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A influéneia_da economia na interpretagao_do direito bis A influéncia da Economia na interpretacgéo do Direito Leonardo Monteiro Sappak Resumo: 0 mundo atual ¢ muito dependente da disciplina econdmica Com isso, ser’ possivel se fazer hoje uma anilise juridica livre da in- fluéneia da economia? Seri possivel a construgdo de uma ciéneia juri- dica independente de outros ramos do conhecimento, em especial da matéria econémica, tal como a teoria kelseniana pregava? E isso que o presente artigo tentara responder; ¢ para atingir este objetivo fara a analise de duas importantes visdes do mundo contempordineo.A primeira mostra como o Estado cumpre hoje as fungdes de Pessoa Juri- dica e Agente econdmico ea segunda & baseada na obra A condigaio Humana, de Hannah Arendt, Embora sejam estudos distintos, st com= plementares ¢ de valiosa ajuda para a compreensao da rela Direito ¢ a Economia na presente sociedade. 30 entre O Palavras-chave: dircito; economia: estado gestor da economia; labor: acio; trabalho; sobrevivencia: instrumentalidade Cademos de Iniciagdo Cientifiea (3): 77-86, julho de 2006 78 Cadernos de Iniciagao Cientifica 3 1. Introdugio O pensamento juridico contemporineo & muito mareado pela filosofia de Hans Kelsen. Em verdad, nio ¢ possivel estudar a filosofia juridica dos nossos dias sem passar por sua teo- ria pura do direito. © que 6 a teoria pura do direito? Ou melhor ainda: por que uma teoria do dircito se diz} ‘niana se diz. pura porque visa cimento preciso do direito, livre de qualquer influgncia externa, estranha ao direito. Com essa visio depurada, 0 fildsofo se propde a responder 0 que & ¢ como € 0 dircito, a definir o objeto do dircito'. E para responder a teoria & composta de algumas earacteristi a pergunta, sua as, A primeir mente tedriea, Kelsen nao esta preocupado com a pritica do direito, com o trabalho rotinei advogados, juizes ¢ promotores, poi pura do direito nao & uma teoria do direito puro: & uma metodologia para purificar as teorias ¢ sformé a delas €a preocupagio unica- ro de sua teoria doutrinas juridicas ¢ trar Como esereve Tercio Sampaio I em ciéncia. Jr: 11 “Ora. se 0 objeto de hermengutica siio contetidos normativos essencialmente plurivicos, se 0 legislador: porque age por vontade e néo por razio, sempre abre iiltiplas possibilidades de sentido para os contetidos que estahelece, entio i ci- éneia juridica cabe descrever esse fend= meno em scus devidos limites”. GOMES, 2003; 56, 2S FERRAZ JUNIOR. 2003: 203. mais de duas Gécadas que empreende desenvolver uma teoria juridien pura, isto, purificad: atural, uina teoria juridica conseiente da sua especiticidade porque consciente dale ) “Importaya explicar, ado as suas tendéneias endevegtdas a firmagio do Direito, mats as suas tendéncias exclusivamemte ito e apresimar tanto quanto possiv: ‘oselementos decigneis akjeto" Aigidas go conhecimento do Di exald2o" (KELSEN. 1991: 1) SKEISEN 1001-1 A segunda caracteristica é a preocupa- ¢io em afastar as ideologias uma vez que s6 possivel transformar uma doutrina em eiéneia se as diversas ideologias (politicas, morais, re- livio: ) forem afasiadas, De certa forma, isso significa uma aproximagao entre a teoria Juridica ¢ as cigncias naturais (pois estas s4o as ciéneias mais exatas possiveis) * 5 ct Porém, as cigncias da natureza tratam do ser, de descrever como as coisas sio. Se doutrinas juridieas também fizerem isso. ou seja, des clas acabardo se transformando em outras a historia, a psi- cologia ou outra das chamadas “cigneias h reverem como o dircito é de fato, cién como a sociologia manas”. bocaria em um sincretismo metodolégico que ncia juridica do seu foco. Se- gundo 0 autor: “De um lado i a jurisprudéneia tem-se confundido ia, com a ética Kelsen nao quer isso, pois desem- desviaria a ¢ teiramente acritico, com a psicologia c a sociol ea teoria politica” Surge dai a terceira caracteristiea que & justamente a preocupagdo com a autonomia do conhecimento juridico. Para garantir essa au- » se