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1. Introducdo sofo é aprender o proprio tempo Hegel A questo central da filosofia do direito, a determinagaio do con- ceito de direito, tal como ela foi tratada pelos autores mais célebres da corrente denominada “positivismo juridico”, Hans Kelsen (1881 1973), Alf Ross (1899-1979) Herbert Hart (1907-1992), constitui 0 objeto do presente trabalho. Tendo esses autores polemizado muito entre si, habitualmente os intérpretes tendem mais a ressaltar as suas diferengas do que as suas semelhangas, 0 que torna obrigatério uma ustificagao do porqué reuni-tos nessa andlise sob 0 rétulo “po ‘mo’ Para elucidar o sentido em que serd utilizada a expresso “posi- tivisma", cabe examinar o.contexto-hist6ricol que presidiicn Sei has- cimento. Com a Reforma, ha uma cisdo na cosmovisiio ocidental. No mes- ‘mo espago geogréfico, encontram-se agora individuos com visoes de mundo e valores diversos. Nao hi mais valores “objetivos”, que re- cebam a adesdo generalizada. O dissenso em relacao aos valores fez com que estes fossem relegados a esfera privada, tornando todo juiz0 (© Postvismo uriden Conternporéneo 13 ativo apenas a expresso de uma preferéncia subjetiva. A moder- nidade traz a luz a sociedade pluralista, aquela onde impera, para utilizar a expressiio de Weber, 0 “politefsmo dos valores”. Nesse con- texto, 0 apelo & justiga, entendida como qualquer qualidade ético-po- ica que torne uma norma merecedora de obediéncia, € fator de inseguranga na identificagao do juridico, na medida em que os valores, formadores do Ambito moral da vida social, carecem de um contesido objetivo. ‘A principal fungao do Estado Moderno, na sua versio absolutista, le esta: fornécer um padrdo objetivo de resolugio de a uma sociedade, cujo pluralismo poderia levar & dissolugio. A lei € simplesmente um comando do soberano. Ela icar-se com 0 justum, € a_ser identificado com o jussumi (comando) do soberano, Nio. é necessirio.recordar que Hobbes € 0 autor de referencia dessa proble- mitica. 0 Estado Absolutista impde assim, o “império da lei", que passa a ser a condigio de possibilidade de coexisténcia pacffica em uma sociedade pluralista, onde os sujeitos, concebidos agora como indi- viduos que perseguem seus proprios fins (interesses), nao esto li- mitados nas suas escolhas e atos por um erhos comum. O Estado Absolutista, que monopoliza a produgdo jurfdica por meio da legis- JacZo, € a resposta institucional as incertezas da sociedade de mercado emergente? O Estado Moderno, entretanto, conhece uma segunda articulaga0 institucional, que sucedeu.o Estado Absolutista: o Estado Liberal. Em um primeiro momento, a sociedade moderna teve necessidade da instituigao de um poder absoluto, que sobre os escombros da socie- dade feudal, garantisse a acumulagao da propriedade num contexto essencialmente conffitivo pela auséncia de limites impostos pela tradi- 40 & ago social. ‘Tendo cumprido este papel, o Estado Absolutista se fornou obsoleto e até mesmo perigoso. O seu poder ilimitado tornou-se um riseo para o beneficidrio da sociedade de mercado, a classe bur-guess. ne sociedade de meade, 2 Sobre as relages entre Bato Absol aia politica do indivi de Hobbes, ef. MACPHERSON. 14 Luis Femando Barzotto iante de um Estado que poderia utilizar seu poder para Fa acumulagio de propriedade e a troca de mercadorias, pos-se w para impor limites a ele. A vit6ria da burguesia teve como resultado a construgao juridico-politica que. ficou conhecida como Es- {ado Liberal. No Estado Liberal, o valor dado a seguranca alcanga um patamar superior aquele realizado. pelo, Estado. Absolutista, Neste .iltimo, o Estado fornece seguranga contra. a ago dos.outros.individuos. No Estado Liberal, a ordem juridica garante a seguranga do individuo contra a agao do préprio Estado. Isto porque, no Estado Liberal, todo poder é de competéncia juridica. O proprio poder de criar 0 direito esta Juridicamente condicionado. Fora dos quadros impostos pela ordem juridica, nao ha exercfcio legitimo do poder. Essa “juridificacio do poder” tem dois niveis. Nos poderes subordinades, faia-se em “legali- Zagio do poder”, isto &, todo poder deve ser exercido em conformidade com a lei. Por sua vez, 0 poder supremo, ident com o Parlamento, élimitado pela Constituigao, Dat falar-se em “cons- titucionalizagao do poder”. No Estado Liberal, o império da lei, que, no Estado Absolutista, se aplicava as relagdes entre particulares, al~ canga agora o préprio ente estatal. O poder exercido fora da constitu- cionalidade e da legalidade € visto como um ato de forga, desprovido de legitimidade. O cidadao esta garantido nifo 56 contsa 0 Executivo, que deve pautar sua ago pela lei, mas contra o proprio Legislativo, na medida em que a produgao normativa deste esti limitada pela Consti- twig, © pensamento politico se adapta a essa nova realidade. Se 0 Estado Absolutista, tal como aparece nas obras de Maquiavel ¢ Hob- bes, tinha na forga a sua eategor Montesquicu, é pensado a partir da lei. No Espirito das Leis, classifica ele os poderes estatais em vista da sua posigao no tocante i lei. Ea partir do direito, e no da forca, que a realidade social & pensada a de agora, Se no Estado Absolutista, a determinagio do juridico "a segirranga pela enclisto do subjelivismo das jufzos dev iberal, dé-se_um_passo_adiante: garante-se que o poder em qualquer das suas manifestagdes, deve se curvar ao direito, Sendo, portanto, previsivel 3 Norberto BOBBIO, “A teria do Estado © do Poder em ox Weber" a Entaios Escothides. (© Positivism Juridico Conternporéneo 15 Dada a centralidade da lei para o Estado Liberal, nao € sem ropésito que esse vem identificado com 0 tipo de dominagio, “se obedece as normas ¢ niio & pessoa”.* A c do direito, porém, nao fica ao arbtrio daqueles que exercem o poder soberano, mas deve ocorrer no modo previsto pelo proprio sistema Evita-se, assim, que 0 direito fique & mercé do poder pol 0 rmesino tempo em que se conserva a sua neutralidade axiotégica jé alcangada pelo Estado Absolutista, isto é também no Estado Liberal © juridico nfo precisa corresponder a nenhum ideal valorativo paraser astado © perigo das considerado_ como tal. Com isto, mantém-se icertezas derivadas da pluralidade das concepgdes de justiga. Para identificar 0 direito, basta verificar a conformidade da sua produgdo ccoin as regras que déierminam a criagdo noimativa no Ambito do sis- tema: “qualquer direito pode criar-se € modifiear-se por meio de um estatuto sancionado corretamente quanto a forma”. 0 direito do Estado Liberal realiza, de um modo superior, o ideal burgués da seguranga,’ estando protegido do entrechoque de valores jsta moderna das vicissitudes do tico, uma vez que no é um determinado ideal de justiga nem de poder que decide o que deve ser considerado jurfdico. E.o prdprio. direita.que determina.o jurfdico, na medida em que regula © sett proprio. proceso de produigao. E esse direito que ser4 tematizado pelo positivismo, movimento jusfilos6fico que surge juntamente com 0 Estado Liberal, no século XIX, ¢ tem como seus representantes mais autorizados no século XX, Kelsen, Ross e Hart ‘om je 9.0 sbuso oy excess de poder.” Norberto BOBBIO. Liber ¥ socieded,p. 106 16 Luis Femando Barzotto E conveniente ident identificar o positivismo, como o partir da adesao a um deierminado conceito de direito,’ que poderia Ser-definido assitn: o difeito é “tim sistema de normas postas por atos de vontade de seres humanos”.* Este sistema € visto como um conjunto de normias dispostas hierarquicamente, na medida em que as normas silo _criadas em conformidade com outras normas, sendo.as primeiras vistas como “inferiores” em relago as segundas, as “superiores”. Essa Compreensao do fendmeno juridico s6 foi possivel a partir do horizonte hist6rico exposto acima, Com eteito, a consideragio do direito moder- no leva, inadvertidamente, o observador a viswalizi-lo como um siste- wz Scarpel , em termos weberianos) e 0 conceito pos trada por Bobbio, em um texto no qual ele analisa o pensamento de Kelsen: “Parece-me que 2 construcio escalonada do orden ridico (...), seja uma representagao fiel, ou a representagao mais ade- quada, do Estado legal-racional, cuja Formagiio constitui, segundo Weber, a linha de tendéncia do Estado modero. Em outrus palavras, 8 teoria estrutural de Kelsen (..) se apresenta em estreita conexiio com ‘ estrutura do Estado moderno, entendida weberianamente como Esta- do legal-racional. (...) Significa que uma completa teoria do sistema juridico como sistema normativo complexo ~ e por sistema normative complexo entendo um sistema no q} \dos pelo direito tam- bem os atos que produzem direito ~ no poderia nascer senao de um continua reflexdo sobre a formagio do Estado modemo no qual a racionalizagio ou legalizagao dos processos de producao mais evidente a estrutura piramidal do ordenamento (. (© Postivismo Juridico Contemperéneo 17 O conceito positivista de direito nasce do esforgo de compreensiio do Estado Liberal. Essa tese, expressa na citagdo de Bobbio ‘exposta acima, dificilmente poderia suscitar objegdes. Mas a conexio hist6rica que forma o ponto de partida deste trabalho coloca-se em um niye] mais profundo que o da mera relagio entre teoria (positivismo) Si mero). presupst dete wbalo ada due © positivismo e: A servico / efeito, o positivismo juri xo, controvertido, de dificil delimitagao e correntes mi caracterizar-se, entretanto, pela perseguigao de certo objetivo o | que pulsa em unissono sob toda a variedade de suas correntes: a con- | secugio da seguranga nas relagées sociais. A condigao bisica part | aleangé-la era uma perfeita delimitago do juridico que impedisse 0 || recurso a valoragées do tipo ético ou politico, cujo emprego, por causa ' do seu catiter controvertido, colocaria em perigo esta intengio pritica principal. Fazia-se necessirio, definitivamente, elaborar wn conceito de direito que nao se remetesse a esferas allteias ao juridico. (grito nosso)” A citagdo de Pascua contém o cemne deste trabatho, porém ela € » incompleta. Com efeito “a perfeita delimitagao do jurfdico” com vistas 4 alcangar a “seguranga nas relagbes sociais” depende de uma rigorosa UASCTIGAS GO JUFTGIES HHO 86.ém relacao aos Valores, Mas farnbém em relacdo aos fatos. Qu seja: a seguranga nao fica comprometida Somente pelo recurso a0 subjetivisino dos jurzos de valor (justiga), mas também pela imponderabilidade da normatividade oriunda da simples tuagdo do poder (eficacia)."" A seguranca depende assim, da objetivi atuagao do poder ( pees 8, pode anelo smo uric eva cons : lugar de sgn supa 0 papel preto pestvame juico™n Carlos MASSIN-CORREAS, BY Hart™ ps, Boston Propose; noma ehcaz € a noma obevad ‘ov sei, Sletvaade ficazes poder, assim come + Ver Norberto BOBBIO. Sul per uno rovia gene 18 Luis Femando Barzotto a esse anseio por seguranga, delimitando-o em relagio 8 moral e & politica, sera chamado de conceito “auténomo”. Q conceito aut6nomo ¢ elaborado ¢ partir da definigao do direito como sistema normativo, O que o caracteriza & simplesmente @ Senga de critérios regulativos em relacio aos quais se pode deci a qualquer norma se pertence ou nfo ao sistema”.'*.0 portanto, o direito como sistema normativo € a presenga de um crit Fegulativo que possibilite determinar a pertinéncia ou nio de uma Horma ao sistema, 0 que significa qualificé-le como juridica, Se 0 direito € um sistema normativo, o critério de pertinéncia 6 também o critério de “juridicidade” ¢ juridica a.norma que pertence « um orde- namento juridico. _ A originalidade do positivismo esté no seu critério de juridicid: de, E este qile The permite obier um conceito MMLaROMOMEAteit6. Para Tessaltar essa originalidade do positivismo e do seu conceito de direito, € oportuno situé-lo fuce a outras duas concepgdes, que esquematica mente podem ser chamadas de “jusnaturalismo" e “realismo". Para 0 Jusnaturalismo, a nota definitéria do juridico, ou critétio de juridicida- de, € a justiga: “Nao se considera lei o que niio for justo” (Sto. Tomas de Aquino). Para o realismo, 0 que define o direito é a sua eficécia, isto é, 0 comportamento efetivo presente em uma dada comunidade. Podemos dizer que 0 jusnaturalismo propée um conceito ético ou valorativo de direito, ao paso que o realismo propde um conceito sociolégico de direi segundo a visio sociolégica da Jurisprudénci Esses dois critérios stio recusados pelo positivismo pelas razdes Jd expostas. © positivismo nao adota como critério identificador do Juridico “aquito que é justo”, pelo subjetivismo e incerteza provenien- tes da multiplicidade de concepgGes de justiga; exclui-se também “aquilo que € eficaz", pelo risco do arbitrio e a conseqiente imprevi- idade que segue a este. Recusada a just s de borat o.seu_pripriocritétio. Este serd a ca nig € a.norma justu ou a norma eficaz, idicidade, 0 (0 Positivism Juridica Contemporéneo 19 9 Q 2 JI dade de uma nor ica indica a qualidade de tal norma, pela qual TE fa Seis US diteito ov, em outros terms, existe como nortia jurfdica: dizer que uma norma juridica é vAlida significa dizer que essa faz parte de um ordenamento juridico(...)".!