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{TULO 2 campo “vai ao golpe” inia Regina de Mendonca rodugado 31 de margo de 2014, como a cada ano ou decénio, o pais se multiface- uu. Na midia, na academia, nos meios oficiais, nos quartéis, nas entidades classe ou nos lares, se dispersaram e conflitaram, novamente, projetos, iteresses, memérias € opinides. Trata-se da data que registra o “aniversd- fio” do golpe de 1964, agora em seu cinquentendrio, Comemoragio para ‘alguns; vergonha e indignacao para outros; revivificagao da violencia, cen- Sura e perdas, para muitos. Porém, além disso, vale resgatar alguns aspec- fos que cercaram 0 “golpe”, fruto de complexo processo de contradicées cumulativas que desaguaram numa solucdo manu militari e na implan- tagao de um dos mais severos regimes militares da América Latina, res- ponsavel por redirecionar o processo histérico brasileiro do curso ~ senao de viés plenamente socialista, a0 menos democratico-popular ~ que entao tomava. ‘Também a historiografia se divide ao estudar o golpe. Para uns, tra- tou-se do episddio final da crise do “populismo” brasileiro, cuja ultima lideranga de destaque, Joao Goulart, teria contado com bases politico-sin- dicais cujo alcance politico limitava-se ao prdprio Executivo. Para outros, teria sido a propria defasagem entre a ciipula e as bases dos sindicatos de esquerda a principal responsavel pela desativacao do “dispositivo sindical- militar” que sustentara o tiltimo presidente civil. Outra vertente destaca a forte presenca dos capitais norte-americanos como “financiadores” do golpe, de modo a assegurar seus investimentos diretos no pais. De uma forma ou de outra, “optar” por qualquer dessas vertentes se- ria “optar” por uma simplificagao, j4 que 0 movimento resultou de uma 35 36 ‘TRABALHADORES E DITADURAS complexa imbricagio de miltiplos fatores e interesses, profundamente so- bredeterminados pelas redefinicdes imprimidas, desde meados da década de 1950, ao padrao da acumulagao capitalista no Brasil. Nesse sentido, os atores envolvidos no golpe e na consolidacao do novo regime dele decor- rente seriam, para o bem ¢ para o mal, “filhos de JK”, ‘Uma questio, todavia, € certa: entre as varias “geragdes historiografi- cas” dedicadas ao estudo desse movimento, prepondera, desde meados dos anos 1990, a visio — equivocada e, sobretudo, conservadora — que imputa a responsabilidade pelo golpe tanto aos que o perpetraram, quanto aos segments sociais pré-reformas que por ele foram atingidas'. Semelhante reducionismo lavrou mais um tento na academia, no sentido de algar 0 status de “fala legitima”, quando dos eventos em torno dos quarenta anos do golpe que pulularam em 2004. Naquela oportunidade, as teses da déca- da anterior foram retomadas e levadas a um paroxismo que incendiou os debates académicos e mesmo na imprensa, polarizando as interpretagdes agora “dominantes” e seus sensatos criticos. O cerne da controvérsia pas- sou a girar em torno do fato de as “novas” explicacées terem substituido as andlises efetivas por meras descrigées factuais, movidas pelo sabor do acaso, como aponta Marcelo Badaré*. Historiadores renomados no métier dedicaram-se a corroborar, com veeméncia, uma visdo do golpe cada vez mais centrada na perspectiva de que as “forcas da direita” teriam “tao somente” reagido a radicalizacao das esquerdas, quase como “vitimas” delas. Como afirma Mello, todas as ar- ticulagdes emanadas do dispositivo golpista do IPES passaram a ser “ven- didas” como uma “reaco de empresdrios ‘assustados’ com os discursos radicais de Brizola” e de Jango *. £ diante de posturas como essa que vale destacar, insistentemente, a seminal contribuigéo de René Dreifuss que, com esforco, engenho e arte, tio magistralmente esmiugou as intimeras 1 © marco inaugural dessa leitura do golpe deveu-se & obra: FIGUEIREDO, Argelina C. Democracia ou reformas? Alternativas democriticas & crise politica, 1961-64. Rio de Ja- neiro: Paz e Terra, 1993. 2 A esse respeito, ver: MATTOS, Marcelo Badar6. © governo Jogo Goulart: novos rumos da produsio historiografica. Revista Brasileira de Historia. Séo Paulo: v. 28, n. 55, p. 250- 51, 2008. 