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Trechos de Waldeloir Rego (Capoeira Angola: um ensaio

sócio etnográfico)

XII. Ascensão Social e Cultural da Capoeira

(...)

Os tumultos e desordens entre capoeiras e policiais prosseguiram. Tentando uma


solução, resolveu o então intendente de polícia, desembargador João Inácio da Cunha, a
10 de fevereiro de 1823, nomear Manuel José da Mota, para se encarregar, juntamente
com outros indivíduos sob suas ordens, de permanecer no encalço dos capoeiras e
desordeiros, prendendo-os tão logo delinqüem. Também deveria fazer cumprir o edital
de 26 de novembro de 1821, que determinava o fechamento de açougues, tavernas e
estabelecimentos congêneres às 10 horas da noite, sob pena de prisão. A medida não
surtiu efeito, tendo Clemente Ferreira França ordenado ao brigadeiro chefe do corpo de
polícia o reforçamento das patrulha pela cidade para impedir qualquer aglomeramento
de negros capoeiras e pessoas outras, no intuito de evitar desordens através da Portaria
de 8 de dezembro de 1823. Nada resolve, nada impediu que os capoeiras estivessem
sempre em luta. Agora são vistos numa luta meritória e assinalados nas páginas da
história como heróis nacionais.

Com a guerra do Rio da Prata, a coroa se viu na contingência de contratar


estrangeiros, para engrossarem as fileiras do exército brasileiro, importando assim
elementos da Irlanda, Alemanha e Inglaterra. Desse contingente estrangeiro, uma parte
já havia seguido para o Rio Grande do Sul e a outra parte, constante de três batalhões,
um irlandês e outro alemão se achavam no Rio de Janeiro, aquartelados no Campo de
Santana, no Campo de São Cristóvão e na Praia Vermelha, reunindo tudo, cerca de duas
mil praças, mais ou menos. Acontece, porém, que esses batalhões se achavam
tremendamente descontentes com o governo e a cada instante davam prova disso, com a
prática de atos de indisciplina. Não é assim que o comandante do contingente alemão,
que se encontrava ocupado em São Cristóvão, ordenou que castigasse alguns soldados,
que haviam praticado atos de indisciplina. Resultado -- na manhã de 9 de junho de
1828, eles se rebelaram e prenderam o major destacado para fazer cumprir as
determinações do comandante, fazendo grande tumulto e de armas em punho,
abandonaram os quartéis e fizeram uma carnificina, matando, devastando e saqueando
tudo. E à proporção que a notícia se espalhava, os outros contingentes iam se
incorporando aos sublevados. O contingente alemão da Praia Vermelha se incorporou
aos seus companheiros, em São Cristóvão. Atitudes idênticas tiveram os irlandeses do
Campo de Santana e os que se achavam de guarda, em vários edifícios e
estabelecimentos públicos, durando essa intranqüilidade de 9 a 10 de junho de 1828.
Pois bem, em toda inquietação e balbúrdia tiveram papel de relevante importância os
tão combatidos capoeiras. Basta que se tome por testemunho J.M. Pereira da Silva e se
saiba que os sublevados, "atacados por magotes de pretos denominados capoeiras,
travam com eles combates mortíferos. Posto que armados com espingardas, não
puderam resistir-lhes com êxito feliz, e a pedra, a pau, à força de braços, caíram os
etrangeiros pelas ruas e praças públicas, feridos grande parte, e bastante sem vida(913)."

nota 913: J.M Pereira da Silva, Segundo Período do Reinado de Dom Pedro I no Brasil
-- Narrativa Histórica., B.L. Garnier, Livreiro-Editor Rio de Janeiro, 1871, pág.
289.

Ler sobre este motim Walsh, Debret -- e a nossa síntese

Volta para o Índice, cap. 12.

[p. 359]

XVII. Mudanças Sócio-Etnográficas na Capoeira

Primitivamente a capoeira era o folguedo que os negros inventaram, para os instantes


de folga e divertirem a si e aos demais nas festas de largo, sem, contudo, deixar de
utilizá-la como luta, no momento preciso para sua defesa. As festas populares eram algo
de máximo na existência do capoeira, era o instante que tinha para relaxar o trabalho
forçado, as torturas e esquecer a sua condição de escravo, daí farejarem os dias de festas
com uma volúpia inconcebida, pouco se lhes importando se a festa era religiosa, profana
ou profano-religiosa. As procissões com bandas de música eram o chamariz para os
capoeiras e, se tinham um pretexto para arruaças, faziam-no sem a menor preocupação
de estarem perturbando um ato religioso. A propósito desses momentos, lembra
Gilberto Freyre que:- - "Às vezes havia negro navalhado; moleque com os intestinos de
fora que uma rede branca vinha buscar (as redes vermelhas eram para os feridos; as
brancas para os mortos). Porque as procissões com banda de música tornaram-se o
ponto de encontro dos capoeiras, curioso tipo de negro ou mulato de cidade,
correspondendo ao dos capangas e cabras dos engenhos". Vivia assim o capoeira em
seu status social sem nenhuma simbiose com outro, capaz de modificar a sua estrutura.