® Mas 0 que faz uma norma pertencer a um ordenamento juridico? Excluida a justiga e a eficacia, a pertinéncia s6 pode ser determinada a partir da origem da norma, A questao da pertinéncia é uma questio “genética”, B como. no Gireito moderno, © direito regula sua propria produgio, considera-se Villida aquela norma produzida.em conformidade como ordenam Isto quer dizer que € 0 proprio direito que de normhas validas, ou seja, € o direito, e no o comportamento d mens ou seus ideais de justiga, que determina o juridico: “o eritétio de validade, que faz depender a validade das normas do modo como sao produzidas, se encontra geralmente determinado no direito positivo mesmo, onde vem especificado através de uma série de normas re; lativas dos modos de produgdo de outras normas”.!? Nu expressiio precisa de Kelsen: no “sentido juridico-positivo, fonte do direito s6 pode ser o direito”."* Ao afirmar que norma j ica 6 a norma vilida, e sendo a va dade determinada pelo proprio ordenamento, os positivistas conse- guem isolar o fendmeno jurfdico da moral Gustiga, valores) € da ica (eficdcia, poder). O direito deixa de depender dos juizos de valor realizados pelos usudrios das normas € das vicissitudes do poder. Com a categoria da validade, 0 positivismo contempordneo busca de- terminar, com precisao, 0s limites do direito' em relagio & moral e & politica, Que © positivismo advogue a separagio do direito em relagao & moral € um trufsmo, © que deve causar estranheza ao leitor € 0 Fato de se sustentar que 0 positivismo defende igualmente a separagao do direito da politica, Essa afirmagao deve, portanto, ser esclarecida. A primeira vista, 0 positivismo nao poderia renegar politica do direito, pois para ele o diteito € algo produzido: gue caracteriza 0 positivismo juridico, ao longo de toda a sus hist6ria, Ea consideragio do direito, sempre entendido como norma ou conjunto 16 Novbesto BOBBIO. 1 pos 17 Upera SCARPELLI. Coe’? 58 Hans KELSEN. Reine Ree © Jose PASCUA 0p. cite p20 20 Luis Fernando Barzotto de normas, sob o fngulo de alguma coisa que foi produzido, um ob © um efeito de uma produgtio humana, hist6rica, convencional (. Ora, produzir o direito pressupde uma intervengio do poder. O proprio Bobbio nao cansa de repetir em suas obras, que poder e direito sao duas faces da mesma medalha. Como neutralizar 0 poder, aleangar um conceito auténomo do direito? Isto se torna posstvel quan- do se distingiie, na construgao positivista, duas ordens de poderes: u poder meramente fatico ¢ um poder juridico, O poder fatico-& aq le que ndo é constitufdo ou exercido em conformidade com as normas por éle_passam. a. exis 0 direito a pol o irelevanie, bem conformidade com normas vélidas. ‘Mas 0 que confere existéncia jurt superior que Ihe impde os procedimentos_para.a-produgao de normas. E facil ver, entdo, que 0 verdadeiro fundamento de validade de ama norma nio é 0 poder, mas outra norma. Dai 0 positivismo poder fala fm autoprodugio.do direito2" Q direito no. € contaminado pela poll tica na medida em que nao € produzido pelo “mero” poder, mas pelo Poder constituido pelo proprio diteito Para manter a coeréncia desse sistema autoprodulivo, € necessério {que 0 topo do ordenamento nio esteja ccupado por um poder supremo, mas por uma norma supreme: “(..) um ordenamento jurtdico € um sistema normativo no qual a produgio das normas do sistema é ela mesma regulada por outras normas do sistema em um proceso remontando da norma inferior & norma superior aleanga necessai mente (onde, contudo, a necessidade deve ser entendida tomo neces- sidade l6gica e nao factual) a norma fundamental, que do ponto de vista de um positivismo rigido e rigoroso é o nico fundamento possivel do direito: 0 Gnico fundamento possivel de um ordenamento que regulan- do a propria produgo se autoprodue". (grifo no original)? Aqui vemos a introdugio de uma nova categoria, imprescindivel na tentativa positivista de construir uni autonomo de diveito: a'norma fundamen {8 norma juridica que rma fundamental posers, p92. p28 (0 Positivism 3uridio Cantemparsineo 21 estd_no topo do ordenamento e que tem por tarefa determinar 0 modo 5 jores (const de produgio das normas po: que €0 mesmo, a sua vi ymeento em $} mesmo, a autono mia do jurfdico face & moral e & politica est consumada, Com os conceitos correlatos de validade e norma fundamental, 0 positivismo aleangou seu objetivo de “per que 0 préprio direito’, seja uma tese pos a, serei tentudo a dizer, a esséncia do positivismo jurfdico, Em que sentido? No sentido de que para um positivista o problema do fundamento se resolve no problema da validade (grifo no original) das normas juridicas. O po: fa niio se preocupa com a justificagio axioldgica das normas, do fundamento entendido como problema do valor das normas, Jussum non quia jusium’. E entio se torna perfeitamente natural, ¢ perfeitamente compatfvel com a légica do sistema, que uma norma seja considerada valida, se, e somente se, foi posta por uma autoridade que recebeu 0 poder de emanar normas obrigatérias por uma autoridade superior, a qual por sua vez foi autorizada por uma autoridade ainda superior. Porque para um pos (a © problema do fundamento do direito se resolve no problema da validade, € legitima ¢ compreensivel a afirma- {20 que o fundamento do direito seja o direito: a validade é uma pura ¢ simples qualificagao jurfdica, & diferenga do valor que pressupde @ presenga de postulados éticos ou de critérios de oportunidade politica”. Mas, ao contrério da proposta aqui apresentada, Bobbio, & seme- Thanga de Pascua, no percebe que a validade, para o_positivismo,.¢ uma qualidade puramente juridica, ¢ por isso se opie no somente & justiga ima qualidade valorativa, mas.também a eficaci dade fética.ou politica, Ou seja, 0 que caracteriza o positivismo nao é apenas a sua intengdo de separar 0 direito da moral, mas igualmente, a intengio de separé-lo da politica 2 Jost Amionio Ramos PASCUA, La rela de reconoc 2% Novbero BOBBIO. “Le font de dirt in Keen”, op. pil, p27 22 Luis Femando Barzotto rT Nesse. sentido. Kelsen, Ross-e. Hart sio-positivistas. deste trabalho é destinada a demonstrar isso. posit de seguranga, procura fornecer conceito auténomo do. da moral e da po Para isto, assume como uma categoria central a nogao d de, que Ihe permite excluir a jusliga e a eficdcia, como 4 tificadores do reservando o termo “norma fundamental para analisar Kelseniano homOnimo. Para que 0 projeto po: categorias, validade e norma suprel desi las; possibilitar.uma_autolu da moral e da pol Aqui se pretende demonstrar que esse objetivo nio fo nas obras de Kelsen, Ross e Hart. Nesses autores,.o. conc -s. Além disso, pi ‘aremos a partir daqui a expresso “norma suprema” para designar a mais alta norma do ordenamento j Uma-parte ago.£.0.seauinte: 0 FIO, COMO resposta teérica.a uma necessidade prética busea (0, isto dire &-que tepresente 0 fendmeno juridice como uma esfera indopendente lamentagao, do. dicelTO-Isobaay-0 afirmar sua propria existéncia enquanto norma juridica, devemos supor a juridicidade das normas que ela fundamenta, Passa-se agora a expor os principios metodolégicos que orienta- ram esse trabalho, Victor Goldschmidt? pretende que existam mas filoséficos: 0 “genética” e 0 “genética”, tenta-se compreender 0 p Em uma abordagem 25 Victor GOLDSCHMIDT. “Tempo histérieo © tenipo Flassicos” in A reli de Sto Paul (© Postvismo Jurisica Conternporéneo métodos para a dogmattico’ tum autor a partir dos fatores hist6ricos (filiagao a uma escola, detalhes biogrificos, etc.) que influenciaram a elaboragio do seu sistema. “Dog- maticamente”, interpreta-se o sistema filosético a partir das intengdes do autor, expondo a ordem das razées segundo 0 métado empregado na construgio do sistema, Obviamente, nao se pode pretender que Goldschmidt tenha esgo- tado a discussao sobre a metodologia da interpretagao dos textos filo- s6ficos. Como tudo em filosofia, também os cfinones de interpretagio dos textos filoséficos esto sujeitos & discussdio. Mas ele sintetiza bem duas abordagens tradicionais, que foram ut las em momentos dis- tintos do trabalho. Foi empregado 0 método genético para a explicagio do pos mo enquanto corrente de pensamento porque € assumida a tese de que 1a ss6fica dada se compreender- mas “os problemas que tinha a missio de solucionae”.® Ora, 0¥ pro- blemas que 0 posi he forath colocados pela smo pretendia resolver Il hist6ria. A intengao de construir um conceito auténomo de direito se liberal que o inspirou, na sua obsessio por seguranga De outro lado, a construgao de tal conceito tomou determinada diregao Por causa das caract as do fendmeno juridico no Estado Liberal, a comegar pela legalizagdo da produgio juridica J na exposigao da tentativa dos positivistas de construir 0 con- (0 aulGnomo de direito foi utilizado 0 método dogmatico. Embora motivagdo ¢ o fendmeno dos quais parte a argumentagio positivista sejam essencialmente histéricos, 0 argumento desenvolvido por cada um dos positivistas situa-se em um “tempo légico” (Goldse! qual € necessério colocar-se para aprender a sua estrutura interna, 0 que impde que sejam tratados separadamente. Tem-se aqui a intenga de compreender 0 autor a partir de sua propria argumentagao. Por isso, no se recorre a uma hist6ria das “influéncias” sobre cada um dos autores, mas se tenta compreendé-los a partir daquilo que eles afirmam, nas suas obras mais significativas. Desse modo, fica claro que o obje- tivo nilo & propor uma exegese exaustiva da obra dos chissicos do positivismo, mas examinar a consisténcia do seu empreendimento, procurando mais aprender com eles, do que ensinar algo sobre eles, pois afinal, “a filosofia nao se ocupa com o que os homens disseram, mas com a verdade das coisas” (Tomés de Aquino). 26.CF, Alar MACINTYRE. Hist Barcelo 1994, p97 24 Luis Fernando Barzotto A interpretagio dogmitica aqui exposta restringir-se-s, portanto, 8 argumentagio apresentada nas principais obras de teo de Kelsen, Ross ¢ Hart, voltada 8 construgdo de um cone 10 automo em relagio & moral e & politica. Isso passa, como j4 disse- mos, por uma anélise dos conceitos de validade e norma fundamental, Nao interessa 0 que os positivistas ufirmaram sobre as relagdes entre Mesmo porque e a mionil Todos eles definem oj inferior, Cofio “norma valida’”g seu fundamento dltimo. Nao forma objeto do wabalho igualmente as polémicas em que se envolveram acerca do conceito de direito, na medida em que deve ser considerado o pensamento de cada um A luz do seu proprio “tempo I6gico”, por uma exigéncia do método dogma- tico. AS comparagées dar-se-do apenas a titulo de ilustragio de u argumento ou tese, ¢ nio como prova de uma “influéncia”, fator que 86 € considerado no método genético, Enfim, anilise nia se deixar. desviar por “declaragdes de intencao" dos referidos autores. O foco estar’ cenifad6-no qué 6s Autores. fizéram, nao. naquilo que.dissecam que pretendiam fazer, Pode parecer que a interpretagdo aqui exposta, que tende a realgar 4 isomorfia dos argumentos dos positivistas mais que as suas diferen- Gas, desconhece a disparidade das orientagdes filoséficas que os an mam. Hé consciéncia, porém, destas diferengas, que serio examinad: neste momento, uma vez que, por razdes metodolégicas, a fi filoséfica nfo serd tematizada no corpo do trabalho. pa égide do kantismo,2” esté preocupado com a cons- ~ tituigtio da cigncia do direito como uma verdadeira cigncia social, nto el a sociologia e afastada da metafi {temologia Juridica. Nesse sentido, Kelsen qualifica a norma fundamen- 1 (Grundnorm), como a “condicio Iégico-transcendental” do conhe- rento juridico, O seu enfoque, portanto, no que diz respeito a norma undamental como a ou { mente epistemol6gico. A propria validade ¢ tematizada por Kelsen ‘ principalmente sob o prisma do jurista, como um eritério demarcador iéncia do . desconsiderando-se 0 dade de uma norma para 0 “homem da operador juridico. Ross, de outro lado, sob influéncia do empirismo,2* esta interes- sado em firmar a ciéncia do di itS Cone uma Aiseiplina empirica, voltada a fenémenos sociais. Seu imetafisico € tio pronun- ciado que ele recusa o “titulo” de positivista até a Kelsen, denunciando | 0 seu pensamento como um arsemedo de positivismo, Assim, a sua / preocupagio é também prioritariamente epistemolégica, ¢ a validade vem tratada nos termos de uma qualidade da norma que ¢ captada pelas proposigdes da cigneia do direito como uma “probabilidade de aplica- io” por parte do Judiciério, De outra parte, a norma suprema do ordenamento, que ele chama de norma basica, é vista simultaneamente como um fendmeno ideolégico e como uma exigéncia epistemoldgica iloséfica conhecida como “Filosofia da ‘ ou pelo emprego do método d anilise da linguagem corrente. Ao contrrio de Kelsen ¢ Ross, Hart ‘nao esta preocupado com o fundamento e as condigdes de possibilidade ) da eiéncia flo direito, O seu interesse est em compreender a estrutura «de um sistema juridico a partir de uma andlise dos usos da linguagem gg tat fla connie que se notal 25 idea principal dese campo do drei, até a sas Ae que aestudo do cia madera ). Uma excelente ubordagem do mnodo dean fm Jun R. de PARAMO, HLA. Harty le de Estusios Constitucionses, 1984,» 1103. 