li- tonomia. Kelsen estabelece que o ditei studo do dever-ser. Isso significa que a investigagio juridica deve se voltar nao para ito & mas para como el nifiea que 0 estudo do direitos mita ao como od deve se Também si imita ds normas, pois © que torna um fato juri= nente a atribuigao feita pela nor ma, ou seja, a imputagao feita pela norma a um dico € fato, fazendo com que dele decorra uma sé de conseqiiéncias. Porém, sera possivel fazer uma cién- cia do direito auténoma ante outros ramos. de toda idgologia politica ede todos alidade espeeifica do seu os seus resultados do ideal de toda a ciencia: Objetividade & A iniluéneia_da economia na interpretagdo do direito i) do conhecimemto, isto &, completamente in- dependente de qualquer interpretagao hist6- rica sociolégica ou psicolégiea? E mais, ¢ este ¢ 0 verdadeiro tema do presente estu- do, em um mundo to dependente da eco- ia, sera possivel fazer uma anilise do direito livre da influéneia da téenica ecandmica?’ E isso que o presente artigo vai ientar responder através da breve ansilise de dus visdes do mundo contempo- rineo. A primeira mostra eomo 0 Estado cumpre hoje as fungdes de Pessoa Juridica e Agente econdmico ¢ a segunda é baseada na obra A condigdo Humana, de Hannah Arendt. Embora sejam estudos distintos, so complementares @ de grande ajuda para a compreensao de como 0 Direito’ e a Econo- mia estdo relacionados. nom valio 2. O Estado gestor da economia A capa da primeira edigdio do livro O Leviatd de Thomas Hobbes traz a ilustragao de um principe, cujo corpo € formado de indivi- duos, seus sitditos. brandindo uma espada. O nome Leviaid é de um monstro biblico, que aparece no livro de JO, tanto que acima da figu- ra do prineipe existe uma frase latina retirada deste livro que diz: Non est potestas super ternun qua comparetur (“Nao existe poder so- bre a terra que se compare”). Essa imagem ¢ a imagem do Poder ¢ a Pessoa que aparece na figura € 0 Estado, com- posto por seus stiditos. Nesse sentido, Hobbes antes de construir uma teoria do Estado, cons- tr6i uma teoria dos individuos. Para Hobbes, 0 homem ¢ 0 indivicuo’, mas que almeja a gloria no tanto os bens. E por tanto buscar a gléria (que tam- bém inclui as riquezas, m nao um fim em si mesmo) que o Homem, no estado de natureza vive em condigao de gue ra. com 0 outro, porque se imagina com Poder. Quer preserva-lo, a0 mesmo tempo em que ten- como um meio Para por um fim a esse conflito é que sur geo Esiado, que deve ser forte (como a figura do prineipe, que empunha a espada), O Estado com poderes plenos deve existir para forgar os Homens 0 respeito: “Porque as leis da natureza (como a Justiga, a equidade, a modéstia, « piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos facam) por si mesmas, a auséneia do temor de algum poder capaz de levi-las a ser respeitadas o coniriirias « nossas paixdes naturais, as quai nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vinganga e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada nfo passam de palavras, sem forga paral dar qualquer seguranga a ninguém. Portanto, ape- sar das leis de natureza (que cada um respeita Em uma visto trudicional, a economia tem por objeto a abtengio & o emprego das bens e servigns titeis de que o Homens necessita dads materiais. Estuda como ompre Ir Feeurses escassos na produgio de bens ¢ serviges ¢ distribui-Tos dda formna mais equaime possivel para todos, Existem autores, contude, que defendem uma ideia diferente com relagio a economia, atual: “Na nv era, os meveadlos estio cedende Lay cess. AS eMpresis € os consuimiddores esto eamegando a abandonae a re no mercado, [sso nao significa que Jade continuani a enistir; mas com ums probabilidexds bem menor de ser trocada emi mereades. Em vez as miateriais entre vendedores e compradore’ Acesso. Ao conteirio, A propric isso, os fomecedores detém a propriediade nar novat economia & fazer assinatura ou pela associaedo a curto przo, troca de bens entre Vendedores ¢ compradares /oenire servidores ¢ elientes que operam em ede. Os mereados