wisnik (1992) e Tatit (1994),
apoiada na noção bakhtiniana de gênero discursivo, que passaremos a entender o samba. Vale
ressaltar, entretanto, que nosso trabalho não visa (não em caráter de iniciação científica) uma
análise pormenorizada das notas melódicas como propõe Tatit. Analisaremos, neste momento,
a melodia como um todo producente de sentido.
Segundo Bakhtin, todo gênero discursivo é composto por um conteúdo temático, um
estilo verbal e uma estrutura composicional. Portanto, para trabalharmos com o samba
enquanto gênero discursivo, consideraremos seu estilo verbal organizado, geralmente, na

110
WISNIK, José Miguel. Algumas questões de música e política no Brasil. In: BOSI, Alfredo (org.). Cultura
Brasileira – temas e situações. 2ª.ed. São Paulo: Ática, 1992. (pp. 114 – 123), p. 117.
56

forma verso-refrão e sua construção composicional de compasso binário e ritmo sincopado,


caracterizada pelo pandeiro, cuíca, tamborim e etc.
Considerando o samba um ritmo popular, o que segundo DaMatta (1993) o transforma
em instrumento de dramatização da vida do povo, teremos como temáticas, fatos cotidianos
das classes mais baixas da sociedade. A partir dessa noção de samba, faz-se necessária uma
análise histórica, sem, entretanto, cairmos na ilusão de localizarmos sua gênese. O que
faremos é uma busca por discursos que sustentam as temáticas veiculadas pelo samba, mais
especificamente as da malandragem.
Portanto, consoante às teorias de Tatit (1994) e Wisnik (1992) sobre a íntima relação
entre letra e melodia, e a noção bakhtiniana de gênero discursivo, analisaremos a importância
da inscrição histórica do gênero bem como de suas temáticas.
A cidade do Rio de Janeiro, no final do século XIX e início do século XX, recebeu
uma grande massa migratória formada principalmente de ex-escravos oriundos de zonas
rurais, dobrando o número de habitantes da cidade em vinte e oito anos. Esse grande
contingente humano não foi absorvido como mão-de-obra na capital brasileira, criando uma
população de sub-empregados e biscateiros.
Sobre o aspecto cultural deste mesmo período, vale destacar que enquanto as classes
mais ricas estavam voltadas para as novidades européias e posteriormente americanas, as
classes marginalizadas viviam intensa produção cultural de onde nasceu, dentre outros, o
samba. Segundo Tinhorão,

(...), enquanto o público da nova classe média emergente da fase de transição da


economia pré-industrial, manufatureira, para a da moderna indústria, se deixava arrear
com as novidades importadas, as camadas populares urbanas mais baixas viviam, no
mesmo período histórico, um dinâmico processo de riqueza criativa. Levados pela
natureza excludente da economia a viver por si, os componentes das camadas mais
pobres (trabalhadores não qualificados, biscateiros e subempregados em geral) passaram
a organizar-se culturalmente para si (...) seria entre tais comunidades que iriam surgir no
Rio as duas maiores criações coletivas do povo miúdo no Brasil: o carnaval de rua dos
ranchos e suas marchas, e o ritmo do samba111.

111
TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. 1ª. Ed. bras. São Paulo: Ed. 34,
1998, pp. 263 – 264.
57

Por apresentar como nascedouro um lugar social bastante desprivilegiado, o samba


teve muita dificuldade em ser aceito pelas camadas mais abastadas da população, mesmo
porque naquela ocasião ainda dominava o discurso da supremacia racial branca, dificultando a
aceitação do que fosse de origem negra. Entretanto, já na década de 1920, existia um
intercambio cultural entre elite e povo exemplo disso é o encontro narrado por Vianna (2002)
entre a elite intelectual brasileira representada por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de
Holanda, Heitor Villa-Lobos e Prudente de Moraes Neto e os compositores populares Patrício
Teixeira, Donga e Pixinguinha numa noite de 1926.
Geralmente esses encontros ocorriam nas ―casas das tias‖, como eram conhecidos os
casarões alugados por baianas que dispunham de razoável situação financeira. Devido ao
status econômico de que dispunham, normalmente oriundo de seus tabuleiros com iguarias da
terra natal, as tias organizavam festas em suas casas das quais participavam quem assim o
quisesse. Sobre essas casas é interessante atentar para dois fatores, o primeiro, a própria
noção de ―tia‖ e as relações de ―parentesco‖ estabelecidas entre os freqüentadores dos
casarões, e o segundo, a estrutura física dos casarões e a representação que esta estrutura
exerce durante as festas ali realizadas.
Segundo Velloso (1990), os laços familiares das baianas residentes na capital federal
eram de ordem étnica ou religiosa e não consangüínea como mandava o modelo burguês
europeu. Dessa forma, as casas das tias baianas funcionavam como uma espécie de embaixada
para os negros que chegavam ao Rio de Janeiro até meados da década de 1920. A noção de
casa na qual se construíam as camadas mais pobres cariocas também diferia bastante da noção
trazida da Europa. Segundo a autora,

Aqui a ‗grande família‘ se realiza via candomblé, que é um dos herdeiros do sistema de
filiação étnica. Seus membros pertencem à mesma família: a família de santo. Esta seria
substituta da linhagem africana para sempre desaparecida (Queiroz, 1988)112. No Rio, no
início do século, os valores de origem étnica constituem a base da sociabilidade ‗Nós os
da raça... sabíamos onde se reunir‘113. É clara a consciência de família via etnia. A casa
das tias aparece como espaço de reunião num tempo e numa cidade onde não havia lugar

112
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. 1988. ―Viajantes do século XIX: negras escravas e livres no Rio de
Janeiro‖. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, (28): 53-76. (Edição comemorativa do
centenário da abolição da escravatura).
113
Os trechos entre aspas dentro da citação referem-se ao Depoimento de Meninazinha de Oxum, ialorixá do Ilê
Omolu e Oxum, em 10 de novembro de 1989.
58

para ‗os da raça‘. Só através da ‗festa familiar‘ é que se cria esse espaço, onde é possível
comer, sambar, divertir, casar ou amigar. Tudo em família... As moradias populares
normalmente não são vistas como espaço da privacidade — conforme o modelo burguês
— mas sim da reunião, do convívio social e da luta cotidiana114.

Pelo fato de as moradias populares não serem vistas como um espaço privativo e sim
como um lugar de convívio social freqüentado por pessoas de diferentes classes sociais e
culturais, os ambientes das casas ficavam fortemente marcados, materializando uma curiosa
metáfora social. A casa era construída longitudinalmente, havendo uma sala de entrada,
seguida de vários quartos, ligados por um comprido corredor que desembocava no quintal
depois de passar pela sala de jantar e cozinha. Tal disposição dos cômodos permitia a
manutenção das diferenças de classes,

Ou seja, na sala ficavam os mais velhos e bem-sucedidos, que constituíam o partido alto
da comunidade, cultivavam seus versos improvisados entre ponteados de violão,
lembrando sambas sertanejos de roda à viola; os mais novos, já urbanizados, tiravam seu
samba corrido cantando em coro na sala de jantar, aos fundos, e no quintal os brabos
amantes da capoeira e da pernada, divertiam-se em rodas de batucada ao ritmo de
estribilhos marcados por palmas e percussão 115.

Um outro motivo para a existência de tais casas e de toda a significação que elas
carregam deve-se ao fato de que o samba foi perseguido pelo governo por muito tempo,
inclusive durante a Era Vargas, o que reforçou seu caráter de resistência, principalmente ao
ideário estado-novista. Entretanto, no mesmo caminho de Sodré (1998), acreditamos que a
resistência que caracteriza o samba não se limita à simples oposição à cultura dominante,
sendo também ―um movimento de continuidade e afirmação de valores culturais negros‖116.
Por se tratar de um movimento de resistência e representação de valores negros, a elite
brasileira evitava a difusão do samba pelas rádios, com medo de que a imagem do Brasil no
exterior fosse construída a partir de elementos negros. Entretanto, ainda na década de 1920,

114
VELLOSO, Mônica Pimenta. As Tias Baianas tomam conta do pedaço – espaço e identidade cultural no Rio
de Janeiro. Este artigo foi desenvolvido como parte de um projeto de pesquisa financiado pela ―Fundação Carlos
Chagas‖ (SP) durante o ano de 1989. Disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/75.pdf, acessado em 12
mai. 2006, p. 08.
115
TINHORÃO, J. R. op. cit. 1998, p. 276.
116
SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998, p. 56.
59

impulsionada pela onda nacionalista que banhava os meios políticos e intelectuais, a indústria
fonográfica passou a produzir discos do gênero os quais foram bastante consumidos pela
classe média nacional.
A presença deste novo setor da sociedade na indústria do samba fez com que este fosse
sofrendo algumas alterações de forma a enquadrar-se em seu gosto. Com isso, as letras foram
se tornando mais sofisticadas, tendo em vista que muitos jovens universitários de classe média
passaram a compor sambas e seu ritmo foi perdendo os traços de maxixe e ganhando arranjos
mais ―sofisticados‖ vindos das jazz-bands norte-americanas.
Sobre a resistência da elite nacional na aceitação do samba enquanto gênero musical de
qualidade, Haroldo Barbosa e Janet de Almeida compuseram, em 1956, a canção ―Pra que
discutir com Madame‖ (anexo p. 103). Na canção, o enunciador reporta, por meio do discurso
indireto, os argumentos dados pela ―madame‖ para a extinção do samba. Segundo o que
enunciador reporta do discurso da ―madame‖, ―a raça não melhora/ (...) Por causa do samba‖,
ainda diz que o samba tem ―mistura de raça, mistura de cor /(...) é música barata/ sem nenhum
valor‖. Diante destes versos podemos reconhecer a construção de um ethos elitista tanto pelo
termo ―madame‖ quanto pelo teor ideológico de supremacia branca neles expresso, que
caracterizou o pensamento da elite brasileira até meados de 1930.
No refrão, que segue a primeira estrofe, o enunciador se mostra obedecer ao gosto da
―madame‖, ―Vamos acabar com o samba/ Madame não gosta que ninguém sambe/ Vive
dizendo que o samba é vexame/ Pra que discutir com Madame‖, entretanto, na estrofe
seguinte ao refrão, o enunciador se mostra irônico ao descrever um carnaval ao gosto da elite:
―No carnaval que vem também com o povo/ Meu bloco de morro vai cantar ópera/ E na
avenida entre mil apertos/ Vocês vão ver gente cantando concerto (...)‖.
A letra da canção acima sucintamente analisada, além de materializar o discurso da
elite brasileira com relação ao samba no início do século XX, comprova também o valor de
crônica da sociedade observado por DaMatta (1993). A ―madame‖ referida na canção é
construída a partir de enunciados bastante enunciáveis na época, que refletem uma dada
posição enunciativa de quem diz do interior de uma determinada classe social117. Entretanto,

117
Enunciados ditos por Magdala da Gama de Oliveira, crítica de rádio, que assinou uma coluna do jornal Diário
de Notícias por muitos anos. Tratando-se de um jornal de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro,
Magdala ou Mag, como assinava sua coluna, tornou-se famosa pelos intensos ataques ao samba, ataques muitas
vezes calcados no preconceito e sem o menor critério técnico .
60

apesar da não aceitação do novo ritmo pela elite, o samba, na década de 1930, foi o gênero
mais gravado, correspondendo a 52% das composições prensadas, mas era ainda restrito à
cidade do Rio de Janeiro ainda não tendo um alcance nacional. Em São Paulo, por exemplo,
os ritmos regionais, principalmente o sertanejo, eram mais consumidos que o samba.
Ainda na década de 1930, o governo Vargas, e sua tentativa de controle das massas,
cria, em 1931, um departamento para controlar os meios de comunicação, o Departamento
Oficial de Propaganda (DOP), sendo substituído em 1934 pelo Departamento de Propaganda e
Difusão Cultura (DPDC) e em 1939 pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), nas
palavras de Cunha,

Este órgão supervisionava os mais variados instrumentos de comunicação de massa e se


encarregava da produção e divulgação do noticiário oficial. Suas seções — propaganda,
radiodifusão, cinema e teatro, turismo, imprensa e serviços auxiliares — demonstram
bem o alto grau de intervenção do Estado nos processos de comunicação social. Para
Nelson Jahr Garcia118, o objetivo imediato da propaganda durante o Estado Novo (que
seria controlada principalmente através do DIP) era reproduzir a subordinação ao Estado
e, indiretamente, aos interesses do capital por aquele assumidos119.

O DIP passa então a estabelecer regras e medidas de conduta para o samba,


―sugerindo‖ temas como a exaltação do trabalho e a grandiosidade da pátria. O Departamento
organizava também, concursos de rádio, incentivando os compositores a produzirem sambas
com as temáticas que sustentavam a ideologia estado-novista. Ainda segundo Cunha,

―Getúlio Vargas, juntamente com o Departamento de Informação (sic) e Propaganda


(DIP), conseguirá de certa forma utilizar o rádio e os sambas para ‗educar‘ e disciplinar
os consumidores desse tipo de música. Isso se dará através da censura, dos sambas
celebrando o trabalho disciplinado, do nacionalismo ufanista das canções de exaltação,

118
Garcia, N. J. O Estado Novo: ideologia e propaganda política. São Paulo, Loyola, 1982.
119
CUNHA, Fabiana Lopes da. Negócio ou ócio? O samba, a malandragem e a política trabalhista de Vargas.
Este artigo é baseado em partes da dissertação de mestrado Da Marginalidade ao Estrelato: O Samba e a
Construção da Nacionalidade(1917-1945) defendida na Universidade de São Paulo (USP ) sob a orientação do
Prof. Dr. Nicolau Sevcenko. Disponível em, acessado em 23 mai. 2006, p. 08.
61

dos grandes concertos promovidos pelo Estado e por Villa-Lobos nos estádios de futebol
e, em última instância, através dos concursos carnavalescos‖120.