[p. 360]

Com o passar dos tempos e cada vez mais crescente a sua fama de lutador e de
implantar grandes desordens em fração de segundos, sem possibilidade de ser
molestado, conseqüentemente ficando oculto, para quem estava a serviço, o capoeira
passou a ser a cobiça de políticos. Serviria de instrumento de luta ora para a nobreza,
que dava os seus últimos suspiros, ora para os republicanos, que lutavam
encarniçadamente para obterem a vitória sobre o trono, daí os graves acontecimentos
que abalaram o país, nos fins do século passado, já anteriormente estudados neste ensaio
e registrados por Gilberto Freyre, ao fazer a história da decadência do patriarcado rural
e o desenvolvimento do urbano. Com isso, a capoeira, um folguedo por propósito,
começa a sofrer mudanças de caráter etnográfico, em sua estrutura -- a luta que era um
acontecimento passou a ser um propósito. Por outro lado, isso acontecia justamente num
período em que a sociedade brasileira chegava ao auge nas suas transformações de base
por que vinha passando e "com essa transformação verificada nos meios finos ou
superiores, deu-se a degradação das artes e hábitos mestiços que já se haviam tornado
artes e hábitos da raça, da classe e da região aristocrática, em artes e hábitos de classes,
raças e regiões consideradas inferiores ou plebéias. Foram várias essas degradações; e
algumas rápidas". Como se vê, a capoeira, por uma determinação sociológica, não
poderia estar imune a essas transformações.

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Esse estado de coisas veio se arrastando e se desenvolvendo até 1929, com o advento
de Mestre Bimba, que tira a capoeira dos terreiros e a põe em recinto fechado, com
nome e caráter de academia, onde os ensinamentos passaram a ter um cunho didático e
as exibições possibilitaram a presença de outras camadas sociais superiores. Desse
modo os quadros da capoeira passaram por modificações profundas. A classe média e a
burguesia para lá acorreram, a princípio para assistirem às exibições e depois para
aprenderem e se exibirem a título de prática de educação física, daí a 9 de julho de 1937
o governo oficializar a capoeira, dando a Mestre Bimba um registro para sua academia.
Um status social superior ao dos capoeiras invade as academias e os afugenta. Os que
resistem, por minoria, se esforçam para se enquadrarem no modo de vida do invasor,
porém sendo tragados por ele, começando assim a sua alienação e decadência como
capoeira. Forçando uma compostura de rapaz-família, exibem-se somente em recintos
fechados, salões burgueses, palácios governamentais e jamais onde primitivamente se
exibiam, como por exemplo, nas festas de largo. Como já tive oportunidade de salientar,
em virtude de nenhuma academia querer exibir-se nas festas populares, o órgão oficial
de turismo municipal da Bahia convidou várias academias para comparecerem às
referidas festas pagando-lhes as exigências. Então houve um cafuzo, mestre de uma
academia, que, ao saber da finalidade do convite, declinou, alegando ser sua academia
freqüentada por uma casta já referida, não podendo misturar-se com o povo de festa de
largo.

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Mas o agente negativo no processo de decadência da capoeira, sociológica e


etnograficamente falando, foi o órgão municipal de turismo. Detentor de ajuda
financeira, material e promocional, corrompeu o mais que pôde. Embora o referido
órgão tenha por norma a preservação de nossas tradições, os titulares que por ele têm
passado, por absoluta ignorância e incompetência, fazem justamente o contrário, direta
ou indiretamente. Lembro-me bem de presenciar um deles interferir na indumentária
das academias e os seus responsáveis acatarem pacatamente; e infeliz do que não
procedesse assim -- estaria banido da vida pública para sempre. Houve época em que as
academias eram fantasiadas como verdadeiros cordões carnavalescos, cada qual
disputando cores mais berrantes e variadas em suas camisas e calças. Já falei também de
um mestre de capoeira que foi consultar um dos diretores de turismo da possibilidade de
colocar número nas costas de seus discípulos, como se fossem jogadores de futebol, mas
que em boa hora o bom-senso baixara na cabeça do referido diretor, proibindo
terminantemente. O fato é que, quanto mais palhaçada faz a academia essa é a preferida
do órgão público. No momento em que escrevo este ensaio existe uma academia com
amparo financeiro, material, promocional e ainda com direito a se exibir no próprio
Órgão, até muito tempo com exclusividade, em detrimento de outras, porém hoje apenas
a coisa é mascarada com a presença de uma outra, quando em realidade o órgão não
deveria promover exibições dessa espécie, em seu próprio e sim escoar os turistas para
as diversas academias. Pois bem, essa academia, que por sinal possui um grande mestre
e excelentes discípulos, está totalmente prostituída. Com a preocupação de não perder o
ponto, em detrimento de outra, a dita faz misérias, em matéria de descaracterização. A
certa altura da exibição, o mestre perde a sua compostura de mestre, diz piadas, conta
anedotas, faz sapateado com requebros e apresenta alguém para fazer um ligeiro
histórico da capoeira, onde as maiores aberrações são ditas. Depois faz um samba de
roda ao som dos instrumentos musicais da capoeira, vindo para a roda sambar,
cabrochas agarradas de última hora, passista de escola de samba ou profissional amigo
do mestre, que por acaso aparece no local. De certa feita, perguntei-lhe o porquê
daquilo, ao que me respondeu que era pra não ficá monoto (ele queria dizer monótono) e
o turista ir-se embora. A grande lástima é que essas coisas continuam a ter a cobertura
oficial.

Lamentavelmente, o quadro atual das academias de capoeira é esse, variando apenas


a intensidade das mudanças sociológicas, etnográficas e o grau de decadência. Nos
bairros bem afastados, longe das tentações ventiladas e também talvez porque jamais
tenham acesso a elas, existem capoeiristas que praticam o jogo apenas por divertimento,
no maior estado de pureza e conservação possíveis e enquadrados no seu status social.

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