permangeem, is humanes" (RIFKIN, 2001: 4) de Mereal Modem ‘mas desempenhatn um papel cada vez menor nos ney 44 lugar ao acesso a euro pr stray redes. ¢ x) nog de propriedade estd serio substituids rapidumente pelo lige central ds viet economies moderna ~ a troea de propriedade iti desaparecer no iniefo da alugam ou cobra uma taxa pela edenssio, pela aspecto mais importante do sisiema 0 Diteito, em urna visto tradicional, ¢ um instrumento de diseiplina social que tem por fim proteger bens pbicose socinis de forma athaver harmonia social, Para isso existe a delcaagde de poderes para determiinados individues i -os.lem disso, 0 Direito tambem pode ser entendito como. citneia que trata dese instrument de ciscipling social, Nesse sentido: “A interpretagio de nom monstrar a verdade ou relativo a meios — mais ou menos aptos RIBEIRO, 1998, 59, ss juridieas mio corresponde a um conbecimento cientitied, ¢ porein regras aos demais que por sua 2 de de. dade de suas proposigaes, Coresponde, sini, a un conhoeimento de outro nivel, wenolégice. E um saber a realizayao de fins dads" (COELHO, 2003: 31) 80 Cadernos de Iniciagao Cientifica 3 quando tem vontade de respeité-las e quando pode fazé-lo com seguranga), se nao for instituido um poder suficientemente grande para noss a, cada um confiari,e poder’ legitimamente con- fiar, apenas em sua propria forga e capacidade, como protegio contra todos os outros, Em todos 05 lugares onde os homens viviam em pequenas ‘guran- familias, roubar-se espoliar-se uns 20s outros sempre [oi uma ocupagao legitin ser considerada contriria lei de natureza que sauiida maior ,€ tio longe de quanto maior era a espoliagao cons: a honra adquiricka™ Assim, cada individuo concede a um Homem ou Assembléia de homens o poder para governi-los, pois no estado de natureza a vida E curta ¢ cabe ao Estado pr a (“A tnica maneira de instituir um tal poder comum, ea- paz de defendé-los das invasdes dos estrangei- ros ¢ das injirias uns dos outros, garantindo- thes assim uma seguranga suficiente para que, mediante seu proprio labor e gragas aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfei- tos. & conferir toda sua forea e poder, a um ho- mem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma s6 vontade”)’. tee O Leviati de Hobbes significa o fim da distingdio entre a esfera publica e a esfera pri- vada, pois ¢ fungao do Estado garantir a Vida Humana, inclusive economicamente, So que na antiguidade a economia era um assunto priva- do. Ja na cra moderna, o Estado & uma espécie de gerente empresarial, s6 que a administragao & de pessoas (os stiditos do soberano) ¢ nao de coisas, ¢ © governante faz isso para se manter no Poder, 0 Estado Moderno pressupde 0 gover- no como técnica administrativa. Esse press posto ¢ diferente, pois 0 governo se baseia em uma pessoa juridica chamada Administragio Citagio de Thonias Hobbes extruida de RIBEIRO, 1998: 61 RIBEIRO, 1998: 62 FERRAZ IUNIOR. 1998: 310. Publica, Nas palavras de Tercio Sampaio Ferraz Jr: “Seu pressuposto (do Estado Mo- derno) esté no reconhecimento do governo como uma unidade de ordem permanente, nio obstante as transformagdes ¢ as mudangas que se operam no seio da sociedade. O Estado, como vai dizer Orlando, afirma-se como pes- soa; & nessa afirmagdo que se contém sua ca- pacidade juridica, ¢ esse 0 momento que sponde & nog’ do ¢ entio soberano, pois é uma pessoa juridi- ca que estd acima das pessoas fisicas para dar a elas unidade de ordem permanente. corr o de soberania””. O Fsta- Todavia, 0 Estado Modemo nao & Pessoa Juridic ambém & agente econd intervindo na vida econdmiea através da sua par Licipaggo no mereado. Isso significa que o Estado tem uma faceta de gestor da economia, cuja tes- ponsabilidade, tal qual a do Leviatd de Hobbes a garantir a sobrevivéncia da populagao, penas Esse Estado 6 subordinado ao direitos portanto, ele subordina suas atividades ao di- reito que ele declara, geralmente corporificado em uma Constituigao. Mas, se ele declara 0 direito, isso nao. significa que 0 Estado Modemo