Porém, antes mesmo da criação do DIP, compositores de classe média, como Mário
Lago, Noel Rosa e Ari Barroso, já se mostravam preocupados em adotar novas temáticas,
principalmente as de cunho ufanista, a fim de que o samba se tornasse mais aceito
nacionalmente.
No sentido de ―encaixar‖ o samba nos modelos impostos pelo Estado Novo, Ari
Barroso lança, em 1939, um novo tipo de samba, o samba-exaltação intitulado ―Aquarela do
Brasil‖ que ganhou concurso promovido pelo DIP daquele ano. É interessante observar que
além da temática ufanista, a musicalidade da canção se distancia dos arranjos dos sambas da
época. É como se o samba, vestindo seu traje de gala para falar da ―grandiosidade do país‖,
dispensaria instrumentos regionais como pandeiros e reco-recos, adotando uma roupagem de
big-band norte americana, com o arranjo tendo dedos do grande maestro Radamés Gnattali. A
canção torna-se então, símbolo do Brasil no exterior.
No mesmo ano, Carmem Miranda faz sua primeira viagem aos Estados Unidos com o
propósito de mostrar ao Tio Sam o que é que a baiana tem. Retornando ao Brasil no ano
seguinte por um curto período, já com propostas para cantar na Broadway e filmar em
Hollywood, Carmem se apresenta no famoso Cassino da Urca, no Rio de Janeiro, onde é
vaiada. Iniciando sua apresentação com um ―Good night, my people!‖ e tendo como primeira
música de seu repertório ―South American Way‖, num período em que a valorização do que é
nacional era evidente, as vaias foram inevitáveis. A ―pequena notável‖ voltou americanizada
ou, como diziam na época, ―americanalhada‖.
O que ocorreu com Carmem Miranda evidencia (ou escancara) as transformações que
ocorreram com o samba de modo que este se descaracterizou na tentativa de alcançar o gosto
da elite e do exterior. Isso gerou um certo estranhamento e um sentimento de
―desidentificação‖ com o que já era parte da identidade do brasileiro, o que resultou em vaias
à ―Brazilian Bombshell‖ no Cassino da Urca.
Na contramão da universalização e conseqüente descaracterização do samba, Noel
Rosa, Francisco Alves e Ismael Silva já em 1933, compõem ―Não tem tradução‖ (anexo p.

120
Idem, p. 07.
62

103) criticando os modismos estrangeiros e, ao mesmo tempo, estampando no samba uma


identidade estritamente brasileira por meio da língua e da figura emblemática do malandro,
como podemos observar nos versos abaixo:

A gíria que o nosso morro criou


Bem cedo a cidade aceitou e usou
(...)
Tudo aquilo que o malandro pronuncia
Com voz macia é brasileiro, já passou de português
Amor lá no morro é amor pra chuchu
As rimas do samba não são I love you

Carmem também na tentativa de apagar esta cicatriz estrangeira que lhe foi impressa,
canta no espetáculo seguinte à apresentação da Urca, a canção de Vicente Paiva e Luís
Peixoto, intitulada ―Disseram que voltei americanizada‖ (anexo p. 103). Nela, o enunciador
constrói um ethos defensivo. Na primeira estrofe, em discurso indireto (―disseram que ...‖), o
enunciador retoma enunciados que teriam sido produzidos num momento anterior a
enunciação, denotando possíveis críticas feitas a este enunciador como ―voltei
americanizada‖, ―estou muito rica‖, ―não suporto mais o breque de um pandeiro‖, ―E fico
arrepiada ouvindo uma cuíca‖, ―já não tenho molho, ritmo, nem nada‖ e ―E dos balangandãs/
Já nem existe mais nenhum‖. Na segunda estrofe, evidenciando este ethos defensivo, o
enunciador utiliza símbolos nacionais a fim de legitimar sua brasilidade, como podemos
observar em:

Eu que nasci com o samba


E vivo no sereno
Tocando a noite inteira a velha batucada
Nas rodas de malandro, minhas preferidas
Digo mesmo ‘eu te amo’ e nunca ‘I love you‘
Enquanto houver Brasil na hora da comida
Eu sou do camarão, ensopadinho com chuchu

Notamos, nos sintagmas destacados, a materialização de um discurso marcadamente


―malandro‖ como é o caso de ―nascer com o samba‖, que será mais bem explorado nos
parágrafos seguintes, ―viver no sereno‖ e ―tocar a noite inteira‖ que retomam o que Da Matta
(1990) classificaria como do âmbito da rua, ou seja, da malandragem, embricados com
enunciados nacionalistas como ―Digo mesmo ‗eu te amo‘ e nunca ‗I love you‘‖ e ―Eu sou do
camarão, ensopadinho com chuchu‖, nos quais o nacionalismo é trazido por meio da língua e
63

da culinária, traços bastante comuns na construção de uma identidade nacional. Tal


imbricamento nos mostra como a malandragem entra na construção de uma identidade
brasileira.
A nacionalização do samba seguida da explosão do ritmo pelo mundo, influenciadas
pela política estado-novista de consolidação de uma identidade nacional e pela política norte-
americana de boa-vizinhança, fez com que este fosse bastante alterado, distanciando-se, assim,
de suas origens afro-descendentes. Por esse motivo acreditamos que o samba deixou de ser um
gênero de resistência da cultura negra ou, mais amplamente, das classes sociais menos
favorecidas, pois este já estava descaracterizado como tal, era do gosto de todos, não
incomodava mais.
É justamente a partir desse período que se nota uma sensível diminuição na produção
de sambas sobre o malandro ou pelo menos, a diminuição no consumo de canções com esta
temática. Durante o período posterior a década de 1940, as canções deste gênero não mais se
destacavam em concursos ou nos carnavais, encontrando amparo na voz de poucos cantores e
compositores, como é o caso de Moreira da Silva, grande representante da malandragem,
Bezerra da Silva, na década de 1970 e Zeca Pagodinho já na década de 1990.
Acreditamos que, pelo fato de a relação samba/ malandragem ser tão forte desde a
origem de ambos, existiu um intenso combate sobre ela. Como se pôde perceber nos itens 3.1.
Algumas discursividades sobre o malandro e 3.3. O Samba como lugar da Malandragem, que
tentaram mostrar especificamente o imbricamento do GD samba com a FD da malandragem,
existe um ponto comum, principalmente nas três primeiras décadas do século XX, entre a
produção de discursos do/sobre o samba e do/sobre o malandro. É por meio desse ponto
comum que justificamos nossa suposição de que a formação discursiva da malandragem está
intimamente ligada ao gênero discursivo samba, ou seja, o gênero samba seleciona/ é
selecionado pela formação discursiva da malandragem, como pudemos comprovar por meio
desta breve retomada histórica.
Nossa suposição pode ser confirmada através da canção ―Nasci no samba‖ (anexo p. 104)
de Benedito Lacerda, composta em 1932, pois materializa o discurso da intersecção dos
dizeres do/sobre o samba e do/sobre o malandro, bastante difundido na época. Na canção, os
termos ―malandragem‖ e ―samba‖ apresentam sentidos bem próximos, quase que
complementares/ conseqüentes: ―Nasci no samba/ Vivo na malandragem/ (...)/ nele [no
64

samba] hei de morrer‖, criando um ciclo quase que natural e incorruptível, como comprovam
os versos que seguem: ―E não há riqueza que me faça/ Enfrentar o batedor/ Pois quem é rico
nunca foi trabalhador/ (e é por isso que eu vivo na malandragem)‖.

4.4. Deslizamentos: um novo gênero, novos efeitos de sentido

Durante as análises realizadas no item 3.2. deste trabalho, percebemos que as canções
que traziam enunciados acerca da malandragem inseriam-se, em sua maioria, no gênero
samba. Entretanto, com o passar do tempo e devido aos fatores já mencionados anteriormente,
a veiculação de enunciados sobre a malandragem diminuiu sensivelmente, ressurgindo de
maneira bastante significativa num outro gênero, o rap. Na tentativa de entendermos tal
deslizamento, optamos por trazer uma breve retomada de fatos que contribuíram para a
consolidação deste gênero.
Movimento surgido nos subúrbios de Nova Iorque no final dos anos 60, o Hip Hop foi
fortemente incorporado à causa negra, tomando como ícones as figuras de Martin Luther King
e Malcom X. Neste primeiro momento, o movimento era caracterizado pela violência com que
os jovens, organizados em gangues segundo suas etnias ou ideais, se confrontavam e
interagiam com os outros segmentos da sociedade. Foi a partir de 1968, com a influência do
DJ jamaicano Afrika Bambaataa, que o movimento se afirma enquanto resistência cultural,
transferindo a violência dos jovens para diferentes formas de expressão artística. Afrika
Bambaataa foi responsável também pela criação da organização pacifista Zulu Nation presente
em vários países inclusive no Brasil.
O Hip Hop (do inglês hip, saltar e hop, movimentar os quadris) é composto por quatro
elementos: o DJ (disc-jóquei) compondo a parte rítmica do movimento, o MC (mestre de
cerimônia), responsável pela voz e pela letra das canções, esses dois elementos compõem a
parte musical – o Rap – que é seguida pelo Break, representante da dança e o Grafite, a arte
gráfica dos muros. Apesar do Hip Hop ser um movimento que abrange diferentes formas de
expressão, neste trabalho focaremos apenas o rap, por ser este o representante musical do
movimento e não pelo seu grau de importância ou significância dentro do Hip Hop.
Como aponta Jovino (2005), o rap mescla tecnologia e oralidade. A tecnologia vem
das pick-ups dos DJs, nas quais estes fazem seus arranjos musicais e a oralidade é
65

característica dos MCs pois estes dizem (e não cantam) suas letras, aproximando-se bastante
da fala. Tal oralidade, segundo Oliveira (2002), reflete a herança cultural africana presente no
movimento, herança cultivada na palavra dita e na memória.
No Brasil, o Hip Hop, juntamente com o Funk e o Soul, começou a ser consumido a
partir de meados dos anos de 1970. O primeiro contato dos ritmos de periferia estadunidense
com a periferia brasileira, em particular a paulistana, que vai até o início da década de 1980, é
caracterizado mais pela assimilação do movimento yankee do que pela produção de material
nacional. Durante este período, os encontros para se escutar e discutir o movimento era
realizado nos fundos de quintais, como aponta Azevedo & Silva, 1999, o que faz surgir outra
semelhança entre o rap e o samba, lembrando que o samba teve como berço as casas das tias
baianas, como já dissemos anteriormente.
O movimento Hip Hop saiu dos fundos de quintais em direção às ruas no início da
década de 1980 e teve como marco geográfico o centro da cidade de São Paulo, como
apontam Azevedo & Silva,

Alguns dos protagonistas do hip hop, que hoje definem as suas práticas como
Movimento Cultural de Rua, já podiam ser notados pelas ruas centrais da cidade, logo
nos primeiros anos da década de 80, como Nelson triunfo, Marcelinho, Thaíde, Hélio,
Cícero, Marcelo Pinguinha, Luizinho, Dj Hum. Todos tornavam a rua território para
viver, se divertir, criar, encontrar os manos, sobreviver e fazer arte. Ao seu modo,
seguiram reinventando a tradição dos pretos paulistanos de usar os espaços públicos
como território legítimo para as manifestações musicais‖121

Nos anos de 1990, o rap inicia sua busca por espaço na grande mídia. É a partir dessa
época que a indústria fonográfica começa a colocar no mercado LPs do gênero 122. Com isso,
outras camadas da sociedade começam a consumir os elementos do Hip Hop, em especial o
Rap. Segundo Azevedo, 1999, foi com a execução das canções ―Fim de semana no parque‖ e
―Homem na estrada‖ pelas grandes rádios de São Paulo com veiculação nacional, em 1993,
que jovens brancos de classe média passaram a ouvir rap.
A absorção do rap pela classe média é retratada na canção ―As meninas dos jardins‖
(anexo p. 104), composta por Zeca Baleiro, 2002. Na canção, o enunciador afirma: ―As
meninas dos Jardins gostam de rap/ as meninas dos Jardins gostam de rap/ as meninas dos

121
AZEVEDO & SILVA, 1999 apud SIQUEIRA, Cristiano T. de, Construção de saberes, criação de fazeres:
educação de jovens no hip hop de São Carlos. São Carlos: UFSCar, 2006, p. 31.
122
Racionais MC‘s em 1988, Pavilhão 9 em 1990, Xis, Thaide e DJ Hum em 1992 e Planet hemp em 1993.
66

Jardins gostam de happy end‖. Com tal afirmação, o enunciador remonta um paradoxo da
classe média, aqui caracterizada pela especificação ―dos Jardins‖, remetendo a uma região
nobre da cidade de São Paulo. A heterogeneidade presente na posição sujeito ―meninas dos
Jardins‖ é explicitada pela utilização de um complemento verbal que remete a formações
discursivas distintas. O primeiro, ―rap‖, remete a uma FD de resistência à sociedade burguesa,
enquanto que o segundo, ―happy end‖ [final feliz], remete uma FD romântico-burguesa.
A incorporação do rap pela classe média resultou numa intensificação da divulgação
do gênero pela mídia. Como aponta Siqueira, 2006, o rap passa a compor trilha sonora de
filmes como ―O Invasor‖ de 2001, surgem programas de TV como o YO! MTV e rádios
especializadas, a 105,1 MHz de São Paulo. Interpretamos esta incorporação como um
mecanismo da classe dominante de absorver a resistência de modo a descaracterizá-la como
tal.
Quanto às letras dos raps, estas retratam, geralmente, o cotidiano da juventude pobre e
negra, consolidando-se como lugar de denúncia dos problemas sociais vivenciados por estes
jovens. Na busca por identificação e legitimidade, os rappers inserem em suas letras os nomes
dos bairros, favelas ou regiões onde moram. Com isso, além do estabelecimento de um lugar
geográfico, estabelece-se também um lugar discursivo no qual o sujeito se insere para
enunciar. Pela simples localização geográfica do enunciador é possível construir um ethos
deste. Um enunciador que se estabelece (geograficamente) no Morumbi ou no Leblon constrói
um ethos bastante distinto de um enunciador que se insere numa posição sujeito de morador
da Vila Brasilândia ou do Andaraí123. Richard Shusterman ressalta que:

O hip hop realmente trata de temas universais como a injustiça e a opressão, mas ele se
situa orgulhosamente como uma ‗música de gueto‘, adotando como temática suas raízes
e seu compromisso com o gueto negro urbano e sua cultura. A maioria dos rappers
define seu domínio com termos bem precisos, frequentemente não apenas citando a
cidade como também o bairro de sua origem, como Compton, Harlem, Brooklin ou
Bronx. Mesmo quando ganha uma dimensão internacional, o rap continua
orgulhosamente local; encontramos no rap francês, por exemplo, a mesma precisão de
origem de bairros e a mesma atenção voltada a problemas exclusivamente locais124.