26 Luis Fernando Barzotto Herdeiro da Jurisprdéncia Analitica de Austin, volta-se contra as insuficiéncias desta e do positivismo nas versées de Kelsen e Ross. Neste trabalho serdo colocadas entre parénteses todas as teses de cunho epistemologico, ético-pol ‘ico_que. airavessani. a obra dos referidos aiitores. O.ceniro da atengio estard nos setores de suas obras que en campo temitigo daquilo que Bobbio chama de “Teoria do Bi ‘Considero como problema fundamental da teoria do direito aquele de determinar 0 conceita de direito”."” E esta tentativa de determinar 0 conceito de, direito, tal como a realizaram Kelsen, Ross ¢ Hart, que ird compor a parte expositiva deste trabalho, elaborada dentro dos cAnones do método dogmatico. ‘A parte expositiva, sem mascarar as diferencas entre os autores, pretende mostrar que hd uma identidade funcional nas suas const goes." Assim,-ainda que-o estatuto. da validade seja diferente nos sendo, pot exemplo, uma categoria “Iégica” em Kelsen, 1 na obra dos trés 0 seu significado de base € a “pertinéncia ao ordenamento juridico", perti- néncia esta que basta para caracterizar a juridicidade de uma norma, Quando a categoria da validade € utilizada para os ordenamentos esta- tais modernos, dizer que uma norma é valida é afirmar que produzida em conformidade com uma norma do sistema, tomada como existéncia juridica da norma, € irredutivel a eficd (plano dos fatos) e a justiga (plano dos valores). A validade de uma norma depende somente da conformidade com a norma que regula a sua produgao. Remontando de norma a norma, atingimos uma norma suprema (norma fundamental em Kelsen, norma bisica em Ross, regra de reconhecimento em Hart), que dé inicio a todas as séries normativas que compoem o sistema, Sendo ela mesma juridica, conclui-se que 0 fundamento do direito € ele préprio juridico, independente da dimen- sio valorativa ow factual da vida social. O conceito de direito que emerge dessa construgo € assim, completamente auténomo face a moral e & politica Bowato, © Positvismo Jurcico Contemporéneo 27 Nao se pode ignorar, igualmente, que os autores ci deram fornecer um conceito de direito que abrangesse o normativos que nao o direito estatal moderno. Mas neste somente tratada a tentativa de fornecer um conceito a reito aplicdvel as ordens estatais moderna 0 & regulam sua propria produylio, Nao ser analisads portanto, a aplicabilidade do seu conceito de direito a outras ordens, como internacional € as ordens juridicas pri Se 0 método dozmético permite apreender 0 conc 19 ele _se_apresenta nos_classicos do. positivisma, o_método genético fornece, por meio da revelagio da motivacao historica que anima a teorizagiio pos jcangarain, Confrontar-se- SS elaborarain Com 0 seu projeto de construir t conceito auténomo de direito, ‘Com este confront uma andlise que se pode chamar de “erfticd agora oportuna. Se Kant tem razio em dizer que “no se aprende filosofar", sendo o filosofar entendide como um “uso razio", pode-se afirmar com seguranga que a atitude propriamente filos6fica diante de um projeto ou sistema filoséfico nio consiste na sua mera interpretagio, mas na sua “cr Por critica, se entende ‘dade discursiva que consiste no exame dos 1, método ou conceito. ivismo, nesses autores, alcangar um conceito de direito que meno. juridico-da_moral.e.da politica? Esse principio & considera prot relagdes entre di Utilizando o princi conceito positivista de dire Esse problem io exposto, a questao terd a seguinte forma: “O esti realmente livre de qualquer elemen- se deve ao desconhecimento da grandeza das construgdes te6 28 Luis Fernando Barzotto Postas. E justamente por respeité-las que foi escolhido © método dog- Imdtico_na sua interpretagio, Além disso, acredita-se que 0 exame imparcial dos limites ¢ caréncias de um sistema digam mais sobre a sua grandeza, do que a reconstrucio artificiosa cle uma coeréneia que niio existe, feita pelos diseipulos de plantao, Este trabalho, tanto na parte expositiva como na parte critica, se insere em uma tradigio de reflexio sobre Kelsen, Ross ¢ Hart, Como marcos desta tradigao, deve-se mencionar Ricardo Guibourg, que em Derecho, sistema y realidad,” denuancia as dificuldades do positivismo com 0 conceito de eficécia; José Antonio Ramos Pascua, que demons- tra o insucesso de Hart em configurar o direito como um sistema normativo auténomo em relago & moral a p: cimento.® A extensa citagao no inicio desta da sua influéncia sobre este trabalho, influénc que se reflete inclusive no tftulo. No Brasil, merecem mengao io Michelon Jr., que discute os impasses do normativismo positivista no século XX na sua dissertago Direito e objetividade,® e Ari Marcelo Solon, que na sua tese Teoria da soberania como problema da norma juridica e da decistio, mostra as convergéncias entre Kelsen e Ross. Nao se pode esquecer igualmente Miguel Reale, que na doutrina bi aquele que com maior insisténcia mostrou que a normatividade juri no ocorre em um viicuo, mas s6 pode existir conectada com fatos € valores. Nos trés primeiros capitulos, seré exposta a tentativa de Kelsen, Ross © Hart, de construir um conceito auténomo de direito com o auxilio das categorias de validade ¢ norma suprema. Em seguida, seré feita a critica segundo os principios expostos acima, Na conclusio, além da sintese das id IS a0 longo do trabalho, sera apresentada também uma avaliagio sobre o resultado do empreendimento positivista. 52 Bucnos Altes: Astes, 1986 3 Dissertagdo de mes apresentada & Faculdade de Direit/UFRGS em juno de 1996 (© Postivismo 2uridico Contemparéneo 29 2. O Conceito de Direito em Hans Kelsen 2.4. A norma Kelsen inicia 0 seu “Théorie du droit international (1953) afirmando que a definicao de direito depende “do conceito de base em Telagdo ao qual acreditamos poder reconduair os fendmenos designados sob 0 nome do direito”."* Esse conceito, para ele, é 0 conceito de norma. No artigo citado, Kelsen afirma que as escolas que recusam 0 conceito de norma, defininde 0 come uma conduta humana especifica ou como Felacdo social, tem o Gnus de demonsirar-cone se pode distinguir uma conduta ou uma relagio social dé carater juridico de uma que no possui esse cariter. Ora, os fendmenos conhecidos como “Juridicos", tal como autorizagao, abrigagiio, responsabilidade, elc., pressupdem que o direito, no modo de se dirigir aos homens, Prescreva, profba, permita, autorize, Esse modo do direito se manifes. tar pressupde normas, Nao se pode assim, explicar as fungSes do direito nem diferenciar um fendmeno juridico de um ndo-juridico sem teferi-lo a normas. 6 necessério, portanto, para se definir 0. que-é.0 direito, saber 0 que € uma norma, iva de determinar 0 conceito de norma, Kelsen ini 10 da Teoria Pura do Direito® perguntando-se se 0 direito € um fenémeno natural ou social. Essa oposigdo nao pode ser tomada em termos absolutos, pois todos os fatos considerados *jurfdicos” pos- BS -Tdonie dy del vol. 84,1953, 99, 36 Reine Rech Deaticke, 1960, pt. Deo ‘8 tragugzo italiana dé Mio Losano, "Li doaina paca del yor em dante, DPD. scours Académie de Bi (© Posttivsmo Juridico Contemporénea 31 sem uma dimensao “natural”, isto € podem ser situados na dimensio espago-temporal. De fato, uma parte dos fatos reconhecidos como “juridicos” tém lugar no tempo e no espago, e s40 apreendidos pelos sentidos. Na votagdo de uma lei, vé-se pessoas em pé levantando as mis. Na conclusio de um contrato, observa-se duas pessoas escreven- do sucessivamente sobre um papel. Mas além dessa dimensio pura mente natural, € obrigatério afirmar a existéncia de uma outra dimensio: a do significado do fato. significado.ndo se encontra na esfera espago-temporal. Nao se pode, recorrendo. exclusivamente a0 que é apresentado aos sentidos, distinguir entre a execugiio de uma pena capital e um assassinato, HA necessidade de uma operagio intelectual que capte o significado do fato. Este € constituido pelo sentido que o homem atribui aos seus atos. Uma pessoa, ao agir racionalmente, liga um sentido ao ato que realiza, Esse sentido subjetivo pode nao ser o sentido jurfdico objetivo, Alguém escreve sobre uin papel. O sentido subjetivo desse ato de Vontade pode ser. um testamento, no qual dispde sobre a destinagio dos seus bens. Mas esse sentido subjetivo pode no coincidir com 0 sentido objetivo, por um vicio de forma, Nesse caso, 0 ato niio tem, objetivamente, nenhum significado juridico. que torna objetivo, em termos juridicos, o sentido subjetivo de um ato de vontade, € a existéncia de uma norma juridica que preveja esse fato e Ihe atribua efeitos juridicos. Assim, no exemplo acima, um terceiro, nfo envolvido na relago em questio, pode reconhecer a obrigatorjedade, ou em termos Kelsenianos, 0 “sentido objetivo de dever ser” do referido testamento. Para Kelsen, a norma consiste no sentido de dever ser de um ato humano i a conduta de outrem, porém este sentido, para apresentar-se como dico, deve ser objetivo. Esse sentido de dever ser de um ato de vontade no consiste necessariamente em uma prescrigao, mas pode ser igual- mente uma permissio ou autorizagio. “A ‘norma’ € o sentido de um ato com 0 qual se prescreve, se permite, ou, em particular, se autoriza um certo comportamento”.2” ¢ (Sollen) € 0 sentido subjetivo de qualquer ato de vontade dirigido & conduta de outrem. Mas nem todo ato de vontade tem como sentido uma norma. Somente quando o sentido subjetivo 27 RR, 9.5; DPD. p14 32 Luis Femando Barzotto coincide com 0 objetivo, estamos diante de uma norma. “Dizendo norma” se quer dizer que uma alguma coisa deve ser ou acontecer, em Particular, que um homem deve comportar-se de um certo modo igo entre um plano do ser, que congrega 0 mundo dos fatos, ¢ um plano do dever set, onde encontrat-se-iam as normis, nem Sempre teve u mesma fundamentagio em Kelsen. Ne primeira edigao alem® da Teoria Pura do Direito (1934), 0 “dever ser* (Sollen) vinha efinido como uma categoria transcendental Kantiana.” Na segunda edigio da mesma obra, Kelsen afirma que o Sollen € um “conceit simples", no sentido em que Moore aribul a essa expressio. isto €, um niio pode ser analisado nem definido, como os conceitos de “bom” ou “amarelo”*© Embora a justificagdo do estatuto do dever ser! tenha variado ne evolugio do pensamento de Kelsen, o papel da distingao no sistema kelseniano permanece inalterado, e recebe uma expresso adequada na Seguinte citagdo: "A diferenca entee ser e dever ser no pode ser ulteriormente explicada, E um dado imediato da nossa conseiénc Ninguém pode negar que dizer: “Uma coisa existe’ (afirmagao com a qual se descreve um objeto real) seja essencialmente diverso de dizer “Uma coisa deve ser’ (afirmagao com a qual se descreve uma norma): € ninguém pode negar que do fato que alguma coisa existe nio pode derivar que alguma coisa deve ser, assim como do fato que alg coisa deve ser ndo se pode derivar que alguma coisa 6” *? Ou seja, nto apenas o Sein € 0 Sollen se distinguem, como um nao pode ser devivade do outro. Nem todo Sollen € uma norma. Pode-se dizer que um “dever ser” € uma norma, isto é, que 0 sentido subjetivo de “dever ser” de um ato de vontade coincide com o seu sentido objetivo quando 8} 0 comportamento a que se refeteo autor do ato de vontade & considerado ‘como obrigatério ndo s6 por este, mas por um terceiro estranto & rlacio entre © autor & 0 destinatério do at. BERR, 9. 4: DPD. p. 13. to 41 Amelnor apie fomecida por Mat LOSANO, “Teo 9-110. RR, p 5: DPD, pls (0 Positivismo Juridico Contemporéneo 33 eo sentido } Quando o querer, cujo sentido ¢ o dever ser, cessou de ex! subsiste, (Por exemplo, otestadorfalecido) Quando o destinatario desconhece a existincia do ato de vontade e 0 seu sentido, e, ainda assim, considera-se que ele esta obrigado, permitdo ou auto- Fizado a comportar-se segundo 0 dever ser expresso no alo de vontade. Mas no basta determinar 0 conceito de norma. Estabelecendo 0 cardter normativo do fenémeno juridico, aqui apenas se tragam os seus limites com relagio ao mundo da natureza, Mas como 20 Indo do direito, hé normas morais, € necessério encontrar-se um elemento que distinga 0 direito da moral, Para Kelsen, esse elemento € a coergao: (..) somente com a recepgio do momento coercitivo no conceito de direito se pode distinguir claramente este thimo de qualquer outro ‘ordenamento social (...)"."° Outro argumento utilizado por Kelsen é a uniformidade do uso do termo direito nas varias I{nguas. Ele € utilizado invariavelmente para designar um conjunto de normas que regulam os atos de coergao. Isso € um dado que deve ser levado em consideragao na formagao do conceito de direito. 0 direito nao é, contudo, uma norma, mas um sistema de normas, O carster juridico de uma norma dé-se por sua pertinéncia a um sistema de normas juridicas conhecido como “ordenamento juridico” ordenamento juridico se diferencia dos sistemas normativos de natureza moral por ser um sistema dinimico. Sistema dindmico € aque- Je em que as normas estao ligadas entre si por uma relagio de autori- zagio, € nao de derivagio légica. Uma norma pertence a um ordenamento jurfdico por ter sido produzida segundo 0 procedimento previsto em outra norma, ¢ néo pelo fato de ter sido derivada logica- mente desta, Quando a norma veio & existéncia segundo os modos autorizados pelo ordenamento, dizemos que a norma é “vélida”. E € a natureza da “validade” em Kelsen que veremos a seguir. 2.2. A validade Neste t6pico, ird se expor 0 conceito kelseniano de validade (Gel- tung). 