se limite pelos direitos individuais, pois ele nao tem limites a prioria ele proprio. Os limites sao eriados pelo proprio Estado. Como pessoa juridica 0 Estado certa- mente esta subordinado ao direito, No entanto a logica do direito estatal nao viré do proprio direito ¢ sim da gestao econdmica.A face gestora da economia adquire fundamental rele- vaincia porque o Estado € agente econdmico justamente para proteger a vida da populagao, garantir a sua sobrevivencia (nao é como na antiguidade em que a manuten assunto privado) o da vida era A. influéncia da economia na interpretay “io_do direito 81 Enquanto pessoa juridica, por exemplo, 0 Estado deve defender os direitos fundamen- tais, porém, enquanto Estado Gestor estes di- reitos podem ser relativizados em nome da guranga ¢ da sobrevivéneia do pove (a vida & se- um valor fundamental que deve ter a protecdo estatal, contudo, em nome da seguranga de to- dos, ¢ permitido a policia matar um suspeito de mo, mesmo porque & economicamente terroris falando, apenas a yida de um em comparacio com 0 resto da sociedade). modelo do Estado Gestor da eco- nomia &o que vige hoje ea tinica diferenga d te Estado para 0 Leviati de Hobbes & a de que este visava a protegio do individuo enquanto 0 ido Gestor defende a sociedade de massas, na qual o individuo perde a individualidade. No Estado Gestor da economia, a vida humana é vi © instrumentalizado: “Ora, zacio de tudo (por exemplo, a erianga que de manha escova os dentes. Usa escova ¢ pasta ¢ Agua ¢, com isso, contribui para o produto in- temo bruto) conduz a idéia de que tudo, afinal, émeio, todo produto & meio para um novo pro- duto, de tal modo que a sociedade, como um todo, se concentra em praduzir objetos de con- sumo, cujo consumo & de novo, meio para 0 aumento da producdo ¢ assim por diante. Destarte, esta preocupagdio do Estado, ao qual cla confere uma lgica propria: a logica do Es- tado-gestor, do Estado que assume, como um ato de soberania, a responsabilidade pela so- brevivéncia coletiva, aquela situagdo social na qual impera somenie um interesse, cujo sujcito nao € o homem nem os homens, mas as clas- ses, na melhor das hipdteses. o corpo social como um todo. Na légica do Estado-gestor tudo. © que nao serve ao proceso vital & destituido de significado. Até o Pensamento torna-se mero ato de prever conseqiiéneias ¢ sé nessa medida € valorizado™", 1a sob a otica do econdmico ¢ tudo. rumentali: FERRAZ JUNIOR, 1988: 311 ' BERRAZ JUNIOR, 1988: 312. H ARENDT 700s O direito também ¢ instrumentalizado “Mesmo 0 direito, na légica do Estado-gestor, & mero instrumento de atuagio de controle, de planejamento, tornando-se a cigneia juridica um verdadeiro saber teenoldgico” O sentido do direito nio seri encontrado nem na yontade do legislador nem na vontade dat Ici. Ainda so possiveis as interpretagdes histéri- cas (para se encontrar a yontade do legislador) & sociolégicas (para encontrar a vontade da lei). No Estado Gestor da economia, porém, é complicaco optar sobre qual ¢a melhor opgio de interpretagdo pois a melhor sera aquela mais econdmiea, ou seja, aquela que gera mais beneficio com o menor custo de vida para a populaedio, aquela que consegue cal- cular economicamente © custo dos direitos. 3. O advento da sociedade do Homo Laborans Como ja foi dito, « postas advém do livro A condieito Hu- idgias que serto aqui mana, de Hannah Arendt. Apesar de nao ser uma obra especifica sobre o direito, sua leitura permite uma interpretagao riea para a compre- ensio do direito atual. A autora desereve @ Antiguidade apon- tando para a distinedo que la existia entre duas formas da cxisténcia humana piblica ¢ a esfera da vida privada’’, aesfera da vida A vida piblica era a vida na polis, correspondia ao espago da Assembléia. A vida privada corresponde a tudo que & doméstico, a vida familiar que se passa na Oikia (casa), Na esfera privada reina a necessidade, que s6 € saciada com a atividade do labor (alimentar- se, procriar, descansar). O labor é assim aquilo que tem relagio com a produgao de bens