123
Os bairros Morumbi e Leblon, o primeiro da cidade de São Paulo, o segundo do Rio de Janeiro, são
caracterizados por habitantes de alto poder aquisitivo, enquanto que Vila Brasilândia e Andaraí são regiões
habitadas por pessoas de baixo poder aquisitivo, respectivamente em São Paulo e no Rio de Janeiro.
124
Shusterman, 1998, p. 153 apud JOVINO, Ione da Silva. Escola: as minas e os manos têm a palavra. São
Carlos: UFSCar, 2005, p. 06.
67

Essa característica também pode ser notada em alguns sambas nos quais podemos
observar também a necessidade de demarcação geográfica. Essa questão tornou-se bastante
evidente durante a famosa discussão entre os compositores Wilson Batista e Noel Rosa, na
qual o segundo era criticado por fazer samba sendo ele oriundo de um bairro de classe média
(Vila Isabel, no Rio de Janeiro).
Outra característica das letras de rap que encontram um ponto comum no samba é o
improviso. Segundo Andrade, ―o mestre de cerimônia (MC) criava as letras da música no
instante das festas. Tal improvisação na construção musical transferia as atenções dos jovens
das gangues, transformando o confronto armado em confronto artístico125‖, o mesmo ocorria
nas rodas de samba das décadas iniciais do século passado quando a autoria ainda não era algo
a ser reivindicado e as composições eram coletivas.
Seguindo um trajeto semelhante ao do samba, o rap, ao chegar ao Brasil, foi bastante
criticado e desvalorizado, sendo caracterizado como violento e representante das classes mais
pobres. É através dessas semelhanças apresentadas neste breve panorama acerca do samba e
do rap, tendo sido ambos gerados nas camadas economicamente menos favorecidas da
população, e servindo, ainda que apenas inicialmente, como lugar de resistência e de
representação de classes marginalizadas, que acreditamos ser viável se pensar no rap como um
novo gênero ao qual a FD da malandragem se incorporou. Para justificar nossa hipótese,
analisaremos algumas das canções gravadas pelo rapper Marcelo D2, desde o lançamento de
seu primeiro álbum solo, em 1998, pois a partir deste momento, o deslizamento da FD da
malandragem do samba para o rap torna-se mais evidente, assim como o que podemos chamar
de parentesco entre os dois gêneros.
A primeira canção a ser analisada, intitulada ―1967‖ (anexo p. 104) e lançada em 1998,
evidencia um fenômeno bastante comum nas letras de rap, a construção de um ethos para o
enunciador que se aproxima da imagem discursiva de si construída pelo cantor. Nesta canção,
bem como na maioria das outras canções que serão analisadas, o enunciador é construído a
partir de enunciados que constroem uma imagem com a qual o cantor se identifica,
materializando, da forma mais explícita possível, o ethos que se tenta construir na canção. Nos
versos iniciais da composição

125
ANDRADE, 1996, apud SIQUEIRA, Cristiano T. de. Op. cit. 2006, p. 27.
68

1967, o mundo começou


Pelo menos pra mim
E a minha história reduzida
É mais ou menos assim:

o pronome pessoal oblíquo tônico mim e o pronome possessivo minha não se referem apenas
ao enunciador, mas também a essa imagem construída discursivamente do compositor e cantor
Marcelo D2 fazendo com que o ethos do enunciador tenha voz e corpo da forma mais evidente
que isso possa acontecer.
Nos versos que seguem, o enunciador remonta sua história citando nomes de lugares e
de pessoas. É por meio destes elementos e da narração de alguns fatos que o enunciador
constrói sua imagem, uma imagem específica, particularizada, porém metonímica. A partir
dessa imagem com nome, idade e endereço, consegue-se alcançar os discursos que compõem
a posição-sujeito do rapper, do morador da periferia. A construção de tal imagem pode ser
percebida nos versos que seguem:

Nascido em São Cristóvão


Morador de Madureira
Desde pequeno acostumado a
subir ladeira

Os lugares mencionados na canção fazem parte da memória coletiva do brasileiro


como sendo lugares da cidade do Rio de Janeiro em que a população vive em condições
precárias. A utilização de lugares geográficos para compor o ethos é um recurso bastante
comum nos raps de várias regiões do mundo como já dissemos anteriormente. Através deste
recurso o enunciador não somente se insere num lugar geográfico, mas também num lugar
discursivo de resistência ao modelo socioeconômico vigente. Compõe também este ethos, um
conflito entre agressividade e pacificidade explicitada nos versos

Se tu passasse em minha frente


era melhor tu sair fora
(...)
Lembra do Cassino Bangu
De vez em quando eu ia lá
Curtir um funk, ver a mulherada rebolar
Kool and the gang, gap band,
outro mestre, James Brown
Era só alegria
69

Não tinha pau

Ao mesmo tempo em que o enunciador se insere numa posição-sujeito de agressividade


aconselhando seu co-enunciador a não cruzar seu caminho, insere-se também numa posição-
sujeito pacifista ao descrever um baile funk ―era só alegria/ não tinha pau‖. A canção
evidencia também a noção de família produzida nas classes mais baixas que vai além dos
laços consangüíneos. Como podemos observar nos versos que seguem, a criação dos filhos
não é responsabilidade apenas dos familiares, mas de todos os integrantes da comunidade (―o
pessoal da tramela‖):

Carnaval de rua perigoso e divertido


Mas passei por tudo isso
Entre mortos e feridos
Graças ao meu pai
O pessoal da tramela
Sérgio Cabrito meu padrinho
Não dava trégua

Outras características que constroem este ethos são a pichação, o consumo de maconha
(baforada) e a execução de pequenos furtos que, como justifica o enunciador, não são pecado.

De vez em quando no piche


Outras na baforada
Vida de moleque sempre sangue bom
Calote no ônibus
Pra ir à praia no verão
Pra ficar um pouco mais
Roubava no supermercado, foda-se
Pra mim isso nunca foi pecado

A canção, além de construir um ethos de rapper, podemos pensar aqui, talvez, uma
atualização de Lenço no Pescoço, de Wilson Batista, composta em 1933, apresenta-se como
metatexto, utilizando o rap para falar de rap.
Nos versos que seguem, o enunciador enumera elementos constituintes do movimento
Hip Hop ressaltando a função social do movimento:

skate na veia, só quem tem


sabe como é que é a sensação
e o poder de dar um ollie-air
(...)
70

Grandmaster Flash, Afrika Bambaata


Planet Rock,
Rap, break, graffiti
Chegou o hip hop
Cantando a vida
Mas vista de um outro lado
Não é apologia cumpadi
Não adianta ficar bolado
Entenda se a minha rima
Não te faz rir
é som das ruas fluindo
não adianta, sai daqui

No trecho acima, o enunciador fala da íntima relação que apresenta com o skate e da
sensação gerada por realizar determinadas manobras. Além disso, cita ícones do hip hop,
como Grandmaster Flash e Afrika Bambaata, precursores do movimento e o álbum ―Planet
Rock – Afrika Bambaataa and Soulsonic Force‖, lançado em 1986 agrupando as primeiras
produções de rap dispersas em singles. Em seguida, enuncia sobre o movimento hip hop
propriamente dito, suas vertentes artísticas e sua função social, a de denúncia da miséria e da
exclusão por meio da voz do miserável e do excluído (―Cantando a vida/ mas vista de um
outro lado‖). Nos últimos versos do recorte, podemos observar a construção do co-
enunciador, estabelecido ―do lado‖ em oposição ao ―outro lado‖ ocupado pelo enunciador.
―No lado‖ em que se insere o co-enunciador, as rimas feitas pelo rapper não são agradáveis,
não fazem rir. Elas vêm ―do outro lado‖, da rua, em oposição à casa, aos incluídos.
É ainda interessante destacar a presença do diálogo desta canção com outra, o samba
―O samba da minha terra‖ (anexo p. 105) de Dorival Caymmi. Este diálogo evidencia um
entrosamento, uma familiaridade entre o samba e o rap, fazendo com que a canção de Caymmi
componha a memória discursiva do enunciador.

―Sempre ligado, sempre sabendo o que quer


Sempre bom da cabeça, nunca doente do pé‖ (1967)

―Quem não gosta de samba


Bom sujeito não é
É ruim da cabeça
Ou doente do pé‖ (O samba da minha terra)

A partir da análise dos versos que promovem este diálogo, podemos observar, por
meio de um simples raciocínio tautológico, que quem é bom da cabeça e são do pé, é um bom
71

sujeito. Diante disso, o enunciador do rap constrói uma imagem de si de bom sujeito,
informado (―sempre ligado‖) e decidido (―sabendo o que quer‖).
A presença do samba na construção de um ethos rapper, como mostrado acima, fica
mais evidente na canção ―Samba de Primeira‖ (anexo p. 106) de Rodrigo Nuts e Marcelo D2,
que apesar do título, pode ser classificada melodicamente como um rap. Diante disso,
podemos inferir que para o enunciador um samba bom, ―de primeira‖ deva ter a melodia do
rap. Importante ressaltar, neste momento, que nosso objeto é redimensionado, de forma a nos
preocuparmos, neste momento, com o que Tatit, 2004, propõem como gesto cancional, ou
seja, a canção em sua materialidade intersemiótica e não apenas o texto verbal.
No primeiro verso da canção, o enunciador diz:

Eu entro no samba e não deixo cair


sem vacilar sem me exibir
só vim mostrar o que aprendi

―Entrar no samba‖ nos remete ao samba de roda, ao qual se podia participar, interferir.
Nesta vertente do samba, ele é geralmente composto no momento de sua execução, aceitando
contribuições (tanto na letra quanto na melodia) dos componentes da roda. Esta modalidade
do samba é uma das mais antigas e das que mais se aproximam da criação do gênero. Em ―e
não deixo cair‖ o enunciador se iguala aos demais componentes da roda, pois não deixa a
canção parar, dá continuidade a ela fazendo tudo isso com humildade, sem exibicionismo. A
partir destes versos iniciais podemos depreender uma certa familiaridade entre o enunciador
rapper (caracterizado pela melodia e pela materialidade auditiva do enunciado) e o gênero
samba.
Nos versos seguintes o enunciador explica seu jeito de fazer samba:

Não toco como antigamente


com uma banda de samba
Hoje a coisa é diferente
é o DJ e o sample
No pit-don-don na minha MPC
é só vinil cumpadi pra confundir você
72

Ele substitui a banda de samba pelo DJ e o sample126, introduz também a bateria


eletrônica (MPC) que produz a batida característica do rap, materializada lingüisticamente
pela onomatopéia ―pit-don-don‖ e o vinil, que contém os samples e é utilizado também para
fazer scratches [arranhões], que são efeitos sonoros do rap. Essas alterações todas feitas no
samba são para confundir o co-enunciador, já que o enunciador não nega que faz samba, só o
faz diferentemente. A confusão ocorre também pela não correspondência da letra (que diz ser
um samba) e a melodia (um rap, inclusive cantado como tal). Neste momento da canção, há
uma pausa melódica e em seguida há a inserção da cuíca do pandeiro e do cavaquinho na
construção melódica. Essa brusca e inesperada alteração sustenta os seguintes versos:

Nã nã nã nã nã não
Acho que já deu pra entender
É Hip Hop com Samba

É hip hop que vem do Rio de Janeiro


uma batida de funk e o DJ no pandeiro

Nestes versos, o enunciador desfaz a confusão provocada nos versos anteriores,


explicitando a fusão dos gêneros. Tal fusão é justificada pelo fato deste rap ser produzido no
Rio de Janeiro, possuindo a batida funk e o Dj, responsável pela construção melódica do rap,
tocando pandeiro, instrumento característico do samba. Nos versos seguintes, o enunciador
reforça o caráter de resistência do rap, caracterizado pelas ―batidas cruas‖ e pela letra que vem
―direto das ruas‖, e instaura lugares distintos para o enunciador (lado de cá) e o co-enunciador
(lado de lá):

Essa é pra você que vem do lado de lá


Tentando acabar com a nossa cultura popular
Do lado de cá sabe que não dá
então manda um loop pra mim (sic) cantar
Eu não preciso de muito pra fazer meu samba
Eu sou da nova geração e minha ginga é de bamba
A batida é crua e você vai a lua e as letras mermão
vêm direto das ruas
Novas batidas recicladas eu vejo no sample
E o groupie da minha raiz eu sinto no samba
De gente bamba
Nascido e criado no Andaraí
Que bateu lá no hip hop e apareceu por aqui

126
Do inglês, amostra. No contexto do rap, o sample seria um fragmento de música utilizado para a produção de
uma outra música através da mixagem.
73

Depois de localizar espacial e discursivamente enunciador e co-enunciador, o


enunciador volta a falar da composição melódica do samba da ―nova geração‖, citando alguns
dos mecanismos utilizados para se compor um rap como o loop (padrão rítmico repetitivo) e o
sample. A utilização do sintagma nominal ―nova geração‖ indica um grau de parentesco entre
o que era feito ―com uma banda de samba‖ e o que é feito na MPC, ou seja, entre o samba e o
rap, e é reforçado pela afirmação do enunciador de que tem o samba em sua raiz, constituindo,
portanto seu suporte, sua base. Entretanto, não é qualquer samba que compõe sua formação, é
o samba de bamba, dos grandes entendedores do gênero, samba de morro (Andaraí) que agora
é influenciado pelo hip hop.
A canção segue:

Dos lugares de onde andei


eu vou te contar
Quando eu contar Iaia
você vai se pasmar
Quebrando pedra eu levo minha vida em frente
E nos terreiros dessa vida
cantando me faço presente
Falando,cantando,gritando situações dramáticas
Eu sigo meu rumo sem medo
de ofender a gramática
O dialeto é nato
com o microfone na mão

No trecho acima, o enunciador dialoga com um samba de Serginho Meriti e Beto Sem
Braço, intitulado ―Quando eu contar‖ (anexo p. 106). No samba, o enunciador se mostra
indignado com a violência e a injustiça que vê tanto no morro quanto na cidade, e por isso, vai
para um terreiro de macumba, pedir proteção a seu Orixá e fechar seu corpo protegendo-se,
assim, de tudo o que viu.
No rap, o enunciador se utiliza desta intertextualidade para justificar mais uma vez o
papel social de denúncia exercido pelo rap e legitima sua voz através da metáfora ―Quebrando
pedra eu levo minha vida em frente‖, construindo um ethos sofredor, com legitimidade para
fazer denúncias. Estas feitas das mais variadas formas possíveis ―Falando, cantando, gritando
situações dramáticas‖ e por meio de seu ―dialeto nato‖, ―sem medo de ofender a gramática‖. É
interessante a colocação do enunciador com relação à gramática se a considerarmos um
74

instrumento de poder, daquilo que regula o como deve ser dito, tendo isso em vista e ainda
ressaltando o deficiente sistema educacional brasileiro, podemos inferir que este instrumento
de poder, ao prescrever como deve ser dito, prescreve também quem diz. Portanto, a partir do
rompimento com a gramática (entendida aqui como norma), o enunciador adquire liberdade
para falar.
A canção encaminha-se para o encerramento com o enunciador justificando a junção
do hip hop com o samba ―Tem samba no meu hip hop/ porque eu sou brasileiro‖. Tal
justificativa tem como suporte uma memória de identidade do brasileiro ligada ao samba.
Memória esta que foi gerada a partir da década de 1930, como já dissemos anteriormente.
Já na canção ―Batucada‖ (anexo p. 107), de Mário Caldato Jr., outra memória é
resgatada. Recupera-se, nela, a tentativa de silenciamento a qual o samba sofreu. Nesse
sentido, a canção é estruturada em dois momentos, no primeiro, a canção tem como base
melódica o samba com alguns elementos do rap e a letra, que segue, é cantada em coro por
mulheres.

Samba, a gente não perde o prazer de cantar


E fazem de tudo pra silenciar
A batucada dos nossos tantãs
No seu ecoar, o samba se refez
Seu canto se faz reluzir
Podemos sorrir outra vez
Samba, eterno delírio do compositor
Que nasce da alma, sem pele, sem cor
Com simplicidade, não sendo fulgaz
Fazendo da nossa alegria, seu habitat natural
O samba floresce do fundo do nosso quintal

Os versos iniciais remontam as tentativas do governo e das classes mais privilegiadas


de silenciar o samba tanto como expressão artística quanto como movimento de resistência
política no início do século passado. O enunciador segue falando sobre o ressurgimento do
samba e da legitimidade que este devolve a população representada por ele, permitindo que
sorriam outra vez o que, fora do samba, não era autorizado.
O enunciador traz também a questão étnica ligada ao samba. Se num primeiro
momento o samba era intimamente ligado ao negro, num segundo momento ele se apresenta
―branco demais na poesia/ negro demais no coração‖ como disseram Baden Powell e Vinícius
de Moraes no ―Samba da Benção‖, e na atualidade o samba ―nasce da alma, sem pele, sem
75

cor‖, já desligado da questão étnica, entretanto ainda arraigado às classes mais pobres da
sociedade ―O samba floresce do fundo do nosso quintal‖, como era desde os quintais das tias
baianas.
No segundo momento da canção, no qual a base melódica se desloca do samba para o
rap e os vocais femininos são substituídos pela voz de um homem, um novo enunciador se
instaura, o que antes era um enunciador coletivo (―O samba floresce do fundo do nosso
quintal‖) passa a um enunciador individual (―Do fundo do meu quintal/ faço esse som pra
você‖).
A partir deste momento o enunciador traz temáticas metalingüísticas, explicando como
este produz seu rap:

Do fundo do meu quintal


faço esse som pra você
Duas vitrolas, vinil e uma SP
estilo variado fazendo a estrutura balançar
cantando rap samba laiá laiá laiá
deixo a temperatura do recinto quente
com o microfone na mão
abalando tudo pela frente
eu entro no samba com meu hip-hop
o dj solta a base a mulata sacode

Podemos observar, no trecho acima, a construção de enunciados compostos por símbolos


lingüísticos e musicais que remetem tanto a uma memória do rap quanto a uma memória do
samba. A fim de ilustrar tal heterogeneidade, tomemos como exemplo o enunciado ―cantando
rap, samba, laiá laiá laia‖ que além de construir uma imagem de si como aquele que canta rap
e samba, o enunciador se utiliza de forma lúdica da vocalização comum no samba
executando-a no rap. Outro exemplo do mesmo recurso pode ser observado no enunciado ―o
DJ solta a base a mulata sacode‖, no qual o enunciador, a partir de uma causa oriunda do
movimento Hip Hop (―o DJ solta a base‖), produz um efeito cristalizado na memória coletiva
como típico do samba, ―a mulata sacode‖.
O enunciador ainda explicita uma característica tanto do samba quanto do rap, a
espontaneidade e o improviso, num tempo em que estes gêneros não sofriam pressão da
indústria fonográfica, como fica evidente nos versos que seguem:
76

não tenho o que rimar


eu mando um remendo
agora lembrei de uma boa que rima com samba
eu sou da nova geração e
minha ginga é de bamba

Na mesma estruturação rítmico-vocal da canção anterior, em ―Re-Batucada‖ (anexo p.


107), de 2003, o enunciador representado pelo coro feminino retoma a temática da canção
analisada anteriormente sobre a história do samba. Num segundo momento da canção, com a
mudança de enunciadores muda também a base rítmica da canção bem como seu conteúdo
temático. Sob uma base rítmica de rap, o enunciador individual representado pela voz
masculina constrói seu ethos inserindo-se no mesmo lugar discursivo que estabelece para seu
co-enunciador, através da alternância entre as designações ―a gente‖ e ―o povo‖ e da
utilização do léxico ―parceiro‖, como podemos observar abaixo:

O rei mandou a gente se ajudar


O rei mandou o povo se agilizar
O rei mandou a gente olhar prá frente
Na verdade parceiro o rei tá dentro da mente

Na estrofe seguinte, o enunciador reverencia os ―verdadeiros arquitetos da música


brasileira‖ pertencendo estes ao quintal ou à escola de samba (dois momentos distintos da
história do samba). É interessante ressaltar a última designação feita pelo enunciador sobre os
―arquitetos‖, ―poetas operários de segunda à segunda-feira‖. Por meio dela, o enunciador
explicita a questão do trabalho, retomando historicamente as políticas trabalhistas estado-
novistas responsáveis pelo apagamento da boemia e imposição do trabalho.

Muito respeito aos arquitetos da música brasileira


Os verdadeiro é (sic) aqueles que nunca tão de bobeira
Que no quintal ou na escola o samba é de primeira
Poeta operário de segunda à segunda-feira

Sobre esta canção ainda é relevante destacar a tentativa do enunciador de instaurar uma
nova identidade nacional, divulgada por meio da união do hip hop com o samba, como
podemos observar em:
77

Um carnaval diferente foi o que o rei mandou


(...)
Produto nacional de exportação do bom
Identidade nacional só prá quem tem o dom

O enunciador se utiliza de um símbolo já cristalizado como integrante da identidade


nacional, o carnaval, adicionando a este léxico o qualificador ―diferente‖. Desta forma, o
enunciador propõe uma atualização da identidade nacional e não um rompimento com o
antigo e a instauração de algo novo.
É possível notar nas canções analisadas um movimento bastante interessante realizado
pelo rap. Construído como um instrumento para os excluídos conquistarem um espaço na
sociedade, o rap, ao procurar meios de atingir uma maior visibilidade na grande mídia,
aproximou-se do samba, que já dispunha de prestigio e espaço na sociedade. Essa
aproximação proporcionou ao rap maior destaque e a aceitação pela classe média, o que já
vinha acontecendo há algum tempo, intensificou-se. Cabe, neste momento, retomarmos
algumas linhas de Bakhtin nas quais ele expõe as conseqüências dos deslizamentos entre GDs:

Quando há estilo, há gênero. Quando passamos o estilo de um gênero para outro,


não nos limitamos a modificar a ressonância deste estilo graças à sua inserção num
gênero que não lhe é próprio, destruímos e renovamos o próprio gênero 127.

Como pudemos observar pelas analises, os deslizamentos ocorridos do samba para o


rap produziram uma ressignificação destes GDs. Do mesmo modo que ocorreu com o samba,
o rap, principalmente o de Marcelo D2, passou a ser questionado por outros integrantes do
movimento e pelos consumidores do ritmo. A justificativa dos opositores ao novo estilo era de
que, com a fama, o MC se distanciara da periferia, não tendo mais como representá-la. A
partir deste fato, novas temáticas ganham visibilidade nas letras dos raps, sendo a humildade e
a ―volta às origens‖ as mais recorrentes. Esses novos discursos materializam-se nas letras de
Marcelo D2 como defesa aos ataques que vinha sofrendo. As canções ―Meu samba é assim‖
(anexo p. 108) e ―Malandragem (o filme)‖ (anexo p. 108), ambas do álbum lançado em 2006,
são exemplos de textos que fazem emergir estes novos discursos.
A primeira canção é iniciada com a pergunta ―Quem é que mistura o rap com samba?‖.
Uma pergunta retórica, pois o enunciador não espera resposta, uma vez que esta já é de

127
BAKHTIN, M. op. cit. 2000, p. 286.
78

conhecimento dos interlocutores, é o próprio enunciador quem mistura o rap com o samba. O
enunciador, na tentativa de construir um ethos mais enfático segue dizendo ―eu disse samba‖,
de um modo imperativo, elimina qualquer dúvida ou mal entendido que possa surgir em seu
co-enunciador. Em seguida o enunciador inicia a construção de seu samba aproximando
símbolos característicos de ambos os GDs. O rap é retomado pelo Dj, pelo toca discos e pela
marcação do compasso (4x4), elementos da construção composicional do gênero e por peças
características do vestuário de um hip hopper, a calça larga e o boné para o lado. Enquanto o
samba é retomado pelo tamborim e pela síncopa, como podemos observar no trecho abaixo:

E pega um Dj e um tamborim
Então vem comigo
Meu Samba é assim
Tá bom pra mim
Nos toca-discos e um tamborim
A calça é larga, o boné pr'o lado,
4x4, mas sincopado

É interessante a construção do último verso ―4x4, mas sincopado‖. Nele, podemos


notar, a partir do emprego da conjunção ―mas‖, a preferência do enunciador pela sincopa em
detrimento do compasso do rap.
Para efeitos ilustrativos, tomemos como exemplo um enunciado bastante divulgado há
alguns anos acerca da candidatura de Paulo Maluf ao governo do estado de São Paulo. No
enunciado ―Rouba, mas faz‖, temos dois sintagmas verbais separados pela conjunção ―mas‖.
O primeiro sintagma ―rouba‖ apresenta uma carga semântica negativa enquanto que o
segundo, ―faz‖ remete a algo positivo, se considerarmos o contexto em que o enunciado
emergiu, no sentido de ―exercer a função designada‖. Tomando o enunciado como um todo,
podemos notar que a utilização da conjunção ―mas‖, faz com que a carga negativa do primeiro
sintagma seja amenizada, ou compensada pela carga positiva do segundo, de modo que o
enunciado adquira um tom positivo, ou seja, é o segundo elemento do sintagma que direciona
a carga argumentativa.
Da mesma forma, no enunciado ―4x4, mas sincopado‖ a localização dos termos ―4x4‖
e ―sincopado‖ faz com que seja atribuída uma carga positiva ao segundo termo, por estar a
direita do conectivo e uma carga negativa ao primeiro, por estar a esquerda, irrompendo em
79

um equivoco, uma vez que o enunciador, na tentativa de construir um ethos que ainda seja
legítimo representante da voz do povo, não poderia atribuir ao ―4x4‖ um tom negativo.
O enunciador, na estrofe seguinte, continua a construção de uma imagem de si,
entretanto se apropriando da voz de outro:

Mas quem diria? Que engraçado hein!