0 termo validade em Kelsen tem ao menos quatro sentidos* que 1nAo se excluem, mas ao contrario, se implicam. Ou seja, na maior parte 43 RR, p. 58: DPD, p. 67 48 Cari 199 ade Huns Kelsen™ 34 Luis Fernando Barzotto dos casos, eles so utilizados como sindaimos. Mas como 0 conceito de validade é empregado por Kelsen para descrever um sistema juridi- £0 isolado das dimensées fatica e moral, é obrigatério ao intérprete deter-se em todos os momentos deste conceito. Inicialmente, validade € a qualidade que expressa a existéncia da norma: “definindo a existéncia especifica de uma norma como a sua validade’, se exprime © modo particular no qual essa vem dada, & erenga do existir dos fatos naturais”.*° A norma é 0 sentido objetivo de dever ser de um ato de vontade, Enquanto sentido, a sua existéncia diferencia-se da existéncia do ato de vontade que the deu origem. Este encontra-se no plano dos fatos, e a sua existéncia pode ser afer sensorialmente, pois ele estd localizado na dimensiio espdcio-temporal A norma, enquanto sentido, passa a existir precisamente quando o ato de vontadle que Ihe deu origem cessou sua existéncia. Mas a validade ‘do tem natureza psicolégica, 0 que a reconduziria ao plano dos fatos As pessoas que realizaram 0 ato de vontade podem dirigir-se intencio. nalmente a outros objetos, sem que por isso a norma que editaram perca a validade, Um dos argumentos mais utilizados contra a visilo Psicologista da validade € aquele que refere o fato not6rio de normas continuarem a ser consideradas vélidas muito apés a morte daqueles que as editaram. Kelsen também usa o termo “validade” para significar a pertinén- cia a um ordenamento jurfdico. Nao existem normas isoladus. Toda norma existe enquanto elemento de um sistema normativo. A norma que pertence a um ordenamento é “vélida” do ponto de vista deste ordenamento, Predicar a validade de uma norma jurfdica aqui, nada mais € que afirmar a sua pertenga a um determinado ordenamento juridico, Outro significado de validade poderia ser parafraseado da seguin- te maneira: “criada no modo previsto no sistema”, Uma norma é valida quando foi criada de acordo com outra norma, Esta Ultima é, assim, 0 “fundamento de validade” da primeira, Isso é coerente com a posiga0 kelseniana de admitir transigto entre o mundo das normas e 0 mundo dos fatos: 0 fundamento de validade de uma norma é sempre uma outra norma. Isto significa que validade é uma relaglo intra-normativa, uma relagao entre normas, que, de um ponto de vista material, pode ser #5 RR, p. 10; DPD, p19 (0 Postvismo Jurdico Contempariineo 35 representada como uma relago em que uma ocupa a posigio “st rior” e a outra, a posigio “inferior”. Uma norma pode ser fundamento de vatidade de outra de dois modos, de acardo com o prinefpio que estrutura 0 sistema normativo, Para Kelsen, dois sao estes prineipios: o pri eS com outra quando procede desta tltima por derivagio légica de coi tetido, no sentido do geral ao particular, © exemplo utilizado por Kelsen € 0 da moral cristo, Do mandamento “Amaras 0 teu préximo”, es etc. A norma “inferior” & raido, por derivagao principio dinamico € proprio dos sistemas jurfdicos. Pelo princfpio dinamico, as relagdes de validade se dio por meio do estabelecimento de uma autoridade produtora de normas. Exemplo: uma norma const. tucional cria um 6rgao legislativo apto a editar normas gerais (leis), € este, por sua vez, cria um érgio jurisdicional competente para emanar normas individuais (sentengas), ete. A norma “inferior” é vilida, se foi criada por uma norma institufda por uma norma “superior » A validade de uma norma nao esté ligada, portanto, a uma con- formidade com elementos de natureza ética ou metafisica, mas la-se a um procedimento especifico de produgio de normas: “As normas dg direito positivo sio “vélidas”, isto é, elas devem ser obede- cidas, ndo porque elas sio, como as leis do direito da natureza, Deus ou a razdo, de um principio do absolutamente bom, certo ou justo, de um valor absolutamente supremo ou norma funda mental que se revista da pretensio de uma validade absoluta, mas meramente porque ela foi criada de uma certa maneira por uma certa pessoa”.*6 Um diltimo sentido de validade € aquele em que o termo signific obrigatoriedade: “O fato que uma norma que se refere a0 comporta- 36 Luis Femando Barzotto mento de um homem ‘seja vélida’ significa que essa é vinculante, que o homem deve se comportar no modo previsto na norma”.*7 Assim, a ordem de um fiscal consiste em uma norma vélida, porque ela verda- deiramente obriga 0 seu destinatdrio, ao passo que a ordem de um ladro niio € uma norma valida, nfo vinculando, portanto, 0 seu desti- natério, © dircito enquanto norma valida, consiste, deste modo, na assungao da obrigatoriedade de alguns imperativos: “Se assumimos que se deve observar os comandos de um determinado monarca ov agit de acordo com as resolugdes de um determinado parlamento, estas ‘ordens do monarca e€ estas resolugGes do parlamento sio direito™** Estes varios sentidos de validade estio a exigir, contudo, um fundamento, Se uma norma existe, pertence a um ordenamento e é obrigatéria, isso 36 ocorre porque foi produzida de acordo com uma outra norma, Isso gera uma “cadeia de validade”,® que culmina em uma norma tltima, que nao recebe a sua validade de nenhuma outra norma, Esta norma diltima € a “norma fundamental” (Gru 2.3. A norma fundamental AA verificagio da validade de uma norma passa, portanto, por uma recondugio & norma fundamentalAe-perguntar por que um ato qule vamente privar& oulren di vida deve ser interpretado como um ico (exccugdo de uma pena capital), deve-se responder que se considera 0 ato como jurfdico porque ele vem preserito em uma sen- tenga judicidria. Se a pergunta agora se desloca para a validade da sentenga, responde-se que esta deve ser considerada uma norma valida pois foi emitida em conformidade com a lei penal. Se a pergunta dirige-se & validade da lei penal, somente se pode responder que ela é considerada uma norma vélida porque foi produzida de acordo com os procedimentos estabelecidos pela constituigo. Esta, por sua vez, 86 pode ser considerada uma norma vilida se for pressuposta uma norma que estabelece 0 dever de se obedecer A consti norma fundamental igdo. Esta dhtima € a |ma norma positiva da cadeia de Ele digo jusnatural “7 RR, p. 196: DPD, SEGTLS. p. 394: TODE, p. 384 97-100. (© Posttivismo Duridica Contemporénea 37 afasta uma fondamentagio metafisica que coloque © fundamento.da ie de Deus ow da natureza. Mas Fecusa em buscar em fatos ou 0, instdincia mora fundamentagdo do direito po a uma norma moral acarretaria do fendmeno juri- / dico. Ele no pode recorrer também a uma fundamentagio fitica, de- vido 2 estrita separagzio que mantém entre as esferas do ser e do dever ser. © fundamento pode, portanto, ser um fato hem uma norma mor norma, se a fundamentagao da tuigdo, € a norma fundamer A notma fundamental-nio.£.uma-nouna. post pos! norma meramente pensada, uma norma pressuposta. “Pressti imeira Constituigo Seja uma norma juridica de cardter obrigatorio € a formulagdo da pressuposigio € a ni “fundamental dessa ordem jurfdica”.*" umanorma,juridica, na medida em que cumpre. fungdes d ica” Bla confere validade a ums constituigio que seja o fundamento Positive de um ordenamento juridico que, em linhas gerais, ¢ eficaz A norma fundamental pode ser formulada do Seguinte modo: ‘mos nos comportar de acordo com aquilo que prescreve a cons go" um dos mais importantes conceitos kel- senianos. Ela tem uriia dipla fungdo em Kelsen. A primeira, de ordem ea: ela € a condigio Idgico-transcendental Ae posibe ones ala teria Luis Fernando Barzotto ca: a norma funda- jo ondenamento juridico. tar-se apenas da segunda Para elucidar essa fungio lugar, se reportar& prépria cara pensada.enquanto s imagingrio. Uma vez fundamental funcione como fundamento de ela deve ser considerada uma norma valida. Na tert na, deve-se_pressupor a sua validade. E, como visto acima, deve-se lambém_o seu cariterjiadico_na medida em que esta cumpre Ses juridicas. Serdo expostas, a seguir, quuis 5 0 ordenamento juridico é um sistema di uma norma no seu intérior deriva do fato de ter sido produzida do modo previsto em uma outra norma. A norma fundamental, em um sistema ‘dindmico, € umanorma.que estabelece un “tub. Proeedmeno- prada de normas: “A norma fundamental de um ordenament niio ¢ sendo a regra bisica de acordo com a 4} ‘ordenamento siio criadas" Ela é assim, pipanintae ea le processo_de criagio sem_estabelecer_mi duzida & norma seguinte pergunta: “Porque uma determinada norma pertence a um (© Positivism Juridico Conteporéneo 39 at fundamental funciona, de uma norma a.um ordenamento, Ela formulagio:_"Consideram-se_normas. do mentos previstos na constitu ~~ Qutra fungao.da norma fundamental é atribuir forga vinculante & constituigio e, por conseqiiéicia, 3s normas produzidas em contox dlade_com ela. Ela se torna, assim, 0 fundamento de obediéncia as normas do ordenamento, obedigncia esta presente na formula da norina fundamental: “Devemos obedecer ao que foi determinado pelo primei- To constituinte histérico.” 2.4, O ordenamento jut 0 A partir daqui, serd visto como se apresenta o direito enquanto um sistema normativo, AS_normas nfo existem de forma isolada, Elas esto unidas em um_sistema. No ordenamento jurfdico, as normas distribuem-se_em camadas hierdrquicas, que descem da norma fundamental até as nor- ‘mas_individuais prolatadas pelos 6rgiios aplicadores. Esta estrutura escalonada tem a ver com 0 proceso de produgio normativa: as nor- mas superiores dispéem sobre a cringao das normas inferiores, nao «podendo haver nenhuma norma vilida que nfo tenha sido criada de acordo com 0 previsto em outra norma do sistema. Como a produgio de. uma norma valida depende sempre de outra norma ¥ fala do direito como um fendmeno, social em que ocorre_uma “auto- produgio™ (Selbsterzeugung). S6 a partir do direito se cria direito, Dai Kelsen afirmar que, “no sentido juridico-positive, fonte do direito 56 pode ser o direito” Essa visio “piramidal” do ordenamento juridico é suficientemen- te conhecida para merecer maior atengfo. Ela é, de certo modo, intu tiva, Ela se torna problemética quando o conceito de validade ne ressuposto vem a falhar diante de um fen6meno bem eonhecido da Prética juridica: os conflitos entre normas de graus diversos, De um ponto de vista fitico, nfo se pode negar a possibilidade de um conflito entre normas. Um érgio autorizado a produzir nornias 36 RR, p, 196: DPD, p. 217, 57 RR. p. 239; DPD, p. 263 SSeS 40 Luis Femando Barzotto pode agir fora da esfera da sua competéncia. Este fendmeno representa um grave desafio & construgdo kelseniana, na medida em que wma norma s6 pode existir se vier & luz de acordo com o previsto na norma “superior”. Uma norma que contraria a norma supe ida, 0 que quer dizer, nfo € uma norma, Mas uma norma “invélida” nem poderia ser identificada como tal, no momento em que validade e vale a existéncia. E por isso que Kelsen diz que “uma ‘norma contravia 4 uma norma’ € uma contradigao em termos; nem se pode considerar norma juridica v: norma juridica em relagio a qual fosse possivel julgar que nao seja conforme & norma que regula a sua pro- dugio: seria nula, isto é, nao seria de fato uma norma juridica”.2® Ea conclusio de Kelsen € um desafio A concepgio corrente de nulidade: Se a norma é nula, nfo é norma, nio existe, e como tal nao pode ser anulada por um meio j ‘se 0 ordenamento juridico anula uma norma por qualquer motivo, deve em primeiro lugar permitir que esta norma seja valida objetivamente, (...) deve admiti-la como uma norma juridica em conformidade com 0 direito”. Kelsen examina a possibilidade de normas que contrariem normas superiores em dois casos: o da sentenga ilegal e aquele da lei incons- titucional Ao tratar da sentenga ilegal, Kelsen investiga a possibilidade da ngo-conformidade da norma individual expressa na sentenga com o contetido da norma geral que deveria aplicar e com o procedimento dentro do qual deveria ter sido elaborada. Essa conformidade no pode ser determinada, contudo, por qualquer pessoa, sob pena de niio pos suirmos normas vinculantes no sistema. Segundo o direito estat somente um tribunal superior é competente para determinar a existén- cia ou nio dessa conformidade. Até a decisto do tribunal superior ser prolatada, a “sentenga ilegal” permanece uma norma vélida, nao sendo nula, mas apenas anulavel. No caso de uma decisdo de um tribunal de sltima instancia, 0 ordenamento juridico ndo prevé nenhuma possibilidade de reforma, A norma individual, produzida por este tribunal, esteja ela em conformi dade ow nfo com a norma geral que dispde sobre o contedido da norma individual ou o procedimento que deve ser seguido na elaboragio, deve ser considerada uma norma vélida, 58 RR, p. 271: DPD, p.298 3 RR, p. 272; DPD, p. 298-299. (© Postvismo Juriico Cantempordinee 41 Como Kelsen harmoniza essas afirmagdes com 0 seu postulado ‘que uma norma s6 € valida se for produzida em conformidade com outra norma do sistema? A sua solugo é, no minimo, curiosa, No caso da sentenga anuldvel dos tribunais de primeira instancia, Kelsen afirma que “esses érgtios $40 autorizados pelo ordenamento juridico a produzir uma norma individual, cujo contetido € predetermi- nado pela norma jurfdica geral, ow (grifo no original) uma norma Juridica individual, cujo contetido nao é predeterminado, mas deve set determinado por esses érgios”. Embora a validade dessas cltimas jormas sejam provisorias, elas so vélidas até serem anuladas por um tribunal superior. Se nao o forem, tornam-se permanentemente ¥: 44 a5 normas individuais prolatadas por um tribunal de instancia, ainda que contrarie as normas que deveria aplicar, sio defi- vamente vélidas, como foi visto acima, Vale para o tribunal de ma instncia 0 mesmo raciocinio empregado para o tribunal de primeira instincia: “o tribunal de dltima instancia esté autorizado ou 4 produzir uma norma individual, cujo contetido € predeterminado pela norma geral produzida pela legislacao ou pelo costume, ow (grifo no original) uma norma jurfdica individual cujo contetido nao € predeter- minado de nenhum modo, mas deve ser determinado pelo préprio Srgdo de Gltima instanci Quem autoriza os tribunais de primeira e tiltima instancia a pro- Tatarem normas individuais contrérias as normas gerais que devem aplicar € uma “norma geral preexistente e anterior & sua produgio, a qual determina 0 contetido destas normas juridicas individuais no se tido da alternativa aqui apresentada”.