de consumo, como os alimentos. [3 mundo ¢ apd sua produgdo sao integrados ao cor- po de quem os consome: perecem, portanto. es ndio tém permanéncia no 82 Cadernos de Iniciagéo Cientitica 3 O homem que labuta age como um ope- rario, pois utiliza seu proprio corpo e instru- mentos para chegar 20 seu fim (0 homem que planta, planta para sobreviver ¢ utiliza o traba- iho das maos, além do arado, da enxada ete.). Esse operirio que labuta podja ser chamado de animal Iaborans. O lugar de se laborar era a casa (Oikia) e, detalhe importante, a matéria correspondente a esta atividade eraa economia (tanto que palavra “eco- deriva de Oikia). A casa também era o ar da familia, que era regida por relagdes desi- guais jd que o Homem exercia 0 comando sobre Ihos e seus escravos"* sua mulher, seus Nessa esfera, 0 nome “privado” vem justamente das privagdes que o Homem tinha de suportar pois estava submetido a necessida- de e, por isso, privado de liberdade"® Os tinicos que podiam se liberar dessa situagao eram os cidadaos (cives), que podiam ser livres no espago piiblico da pélis E eles eram livres porque na Assembléia cles exereiam a atividade da agao: “agit, no tido mais geral do termo, significa tomar inicia- tiva, iniciar (como o indica a palavra gre: archein, - comegat, “ser 0 primeiro” e, em alguns casos, *governar’), imprimir movimento a algu- ma coisa (que ¢ o significado do original do ter- mo latino, agere), Por constituirem um Initium, por serem reeém-chegados e iniciadores em vir- tude do fato de terem naseido, os homens to- mam iniciativas, sto impelidos a agir. (Initium) ergo ut esset, creatus est homo, ante quem nullus {uit(“portanto, o homem foi criado para que hou- vesse um comego e antes dele ninguém existia’), diz Agostinho em sua filosofia politica. Trata-se de um inicio que difere do inicio de mundo; nao €0 inicio de uma coisa, mas de alguém que on 86, justiga, para o filho © para x muller, 1 o esiava na cidade, & porque se encontrava em eas ele proprio, um iniciador. Com a criagdio do ho- mem, veio a0 mundo o proprio preceita de ini- cio; e isto, naturalmente, € apenas outra maneita de dizer que o preceito de liberdade foi criado 20 mesmo tempo, € néo antes, que o homem™® A assembléia y se confunde com a familia. Ela é feita pelos senhores, chefes de familia. Mas dentro da assembleia eles se com- portam de forma diferente, Eles no usam a vio- léneia para tratar com desiguais (como na fami- lia, em que o chef pode dispor de qualquer um de seus membros). Dentro da assembiéia o chele de famil ele um ditlogo. No espa violén gualdade pela isonomia. ia encontra o seu igual e estabelece com co pitblico, portanto, a 6 trocada pela delibera pe a desi- Donde poder se coneluir que na polis nao existem apenas as relagdes familiares de parentesco, mas também as de eidadania A ago tinha duas caracteristicas rele- vantes: A ilimitagao e a imprevisibilidade ilimitada porque decorria de um fuxo conti- uo de relacdes politicas e por isso, impossivel de ser prevista, Isso gerava grande instabilidade nos negécios humanos, especialmente na politica A tinica estabilidade viria de virtudes como : prudéncia e 0 equilibrio. Mas, para que estas virtudes pudessem surgir, eram necessirias certas condigdes: fronteiras territoriais para a cidade. as leis para propriedade, que eram consideradas limites 4 agho, embora sua estabilidade nfo decorresse esses limites. Em outras palavras, a polis nao era propriamente um limite fisico e normativo, mas um conjunto fugaz de agdes. Contudo, para que a polis, enquanto teia de relagdes, surgisse, out jue era 6 chet da familia senterciand como em tribumal em virtxle ts sia auxoridade marital ou paterna, em nome da familia amparado pelas divindades domstias.” (COULANGES, 2001: 101). S ARENDT, 2004: 68 "ARENDT, 2004, 190. A influéncia da economia na interpretagdo do direito 83 era ndo diria a delimitagdo fisiea da cidade, que era trabalho do arquiteto, mas tam- bém a legislagio que era trabalho do legisla- dor, considerado uma espécie de construtor da