Foi pra cadeia e agora bomba no rádio

É por meio da utilização da terceira pessoa do singular e não da primeira que o


enunciador dá voz ao outro para adicionar uma característica positiva ao seu ethos. Ao fazer
isso, o enunciador evita criar uma imagem arrogante, o que poderia acontecer se essa
característica positiva fosse enunciada por ele próprio.
Na seqüência, ainda em terceira pessoa, é atribuída ao enunciador a representatividade
do povo ―MD2 de novo, a voz do povo/ Do tiozinho mais velho ao moleque mais novo‖. É
interessante destacar na construção ―MD2 de novo‖ a utilização do nome MD2 (Marcelo D2)
no lugar de uma possível primeira pessoa (―Sou eu de novo‖), o que poderia trazer a esta
imagem certa arrogância, pois seria o enunciador, ele mesmo, a se proclamar ―a voz do povo‖.
Ainda sobre este trecho, o termo ―de novo‖ implica em uma volta. O enunciador era em algum
momento do passado a voz do povo, por alguma razão deixou de sê-lo, e agora lhe é devolvida
esta posição. Depois de se instaurar, por meio da voz do outro, como representante do povo, o
enunciador retoma a primeira pessoa do discurso:

Trago cultura de um jeito simples


(...)
Se eu canto rap é que meu samba não vai parar
Se eu canto samba é que o meu rap agora tá lá
Não adianta que o meu rap não vai parar
Vamo que vamo que o som não pode parar
Meu samba é assim
Chega e fortalece a corrente
(...)
Meu samba é assim
Luto por toda a minha gente

Nos versos acima, além do retorno à primeira pessoa e ao papel social desempenhado
pelo enunciador, notamos também a imbricação de sentidos entre samba e rap. Ao se utilizar
do rap,o enunciador faz com que o samba não deixe de existir e ao se utilizar do samba, faz
80

com que o rap adquira maior visibilidade, ―tá lá‖, do outro lado, fortalecendo a corrente. Com
o último verso do trecho acima, o enunciador adiciona a seu ethos um caráter heróico, de
liderança, o que faz com que este reforce o papel social que lhe foi devolvido ―MD2 de novo,
a voz do povo‖.
Na segunda canção selecionada para comprovar a materialização das temáticas da
humildade e da volta às origens, encontramos também o malandro como elemento
representante dos dois gêneros por nós estudados e as transformações pelas quais este passou
a fim de adaptar-se à nova situação.
Já no primeiro verso, o enunciador supõe que seu co-enunciador disponha da mesma
memória discursiva que ele ao dizer ―Reza aquela lenda que malandragem não tem‖. A
utilização do pronome demonstrativo ―aquela‖ determina a lenda da qual fala o enunciador.
Não é uma lenda qualquer, é ―aquela‖ específica, a que diz que ―aquela tal malandragem não
existe mais‖128. Em seguida o enunciador traz argumentos que desmentem a lenda
mencionada:

Malandro que é malandro não fala pra ninguém


Antigamente era seda, hoje a camisa é larga
A noite começa em qualquer lugar e acaba é na Lapa
O que era calça branca agora virou bermudão
Mas continua o anel a pulseira e o cordão

O malandro de verdade não precisa, segundo o enunciador, se dizer malandro, além


disso, o enunciador sugere também uma dispersão da malandragem, motivo talvez pelo qual o
enunciador de ―Homenagem ao malandro‖ não tenha encontrado nada na Lapa, pois agora ―a
noite começa em qualquer lugar‖.
Nos versos acima podemos facilmente recuperar o ethos do malandro do início do
século passado por meio do léxico que reconstrói tal personagem, a camisa de seda e a calça
branca. É possível também localizar o ethos do rapper já descrito em análises anteriores
através da camisa larga e o bermudão. Nesta estrofe, o enunciador além de retomar tais
imagens, relaciona-as temporalmente de forma a mostrar um deslocamento de uma para a
outra, o que fica evidente com o emprego dos advérbios ―antigamente‖ e ―hoje‖ e com as
expressões ―o que era‖ e ―agora virou‖ .
128
Referimo-nos à canção de Chico Buarque intitulada ―Homenagem ao malandro‖ analisada no item 5.2. deste
trabalho.
81

Construído o ethos do enunciador, desenrola-se, nas estrofes seguintes, um diálogo


entre este e sua consciência129. A estrofe inicial do diálogo iniciada pelo enunciador indica que
ele se aproveita do sucesso conquistado com a mistura do rap com o samba

Rolézinho a dois, de mustang 73


O Hip-Hop com samba é Bola da vez
Rap brasileiro, viajou o mundo, se encheu de prêmio e agora
nobre vagabundo
Chega e tira onda, arrebenta as caixa (sic)
Entra lá na VIP e bebe cerveja na faixa

Neste momento, toma voz sua consciência que o lembra que malandro não se deixa
influenciar e o questiona a respeito da busca pela ―batida perfeita‖:

É isso que tu quer pra tua vida parceiro


Fumar um, tirar onda, e encher o bolso de dinheiro
Malandro que é malandro tem a cabeça feita
E a tal história da procura da batida perfeita? 130

Podemos observar nesta estrofe o que Pêcheux propõe em 1971 ao pensar a noção de
FD que ―les mots „changent de sens‟ en passant d‟une formation discursive à une autre”131 .
Neste momento, dois sentidos para o que é ser malandro são apresentados pela ―consciência‖:
―Fumar um, tirar onda, e encher o bolso de dinheiro” (enunciado pela ―consciência‖ a partir
do que foi dito pelo enunciador ele mesmo) e ―Malandro que é malandro tem a cabeça feita”
(enunciado pela ―consciência‖ a partir do que ela acredita ser um malandro). O primeiro
enunciado mais próximo do discurso do malandro marginal, e o segundo, mais próximo do
discurso do malandro astuto. Enquanto o enunciador, ele mesmo, se apropria de um discurso
de aproveitador, de renunciador das origens, sua consciência apropriando-se de um discurso
de retorno às origens o questiona, pois um indivíduo, representante do povo, segundo a
―consciência‖, não pode deste se distanciar. O diálogo prossegue:

Ihhh, numa hora dessa e apita a consciência


Vários anos de barulho e tem que mostrar competência

129
Adotaremos o termo ―consciência‖ para designar a faculdade de estabelecer julgamentos morais dos atos
realizados; para tornar a análise mais clara, o que for enunciado pela ―consciência‖ apresentar-se-á em itálico.
130
Os trechos em itálico representam a voz da consciência do enunciador.
131
Pêcheux, M. op. cit. 1990, p.148.
82

Falar do que que eu fiz

É você fez sim


A consciência dói
Você não vai se livrar de mim
Malandragem mesmo bebe duas e vaza
Leva respeito da rua e sempre o amor de casa

Nota-se que o enunciador tenta se desligar da responsabilidade de ser um


―representante do povo‖, como se os ―vários anos de barulho‖ já fossem suficientes, entretanto
sua consciência não permite, perseguindo-o. Quando a consciência enuncia, percebe-se um
discurso sobre a moral da malandragem: malandro não se excede, ―toma duas e vaza‖, e sabe
jogar com os espaços sociais, da rua, ele leva o respeito, ele domina o código social nela
presente, e da casa, leva-se o amor, a afetividade.
A discussão entre o indivíduo e sua consciência prossegue até que a ―consciência‖,
num tom imperativo define as atitudes do indivíduo como pilantragem.

Humilde, malandragem sem querer tirar vantagem


Dedicação no jogo que o Rap é o som
Malandro é malandro
Então chega de pilantragem
O Rap é com samba então o momento é ficar bom

Como podemos observar, a consciência estabelece uma diferença entre malandragem e


pilantragem. Ao demandar ao indivíduo que este pare com a pilantragem, a ―consciência‖
classifica as atitudes descritas pelo indivíduo, ele mesmo, no início da canção (―Chega e tira
onda, arrebenta as caixa/ Entra lá na VIP e bebe cerveja na faixa‖) como pilantragem, em
contraposição com a malandragem (―Malandragem mesmo bebe duas e vaza/ Leva respeito da
rua e sempre o amor de casa‖). A consciência segue dizendo:

Papo cifrado só quem entende é a rua


O que aprendi na vida é que cada um cuida da sua

Neste trecho vale destacar a interessante metáfora construída em ―papo cifrado‖ no


qual cifrado remete aos algarismos representativos do acorde, ou seja, trata-se de um papo
com acordes, musicado, ao mesmo tempo, cifrado remete a escrito de forma enigmática,
secreta. Tomando este dois sentidos, pode-se inferir que ―papo cifrado‖ é o rap, por ser
83

literalmente uma conversa musicada, e por apresentar uma linguagem própria, compartilhada
pela rua (metáfora para excluídos) em oposição à casa.
No trecho seguinte, a consciência do indivíduo retoma um conceito de malandragem
elaborado por DaMatta (1990), o malandro domina as leis que regem o funcionamento da rua.
Vale ressaltar que, ainda segundo este autor, as leis da rua não são preestabelecidas, como as
da casa, são fluidas e difíceis de serem apreendidas.

Conduta certa você sabe eu também


Código de rua que a malandragem sabe bem

A discussão entre indivíduo e consciência se encaminha para um fim na medida em


que estes vão chegando a um acordo, o ―indivíduo‖ tem mais humildade e a ―consciência‖ tem
mais paciência.

Então entramos num acordo eu e minha consciência


Eu vou no sapatinho e ela tem paciência

Entretanto, antes de terminar a canção, a divergência de opiniões estabelecida desde o


início é relativizada, e toda a discussão é lançada para um plano fictício, o roteiro de um filme.

Conversa fiada
Cada um com a sua viagem
Apenas o roteiro de Um Filme Malandragem

Neste momento, um novo enunciador é instaurado, exterior à discussão, e este


aconselha o personagem do filme.

Aí personagem
Tem que ouvir a sua consciência
A maior malandragem do mundo
É viver

Ao concluir a canção desta forma, aquilo que tínhamos colocado como bastante
comum na construção do enunciador dos raps, a aproximação entre o ethos do enunciador e a
imagem discursiva de si do cantor, é rompido. A instauração de um outro EU-AQUI-AGORA
84

coloca o primeiro enunciador num plano fictício (um filme), distanciado deste novo
enunciador que se torna isento de qualquer acusação feita pela ―consciência‖.
Tal afastamento promove uma desidentificação da imagem discursiva de Marcelo D2
criada pela mídia como aquele que se deixou absorver pelo discurso dominante, da mesma
forma que a volta de Carmem Miranda dos Estados Unidos desencadeou a produção de
enunciados semelhantes. A análise nos mostra, portanto, um lugar semelhante entre o que
ocupou o samba no início do século passado e o que ocupa o rap atualmente. Um lugar de
resistência, um lugar que valida a voz do morro, da periferia, um lugar, enfim, em que reina o
―barão da ralé‖132
O que pretendíamos alcançar com estas análises era uma tentativa de se pensar as
noções de FD e GD como embricadas, de forma que um GD seleciona/ é selecionado por uma
FD e vice-versa, e quais efeitos de sentido estas seleções e os deslocamentos destas seleções
poderiam causar. Durante este trabalho encontramos um possível trajeto temático presente
neste movimento entre FDs e GDs, evidenciando, na materialidade da língua, o que
procuramos mostrar com estas nossas análises, é o que desenvolveremos no item que segue.

4.5. A construção temática da Resistência – A Navalha

A noção de trajeto temático aparece no início dos anos 80 pela pena dos historiadores
do discurso, mais especificamente a de Jacques Guilhaumou, quando este propõe uma nova
maneira de leitura do arquivo. É por meio da observação de regularidades na materialidade da
língua seja ela de ordem sintática, lexical, morfológica, etc, que o trajeto temático vai se
interessar pelo novo no interior da repetição.
Por nos inserirmos num momento da AD que já possui certo distanciamento daquele
no qual tal conceito fora proposto, momento este que abandonava a noção de FD e propunha
novas formas de análise do arquivo, acreditamos ser pertinente a utilização destes dois
conceitos – FD e trajeto temático – de forma complementar. Pensamos que a noção de FD a
qual adotamos, como exposto no item 2.4.1. deste trabalho, como heterogênea a ela mesma,
constituída pelo interdiscurso e articulada a noção de GD, não torna inválida nossa análise por
meio da noção de trajeto temático, pois é justamente através dessa noção que poderemos

132
Referência a canção de Chico Buarque intitulada A volta do Malandro, composta em 1985.
85

perceber os deslizamentos da posição sujeito malandro por ser produzido no interior de


diferentes FDs.
É importante destacarmos que, ao nos valermos do conceito de trajeto temático, não o
estamos pensando meramente como um mecanismo de análise de uma progressão temática,
mas nos confrontamos, como aponta Guilhaumou, ―com uma descrição discursiva complexa,
que nos mergulha, através da leitura de arquivos, em uma multiplicidade de redes de
enunciados‖133.
Propomos, então, analisar o aparecimento do léxico navalha em três diferentes
momentos de nosso arquivo. O primeiro, presente na canção Lenço no Pescoço (anexo, p.
109), composta por Wilson Batista em 1933, (―Navalha no bolso‖), o segundo em 1978, na
canção Homenagem ao Malandro (anexo p.102), de Chico Buarque (―Aposentou a navalha‖)
e finalmente em 2006 na canção de Marcelo D2 intitulada Malandragem (anexo p. 107) (―Se
fosse um tempo atrás eu carregava é navalha‖). É interessante, como o fazem Guilhaumou e
Maldidier134 quando analisam a coordenação pão e X durante a Revolução Francesa,
iniciarmos nossa análise por uma abordagem gramatical, ou seja, como o léxico navalha se
estrutura sintaticamente nestes três momentos e quais efeitos de sentido são produzidos a
partir destas construções.
Na primeira ocorrência do léxico navalha, este aparece como núcleo de um sintagma
nominal: Navalha no bolso. A leitura que fazemos desta construção é de que o fato de existir
uma navalha no bolso é algo já dado, construído anteriormente em outro lugar, que não está
posto em questão, este questionamento poderia ocorrer, por exemplo, se a construção fosse ―A
navalha está no bolso”. A segunda ocorrência coloca o léxico navalha numa posição de
objeto direto do verbo aposentar (―[o malandro pra valer] aposentou a navalha‖), que em
uma das acepções trazidas por Houaiss – pôr de lado, inutilizar – provoca um primeiro
deslizamento, o que anteriormente tinha uma existência incontestável passa a ser objeto de
inutilização. Finalmente, a ocorrência de 2006, traz o léxico por nós analisado na oração