® Ou seja, o ordenamento juri co sempre faculta duas alternativas ao 6rgio aplicador: se conformar ou no 2 norma geral que deveria aplicar. Por isso, nfo cabe falar de normas invalidas ou normas que no estejam em conformidade com a norma superior, pois a norma superior que deve ser levacla em consi- deragio nio é a norma geral a ser aplicada, mas a norma que faculta 0 6rgio aplicador se conformar ou no a esta, (0 outro exemplo de possivel contraste entre normas de niveis ios € o caso da lei inconstitucional. Kelsen abre este t6pico com ‘uma colocagio radical: “A afirmagdo que uma lei valida € “inconst © RR, p.273; DPD, p. 300, 1 pide Tider, 42 Luis Fernando Barzotto icional” € uma contradictio in adjecto; uma lei pode ser valida so- mente com base na constituigao”,© De fato, se o fundamento de validade da lei s6 pode ser a c tuigdo, uma lei inconstitucional é invdlida, isto 6, juridicamente ine- xistente. Se ndo existe, no se pode fazer nenhuma afirmagio juridica com sentido sobre ela, isto é, no se pode afirmar sequer que esté em Conflito com a constituigao, A expressio “lei inconstiticional” s6 pode ter um sentido: trata-se de uma norma vélida, mas suscetivel de ser anulada por um procedimento especial. Mas “enquanto € vélida, nao pode ser inconstitucional”.* E esta anulagio por “inconstitucionalidade” nao pode ser exercida Por qualquer um, sob pena das normas do ordenamento perderem o cariter vinculante face 20s éraios juridicos e aos particulares. Ela deve ser confiada, portanto, a um érgao especial Esse drgdo pode ser 0 préprio legislativo ou um érgio de natu- reza judicial Se existe apenas um érgao legislativo, e nao esté confiado a nenhum outro Grgio 0 controle da constitucionalidade das leis que produz, todas as leis so constitucionais, ainda que objetivamente con trariem dispositives da constituigdo. Isso devido ao estratagema kelse- hiano, j4 exposto acima, da existéncia de uma norma (a constituigio) que autoriza o Srgio produtor de normas a se conformar ou no com @ norma superior: “A constituig&o autoriza o legislador a produzir normas juridicas gerais também com um procedimento diverso daquele diretamente determinado pelas normas da constituigdo e também a d 4 estas normas um contetido diverso daquele diretamente determinado pelas normas da constituigdo”.“ Para Kelsen, essa natureza ernati- das disposigGes constitucionais fica patente quando o ordenamento Juridico exclui a possibilidade de um controle da constitucionalidade externo a0 poder legislative. Tudo o que esse fizer, é, por definigio, constitucional Contudo, 0 ordenamento jurfdico pode confiar a um tribunal o controle da constitucionalidade das leis promulgadas pelo érgio legis- lativo. As normas impugnadas como “inconstitucionais” sio v: © RR, p. 275; DPD, p. 302 poigem, (5 RR, p. 277; DPD, p.308 err ree ee ee ee (0 Postvismo Judi Contempariineo 43 até serem anvladas pelo tribunal de diltima instincia, devido ao fend- meno observado acima, de que a constituigao faculta ao legislador se adequar ou n&o aos seus dispositivos. Quanto as decisbes do préprio tribunal, pelo fato de atuar em éitima instancia, o ordenamento faculta ‘ele prolatar sempre normas vélidas, estejam ou no em conformidade com a constituigo, como vimos acima. Se a lei for emanada no pelo 6rgio legislative declarado competente pela constituigio, mas por v usurpador, estamos diante de duas hipdteses. Na primeira, o tribunal is do usurpador. Se o tribunal nao o faz, e se tornam assim “eficazes as normas emanadas do usurpador, nos achamos em presenga de uma modificagio revolucionaria da constituigao e, por de uma lei constitucional, isto é, conforme A nova con: Se o préprio tribunal é formado por usurpadores, 0 6rgao executor pode se recusar a aplicar as suas sentengas. Mas se as sentengas desse tribunal se tornam eficazes, igualmente estamos diante de uma mudan- ga revoluciondria da constituigdo, ainda que de menor alcance do que do Grgao legislative assumido por usurpadores, Deste modo, como houve uma mudanga revolucionéria na constituigo, as sentengas do tribunal usurpador so constitucionais. Mas aqui Kelsen, para sanar um conflito entre normas, isto é, u problema de validade, apela para o plano dos fatos, isto é, eficécia. E este dltimo conceito que cabe analisar agora. 2.5. Validade e eficéicia “Bfigdcia do direito significa que os homens realmente se condu- zem como, segundo as normas juridicas, devem se conduzir, que as normas sdo realmente aplicadas e obedecidas. A validade é uma lidade do direito: a chamada eficdcia é um atributo da conduta real dos homens, ¢ ndio, como o uso da linguagem parece sugeri-lo, do direito mesmo”. Contudo, 0 proprio Kelsen usa 0 termo eficiicia no modo corrente, isto é, referindo-o a normas singulares ou ao ordenamento como um todo, e nfo a comportamentos. Kelsen insiste no fato de que a eficécia da norma singular vio vem determinada somente pela atividade dos tribunais, mas também pela conduta dos siiditos: “Note-se que com a expressio ‘eficacia de 6 RR, p. 299; DPD, p.307 © GTS, p. 39-40; TGDE, p44 44 Luis Fernando Barzotto ra uma norma juridica’ (...) nlo se deve entender somente o fato que esta norma venha aplicada pelos 6rgaos juridicos, em particular pelos tri- bunais, isto é que em um caso conereto a sangao venha ordenada cumprida, mas também pelo fato que esta norma vem observada pelos sujeitos subordinados a0 ordenamento juridico, isto é, que se tenha um comportamento tal de forma a evitar a sangio".** Kelsen, a0 contrario. da posigao que ele chama de “realista”, recusa a redugio do conceito de eficdcia & aplicagao da sangao por parte do rgio competente, atento que esté ao fato de que “precisamente a finalidade das normas juridicas que prescrevem sangdes € a de impedir os delitos que sio condigdes da sangao”. ‘Mas para determinar o estatuto da eficécia da norma na obra de Kelsen, deve-se primeiramente determinar a sua relevancia no nivel do ‘ordenamento juridico, pois mesmo com o interesse centrade na questo da validade e da da norma singular, nao se pode deseonsiderar © fato de que para Kelsen “a eficécia da ordem jurfdica como um toda € uma condigio necesséria para a validade de cada norma individual da orem”. Kelsen tematiza a eficécia da ordem juridica como um todo quan- do se ocupa com a tradicional questo: “Quando podemos afirmar que ‘um determinado ordenamento social € direito?” Na hist6ria do pensamento ocidental, esse problema ji foi co- Jocado por intimeros autores. Kelsen inicia a sua exposigio distan- ciando-se daqueles que, como Sto, Agostinho, exigem que os ordenamentos sociais atendam a certos requisitos éticos para poderem receber o nome de “direito”. Na verdade, Sto. Agostinho, na sua obra Cidade de Deus, exige um componente élico, a justiga, de todos 03 ordenamentos sociais que se apresentem como uma comunidade poli tica. Ele no esté discutindo © conceito de direito, mas 0 conceito de Estado. Se a justica nfo esta present diferenga qualitativa entre um império ¢ um bando de piratas: “Des- terrada a justiga, que € todo reino, sendo grande pirataria? E a pirataria que é, seno pequeno reino?"”' Kelsen estende o alcance dessa passa- (68 RR, p11; DPD, p. 20-21, © Hans KELSEN, Teoria Para del Ds D9GTLS, p. 119; TODE, p. 123. 11 Sto, AGOSTINHO, "Cidade de Deus", p. 153, Prurn del Derecho” in © Postkismo Judie Contemporéneo 45 gem de Sto. Agostinho, fazendo deste. Concepgbes que sustentam que somente ordenamentos ji oO nome de direito. Como Kelsen nio aceita um critério étic tificagao do juridico,” ele de em outro lugar, longe da esfera valorativa, um critério objetivo que permita qualificar um orde- hamento normativo como direito, ou no caso que nos ocupa, win ctité- ‘Tig que permita diferenciar um.“verdadeiro” ordenamento juridico de ‘um ordenamento que rege a alividade de um bando de pirates ou ladies. © problema nao aparece no nivel da ordem de um tnico delin- qiente. Com efeito, nao € necessirio recorrer a critérios éticos para exchtitmos do campo das normas vilidas a ordem de um bandido. de fato, a ordem de um tinico ladrao sua vitima tem um sentido subjetivo de dever ser, que nunca i tornar-se objetivo, devido ao fato que falta uma norma que permita interpretar o ato de vontade do bandido como um fato produtor de normas. De outra parte, a ordem emanada de um Srgio executivo da comunidade juridics, embora possa ter o mesmo sentido subjetivo da ordem do Iadrao, possui também um sentido ob- Jetivo. Isto porque o seu ato € interpretado & Juz de uma decisao de um. nal. Esta decisdo tem um sentido objetivo, pois € interpretada segundo a norma legislativa que autoriza o tribunal a ditar decisoes. O sentido do ato de vontade do legistador, por sua vez, é um sentido objetivo na medida em que ¢ interpretado a partir da constituigto que © institui enguanto érgi0 produtor de normas do sistema. O ato de vontade do constituinte s6 pode ser considerado como tendo um sen- {ido objetivo se for pressuposta uma norma fundamental que 0 autorize a editar a constituigao. Assim, em dltima andlise, a ordem do ladriio do tem um sentido objetivo, ou seja, nfo constitui uma norma valida, na medida em que ¢ um ato isolado, e, portanto, nao est integrado a um ordenamento juridico considerado valido a partir da norma funda- mental, Como Kelsen nao deixa de insistir, mas um sistema de normas”.”? © problema aparece apenas quando se confronta um ordenamento juridico com 0 ordenamento que regula a atividade de uma quadrilha que tornasse insegura uma parcela de um tervitério. Para Kelsen, se esse ordenamento nao vem qualificado como direito, se 0 sentido Mo umn Fepresentante das 72k p51; DPD. p. 63 72 RR, p48; DPD. p. 60. 46 Luis Fernando Barzotto direito nao é uma norma,. subjetivo dos atos de vontade dos integrantes da quadrilha niio vém interpretados como seu sentido objetivo, isso ocorre “porque nfo se pressupde uma norma fundamental com base na qual deve-se compor- tar em conformidade com este ordenamento (...)"." A questo de fundo, € portanto: “Por que (neste caso) nao se Pressupde a norma fundamental?” Kelsen responde: “Essa nao vem Pressuposta porque, ou mais exatamente, se este ordenamento nfo posssui aquela eficécia continua, sem a qual nao se presstipée nenhuma norma fundamental que a ele se refere e que The funda a validade objetiva”.”® Kelsen atribui, portanto, & eficdcia a determinagao da ju- ridicidade de um ordenamento, O ordenamento que alcanga eficécia serd considerado juridico, e se uma quadrilha conseguir se impor sobre tum determinado territério, 0 ordenamento que cla possui deve ser considerado jurfdico, ¢ ela mesma deve ser considerada como consti- tuindo um estado como qualquer outro. Em sintese: somente ordenamentos coercitivos em relagio aos quais se supe a norma fundamental podem ser considerados dieito. E somente em relagao a ordenamentos eficazes essa pressuposicao pode ser feita, pois somente ordenamentos.eficazes podem ser.consi- derados vélidos: “O conteiido da norma fundamental se encontra de- terminado por fatos através dos quais é criado e aplicado um cordenamento (order) a que corresponde, na generalidade dos casos, a conduta dos individuos regidos por esse mesmo ordenamento”.” Os atos praticados pelos ladrdes, desde que cobertos pelo manto da efici- cia geral do seu ordenamento, sio assim jurfdicos, e 0 seu ordenamen- to, por ser eficaz, deve ser considerado um ordenamento juridico objetivamente valido: “(..) quando 0 efetivo comportamento dos ho- mens, em linhas gerais, corresponde ao sentido subjetivo dos atos voltados a este comportamento, este sentido subjetivo vem reconheci do também como seu sentido objetivo, isto é, estes atos vem qui cados como atos jurfdicos”.” | A questo da eficécia do ordenamento volta a ser tratada por! Kelsen quando ele analisa os elementos que constituem 0 Estado, no sexto capitulo da segunda edigao alema da Teoria Pura do Direito. O 74 RR, p. 49; DPD, p. 606 SRR, p. 49; DPD, psi 18 GTLS, p.120; TGDE, p. 124 77 RR, p48: DPD, p. 6. © Postvismo Jurdico Contemparéneo 47 / normativismo de Kelsen leva-o a conceber o Estado como ordenamen- to juridico. Em conseqiléncia, ele reduz os elementos que, segundo a tradigao, constituem o Estado, a saber, territério, povo e poder, a elementos de cardter normative. Aqui interessa apenas o elemento “poder estatal” (Staatsgewalt) Kelsen inicia determinando o carter espectfico do poder estatal. En. quanto o poder em geral consiste simplesmente em induzir outrem a seguir um comando, 0 poder estatal possum carter norma: medida em que esté autorizado pelo ordenamento juri catitada Forca (Macht) do Estado, que se manifesta ém prisoes, canho- es, fortalezas, soldados e policiais, € um elemento inanimado, ¢ somente se torna poder estatal quando os seus recursos sao empregados de acordo com as normas de um ordenamento juridico. Kelsen conclui: “O poder do estado (...) no € outra coisa senao a eficacia (Wirksam- keit) do ordenamento jurfdico”.”