estrutura da cidade”. Surge aqui 0 coneeito de trabalho. Ao coniririo do labor e da ago, o trabalho era con- siderado pela sua finalidade e pelos meios que atingiriam esse fim. Nao era uma atividade fu- gaz, pois seu produto adquire permané mundo, sendo separado de seu produtor, O cle- mento violGneia estd presente no trabalho, devi- do a transformagiio que este faz da natureza’, ncia no Como mostra Tercio Sampaio Ferraz Junior: “Na Antiguidade pode-se dizer que a legislagdo enquanto trabalho do legislador nao se confundia com o direito enquanto resultado da agio, Em outras palavras, havia diferenga entre Jex ¢ jus na proporgiio da diferenga entre “trabalho” ¢ Desse modo, 0 que condicionaya o jus era a lex, mas 0 que confe= ria estabilidade ao jus era algo imanente 4 agao: tagio’. a virtude do justo, a justiga™”. Com 0 surgimento da Era Moderna, 0 antigo sentido de aco vai sendo transformado, confundindo-se cada vez mais com o trabalho Assim, a aco vai deixando de ser uma atividade considerada cm si mesma para ser algo valori- zado de acordo com sua finalidade. Porém, 0 trabalho da antiguidade eaistia para se domi nar as coisas ¢ no os homens. A ago politica FERRAZ JUNIOR. 08:24 ©©0 trabalho de nossas mas, em contraposign a0 labor do nosso corpo — 0 home fiber que << faz ‘oposigi 0 ania Iaborans que labora & vio arificko hurnano, Env sua maioria, mits sobre>> os mater ceuja soma total con dotados da durabilidade de Locke necessitava para 0 estalelecimento da propriedae, do transformada em fabricagao faz com que o di- reito seja reduzido a norma ¢ um instrumento para © atingimento de fins (vai-se falar no di- reito como instrumento para a seguranga, para 2 paz, para a protegao da propricdade ete). A politica deixa de ser um agir em conjunto para se tornar um mero instrumento de meios ¢ fins, perdendo, pois. seu sentido original. Por isso podemos dizer que a era mo- derna traz a supremacia do homo fiber, em que © “homem politico” na expressiio de Aristételes (politikon zoon) da lugar ao homem mereador, comerciante, pois quando o homem & reduzido a um fabricante de coisas cle s6 consegue s relacionar com outro homem trocando merea- dorias com cle". O comércio passa a ser, er tio, a principal atividade pol gas No mundo do homo faber a comut do no se da dirctamente de pessoa para pes- soa, mas tem como intermediario 0 produto. Entdo o homem passa a ter valor de acorde com a mereadoria que produz. Isso significa a alie- nagdo do homem, pois embara ele seja distinto do objeto que fabricou, este objeto passa a ser considerado mais importante que 0 prop Homem, a ponto de este nao mais se reconhe- cer no scu produto. Ocorre que nese mundo o direito tam- bém passa a ser um objeto cujo fim ¢ produzir resultados dteis. O direito se identifica com a norma que atua na vida das pessoas de forma teralmente < trabalhs ss¢ mistura com => eles -fabrica a infinite variedade de coisas 10 exclusivamente, essay EvisHS NT objeies destinados a0 Uso, valor de que Adam Smith precisava reditava ser o teste da naiureza humana. Devidamente usadas, para 0 mercado de wocas, © comprovam a produtivitade que Mary ‘elas n30 desaparecem:,e emprestam ao artiticio humano a estabilidade ea solide sem as quais no se poderia esperar que ele servisse e abrigo & eriatura mortal ¢ instivel quo 6 6 homeat"( ARENDT, 2004: 149), YA fabricagio, que & o trabalho do hhonio faber, consisie em reificayao. A solider, inerente a todas as coisas, até mestno as mais frégcis, resulta do material que foi abslhado; Mas esse mestio natetial nde ¢ simplesmente dado e disponivel. come os frutos do ‘campo € das irvores, que posemos colher out deixar em paz sem que coma isso alteremos 6 reino cia aatureza. O material ja & um Produto das mains humanas que o retraram de sua natural localizagdo, seja matando um processo vital, como no caso da devore que tem ‘que ser destruida para que se obienha a madeira, seja interrompendo algum dos processos mais lemlos ca nature, como ma ease do ferro, da peda ou do mérmore, arrancados do ventre