133
CHARAUDEAU, P. e MAINGUENEAU, D. op. cit. 2004, p. 480.
134
Essas análises podem ser encontradas em GUILHAUMOU, J. e MALDIDIER, D. Efeitos do Arquivo. A
Análise do Discurso no Lado da História (pp. 163 – 183). In.: ORLANDI, E. (org.) Gestos de leitura : da história
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Langage).
86

principal de uma subordinação adverbial condicional (―Se fosse um tempo atrás eu carregava
é navalha‖). Se atentarmos mais especificamente à oração principal (eu carregava é navalha)
observaremos uma outra subordinação, a oração ―é navalha‖ funcionando como objeto direto
do verbo carregar. Tal configuração promove um segundo deslocamento, a navalha aparece
numa rememoração e em sua impossibilidade de utilização: ―Se fosse um tempo atrás eu
carregava é navalha, ‗hoje não me cabe mais usá-la, uma vez que esta já foi aposentada‘‖.
Partindo destas configurações sintáticas, quais efeitos de sentido podem ser
construídos? Nossa leitura deste trajeto aponta para uma tentativa de silenciamento da
resistência seguida de uma tentativa de ressignificação da mesma, de modo que esta possa
emergir novamente. A primeira ocorrência de navalha constrói um ethos aparentemente
homogêneo e inconteste do malandro: uma resistência muito bem demarcada frente ao
discurso trabalhista que começava a se intensificar no período em que tal enunciado emergiu.
A segunda ocorrência de navalha, surgida ao final de um grande período de intenso
controle do dizer135, enunciada sintaticamente como objeto direto do verbo aposentar provoca
um deslocamento dessa resistência. O malandro neste segundo momento trabalha, tem mulher,
filhos e tralha, o que como já discutimos a partir da dicotomia casa X rua proposta por Da
Matta136, o insere numa FD pró-trabalho, marcando uma absorção da resistência pelo discurso
dominante, causando assim seu silenciamento.
A tentativa de ressignificação desta resistência ocorre na terceira emergência de
navalha. Neste momento, o condicional “se fosse um tempo atrás‖ enuncia a impossibilidade
de um retorno a uma resistência tal como era feita anteriormente (com a navalha). Tal
impossibilidade de retorno é reforçada pela utilização do verbo ser em ―eu carregava é
navalha‖ na qual o verbo marca a possibilidade (no primeiro momento – um tempo atrás) da
navalha em detrimento de tudo o que não a fosse, e conseqüentemente a impossibilidade de
seu retorno (Se fosse um tempo atrás eu carregava é navalha, ‗hoje não me cabe mais usá-la,
uma vez que esta já foi aposentada, portanto, eu utilizo outra coisa que não seja navalha‘‖).
Diante do que foi exposto, pudemos observar a pertinência de uma análise lingüística
para alcançarmos o nível discursivo. Dito de outra forma, o discurso é, a nosso ver,
materializado e localizável em estruturas lingüísticas e suas repetições.

135
Consideramos este período de intenso controle do dizer o correspondente a toda Era Vargas até o final da
Ditadura Militar em 1985.
136
DA MATTA, R. op. cit. 1990.
87

A navalha como centro de nosso trajeto temático, materializando o tema da resistência,


funciona como regularidade que comprova as análises que fizemos nos itens 4.2, no qual
observamos as construções de diferentes ethé malandros (malandro ―pra valer‖, malandro
marginal, malandro-trabalhador), 3.3. em que observamos a recorrência do malandro ―pra
valer‖ e do malandro marginal no gênero samba e, finalmente, em 3.4 no qual o deslocamento
do gênero samba para o gênero rap configura um novo deslizamento do ethos do malandro,
sendo a humildade e a ―volta às origens‖ posições necessárias para legitimar um discurso de
defesa dos excluídos.
88

5. Considerações sobre a pesquisa

A canção popular, como aponta Da Matta, tem exercido um papel bastante importante
no registro da vida cotidiana do povo brasileiro. Nela são materializados discursos produzidos
em diversos lugares, alguns inclusive desautorizados por outras mídias. Tendo isso em mente
e considerando também que a identidade nacional brasileira vem sendo, há pelo menos um
século, construída por meio do embate entre o discurso do trabalho e o discurso da
malandragem, bastante evidente nas políticas de valorização nacional de Vargas e Lula por
exemplo, propusemos como objetivo de nossa pesquisa, observar como essa construção
identitária é materializada no cancioneiro popular.
Construímos nosso corpus, num primeiro momento, selecionando canções desde o
início do século passado até os dias de hoje acerca da temática da malandragem e do trabalho.
Entretanto, após as primeiras análises, observamos que novas regularidades se fizeram
pertinentes. Levamos em conta, portanto, além das temáticas acima mencionadas os gêneros
samba e rap.
Para fundamentamos nossas análises, pautamo-nos nos pressupostos teóricos da
Análise do Discurso de linha francesa, notadamente aquela elaborada a partir da produção de
Michel Pêcheux articulada a conceitos de Michel Foucault. Desta área do conhecimento
utilizamos os conceitos de memória, discurso e formação discursiva. Utilizamos também o
conceito de ethos formulado por Aristóteles e repensado no interior da AD por Dominique
Mainqueneau, bem como as dicotomias casa X rua e mundo da ordem x mundo da desordem
elaboradas no interior da Sociologia.
Nossa primeira questão, ao observar as construções identitárias do malandro e do
trabalhador, era de examinar como as políticas governamentais pró-trabalho da era Vargas
influenciaram a produção musical da época. Concluímos através das análises apresentadas no
item 3.2. Zé Carioca, Zé Pequeno e outros Zes: discursos que constroem uma identidade
heterogênea, que as tentativas de apagamento do discurso da malandragem não foram
efetivas, e por isso, passamos a analisar as marcas deixadas por essa dispersão de enunciados
que caracterizam os discursos da malandragem na memória discursiva do trabalhador
brasileiro de hoje.
89

Enunciados que remetem aos discursos do malandro e do trabalhador se entrecruzam,


porém não mais como um discurso outro, como constatamos nos textos anteriores ao ano
2002, mas na constituição do discurso de um terceiro ethos, o ‗trabalhador malandro‘.
Concluímos que o discurso do malandro não foi apagado, mas incorporado ao discurso do
trabalhador, inicialmente na forma de interdiscurso, agora como parte constituinte de seu
discurso. Este entrecruzamento de enunciados oriundos de formações discursivas distintas
constitui um discurso cindido, cortado por discursos outros. Estes discursos cindidos
sustentam identidades pós-modernas caracterizadas, entre outros fatores, pela
heterogeneidade.
No segundo tratamento que demos ao nosso corpus, observamos os gêneros
discursivos nos quais os discursos da malandragem e do trabalho são veiculados e os efeitos
de sentido que esses gêneros podem produzir nos discursos que sustentam. Pudemos perceber,
por meio de uma retomada histórica que fizemos nos itens 3.1 Algumas discursividades sobre
o malandro e 3.3 O samba como lugar da malandragem, que tanto o GD samba quanto a FD
da malandragem apresentam nascedouros bastante próximos, o que justifica nossa suposição
de que a formação discursiva da malandragem está intimamente ligada ao gênero discursivo
samba, ou seja, o gênero samba seleciona/ é selecionado pela formação discursiva da
malandragem. Entretanto, quando o samba é alçado a categoria de ritmo nacional,
notadamente na era Vargas, a temática da malandragem não encontra mais no samba um
veiculo de resistência, o que provocará um deslizamento da formação discursiva da
malandragem que antes era veiculada pelo samba e agora tem como suporte o rap.
Ao analisarmos os raps que mobilizam a temática da malandragem, pudemos notar que
estes não só serviam de suporte à malandragem, mas incorporaram também elementos
rítmicos do samba. A inclusão destes novos elementos no rap fez com que este ganhasse
bastante visibilidade na mídia a ponto de ser consumido pela classe média. No momento em
que isso é notado pelos representantes do movimento Hip Hop, enunciados que deslegitimam
este novo tipo de rap ganham visibilidade, acusando-os de não mais representarem os
excluídos, o que produzirá uma nova temática nos raps, a da humildade e volta às origens,
numa tentativa de não deslegitimar este novo veículo de luta dos excluídos, como aconteceu
com o samba.
90

Diante disso, concluímos que a busca por um espaço na mídia para veicular as
denúncias dos excluídos pode acarretar numa absorção desta voz pela sociedade, de forma que
esta não se torne mais excluída, ou pelo menos vista como tal, pois já conquistou seu lugar.
Tal fato resulta na deslegitimação dessa voz, ou seja, para que ela represente os excluídos ela
deve permanecer à margem da sociedade.
Além destes apontamentos, encontramos um caminho interessante a ser seguido, trata-
se da utilização do conceito de trajeto temático, como propõe, por exemplo, a análise de
Jacques Guilhaumou, e Denise Maldidier, no texto ―Efeitos do Arquivo. A Análise do
Discurso no Lado da História‖. Com este conceito observamos como se dá a atualização de
discursos que antes eram veiculados pelo samba e hoje circulam através do rap e os efeitos
que tal atualização provoca, como pudemos observar no trajeto temático que construímos a
partir da repetição do léxico navalha configurando o tema resistência. Ao analisarmos três
canções de três períodos diferentes (1933, 1975 e 2006) nas quais o termo navalha se faz
presente, pudemos perceber como o termo é preenchido de diferentes sentidos, mas
preservando sempre o tema da resistência. No primeiro momento a navalha retoma um ethos
de malandro bastante marcado como ícone da resistência ao trabalho, já na segunda ocorrência
do termo, este ―aposentado‖, caracteriza a incorporação do discurso do malandro pelo
discurso dominante, ressurgindo, num terceiro momento, como uma releitura do primeiro.
Estas últimas análises confirmaram o que vínhamos defendendo nos itens anteriores,
de que após a construção discursiva do malandro no início do século passado, houve uma
tentativa de seu apagamento, seguida de uma releitura deste, na tentativa de se manter como
discurso de resistência.
91

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SHUSTERMAN, R. Vivendo a arte: a estética pragmatista e a estética popular. São Paulo:


Editora 34, 1998.

SIQUEIRA, Cristiano T. de, Construção de saberes, criação de fazeres: educação de


jovens no hip hop de São Carlos. São Carlos: UFSCar, 2006.

SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

TASSO, Ismara E. V. de Souza e BARBOSA, Pedro L. N. Do Foco ao Enfoque: imagem


e memória construindo sentidos na mídia. In: GREGOLIN, Maria do Rosário,
CRUVINEL, Maria de Fátima e KHALIL, Marisa Teresa (orgs.). Análise do Discurso:
entornos do sentido; São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2001. (pp. 163 – 179).

TATIT, Luis. O Século da Canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.

TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. 1ª. Ed. bras. São
Paulo: Ed. 34, 1998.

TINHORÃO, José Ramos. História da Música Popular (da modinha à canção de protesto)
2ª. Ed. Petrópolis: Vozes, 1975.

VELLOSO, Mônica Pimenta. As Tias Baianas tomam conta do pedaço – espaço e


identidade cultural no Rio de Janeiro. Este artigo foi desenvolvido como parte de um
projeto de pesquisa financiado pela ―Fundação Carlos Chagas‖ (SP) durante o ano de
1989. Disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/75.pdf, acessado em 12 mai.
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VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. 5ª. Ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.

Vianna, Letícia C. R. Bezerra da Silva: produto do morro: trajetória e obra de um sambista


que não é santo. Rio De Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1999.

VIEIRA, Evaldo. Estado e miséria social no Brasil – de Getúlio a Geisel 1951 a 1978. São
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República: da Belle Époque à era do Rádio. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
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6. Obras e Sites consultados para a coleta do corpus


ALENCAR, Edigar de. A Carnaval carioca através da música 3a. Ed. Rio de Janeiro: F.
Alves; Brasília: INL, 1979.

MASCARENHAS, Mário. O melhor da música popular brasileira vols. 3, 4, 7. São Paulo:


Irmãos Vitale, 1989.

SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A Canção no tempo – 85 anos de


músicas brasileiras vol. 1: 1901 – 1957Sao Paulo: Ed. 34, 1998. 3. ed.

SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A Canção no tempo – 85 anos de


músicas brasileiras vol. 2: 1958 – 1985; São Paulo: Ed. 34, 1999. 2. ed.

www.cliquemusic.com.br, acessado no período de agosto de 2005 a maio de 2007.

www.discosdobrasil.com.br, acessado no período de dezembro de 2006 a maio de 2007.


98

7. Discografia
Homenagem ao Malandro
Chico Buarque, LP Ópera do Malandro, Polygram, Faixa 8, 1979.

Não sou mais disso


Zeca Pagodinho, CD Deixa Clarear, Polygram, Faixa 5, 1996.

Retrato do Velho
Coletânea, LP Documentos Sonoros – Nosso Século, Abril Cultural, Faixa 46, 1980.

Eu trabalhei
Orlando Silva, LP Orlando Silva, Funarte, Faixa 6, 1985.

Um filho e um cachorro
Zeca Baleiro, CD Petshopmundocão, MZA Music/ Abril Music, Faixa 8, 2002.

O Hacker
Zeca Baleiro, CD Petshopmundocão, MZA Music/ Abril Music, Faixa 3, 2002.

As meninas dos Jardins


Zeca Baleiro, CD Petshopmundocão, MZA Music/ Abril Music, Faixa 10, 2002.

O pequeno burguês
Martinho da vila, LP Martinho da Vila, RCA, Faixa 5, 1969.

Para que discutir com Madame?


Rosa Passos, CD Amorosa, Sony Music, Faixa 4, 2004.

Não tem tradução


Noel Rosa, CD Noel pela primeira vez – vol. 4, Velas/ Funarte, Faixa 10, 2000.
99

Americanizada
Carmen Miranda, CD Carmen Miranda – cd 5, EMI/ Odeon, Faixa 20, 1996.

1967
Marcelo D2, CD Eu tiro é onda, Chaos/ Sony Music, Faixa 2, 1998.

Samba de primeira
Marcelo D2, CD Eu tiro é onda, Chaos/ Sony Music, Faixa 6, 1998.

Batucada
Marcelo D2, CD Eu tiro é onda, Chaos/ Sony Music, Faixa 12, 1998.

Samba da minha terra


Dorival Caymmi, LP Eu vou pra Maracangalha, Odeon, Faixa 2, 1957.

Quando eu contar (Iaiá)


Zeca Pagodinho, CD Zeca Pagodinho, RGE, Faixa 5, 1986.

Rebatucada
Marcelo D2, CD A procura da batida perfeita, Sony, Faixa 10, 2003.

Meu samba é assim


Marcelo D2, CD Meu samba é assim, Sony/ BMG, Faixa 1, 2006.