* Assim, outra porta de entrada da eficécia na teoria do direito € a teoria do estado, que, em Kelsen, & apenas uma parte da primeira, na medida em que todo estado é um ordenamento juridico. Contudo, a eficdcia nao ocupa uma posigio subordinada no siste- ma kelseniano, Ela, na verdade, ocupa um Ingar central, como mostra 4 conclusio do ponto “Validade e Bficécia” da mencionada edigao da Teoria Pura do Direito. A conclusio deste capitulo nao deixa de ser™ surpreendente, na medida em que Kelsen, fiel ao programa positivista, sempre se mostrou arredio a introduzir um elemento fatico no séu_ conceito de direito: “Se em lugar do conceito de realidade (Wirklich- eit), entendida como eficécia (Wirksamkeit) do ordenamento juridico, se pde 0 conceito de forga (Mach), entao 0 problema da relagio entre validade ¢ et je, muito mais corrente, entre direito e forga, E entio a solugao aqui apresentada € somente a formulagao cientificamente exata da antiga verdade: o direito nio pode existir sem a forga, mas nao se identifica com a forga: segundo a teo! aqui exposta, esse € um certo ordenamento (ou uma certa organizagio) da forga”.” © conceito de eficdcia passa a fazer parte da propri definiga0 de direito. Vista a eficdécia como condigo da validade do ordenamento dico, sertio examinadas agora as conseqiléncias dla perda da efi 2 RR,» 293: DPD, p.322, 7 RR, p. 221; DPD, p. 283 48 Luis Fernando Barzotto ordenamento jurfdico como um todo. Este é um problema que Kelsen analisa quando trata do conceito de revolugao, “Revolugio, em sentido lato, que compreende também o golpe de estado, € toda modificacao constitucionalmente ilegttima, isto 6, ocor- rida no conformemente as disposigdes da constituigéo ou a substitui- go de uma constituigdo por outta”. A alteragio revolucionéria da constituigiio pode, ser parcial ou total, sendo indiferente ao Ponto de vista juridico que tenha sido realizada por uma insurreigao popular ou um Putsch de uma elite. Uma mudanga parcial na consti- twico serd analisada quando forem tratadas as relagdes entre validade € eficécia da norma singular, Agora serd tratado 0 conceito de revolu- ‘80 apenas na medida em que ele diz respeito ao ordenamento como um todo, Q ordenamento ineficaz perde validade porque simplesmente ele nfo possui mais uma norma fundamental que Ihe confira validade Como foi visto, a norma fundamental s6 se refere a ordenamentos coercitivos eficazes. Com a alteracio fitica nas relagSes de poder Pressupée-se uma nova norma fundamental, que torna vélido 0 orde- namento imposto pelos novos detentores do poder: “a modificaglo da norma fundamental € sucessiva & modificacio dos fatos que se con deram produgio e aplicagio de normas jurfdicas vélidas”.*' O exemplo fornecido por Kelsen de alterac3o da norma fundamental consiste na alteragio revoluciondria de uma forma de governo monérquica para uma forma de governo parlamentar. A norma fundamental da ordem mondrquica legitimava a autoridade normativa do monarca ¢ dos 6rgA0s por ele institufdos. A nova norma fundamental legitima a auto- iva do parlamento ¢ dos Srgdos por ele instituidos, O sentido de “legitimidade” ndo € axiol6gico, mas repousa sobre a efe- tividade do poder: “Segurido a norma fundamental de um ordenamento juridico estatal, 0 governo legitimo do estado € 0 governo efetivo, que sobre a base de uma constituigio, estatui eficazes normas gerais e Determinadas as relagdes entre validade e eficécia no nivel de ordenamento, cabe analisar como essas relagdes se colocam no de validade ¢ efieécia da norma singular 80 RR, p 213; DPD, p. 236, 81 RR, p. 214: DPD. 9.237. (0 Posttvisma lurid Contemporéneo 49 Em primeiro tugar, a validade da norma. sin eficécia da ordem juridica como um todo. Quando a ordem juri global deixa de ser eficaz, por meio de uma revolugio, por exemplo, cada uma das normas singulares que o compdem perde a validade. Isso porgue a norma fundamental no pode mais ser pressuposta, e todas as normas singulares petdem assim seu fundamento de validade, Que a validade de normas singulares dependa da eficdcia da or- dem juridica total € um trufsmo do pensamento juridico, Ninguém sustenta que se possa predicar a validade de uma norma pertencente a uma ordem juridica que tenha perdido sua eficdcia. Até aqui, Kelsen io faz mais que repetir um Ingar-comum da Teoria do Di entre vi elagdes entre 03 dois conceitos constituem, segundo o proprio Kelsen, “um dos problemas mais importantes ¢ ao mesmo tempo mais dificeis para uma teoria positivista do direito”.* Dentro do quadro da Teoria Pura da Direito—a-relagio-entre validade e eficécia € uma instfincia do problema mais geral das rela- g685 enire Sein ¢ Sollen, ou entre fealidade natural e dircito. Kelsen intermédia” entre as posigbes equivocadas jealismo_e-do_realismo. O idealismo sustenta a independéncia abyoluta entre validade (Sollen) e eficdcia (Sem); o realismo identifica 08 dois conceitos, do ser, no plano jurfdico, tem dois momentos: a estatuigho e a eficécia, Kelsen pensa refutar 0 idealismo com uma constatagao elementar: toda norma positiva, que se encontra no plano do dever ser, depende de um ato de estatuicao, ¢ este se encontra no mundo do ser. Isto é indubité- vel, € 0 idealismo, enquanto tese acerca das relagées entre ser e dever ser, € realmente um despropésito, Mas 0 verdadeiro problema nas relagdes entre ser ¢ dever ser nao se encontra na relagdo entre estatuigao e val de, mas na relagio entre validade e eficdcia. Aqui, 0 ataque ao idealis- mo tem um cardter dogmatico, pois a postura kelseniana € formulada em termos apoditicos, sem ser demonstrada: “Nao se pode negar que tanto um ordenamento jurfdico na sua totalidade quanto uma norma ‘7~ singular perdem a sua validade quando deixam de ser eficazes”.** 89 RR, p. 215: DPD. p. 238, 84 RR, p. 216; DPD, p. 238 50 Luis Fernando Barzotto Descartado o idealismo, Kelsen vai dirigir toda a sua atengo a0 seu verdadeiro adversirio, o realismo, posi¢ao que se encontra articu Jada, segundo ele, na obra de Alf Ross. Nao ser4 examinada a polémica entre os dois autores, centrada especialmente no carter empirico da cigncia do direito. Interessa apenas os argumentos de Kelsen a favor da sua posigao de irredutibilidade da validade & eficécia Em primeiro lugar, Kelsen sustenta que a identificagio entre va- lidade e eficdcia privaria de sentido nao s6 0 primeiro conceito, mas também o segundo na medida em que a “eficdcia, enquanto consiste no fato de que uma conduta se conforme a norma juridica, implica uma relagdo entre o direito e esta conduta fatica, mas somente pode exi uma relagio entre dois elementos que no se ide Ao identificar 08 dois conceitos, nio s6 a expressiio a2. Na medida em que € descartada a hormatividade do fendmeno juridico expressa pelo termo validade, fica © desafio ao realismo: qual 0 critério que permite distinguir uma con- duta juridica de outra anti-juridica, se 0 direito é reduzido a conduta? Em segundo lugar, Kelsen afirma que as teorias realistas, que Fecusam a validade enquanto um dever ser expresso por uma norma, nio apreendem a esséncia do direito, isto é, “o sentido espectfico pelo qual 0 direito se dirige aos homens cuja conduta regula’.* Com efeito, a existéncia de uma norma implica que algo deve ser, ¢ no que algo seja ou seré, Se nto se mantém uma distingao entre os dois conceitos, no se vé como o direito pode ser contrastado e comparado com uma conduta efetiva. O direito se ditige de um modo normative a conduta, © que supde que ele nao se identifique com ela, Outros argumentos sao mais diretos. Uma norma continua sendo valida no caso dela ser violada, ou seja, quando, em um caso determi- nado, ela € ineficaz. De fato, € precisamente quando ela € violada que ‘sua validade € afirmada com particular vigor. Outro argumento, ainda mais forte, € aquele que diz respeito & validade de uma norma recéi promulgada. Mesmo antes de ter tido tempo para set eficaz, ela é considerada valida Estando reful analisar como Kel 5 Hans KELSEN, “Una teora “rs \dos 0s extremos n-constréi a sua idealismo e do realismo, resta ia intermédia”, a ela Teosa Pura det Derecho", p. 24, 51 A posigiio de Kelsen jé vem definida no capitulo inicial da segun- da edigdo alem& da Teoria Pura do Direito, “Direito ¢ Natureza”. Dentro do primeiro t6pico desse capitulo, dedicado a0 conceito de validade, Kelsen estabelece uma tese que iri sustentar ao longo de toda a obra: “Uma norma nfo aplicada nem seguida em nenhum tempo, em nenhum lugar, isto € uma norma que, como se costuma dizer, nivo seja em certa medida eficaz, ndo é considerada uma norma juridica valida, ‘imo desta chamada eficécia € uma condigio para a sua valida- de"7 Essa tese, segundo a qual a eficdcia € condicao da validade da “norma singular, € reafirmada no capitulo espectfico sobre o tema das relagGes entre validade e eficicia, “A eficécia € condigio no sentido de que um ordenamento juridico, considerado na sua totalidade, € uma ica singular no podem mais ser considerados validos quando deixam de ser eficazes”.** Mas Kelsen adverte para nao se confundir condigao de validade com fundamento de validade. Fundamento de validade de uma norma s6 pode ser outra norma. Nao ha transigao do dever ser ao ser. E fundamento dltimo de validade € a norma fundamental. A eficicia, como a estatuigdo, € apenas uma condiglo de validade. Kelserwitiéa uma metéfora para élucidar ésta distingio: “Assim um homem, para poder viver, deve nascer; mas para continuar vivo, devem ser cumpri- das outras condigdes; por exemplo, deve ter com que se alimentar. Se nao se cumpre esta condi¢ao, ele morre; mas sua vida nao coincide ‘hem com o nascimento nem com o alimento”." Assim ocorre com uma norma: gsta, para existir, deve ter sido posta por um ato efetivo de estatuigao, Assim ela “nasce”. Para permanecer existindo, deve ser eficaz. A eficdcia é 0 seu “alimento”, Mas.a-validade, do. mesmo modo que a vida, no se confunde com a sua génese nem com a sua condigiio de permanéncia, A validade s6 pode ser reconduzida, assim, ao s ‘mas no a uma de suas condigdes, a estatuigdo ¢ a Essa distingao entre fundamento de val dade € particularmente delicada no nivel da cons igo. O fundamen- 87 RR, p10; DPD, p. 20. "8 RR, p. 218-219; DPD. p 24 DPD, p. 241 Luis Fernando Barzotto no é nem a es igo, nem a eficécia, mas a norma fundamen Kelsen demonstra isso através do silogismo normativo que funda a validade do ordenamento por meio da afirmagao da validade da constituigao que esté na sua base.” Esse silogismo pretende atingir a fe conclusio: “Devemos nos comportar de acordo com a const Essa € uma conclusdo normativa que nao pode se fundar na premissa fética: “A constituigdo foi efetivamente estatufda e é eficaz”, uma vez que ndo se pode derivar normas de fatos, Somente uma pre. missa normativa, vinculada & premissa fética, pode levar & conclusio normativa que foi enunciada acima, e esta premissa é a norma funda- mental: “Devemos nos comportar segundo a constituigio efetivamente estatuida € eficaz.” Q ordenamento ¢ as normas singulares no sio Vilidos “porque” so eficazes, mas porque estio em conformidadé gom @ norma fundamental, pressuposta como valida, Mas s6 permanecem validos enquanto forem eficazes, pois essa € uma condigao de validade expressa na propria norma fundamental. Em seguida Kelsen tenta precisar, ainda que sem excluir a vague 2a propria do tema, 0 quantum de eficéeia necessirio validade do ordenamento ou de uma norma, No caso do ordenamento, ele é consi- derado valido quando as suas normas sao eficazes em linhas ger Assim como nao se exige uma obediéncia integral ao ordenamento pa este ser considerado vélido, assim também para as normas singulares serem tidas como vilidas, nio € exigida uma conformidade plena entre © que ela estatui e 0 comportamento concrejo dos destinatérios, pois isto suporia que ela presereve algo que deve ocorrer necessariamente Neste caso, nao estariamos mais diante de uma norma jurfdica, mas de uma lei natural, pois a norma perderia o seu sentido de dever ser, nio odendo pois ser considerada “valida”. Ou seja, se a norma alcancar a eficécia em um grau absoluto, de modo a excluir a prépria possi dade de violacao, ela deixa de ser val Excluida a identificagdo entre validade e eficécia, examinar-se-6 como se operam as relagdes entre os dois conceitos no ni singular. Em primeiro lugar, a falta de eficdcia leva & perda da valida- de, Esta falta de eficicia, Kelsen a tematizou sob a denominagio de “desuetud PO RR, p. 219; DPD, p, 241-282, (0 Poskivisno Jurgico Contemporéneo 53 Na Teoria Geral do Direito e do Estado, Kelsen ja dedicava um t6pico & desuerudo.”