da teima, Este elemento de viokagao ¢ de violgneia est presente em odo process ce fabricagao, ¢ o home faber criador do antifieia humano, sempre Foi urn destruicor da nauireza” (ARENDT, 2004-152) 2 FERRAZ.HINIOR 0874 84 Cadernos de Iniciagéo Cientifica 3 rcutra ¢ utilitéria, E algo despersonalizado, ji que a preocupagio niio é mais a busea, como na antiguidade, da viriude, da justiga através do agir em conjunto. Agora basta um direito identifica- do com a norma e que produva fins tteis. Todavia, uma nova mudanga ocorreu: o trabalho passou cada yez mais a ser identificado com o labor. Eo surgimento do animal laborans. © labor. ao contrario do trabalho, nio tem permangncia ne mundo ja que sua atividade &consumida pelo homem. Coniudo. 0 labor tem a produtividade inerente a forga humana de pro- duzir condigdes de subsisténcia, ou seja. forga de trabalho. O objetive do animal laborans & a mer sobreviveneia ¢ a pess va movida pela necessi- dade nio conhece outros valores seniio a pro- que laboraré voltado para si mesmo e independe dos demais e do mundo construido pelos homens. e tor Acontece que quando o Homem s na somente forga de trabalho cle pode ser tro- cado. pois ele ndo passa de um produto fungivel (basta observarmos © operirio de uma fibri cuja fungao pode ser feita indistintamente por qualquer outro trabalhador, pois sua forea de trabalho pode ser substituida a qualquer mo- mento ¢ por qualquer motivo), a 0 animal laborans equivale © & consi- derado como uma maquina ja que ele esta inse- rido na sociedade de consumo em que todos sio julgados de acordo com as fungde m no pracesso de trabalho. Nesse tipo desociedade (semelhante a que exeret A metercologia preveas condigoeselinsitieas part unt melhor plant, Porsua vera bivlogis ea gamma alteran 0 cod ahmentos de forma a tor-Hos mais duradouros e matrtives, nctementand o pr or isso ess diseiplinas teenicas si ites ¢ muito valorizadss pelo animal cia ou sokwevivéncia — do Homem nas lon ‘Como, por exemplo, as indistrias farmnaecutics: Seus eritérins para o investimento e 4 pesquisa de remédios e: arelados ao que gerard Iuero do que con a etradicagao de doengas, Assim tenes que a farmavoloxs revnclinsis sat ner eval ones crm vives hoje), os saberes téenicos adquirem gran de importineia (o pensamento s6 tem relevaincia quando for dtil para os fins humanos, nao tem valor por si mesmo). As ciéneias sa valorizadas medida em que podem prever conseqiiéncias & aperfeigoar a atividade laborativa', Por isso ad- ela quire enorme importincia a economia. pois estuda a melhor forma de se utilizar os ben cassos, a forma mais adequada de produgio ¢ distribuigdo dos bens de consumo, a racionaliza- cao da vida das pessoas no sentido de melhor obter os produtos indispensiveis para a sobrevi- Em verdade, o econdmico rege 0 com- portamento dos Homens, pois sem esse saber tée- vene nico a atividade de laborar, de produzir bens para a sobrevivéneia, fica prejudicada. Endo tudo adquire um sentido instrumen- tal, cuja tltima justificativa éa sobreviveneia: uma obra de arte deixa de ter valor por si mesma, mas se torna em valioso investimento quando se trata de um Picasso ou um Dali, por exemplo. A cién- cia nfo & mais (ou ndo é apenas) um instrument para se descobrira verdade, mas, sobretudo, uma enorme fonte de lucros®, que uma ver gerados possibilitario mais investimento eassim num con- tinue, de empresiri- 08, trabalhadores, seus familiares etc. arantindo a sobreviven Essa loi formando-o em um saber teenologico, Quantos no o estuclam tendo em vista nao um modo de se buscar a justiga, mas um meio de sustento estavel © suficiente para garantir a sobrevivéncia? tambem atinge o direito, trans- E quanto a sua aplicagdo, muitas vezes: cla ovorre tendo em vista ndo © que & justo, mas apenas 0 que ¢ economicamente vidivel: um juiz que julga uma causa referente a um con- rato: Sua decisio sera tida por eficiente se ele, a0 reconstruir a vontade das partes decidir da sso vit da ubor e contin para torn a existe bborins estétiea tem muitas vezes