Um filme malandragem
Marcelo D2, CD Meu samba é assim, Sony/ BMG, Faixa 9, 2006.

Malandro é Malandro, mané é mané


Neguinho da Beija-Flor, LP Vida no peito, Top Tape, Faixa 8, 1980.

Malandragem dá um tempo
100

Bezerra da Silva, LP Alô Malandragem, maloca o flagrante, RCA, Faixa 1, 1986.

Assombração de Barraco (presidente caô-caô)


Bezerra da Silva, CD Presidente caô-caô, BMG Ariola, Faixa 1, 1992.
101

8. Anexo - Corpus (por ordem de análise)


Malandro é Malandro e Mané é Mané Que conheço de outros carnavais
(Neguinho da Beija Flor, 1980)
Eu fui à Lapa e perdi a viagem
E malandro é malandro e mané é mané Que aquela tal malandragem
Podes crer que é Não existe mais
Malandro é o cara que sabe das coisas
Malandro é aquele que sabe o que quer Agora já não é normal
Malandro é o cara que ta com dinheiro O que dá de malandro regular, profissional
E não se compara com um Zé Mané Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro de fato é um cara maneiro Malandro candidato a malandro federal
E não se amarra em uma só mulher Malandro com retrato na coluna social
Já o Mané ele tem sua meta Malandro com contrato, com gravata e capital
Não pode ver nada que ele cagüeta Que nunca se dá mal
Mané é um homem que moral não tem
Vai pro samba paquera e não ganha ninguém Mas o malandro pra valer
Está sempre dura é um cara azarado Não espalha
E também puxa saco pra sobreviver Aposentou a navalha
Mané é um homem desconsiderado Tem mulher e filho e tralha e tal
E da vida ele tem muito que aprender
Dizem as más línguas que ele até trabalha
Mora lá longe e chacoalha
Malandragem Dá Um Tempo
Num trem da central
(Popular P, Adelzonilton e Moacyr Bombeiro,
1986)
Assombração de Barraco
(Élson Gente Boa e José Carlos, 1992)
Vou apertar, mas não vou acender agora
Vou apertar, mas não vou acender agora
―É colorido, amizade.
Se segura malandro, pra fazer a cabeça tem hora
É roxo.
Se segura malandro, pra fazer a cabeça tem hora
É verde e amarelo
É que você não está vendo
É preto
Que a boca tá assim de corujão
É branco, compadre‖
Tem dedo de seta adoidado
Todos eles afim de entregar os irmãos
Olha ai, eu já ando injuriado, ô chara
Malandragem dá um tempo
Meu salário defasado,
Deixa essa pá de sujeira ir embora
Meu povo todo esfomeado
É por isso que eu vou apertar, mas não vou acender
E ainda é intimado a votar
agora
Vejo que essa previdência
É que o 281 foi afastado
Não tem competência de ser social
O 16 e o 12 no lugar ficou
O trabalhador adoece e morre na fila do hospital
E uma muvuca de espertos demais
Enquanto uma pá de ―aspone‖
Deu mole e o bicho pegou
Come e dorme mamando na teta
Quando os home da lei grampeiam
E os PCs na mamata sempre fazendo mutreta
O coro come a toda hora
Roubando o dinheiro do povo
É por isso que eu vou apertar, mas não vou acender
E mandando pra Suíça na maior careta
agora
Isso é que é covardia
Homenagem ao malandro
Que me arrepia e me faz chorar
(Chico Buarque de Holanda, 1978)
É fraude por todos os lados
E ninguém consegue grampear os culpados
Eu fui fazer um samba em homenagem
É que na realidade, a impunidade também é demais
À nata da malandragem
102

E uma pá de cheque fantasma assustando o Planalto Bota no mesmo lugar


Central O sorriso do velhinho
Assombração de barraco é ladrão de gravata e não é Faz a gente trabalhar, oi
marginal
Eu já botei o meu
Não Sou Mais Disso E tu não vais botar?
(Zeca Pagodinho e Jorge Aragão, 1996) Já enfeitei o meu
E tu não vais enfeitar?
Eu não sei se ela fez feitiço O sorriso do velhinho
Macumba ou coisa assim Faz a gente se animar
Eu só sei que eu estou bem com ela
E a vida é melhor pra mim Eu trabalhei
Eu deixei de ser pé-de-cana (Roberto Roberti e Jorge Faraj, 1941)
Eu deixei de ser vagabundo
Aumentei minha fé em Cristo Eu hoje tenho tudo, tudo que um homem quer
Sou bem-quisto por todo mundo Tenho dinheiro, automóvel e uma mulher!
Mas, para chegar até o ponto em que cheguei
Na hora de trabalhar Eu trabalhei, trabalhei, trabalhei
Levanto sem reclamar
E antes do galo cantar Eu hoje sou feliz,
Já vou E posso aconselhar
À noite volto pro lar Quem faz o que eu já fiz
Pra tomar banho e jantar Só pode melhorar...
Só tomo uma no bar E quem diz que o trabalho
Bastou Não dá camisa a ninguém
Não tem razão. Não tem. Não tem.
Provei pra você que eu não sou mais disso
Não perco mais o meu compromisso Um filho e um cachorro
Não perco mais uma noite à-toa (Zeca Baleiro, 2002)
Não traio e nem troco a minha patroa
Já tenho um filho e um cachorro
Me sinto como num comercial de margarina
Canção do trabalhador
Sou mais feliz do que os felizes
(Ary Kerner, 1940)
Sob as marquises me protejo do temporal
Somos a voz do progresso
Oh meu bem me espere
E do Brasil a esperança
Que eu volto por jantar
Os nossos braços de ferro
Ainda tenho fome
Dão-lhe grandeza e pujança
Seja na terra fecunda
Eu vejo tudo claramente
Seja no céu ou no mar
Com os meus óculos de grau
Sempre estaremos presentes
Loucura é quase santidade
Tendo na Pátria o olhar.
E o bem também pode ser mal
Trabalhador
Engrosso o coro dos com dentes
Incansável, febril
E me contento em ser banal
Esse fervor
Loucura é quase santidade
Exalta o Brasil
E o bem também pode ser mal
Trabalhador
Expressão verdadeira
O Hacker
Do lema altivo
(Zeca Baleiro, 2002)
Da nossa bandeira.
Vem meu amor
Retrato do Velho
Vamos invadir um site
(Haroldo Lobo e Marino Pinto, 1951)
Vamos fazer um filho
Vamos criar um vírus
Bota o retrato do velho outra vez
103

Traficar armas poemas de Rimbaud


(traficar armas escravos e rancor) Mas felizmente eu consegui me formar
Mas da minha formatura não cheguei a participar
A vida é boa a vida é boa a vida é bela
Quem teme o tapa Faltou dinheiro pra beca e também pro anel
Não Poe a cara na tela Nem o diretor careca entregou o meu papel
Como diz meu tio estelionatário O meu papel, meu canudo de papel
Ladrão que rouba ladrão O meu papel, meu canudo de papel
Tem cem anos de perdão
Malandro também tem seu dia de otário E depois de tantos anos só decepções desenganos
Dizem que sou um burguês muito privilegiado
Vagabundo acha que eu tô rico Mas burgueses são vocês
Nego pensa que eu sou bacana Eu não passo de um pobre coitado
Quando a barra aperta eu faço bico E quem quiser ser como eu
Eu aplico eu não fico sem grana Vai ter que penar um bocado
Eu me viro daqui eu me arranjo de lá Um bocado, vai penar um bocado
Quem só chora não mama Um bocado, vai penar um bocado
No meio do pega-pra-capá
Pra que discutir com Madame
Malandro que é malandro não teme a morte
(Haroldo Barbosa e Janet de Almeida, 1956)
Malandro que é malandro vai pro norte
Enquanto os patos vão pro sul
Madame diz que a raça não melhora
Que a vida piora
Vem cá vem ver
Por causa do samba
Como tem babaca na tv
Madame diz que o samba tem pecado
Vem cá vem cá
Que o samba é coitado
A vida é doce
Devia acabar
Mas viver ta de amargar
Madame diz que o samba tem cachaça
Mistura de raça, mistura de cor
Baby eu te espero
Madame diz que o samba é democrata
Para o chat das cinco
É música barata
Sem nenhum valor
Quem sabe cyber
Quem não sabe sobra
Vamos acabar com o samba
O pequeno burguês Madame não gosta que ninguém sambe
(Martinho da Vila, 1969) Vive dizendo que o samba é vexame
Pra que discutir com Madame
Felicidade, passei no vestibular
Mas a faculdade é particular No carnaval que vem também com o povo
Particular, ela é particular Meu bloco de morro vai cantar ópera
Particular, ela é particular E na avenida entre mil apertos
Vocês vão ver gente cantando concerto
Livros tão caros, tanta taxa pra pagar Madame tem um parafuso a menos
Meu dinheiro muito raro alguém teve que emprestar Só fala veneno
O meu dinheiro alguém teve que emprestar Meu Deus que horror
O meu dinheiro alguém teve que emprestar O samba brasileiro, democrata
Brasileiro na batata é que tem valor.
Morei no subúrbio andei de trem atrasado
Do trabalho ia pra aula sem jantar e bem cansado Não tem tradução
(Noel Rosa, Francisco Alves e Ismael Silva, 1933)
Mas lá em casa a meia noite
Tinha sempre a me esperar O cinema falado é o grande culpado da
Um punhado de problemas e crianças pra criar transformação
Para criar Dessa gente que sente que um barracão prende mais
Só crianças pra criar que o xadrez
104

Lá no morro, seu eu fizer uma falseta E nele hei de morrer


A Risoleta desiste logo do francês e do Inglês E não há riqueza que me faça
A gíria que o nosso morro criou Enfrentar o batedor
Bem cedo a cidade aceitou e usou Pois quem é rico nunca foi trabalhador
Mais tarde o malandro deixou de sambar, dando (e é por isso que eu vivo na malandragem)
pinote
Na gafieira dançar o Fox-Trote
Essa gente hoje em dia que tem a mania da exibição As meninas dos jardins
Não entende que o samba não tem tradução no (Zeca Baleiro, 2002)
idioma francês
Tudo aquilo que o malandro pronuncia abro a porta vejo a fumaça no asfalto
Com voz macia é brasileiro, já passou de português o sol me cega eu sigo em frente
Amor lá no morro é amor pra chuchu encaro o sol deixo meu rastro para trás
As rimas do samba não são I love you o dia corre assim veloz
E esse negócio de alô, alô boy e alô Johnny o dia corre além de nós
Só pode ser conversa de telefone eu vou me desviando das aeronaves
que aterrissam a todo o instante
Disseram que voltei americanizada morrer já não parece novo já não assusta
(Vicente Paiva e Luís Peixoto, 1940) desço a rua augusta a 120 por hora
hi hi Johnny, hi hi Alfredo
Disseram que voltei americanizada nada respira como antes só o medo
Com o burro do dinheiro vejos as meninas dos jardins
Que estou muito rica belas com seus jeans
Que não suporto mais o breque de um pandeiro a riqueza é um alqueire
E fico arrepiada ouvindo uma cuíca uma quadra da Oscar Freire
E disseram que com as mãos estou preocupada eu vi o mano Mano Brown
E corre por aí mandando um rap para valer
Que eu sei eu vi o mano Mano Brown
Certo zum-zum vestindo GAP na TV
Que já não tenho molho, ritmo, nem nada
E dos balangandãs cato no chão migalhas
Já nem existe mais nenhum do banquete dos que comem
o que que houve eu nunca mais ouvi
Mas para cima de mim chamar meu nome
Pra que tanto veneno? a rua é reta a vida é torta
Eu posso lá ficar americanizada? quem se importa
Eu que nasci com o samba se eu vou morrer de sede
E vivo no sereno ou se eu vou morrer de fome
Tocando a noite inteira a velha batucada o sol nas bancas de revista
Nas rodas de malandro, minhas preferidas e na capa da revista
Digo mesmo ‗eu te amo‘ e nunca ‗I love you‘ sombra grana e água fresca
Enquanto houver Brasil na hora da comida vejo novos ricos
Eu sou do camarão, ensopadinho com chuchu vejo velhos pobres
não vi ninguém abrir a boca
mas ouvi o grito
Nasci no samba Deus misericórdia de nossa miséria
(Benedito Lacerda, 1932) caravela de Cabral
morte e vida Severina
Vivo na malandragem as meninas dos jardins gostam de rap
Não quero saber do batedor as meninas dos jardins gostam de rap
Pode escrever o que eu vou dizendo as meninas dos jardins gostam de happy end
Ando melhor do que um trabalhador
Não faço conta, nunca fiz, cantilenas do futuro
Jamais hei de fazer nas cidades sem futuro
orações ao vento preces sem destino
Nasci no samba sangue no asfalto
105