! Nesta obra, ele afirmava que a desuetudo, en- quanto costume negativo, poderia privar uma norma de validade. Essa tese volta a ser afirmada na segunda edigto alema da Teoria Pura do Direito, onde a desuetudo vem definida como um “costume negativo, cuja fungio consiste essencialmente em abolir a validade de uma nox ma existente”.°? Para Kelsen, no hé como excluir essa possibilidade do Costume revogar normas, se se aceita que ele possa produzir normas. costume constitui-se “pelo fato de que homens pertencentes & comunidade jurfdica, em presenga de condigées recorrentes, se com portam do mesmo modo, que este comportamento € realizado por um tempo suficientemente longo, 0 que produz, nos homens cujos atos fundam o costume, a vontade coletiva de que se deva comportar as- sim”? O sentido subjetivo de dever ser do costume, contudo, s6 pode ser interpretado como seu sentido objetivo se a constituigao o qual car como fato produtor de normas. Pela l6gica do sistema kelseniano, se a constituigao ndo prevé o costume como fato produtor de direito, as normas produzidas pelo costume deveriam ser consideradas invélidas perante 0 ordenamento Juridico. Mas nao ¢ isso que Kelsen sustenta. Para ele, mesmo que a constituigao ndo autorize o costume, se ocorrer a aplicagio do din consuetudinério por parte dos drgaos da comunidade juridica, espec mente se estes Srgos aplicarem “um direito consuetudinério que re- vogue o direito legislado”, neste caso devemos ent3o “pressupor uma norma fundamental que.preveja como fato produtor de direito (...) 0 costume®.™ Esse caso constitui uma excegio ao prinefpio geral que orienta a referéncia da norma fundamental: “Esta (a norma fundamental) se refere diretamente a uma certa constituigao, realmente estatuida, pro- duzida pelo costume ou por uma atividade constituinte ¢ eficaz nas suas grandes linhas, e indiretamente ao ordenamento coercitivo produ zido em conformidade a esta constiluigdo e eficaz nas suas grandes nhas”.®8 No caso da autorizagio do costume enquanto fonte do 91 GMS, p. 119; TODE, p. 123-124 82 RR, p. 220; DPD, p.242. 8 RR, p. 231: DPD, p. 255, 94 RR, p. 282; DPD, p. 256, °5 RR, p. 204; DPD, p. 226 54 Luis Femando Barzotto {0, a norma fundamental refere-se diretamente a um fato produtor de hormas que no € 0 ato constituinte, mas a um fato produtor de normas Que esté presente no interior do ordenamento. A referéncia a normati. vidade infra-constitucional do ordenamento nesse caso Mas Kelsen vai ainda mais longe. Nio s6 nio é necessario que a Constituigdo preveja o costume como fato produtor de direito, como ela inclusive pode proibi-1o enguanto tal, sem que isso tenha qualquer efeito juridico, porque o costume enquanto fonte nao se submete constituigao: “Enquanto uma lei constitucional em sentido formal nao Pode ser ab-rogada ou modificada por uma lei ordinéria, mas somente Por uma outra lei constitucional, o direito consuetudinério tem forca (Wirkung) derrogat6ria ainda no confronto com uma lei constitucional ‘A expressamente a aplicag3o do diteito consuet Obviamemte, a estrutura hierdrquica do ordenamento, aparentemente quebrada com esta afirmagio de Kelsen, deve ser recuperada, seguindo 4 16gica da sua teoria, pela inst eta, Mas 0 costume no € 0 tinico modo pelo qual uma norma eficaz se torna uma norma vél por via da norma fundamental, tem na Teoria Pura do Direito o condao de elevar qualquer norma & validade, tenha esta sido produzida a partir do costume ou nao. Como exemplo dessa posigao kelseniana sers exposto o fenémeno do conflito entre normas do mesmo nivel e fenémeno que Kelsen chama de “mudangas revoluciondrias na Constituiga: Quando Kelsen trata da unidade l6gica do ordenamento juridico,”” ele depara-se com a questao do conflito entre normas do mesmo nivel hierérquico. Se estas normas sio produzidas pelo mesmo. érgio em momentos temporais distintos, aplica-se o critério tradicional “lex pos- terior derogat priori". © problema surge quando se trata de érgios Aistintos. Kelsen cria a seguinte situagao hipotética. Dois tribunais, mente competentes, prolatam sentengas antagénicas sobre um mesmo caso. Em uma delas, 0 réu € absolvido. Na outra, ele € condenado, Se for considerado que nenhum deles tem competéneia para anular a sentenga do outro (0 que Kelsen considera tecnicamente indesejdvel, PE RR, p. 238; DPD. p. 257, 7 BR, p. 209-212; DPD, p. 231-285 (© Positvismo Juridica Conternporéneo 55 mas no imposstvel), qual das sentengas deve ser considerada uma norma valida? Kelsen no pode buscar o critério de validade no modo de produgio previsto pelo ordenamento, pois ambas as sentengas so das desse ponto de vista. As duas podem ter sua validade recond zida até a norma fundamental. Fechada esta via, Kelsen nfo hesitard em descer a0 plano dos fatos para solucionar o conflito: a sentenga valida seri aquela que for eficaz. “Se o ato coercitivo é executado, em conformidade com uma norma, a outra norma permanece constante- mente ineficaz e perde assim a validade; se nfo ocorre a execugio, conformando-se & norma que absolve 0 acusado ou recusa a demanda, a outra norma que estatui 0 ato de coer¢ao permanece constantemente ineficaz e perde assim a sua validade”.?® Este “apelo aos fatos” deve ser domesticado, sob pena de toda construgio kelseniana vir abaixo. Assim como ocorreu com o costume, aqui também se apela & norma fundamental para que esta transforme fatos em norms. Para isto a norma fundamental deve receber uma nova formula deve ser exercitada sob as condigdes e no modo estabelecidos pela cconstituigdo eficaz em stas linhas gerais, e pelas normas estabelecidas em conformidade com ela: as normas gerais geralmente eficuzes e as normas individuais eficazes”. Porém, ao colocar a eficécia na norma fundamental, aparentemen- te salva-se 0 projeto de isolar a validade das normas do sistema do ‘mundo dos fatos, mas permanece outro problema: e se a norma inferior eficaz_ nfo estivet em conformidade com a superior? Como visto no item 4, esta hipétese no se coloca para Kelsen: para ele, toda norma inferiot sempre est em conformidade com a superior. No caso da “mudanga revolucionéria da constituigio”, esta ocorre toda vez que uma violagao & constituigZo se torna eficaz. Por exemplo, se um 6rgio se arroga uma competéncia normativa reservada a outro reo pela constituigto, € as normas editadas pelo usurpador alcangam eficdcia, estamos diante de uma mudanga revoluciondria da constitui- io. PF RR, p. 212: DPD, p234 % Como essa é umn passiger central de Kelsen i transerevé-a no ginal 56 Luis Fernando Barzotto 2.6. Apreciagio critica Entre os positivistas, Kelsen foi quem buscou um conceito autd- nomo de direito do modo mais explicito, Para ele, 0 direito como norma valida, vem perfeitamente delimitado enquanto fendmeno so cial. Assim ele sintetiza suas conclusdes: “o ordenamento juridico é tum sistema de normas gerais ¢ individuais, vinculadas umas as outras elo fato de que a producao de toda norma pertencente a este sistema € determinada por uma outra norma do sistema e, em dltima an pela sua norma fundament: perf reunscrito em relagio aos fatos € aos valores, Indispensdvel a essa autonomia do conceito de direito so as nogdes de validade e funda- mento de validade, Vejamos se Kelsen realmente consegue manter estes dois conceitos “puros” em relagio & pressio dos fatos e dos valores, Uma norma € vélida, no sentido de validade-existéncia, quando ela constitui-se em um sentido objetivo de dever ser de um ato de vontade. Como sentido, ela coloca-se no plano do Sollen, quie, como vimos em Kelsen, & iredutivel a0 Sein Mas 0 Sollen, longe de ser independente do Sein, coloca-se a reboque deste: afinal, “somente se a conduta real dos homens corres- ponde, geralmente ao significado subjetivo dos atos dirigidos a tal conduta, 0 seu sentido subjetivo € considerado também seu sentido objetivo”.""" Para_se utilizar uma expressio de Losano, Kelsen, ao assumir_a_eficécia. como. condigéo da validade, impOs uma “fratura’ sistemética” a sua teoria : Foi visto que Kelsen coloca a estatuicio e a eficicia como con- digdes necessérias, porém nao suficientes, para afirmar a validade da norma, A validade da norma € conferida pela norma fundamental, Mas na propria norma fundamental, a eficdcia é colocada como condicio suficiente para a validade do ordenamento ou da norma. Assim, normas produzidas por usurpadores so vilidas se sto eficazes; um novo denamento € valido, se eficaz; uma norma individual que esteja em contradigo com outra, se torna valida, se eficaz; uma decisdo de um tribunal de dltima instancia € vatida, se eficaz, Uma lei “inconstitucio: la, se eficaz, O bindmio ser/dever ser, distingiio metodolé. 100 RR, p. 239: DPD. p. 268 101 RR, p. 48; DPD, p 0, (0 Postvismo Jurisica Contemparéineo 57 gica fundamental do sistema kelseniano, sofre um duro golpe com esse tratamento dispensado a eficacia, Para nao assumir de um modo direto que tudo aquilo que € eficaz € também vilido, 0 que seria grotesco, pois estarfamos derivando normas de fatos, Kelsen situa a eficacia na norma fundamental. Desse modo, estaria solucionado o problema de uma transigao abrupta entre normas e fatos, logicamente insustentivel Essa transigdo setia mediada pela norma fundamental. Essa “conver- teria” os fatos em direito.' Mas esta mediacao, se cria uma ponte entre o sere 0 dever ser, acarreta outros problemas. Um dos mais graves é a implosdo da con- cepgio hierarquica de ordenamento preconizada por Kelsen: “Mas a eficdcia (...) depende exclusivamente de fatos reais, de modo que a justificativa de um ordenamento piramidal desaparece. Cada norm depende de sua prépria eficacia, prescindindo do seu modo de c: ‘ow de sua relagio com outras normas. Todas as normas ficam a eri um mesmo plano ou nivel (...) A partir da anélise feita acima, pods-se iden io foram aplicadas, ma prevista pelo jer peri- evantar o caso da existéncia de normas que ainda € sio tidas como validas, por terem sido criadas na f ordenamento. Mas parece que, mesmo aqui, Kelsen faz depe gosamente a validade da eficéci Com efeito, na discussio que gica americana, que propunha como critério de juridicidade a eficicia, Kelsen afirma: “O que fundamentalmente a jurisprudéncia sociolégica 6 capaz de predizer & somente a eficdcia ou a nao eficdcia da ordem juridica, Sua eficécia, contudo, é uma condigao essencial da sua val dade, e sua ineficécia uma condigao essencial de sua caréncia de ¥: dade, no sentido da jurisprudéncia normativa. Por esta razio, a repncia entre os resultados da jurisprudéncia socioldgica ¢ 0s da normativa € quase impossivel (...)”.!™ Isso porque aquilo que a juris- prudéncia sociol6gica afirma como provavelmente eficaz, a jurispru- va com a jurisprudéneia sociol6- le HLA 102 Joxé Antonio Ramos PASCUA, Li rept de recon Harp 51 19 €¢, Ricardo GUIBOURG. Derechs siteme y realidad, p. 42-43, 104 GTLS, p. 173; TGDE, p. 175, 58 Luis Fernando Barzotto ééncia normativa afirma como vilido, e 0 que a jurisprudéncia socio- I6gica afirma como provavelmente ineficaz, a jurisprudéneia normat, va afirma como invilido. Em sfotese: a validade, mesmo que nao dependa da eff esti na dependéncia da eficécia fu seja, da probal pode-se encontrar no exame da validade das normas emanadas pot urn Poder revolucionério. Neste caso, uma norma fundamental sera pres. suposta somente se for provaivel que as normas emanadas pelo novo poder venham a se tornar eficazes.""