A. influéneia_da economia na interpretagio_do direito 85 forma que acarrete menos prejuizos econémicos para elas (ndo importa se uma das partes descumpriu injustamente com suas obr ou nao, importa que haja o menor prejuizo evondmico, pois assim os recursos para a ma- nutengiio da vida do autor e do réu fieardo me nos prejudicados ¢ é isso que interessa na soci- edade do animal laborans). nais uma citagao de Tercio Por fim, vale Sampaio Ferraz Junior: “O tiltimo estigio de uma sociedade de operirios, de uma sociedade de con- : ociedade de detentores de em- sumo, que ¢ pregos, requer de seus membros um fim mento puramente automyitico, como se a vida in- dividual realmente houvesse sido afogada no’ proceso vital da espécie ea tinica decisao ativa ia do individuo fosse, por > levar, abandonar sua individualidade, as dores ¢ as penas de viver ainda sentidas indivi- dualmente, ¢ aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e trangiiilizante” sim dizer, dei- nig nares 4, Conclusio Vimos a formagio do Estado contem- porineo sob a ética de duas visdes distintas, Bibliografia ARENDT, Hannah. A Condigdo Humana. Sio Paulo: Editora Fe CORLHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comerc Editora Saraiva COULANGE: . Fustel de. A Cidade Anu FERRAZ JUNIOR, Tercii » Sampaio. As origens do Estado comemporineo ou 0 porém complementares ¢ que coneluem pela grande dependéncia que © Homem atual tem pela diseiplina econdmiea. Com isso, podemos unta feita, no inicio deste art ora responder a per 0: seri pos- sivel fazer uma ciéncia juridiea completamen- te independente de outros ramos do conheci- mento, em especial a economia? A Gnica resposta que este trabalho pode oferecer & que ndo, pois seja quando a na & inspirada por ideologias econdmi- eas, seja quando © direito é instrumentali- zado para atender aos ditames da economia, a pritica juridiea contemporinea esté com- pletamente indissociada da economia ¢, so- bretudo, do raciocinio econémico que domi na a vistio de mundo da sociedade. Bas mos a forma como o dircito ¢ wtilizado como planejamento, como controle econdmico, fa- vorecendo uns ¢ desfavorecendo outros, tudo ivéncia da populagio nor ta ver em nome da sobre: Dianie desse quadro. niio ha como ¢s- crevermos sobre o direito sem adentrarmos 0 terreno da técnica econdmica. 004. pse Universit | volume 1, 7* Edig&o, Sao Paulo, 2003 10 Paulo: Editora Martin Claret, 2001 Leviathan” gestor da economia, Arquivos do Ministerio da Justiga. Ano 41, Némero 171, Fundagio Petronio Portela, Janeiro/Margo de 1988. “O homem nesse espace mostra-se por meio de seus prodtes, Esses produtos sie as coisas que usa" (FERRAZ JUNIOR, 2003: 24), * Ao lone dos tempos, especialinente no séculy XX. ts ideoloy diversas concepgdes de Estado de bem-estar soekal, dentre outras) tim exercida influences marcante na eka. we20 da norma juridica. Para ver cama Se da essa influeneia omy nossa Const Josué. Prineipios Constitucionais da Ordem Leondmiea. 1? Edigae. * Como, por exemplo, quando o diteito do trabalho & Mlexibiliaulo para atender as mecessidades lo me npregados ¢ atender vm ecu de ous © benef ea pol os inviclise: nodose alert avnna een hme econdinicas (Tais como o Liberalisinn, 0 socialise, as hoe interpre 1 Federal. re PETIER, Lafaye! 005. Editora Revista dos Tribungin. reculo, ele € Meyibilizato pr dos emnpreysdores, 34 m0 & mais ny diteito fundamental 86, Cadernos de Iniciagao Cientifica 3 Introdugdo a0 Estudo do Direito, Sio Paulo: Editora Atlas, 2003. GOMES, Orlando, Raizes histéricas ¢ sociolégicas do Cédigo Civil Brasileiro, 1° Edigto, Sto Paulo: Martins Fontes, 2003. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, Sio Paulo: Editora Martins Fontes, 1991. . Lafayete Josué. Principios Constitucionais da Ordem Econémica. Sao Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. RIBEIRO, Renato Janine. “HOBBES: O medo ¢ a esperanga”. In Clissicos da politica org. Fran- cisco C. Weffort (org.). Sao Paulo: Editora Atiea, 1998. 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