- ninguém é alto o suficiente Quando pichava muro


que não possa rastejar Sempre tinha um correndo atrás
Carlos Peixe, meu camarada
o meu boy morreu De vez em quando no piche
que será de mim Outras na baforada
manda buscar outro correndo Vida de moleque sempre sangue bom
lá no Itaim Calote no ônibus
Pra ir à praia no verão
1967 Pra ficar um pouco mais
(Zé Gonçalves - Rodrigo Nuts - Marcelo D2, 1998) Roubava no supermercado, foda-se
Pra mim isso nunca foi pecado
1967, o mundo começou Sempre no Maraca vendo o Mengão jogar
Pelo menos pra mim Zico, Adílio, Júnior, fazendo a bola rolar
E a minha história reduzida Como já dizia o hino, vou repetir pra você
É mais ou menos assim: Uma vez Flamengo
Nascido em São Cristóvão Flamengo até morrer
Morador de Madureira Meu avô Peixoto deixou meu sangue rubro-negro
Desde pequeno acostumado a Me orgulho de ser carioca
subir ladeira Me orgulho de ser brasileiro
me lembro muito bem skate na veia, só quem tem
dos meus tempos de moleque sabe como é que é a sensação
que sempre passava as férias e o poder de dar um ollie-air
no final do 77 Campo Grande, Norte Shopping
Padre Miguel sempre 10 na bateria Street no Mec
saudoso Mestre André À noite Circo Voador
sempre soube o que queria Show do De Falla e um Domec
futebol na rua F ou no campo de baixo Vender Camisa na 13 de Maio
Você sabe Na situação show no Garage
Meu tio gentil era um esculacho Skunk, diversão de irmão
Andava pelas ruas vestindo o meu bate bola Grandmaster Flash, Afrika Bambaata
Se tu passasse em minha frente Planet Rock,
Era melhor tu sair fora Rap, break, graffiti
Carnaval de rua perigoso e divertido Chegou o hip hop
Mas passei por tudo isso Cantando a vida
Entre mortos e feridos Mas vista de um outro lado
Graças ao meu pai Não é apologia cumpadi
O pessoal da tramela Não adianta ficar bolado
Sérgio Cabrito meu padrinho Entenda se a minha rima
Não dava trégua Não te faz rir
Lembra do Cassino Bangu é som das ruas fluindo
De vez em quando eu ia lá não adianta, sai daqui
Curtir um funk, ver a mulherada rebolar Eu vim pra zoar
Kool and the gang, gap band, Fazer barulho
outro mestre, James Brown Falar um pouco de mulher
Era só alegria Skate, som, bagulho
Não tinha pau Sempre ligado, sempre sabendo o que quer
Sempre bom da cabeça, nunca doente do pé
Eu quero ver Eu vou levando a vida
Se tu é homem mané É, juro que vou
Do jeito que eu fui Só no sapato, sempre sendo o que sou
E que eu sou
Eu quero ver Eu quero ver
Se tu é homem mané Se tu é homem mané
Que nem a parteira falou Do jeito que eu fui
E que eu sou
No Andaraí, Grajaú o bicho pegava mais Eu quero ver
106

Se tu é homem mané nascido e criado no Andaraí


Que nem a parteira falou Que bateu lá no hip hop e apareceu por aqui
Dos lugares de onde eu vim
Agora saiu o flow eu vou te contar
Brasileiro, Carioca Quando eu contar Iaia
Marcelo D2 na área você vai se pasmar
Se derrubar, é pênalti Quebrando pedra eu levo minha vida frente
Valeu. E nos terreiros dessa vida
cantando me faço presente
O samba da minha terra Falando,cantando,gritando situações dramáticas
(Dorival Caymmi1, 1957) Eu sigo meu rumo sem medo
de ofender a gramática
O samba da minha terra deixa a gente mole O dialeto é nato
Quando se canta com o microfone na mão
Todo mundo bole Então s‘embora no refrão

Que não gosta de samba O DJ e o pandeiro, o MC é o partideiro


Bom sujeito não é Tem samba no meu hip hop
É ruim da cabeça porque eu sou brasileiro
Ou doente do pé Eu tô ficando cansado
vou parar pra dar uma respirada, mas continuo na
Eu nasci com o samba levada
No samba me criei Estilo hip hop e atitude hardcore
Do danado do samba Feito no Rio que nem esse aqui
Nunca me separei não tem melhor
Meu samba é duro na queda
Samba de Primeira não é conversa fiada
(Rodrigo Nuts - Marcelo D2, 1998) É e sempre foi a voz da rapaziada
Cronista, jornalista ou coisa
Eu entro no samba e não deixo cair parecida
Sem vacilar sem me exibir Eu canto as coisas que vejo na minha vida
só vim mostrar o que aprendi Eu já vi muito partideiro tentando versar
Não toco como antigamente Mas como eu aviso que eu tô pra brincar
com um banda de samba A bola da vez já tá na caçapa
Hoje a coisa é diferente minha rima é cinza
é o DJ e o sample O cabelo é piaçava
No pit-don-don na minha MPC
é só vinil cumpadi pra confundir você O que acontece irmão tá de bobeira?
Nã nã nã nã nã não AI
Acho que já deu pra entender Isso é que samba de primeira
É Hip Hop com Samba
Quando eu contar
É hip hop que vem do Rio de Janeiro (Serginho Meriti, Beto Sem Braço, 1986)
uma batida de funk e o DJ no pandeiro
Oh Iaia
Essa é pra você que vem do lado de lá Minha preta não sabe o que eu sei
Tentando acabar com a nossa cultura popular Nem o que eu vi
Do lado de cá sabe que não dá O que vi nos lugares onde andei
então manda um loop pra mim cantar Quando eu contar, Iaia
Eu não preciso de muito pra fazer meu samba Você vai se pasmar
Eu sou da nova geração e minha ginga é de bamba
A batida é crua e você vai a lua e as letras mermão Vi um tipo diferente assaltando
vêm direto das ruas a gente que é trabalhador
Novas batidas recicladas eu vejo no sample moro num morro muito perigoso
E o groupie da minha raíz eu sinto no samba onde um tal de Caveira comanda o vapor
De gente bamba foi aí que um tal garoto, coitado do broto
107

encontrou com o Caveira você não samba, mas


tomou-lhe um sacode, caiu na ladeira vai ter que aplaudir
Iaia, minha preta, morreu de bobeira

Dei um pulo na cidade, Iaia minha preta Re-Batucada


Se eu fosse você, não iria (Marcelo D2, 2003)
Só vi pilantragem, só vi covardia
Não sei como pode alguém lá viver Sorria meu bloco vem bem descendo a cidade
Quando eu vi o salário vai haver carnaval de verdade
que o pobre operário sustenta a família o samba não se acabou
fiquei assustado, Iaia minha filha
montei no cavalo e voltei pra você Sorria o samba mata a tristeza da gente
Quero ver o meu povo contente
dei um pulo na macumba Do jeito que o rei mandou
saber da quizumba, bolei na demanda
cantei pra Kalunga, baixei a muamba O rei mandou a gente se ajudar
saravei a banda, meu corpo fechei O rei mandou o povo se agilizar
Iaia, fiz tudo certinho O rei mandou a gente olhar prá frente
Deitei para o santo, raspei, catulei Na verdade o parceiro rei tá dentro da mente
Me deixa de lado, como excomungado
To abençoado, to dentro da lei. Partideiro indigesto eu sou e sei que sou
A procura da batida eu vou e vou que vou
Batucada O flagrante tá na mente acabou acabou
(Mário Caldato Jr.1998) Fecha a conta e passa a régua que eu tô que tô

Samba, a gente não perde o prazer de cantar Muito respeito aos arquitetos da música brasileira
E fazem de tudo pra silenciar Os verdadeiro é aqueles que nunca tão de bobeira
A batucada dos nossos tantãs Que no quintal ou na escola o samba é de primeira
No seu ecoar, o samba se refez Poeta operário de segunda à segunda-feira
Seu canto se faz reluzir
Podemos sorrir outra vez Tá na hora de bater essa parada
Samba, eterno delírio do compositor Da mesa ser virada
Que nasce da alma, sem pele, sem cor De bora com a conversa fiada
Com simplicidade, não sendo fugaz Bate forte no meu peito
Fazendo da nossa alegria, seu habitat natural Do jeito que não tem fim
O samba floresce do fundo do nosso quintal Bate surdo agogo pandeiro e tamborim

Do fundo do meu quintal Sorria meu bloco vem bem descendo a cidade
faço esse som pra você vai haver carnaval de verdade
Duas vitrolas, vinil e uma SP o samba não se acabou
estilo variado fazendo a estrutura balançar
cantando rap samba láiá láiá láiá Sorria o samba mata a tristeza da gente
deixo a temperatura do recinto quente Quero ver o meu povo contente
com o microfone na mão Do jeito que o rei mandou
abalando tudo pela frente
eu entro no samba com meu hip-hop Então checa prá cá que o bloco chegou
o dj solta a base a mulata sacode O samba não se acabou
não precisa presta atenção no que eu to dizendo Não adianta reclamar que não tem caô
não tenho o que rimar O que passou passou
eu mando um remendo
agora lembrei de uma boa que rima com samba Um carnaval diferente foi o que o rei mandou
eu sou da nova geração e E é nesse que eu vou
minha ginga é de bamba E nem importa qual direção que eu tô
mas sempre influenciado pela velha guarda
veio do fundo do quintal essa parada S‘embora !
fronteira não há para nos impedir
108

Produto nacional de exportação do bom Se eu canto samba é que o meu rap agora tá lá
Identidade nacional só prá quem tem o dom Não adianta que o meu rap não vai parar
Vacilou sambou literalmente na parada Vamo que vamo que o som não pode parar (2x)
Essa é pra deixar qualquer cadeira quebrada
Meu samba é assim
Quem diz que o povo esquece facilmente Chega e fortalece a corrente
te engana novamente Vagabundo corre atrás porque eu já tô lá na frente
não quer que voce olhe prá frente Meu samba é assim
Força e coragem prá enfrentar tudo o que vem Luto por toda a minha gente
Diz que tem Tá ligado? RJ, tipo linha de frente
Diz que tem
Diz que tem também O canetão rodou o mundo
Assinatura (iiiiiii) tá lá no muro
Sorria.... Se eu quero fama? Não
Pergunte assim:
Muito respeito aos verdadeiros arquitetos O que é que é o samba?
da música brasileira Meu samba é assim
Comigo:
Eu digo Chico Science (Chico Science) Minha camisa é manifesto
Eu digo Cartola (Cartola) 33 e um terço
Eu digo Jovelina (Jovelina) Quem tem estilo reconhece que já vem de berço
Eu digo Tom Jobim (Tom Jobim) É força e branco
Eu digo Candeia (Candeia) fica no talento condins
Eu digo João Nogueira (João Nogueira) São as coisas simples da vida
Eu digo a Dona Neuma (Dona Neuma) Que me fazem feliz
Tim Maia (Meu Amigo)
Quem tem os beats e sabe o que faz
Meu Samba é assim Bota a mulhereda sambando e pedindo mais
(Marcelo D2, 2006) Me lembro muito bem de ouvindo João Nogueira
De um rap junto com samba
Quem é que mistura o rap com samba? Lá na quadra da Mangueira
Eu disse samba (samba) Do samba de primeira esquentando os tamborins
E pega um Dj (Dj) e um tamborim (tamborim)
Então vem comigo Meu som é assim
Meu Samba é assim Minha cara é assim
Tá bom pra mim Minha voz é assim
Nos toca-discos e um tamborim Eu sou assim
A calça é larga, o boné pr'o lado, E se quiser gostar mim, aê
4x4, mas sincopado Meu samba é assim

Aperta o play, aumenta o som (Pra mim, pra mim


E joga na seda aquele do bom O samba é bom
No batidão, chora cuíca quando é cantado assim)
Erros e acertos parceiro, coisas da vida
Mas quem diria? Que engraçado hein! Malandragem (o filme)
Foi pra cadeia e agora bomba no rádio (Marcelo D2, 2006)

MD2 de novo, a voz do povo Aí malandragem, é contigo mesmo, é contigo


Do tiozinho mais velho ao moleque mais novo mesmo..
Trago cultura de um jeito simples
Corpo fechado que não aceita revide Reza aquela lenda que malandragem não tem
Você não sabe o que é que rola parceiro? Malandro que é malandro não fala pra ninguém
Te conto Antigamente era ceda, hoje a camisa é larga
Só um tempinho pra mim (shhhhhh), tô pronto! A noite começa em qualquer lugar e acaba é na
Lapa
Se eu canto rap é que meu samba não vai parar O que era calça branca agora virou bermudão
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Mas continua o anel, a pulseira e o cordão Mantém a boca fechada com responsabilidade
Muda de conversa sem problema nenhum
Rolézinho a dois, de mustang 73 Eu nunca vi e nem vou ver esse neguinho fumar um
O Hip-Hop com samba é Bola da vez
Rap brasileiro, viajou o mundo, se encheu de A conduta certa você sabe eu também
prêmio e agora
nobre vagabundo Ahãm
Chega e tira onda, arrebenta as caixa
Entra lá na VIP e bebe cerveja na faixa Código de rua que a malandragem sabe bem

É isso que tu quer pra tua vida parceiro Malandro isso


Fumar um, tirar onda, e encher o bolso de dinheiro Malandro aquilo
Malandro que é malandro tem a cabeça feita Vê só quem fala
É a tal história da procura da batida perfeita? Se fosse um tempo atrás eu carregava é navalha

Ihhh, numa hora dessa e apita a consciência A vida ta boa, vai


Vários anos de barulho e tem que mostrar Mas sem lamento
competência Agora que a gente ta se acertando no argumento
Falar do que que eu fiz
Então entramos num acordo eu e minha consciência
É você fez sim Eu vou no sapatinho e ela tem paciência
A consciência dói
Você não vai se livrar de mim Conversa fiada
Malandragem mesmo bebe duas e vaza Cada um com a sua viagem
Leva respeito da rua e sempre o amor de casa Apenas o roteiro de um filme Malandragem

Mas que saber, essa eu fui esperto Haha


Tenho amor e respeito Aí personagem
Eu to no caminho certo Tem que ouvir a sua consciência
A maior malandragem do mundo
Haha, O que?
É viver
Só rimo com os bamba
Só nos beat bom É a maior malandragem do mundo
Só ando nos pano e represento os irmãos É viver
Então vai, vai, vai, vai
Ihhh, lá vem você de novo com esse papo
Lenço no pescoço
É lógico (Wilson Batista, 1933)
O Mario ta na mesa e o Primo nos pratos
Chega de mansinho, toma de assalto Meu chapéu do lado
O bicho pega mesmo é lá em cima do palco Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Olha aqui malandro não fica de blá-blá-blá Navalha no bolso
Eu passo gingando
O papo é reto a fumaça que eu jogo é pro ar Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Humilde, malandragem sem querer tirar vantagem Em ser tão vadio
Dedicação no jogo que o Rap é o som
Malandro é malandro Eu sou vadio
Então chega de pilantragem Porque tive inclinação
O Rap é com samba então o momento é ficar bom Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção
Papo cifrado só quem entende é a rua Comigo não
O que aprendi na vida é que cada um cuida da sua Eu quero ver quem tem razão
E esse sim, é malandro de verdade

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