? Um juizo de probubilidade se torna a base para um juizo de validade. Outro problema esté na concepgio “dindmica” de validade, isto €, na validade enquanto qualidade derivada formalmente de uma norma superior. Conceber 0 dircito como um sistema normativo dinamico é concebé-lo como um todo fechado pela via da derivagio formal, ou seja, uma norma € vélida na medida em que foi criada de acorde com outra norma do ordenamento, Este conceito de validade como “les dade do ato de produgio" € essencial para “fechar” o sistema ao mundo exterior, porque, nesta perspectiva, somente o direito pode ser funda. mento do direito Mas o proprio Kelsen nio consegue manter este conceito de va- lidade, no caso das normas que ndo foram produzidas de acordo com outras normas do ordenamento, Neste caso, Kelsen introduz um estra- tagema cujo artificialismo salta aos olhos: a norma superior “fact 0 Srgio autorizado por ela a etiar normas, a seguir ow niio o que dispe! Esta posigio € insustentdvel pelas seguintes razdes: 8) Seas normas superiores contém uma autaizagao ‘aberta® ao 6rgdo, de modo ‘quo este pode oun sequ-la 20 seu abit, ela nunca pode ser dasobedecida, © que a anula enquanto norma." ») Se a norma superior deixa aberta a possibiidade de determinagdo do proce dlmento e da matéria a serreguada pelo 6rgdo competent, nZo se vé porque ela no deixaria em abero a propria determinago do érgio, Dal ser legitina @ ‘queixa que se expressa nests termos: ‘Nao pode deixar de ser desalentada Portanto, uma tese que induz a sustentar que o dieito positive autoriza a qual. {Quer pessoa a citar normas mediante qualquer procedimenta e sobre qualquer materia" "7 105 Ricurdo GUIBOURG. Derecho sistema y read, p. 24 '06 Carts Santiago NINO, La validee del derecho p. 137 101 Adem, p. 139. (0 Positivisme Juridico Contemporaneo 59 ito perguntar o que resta do conceito de validade apés esta zagio da eficécia, Deve-se observar, ainda, que no s6 a validade das normas posi- tivas depende da eficécia, como o pr6prio fundamento de validade, a norma fundamental, depende da eficécia da constituigdo. A norma fundamental é a garantia sltima da separagio entre 0 mundo do ser e mundo do dever ser. Ela serve como um mecanismo que isola a nor: matividade do ordenamento juridico do contagio dos fatos. Mas, 0 prego que Kelsen pagou para que a norma fundamental nao fosse uma abstragiio @ fundamentar outra abstragio (uma ordem juridica imaging tia) foi muito alto: como foi visto, somente em relagao a uma ordem juridica eficaz a norma fundamental € suposta, Kelsen, deste modo, Atravessn o fosso que ele mesmo cavou entre validade e eficscia. Além disso, se a norma fundamental necessita de fatos para ser suposta, nao ‘hd como evitar as criticas que the foram dirigidas pelos intérpretes: "A norma fundamental teria sua fungio se estivesse em condigées de evitar 0 escolho de toda teoria positivista do direito, que € a derivagao do direito do fato. Mas uma teoria como aquela kelseniana que resolve a validade de um ordenamento juridico na sua efetividade nto s6 nao evita este escolhe, mas se utiliza dele para encontrar um s6lido ponto de chegada”."" Além da sua superfluidade, a teoria da norma fundamental falha tem determinar as verdadeiras relagbes entre direito e poder. Segundo Kelsen, a norma fundamental tem a fungio de transformar o poder em direito." Mas cabe perguntar:" 0 poder necessita da norma funda mental? Nao € ele, sozinho, 0 fundamento do ordenamento juridico? Kelsen niio reconhece que, de fato, o poder eria 0 direito? Por que teria necessidade de uma norma que 0 autorizasse a isso? E a conchisio nao pode ser outra: parece ser mais adequado assumir que no topo do ‘ordenamento tem-se um poder supremo, ¢ no uma norma suprema.!!! Talvez a norma fundamental merega a “navatha de Ockham". Mas deve-se ter presente a sua funglo no projeto positivista de isolar 0 direito da moral e da politica, Neste sentido, ela & indispensivel 108 Norberto BOBBIO. “Kelsene it proble floefie del dei, p. 570 109 QTLs, p. 437: TODE, p. 425, 621 poiere™ in 60 Luis Fernando Barzotto De qualquer forma, a relagdo da norma fundamental com o plano ico € incoerente, Com efeito, a norma fundamental, ao instituir a ¢ficdcia como condigio suficiente da validade das normas singulares, leva a0 paradoxo da perda da sua prépria normatividade, uma vez que éla se limita a reproduzir a realidade de fato: ela atirma a validade de normas que j4 sdo obedecidas e retira a validade das normas que iio sdo mais seguidas. Assim, a sua formulagio clissica, “Devemos obe- decer as normas emanadas do primeiro constituinte™, se tornaria mais exaia se rezasse: "Devemos obedecer as normas eficazes emanadas do constituinte”, Mas assim, ela se torna supérflua, como visto acima: por que ha necessidade de uma norma que manda obedecer a alguém que J6 € obedecido? A inclusao da eficécia na nor a fundamental &, deste modo, uma solugdo insatisfat6ria para as relagOes entre validade e eficicia. Uma solugdo que esté longe de salvar a coeréncia do sistema, pois um intruso (0 fato) € sempre um intruso, ainda que ocupe o lugar de honra no sistema (a norma fundamental) A validade de uma norma traz consigo a sua obrigatoriedade Dizer que uma norma € vélida equivale a afirmar que deve-se agit em conformidade com ela, Os comentadores chamam esse conceito de validade de “conceito normativo” de validade,""? Essa coincidéncia entre validade € obrigatoriedade s6 € possivel se o fundamento de validade nao for somente 0 critério sltimo de pertinéncia ao sistema, mas também o fundamento de obrigatoriedade. B isso que ocorre com @ norma fundamental kelseniana, De fato, a questio sobre o fundamento de validade é colocada, por Kelsen, em termos de obrigatoriedade: “Perguntar pelo funda to de validade de uma norma, isto é, porque vale, porque é obrigatéria, Porque deve ser obedecida (...”""” Partindo de um coneeito normative de validade, Kelsen terminou formulando a pergunta pelo fundamento de validade em termos de obrigatoriedade: “Por que devemos obedecer uma norma?". Mas esta € uma questo que nao conhece uma resposta Juridica: ela diz respeito & legitimidade de uma norma ou ordenamen- to.""* Com uma pergunta deste género, a resposta s6 pode ser formu~ 13 Hans KELSEN, “EI derecho, p. 94 114 Mora Jose Farts DULCE. prt neepta de arden j © Positvismo Juridieo Contemporéneo 61 ida em termos normativos, e a resposta kelseniana € a norma funda- mental: “Devemos nos comportar de acordo com 0 que foi determinado pelo constituinte.” Depois de formular a norma fundamental nestes fermos, Kelsen se defronta com 0 desafio de defender a neutralidade axiolgica de uma “norma”, cuja fungdo de legitimagao ético-p do ordenamento salta aos olhos. A estratégia de Kelsen para afastar o fantasma da fungio legit madora da norma fundamental vai ser realcar o seu papel teorético. Na edigao de 1960 da sua Teoria Pura ele diz o que segue a respeito de um anarquista que assumisse © papel de jurista: “Também um anar- quista, como jurista, pode descrever um diteito positive como um stema de normas vilidas, ainda que niio aprove este direito. Alguns manuais, nos quais se descreve um ordenamento juridico capitalista ‘como sistema sobre os quais se fundam deveres, direitos e competén- ias, foram escritos por juristas que desaprovam este ordenamento fico do ponto de vista politico”.!'* Para enfrentar este argumento kelseniano, € necessério abordar rapidamente a referida fungao teorética da norma fundamental. A nor- ma fundamental cumpre, na epistemologia kelseniana, o papel de con- digdo de possibilidade do conhecimento juridico. Com seu auxi pode-se interpretar um dado ordenamento social como ordenam juridico, Ela € utilizada, assim, prioritariamente por aqueles que se dedicam a ciéncia do dieito: os juristas. Dando énfase a papel gnoseo- l6gico, Kelsen quer evitar a sua caracterizago como uma norma de carater ético-politico Emi resposta a Kelsen, pode-se dizei fundamental nao pode ser meramente teorética, De fato, 0 proprio ordenamento jurfdico exige um fundamento de unidade e de validade de suas normas. Se assim nao fosse, a tarefa cognoscitiva da Cignc Juridica estaria prejudicada, Pois a cigncia do direito nfo poderia descrever um conjunto de normas vélidas cuja validade derivasse de tum postulado da prépria ciéncia, sem que com isso se eliminasse as condigdes de verdade das suas assergdes. Afinal, se & a ciéncia do direito que atribui validade as normas juridicas, como determinar em ue a fungao da norma lum caso concreto, se a assergao da ciéncia do direito acerca da validade de uma norma é verdadeira ou no? 115 RR, p. 224-225; DPD, p. 288. 62 Luis Femando Barzotto Outra prova de que a norma fundamental nfo possui fungao ape- has teorética nos € fornecida pelo proprio Kelsen, quando ele admite que além dos juristas, outros atores sociais, que possuem propdsitos que nao se reduzem a “compreender e descrever 0 dite “(..) 08 érgiios que pSem as normas pressupdem a norma fundamental quando interpretam o sentido subjetivo dos atos constituintes e dos atos estatuidos sobre a base da constitui¢do como normas objetivamente vélidas”.""6 Se a norma fundamental existe para além do papel que Ihe foi assinalado pela ciéncia do direito, qual € 0 seu estatuto? Por mais que isto possa discrepar da intengfo de Kelsen, é evi- dente a natureza ético-politica da pressuposigdo da norma fundamen- tal. Isso se evidencia no caso em que um 6rgao produtor de normas, € Go um jurista, a pressupde. O érgio pressupde a norma fundamental quando considera a constituicao obrigat6ria e se dispoe a agir em conformidade com ela, porque isto, afinal é 0 que dispde a norma fundamental: “devemos obedecer ao constituinte”. Por parte do drgio, nfo pressupor a norma fundamental significa no considerar vilida a constituigao, isto é, nilo consideré-la obrigat6ria. Ora, esta € uma pos- tura politica, que levada & prética, configura o que Kelsen chama de “revolugio”, que como exposto acima, € definida como toda mudanga constitucional ilegitima. © proprio Kelsen, em um artigo de 1965, deixa explicita a fungio legitimadora da norma fundamental: “Um comunista pode, efetivamen- te, ndo admitir que exista diferenca essencial entre uma organizagao de bandidos € uma ordem juridica capitalista que ele considera como um meio para uma impiedosa exploracdo capitalista. Porque ele nao pressupde a diferenga daqueles que interpretam a ordem juridica em questo como normativa € objetivamente vélida ~ a norma fundamen- tal. Ele ndo nega que a ordem coercitiva capitalista seja o direito do Estado. © que nega que esta ordem coercitiva, 0 direito do Estado, seja objetivamente valido”.!"” © comunista nega que o direito do Es- tado seja “objetivamente valido”, porque ele nega que este seja obri- gat6rio ou deva ser obedecido, ndo pressupondo, portanto, a norma fundamental. O que equivale a dizer que a norma fundamental sé é pressuposta por aqueles que aceitam a ordem jurfdica existente como ‘RR, nots, p. 207; DPD, nots, p. 230. HANS KELSEN. “El prof. Stone la teora ors del derecho". p70 (0 Positivism Juridico Cantemparénea 63 ma. Obviamente, essa sua pressuposigzo nasce de uma postura valorativa, A norma fundamental se revela, assim, como a formulagao nor- mmativa de uma adeso politica 3 ordem jurfdica vigente. Ela é pressu- Posta somente por aqueles que se sujeitam a essa ordem, no sendo Pressuposta por aqueles que ndo a aceitam como obrigatéria, Na ver- dade, Kelsen, para evitar derivar normas de fatos, colocou no fpice do seu sistema uma norma que nada mais € do que a expressao deéntica de uma assungao valorativa da obrigatoriedade do sistema: “a férmula: comporte-se como manda a constituigao, é, no fundo, uma proposigiio &tico-politica Convém agora verificar se a fungiio de ponto arquimediano da ordem jurfdica, que permitiria fundar 0 direito sobre si mesmo, foi satisfeita pela teoria da norma fundamental. Uma das definicdes de validade de Kelsen vem expressa nos seguintes termos: “o modo espectfico de existéncia da norma.” Assim, para uma norma jurfdica existir, ela deve ser vélida. Como Kelsen também fala de “validade” do ordenamento juridico, constata-se que a validade é um requisito da existéncia juridica do proprio ordenamento. E para que um ordenamento seja vilido, ou 0 que € 0 mesmo, seja considerado jurfdico, € necessério que haja um fundamento de valida- de: sem a norma fundamental, as relagdes habitualmente consideradas juridicas 86 podem ser interpretadas como “relagdes de forca”.!” Sem 4 norma fundamental, tem-se apenas “relagdes entre individuos que mandam € individuos que obedecem ou nao obedecem."(ibidem). Ou seja, sem a norma fundamental, no hé direito. Mas a norma fundamental s6 é suposta diante de um ordenamento juridico cujas normas sto assumidas como vélidas. Somente diante de uma ordem social que se apresente estruturada na forma de uma hie- rarquia de normas eficazes que culmina em uma constituigo € que se pressupde a norma fundamental. Com efeito, a propria formula da norma fundamental, “Devemos obedecer & constituigdo”, supbe que j4 foi identificada uma norma ou um conjunto de normas como “a cons- tituigao” de um ordenamento jurfdico, Ou seja, a validade, ow a exis- (2ncia jurfdica das normas do ordenamento é anterior & afirmagao da HE Tercio Sampaio PERRAZ. JR. "Teoria nova jutdiea”. Rio de Forense, 1978, p28 9 RR, p. 224: DPD, p. 248 64 Luis Fernando Barzotto validade da norma fundamental, néo s6 do ponto de vista cronol6gico, mas também do ponto de vista légico."™ Tem-se, entdo, a seguinte circularidade: “A validade objetiva da ordem juridica, nos diz Kelsen, apoiada pela hipstese (...) de uma norma suprema, a G mas esta norma nao € outra coisa Seno a hipdtese (..) da objetiva da ordem juridica! A definigio em circulos salta aos olhos Kelsen, para escapar a esta citcularidade, afirma, em algumas passagens da sua obra, que validade e juridicidade nao sao sindnimos, Ele sustenta que qualquer ordenamento coercitivo eficaz jé € juridico, anteriormente & suposigaio da norma fundamental. © papel desta seria conferir validade ao ordenamento, que ja é juridico, e is normas que ele contém Além dessas afirmagdes contratiarem outras do proprio Kelsen, elas contrariam 0 espfrito do seu sistema. Se validade é existéncia, como se pode falar de uma norma jurfdica sem se pressupor a norm: fundamental? Se a validade € dissociada da juridicidade, hav gundo Kelsen, irés modos de existéncia dos entes deste m existéncia dos seres naturais, a existéncia das normas vélidas e a exis- téncia das normas néio-validas, 0 que é um absurdo. Uma norma sé existe no plano jurfdico se for valida: isso € uma verdade tao elementar para Kelsen, que ele termina por atribuir validade & propria norma fundamental. Nao € possfvel, portanto, dissociar validade ¢ juridicidade no pensamento de Kelsen, Mas com isso, cai-se na circularidade apontads: a norma fundamental € vélida, e, portanto, juridica, se fundar um ordenamento jé considerado como juridico} ¢, portanto, valido. 9 Joseph RAZ. The concep ofa legal ster. i du drt chee Kelsen elles upoies de fa aorme “rot, 186, 4. © Positvismo Jurdico Contemporéneo 65

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