5 MELLO, Demian Bezerra de. O golpe de 1964 e meio século de controvérsias: 0 estado atual da questao. Historia & Luta de Classes. Marechal Candido Rondon: Unioeste, a. 10, 1.17, p. 13,2014. {campo "vai ao golpe" 37 ex6es burguesas derivadas do “complexo IPES/IBAD” Ainda assim aqueles que o acusam de ter superestimado o dominio/controle das ins- igGes investigadas®, aferrando-se, uma vez mais, & leitura de uma direi- agindo em “reacao” ao extremado radicalismo da esquerda. Apropriando-me das palavras de Pierre Bourdieu que dio titulo a uma suas obras, posso afirmar que “se o mundo social me é suportavel, é jue eu ainda posso indignar-me” .° Indignar-me perante tamanha culacio do conceito de processo histérico, que emerge da pluma des- autores, travestido de “factualidade verdadeira”, Indignar-me diante estudos que, além de contribuirem para um retrocesso historiografico, Hficam uma prética historiadora que beira a produgao ideol6gica. In- ar-me, enfim, em face de supostas andlises que redundam no total gamento de dois conceitos tio caros a0 materialismo dialético: o de lidade e, mais do que tudo, o de Classes Sociais ¢ suas lutas. © que pretendo neste trabalho é retomar em rapidas pinceladas os clobramentos das mudangas operadas no capitalismo brasileiro que re- taram na urdidura civil-militar do golpe civil-militar e os principais tes nela envolvidos, direcionando 0 foco da anélise para a atuagdo de a-vozes de uma fracao de classe especifica: a dos grandes proprietérios os/ agroindustriais e suas agremiacbes de classe, com énfase para a delas em particular. golpe em seu contexto meando pelo primeiro ponto sinalizado, vale tentar retomar aspectos Significativos da complexa conjuntura que precedeu e cercou a constru- ‘$40 do golpe. Em primeiro lugar, 0 fato de o inicio da década de 1960 ter sido marcado por um descenso do ciclo econémico, conquanto desprovido *DREIFUSS, René A. 1964, Petropolis: Vozes, 1981. “REIS FILHO, Daniel. © Colapso do colapso do populismo ou a propésito de uma heran- Si maldita, In: FERREIRA, Jorge (org.).O Populismo e sua historia: debate eritica, Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 2001, p. 332, oiste€0 titulo deuum dos iltimos livros de Bourdieu, publicado pouco antes de sua morte. BOORDIEL Pierre Sie monde social mest supportable, cestparce que jepeux m’indigner. Entretienavec Antoine Spire. La Tour-d’Aigues: Editions de Aube, 2003 @ conquista do Estado. Agao politica, poder e golpe de classe, 38 ‘TRABALHADORES E DITADURAS de proporsées capazes de por em risco o prosseguimento da acumulacao capitalista, tal como se processava, até entdo. E dizemos descenso de ci clo na medida em que ele resultara, como aponta Francisco de Oliveira’, da propria incapacidade da acumulacao em “digerir” o brutal volume de novas invers6es verificadas na industrializagao no pés-1955, com a stibita implantacao, de um s6 golpe, da induistria de bens de consumo duraveis durante a gestdo JK, mediante o incentivo ao investimento direto dos ca- Pitais estrangeiros na montagem do setor. Tendo como {cones a industria automobilistica ¢ o grande capital multinacional, ambos tornaram-se o “motor de arranque” da economia exigindo, em contrapartida, elevado fluxo de gastos tanto para a importago de equipamentos quanto paraa remessa de lucros das empresas multinacionais para suas matrizes. Paralelamente, o Estado restrito, que favorecera a industrializacao nos novos moldes, manteria uma politica fiscal conservadora e sem amplia- G40 de suas receitas, o que acabaria por impeli-lo a recorrer, com cada vez maior frequéncia, a dois expedientes: 0 endividamento externo ea emissio monetaria, num dos mais galopantes processos inflaciondrios até entio ex- Perimentados no pais. Tais recursos seriam fundamentais para preservar © volume de financiamento das inversées estatais em energia, transportes e siderurgia, entre outros. A formula até entio Preponderante de o Estado gerir € custear uma infraestrutura compativel com a nova injecio de ca- Pitais foraneos no setor de durdveis, nao tardaria a evidenciar suas fragi- lidades econémico-sociais e, sobretudo, politicas, diante das mobilizacdes populares provocadas por tais expedientes. Um processo de acumulacao nesses moldes incidiria, fortemente, na crescente concentracao de capitais, j que a afirmacao da industria de durdveis com tecnologias sofisticadas impunha barreiras aos capitais de menor porte, favorecendo a estruturagao monopolista do setor. Em conse- quéncia’, cresceria assustadoramente a concentracao da renda, até mesmo pela geracao de novos empregos no ambito das atividades técnico-admi- nistrativas, quase todos providos de salirios elevados, enquanto o salirio minimo, recebido pela grande maioria dos trabalhadores, mantinha-se em ’ OLIVEIRA, Francisco de. Critica a Razo Dualista - O Ornitorrinco, Sao Paulo: Boitem- po, 2003, * MENDONGA, Sonia Regina de. Estado e Economia no Brasil: Opgdes de Desenvolvi- mento. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003. campo “vai ao golpe" 39 situagdo de arrocho. Este grau de concentracionismo e internacionalizacao da economia daria lugar a intimeras disputas politicas entre os varios seg- mentos do capital, em busca do favorecimento estatal para seus respectivos setores. Muitas andlises privilegiam o aspecto econdmico da crise que conduziu ao golpe, ao diagnosticarem a existéncia de um suposto “decréscimo na taxa de lucro” no pais entre 1962-64, explicado pela conjugagio de altas in- versGes de capital e insuficiéncia de demanda interna, diante da “pequena extensao” da classe média brasileira, incapaz de consumir os novos bens produzidos. Tal desproporcao, somada a inflagao crescente, explicariam 0 que alguns consideram “taxas ilusérias de lucro” percebidas pelo capital no pais.’ Ora, por certo decairam as inversées a partir de 1962. Todavia, tratava-se de um descenso compativel com a relacao entre o brutal volume anterior de investimentos ¢ o tempo necessério para a ocupagio/desgaste de toda a nova capacidade produtiva instalada. Outros autores, criticando tal vertente, destacam que as decorréncias sociais e, especificamente, politicas dessa internacionalizagio da econo- mia sobrepunham.-se 4 dimensio econémica da crise, uma vez que os tra- balhadores, em sua luta contra novos “avangos” sobre seus saldrios, mobi- lizaram-se de forma sem precedentes até entao. Logo, se 0 processo infla- ciondrio era enfraquecido em sua eficdcia e as inversées industriais redu- ziam.-se, seria por razées mais propriamente politicas do que econdmicas, inexistindo no Brasil do periodo qualquer “crise classica de realizado” ” Por outro lado, no se pode esquecer que o Estado, financiador de par- cela fundamental da produgéo, encontrava-se em crise financeira pelo bloqueio politico imposto 4 concessao de novos empréstimos externos a0 pais, coincidindo, dessa forma, o descenso do ciclo capitalista com as limitagdes financeiras do Estado, desequilibrando-se a economia como um todo. A crise de 1962-64 seria, pois, a sintese de muiltiplas determi- magoes. Econdmicas - advindas de um padrao de acumulagio capita- lista alicergado no Estado e no investimento direto estrangeiro; politi- fas — pelo questionamento ferrenho das fracdes da classe dominante ao governo democratico-popular em vigor; e sociais - pela ascensao inédita A.esse respeito, ver, por exemplo: TAVARES, Maria da Conceigio. Acumulagdo de Capi- tale industrializagao no Brasil. Rio de Janeiro: 1974 (mimeografado). Ver, sobretudo: OLIVEIRA, Francisco de, op. cit, p. 90-92, 40 TRABALHADORES E TADURAS da mobilizagao politica organizada dos grupos subalternos - no campoe na cidade ~ em defesa de melhores condigées de vida e trabalho. A crise também atravessava 0 proprio empresariado, encontrando-se em jogo a definigao de que setor passaria a deter a hegemonia do processo da acu- mulagao no pais, doravante, Ao mesmo tempo, de uma perspectiva estritamente politica, vale lem- brar que desde a chamada “redemocratizagao” de 1945 haviam sido esta- belecidas importantes linhas de balizamento do jogo politico-partidario nacional. Em primeiro lugar, para obstaculizar a formacio de partidos de cunho regional, a “redemocratizacao” favorecera muito mais 0 surgi- mento de “frentes partidarias” do que de partidos politicos propriamente ditos, gerando anélises marcadas pela dentincia de seu “amorfismo” ide- oldgico". Igualmente, a formula de representacao eleitoral entao definida ~ voto majoritdrio para cargos executivos e o Senado e proporcional para 08 legislativos em geral -, aliada a um critério de proporcionalidade assaz imperfeito, resultaria na sobre representagio de estados tradicionalmente conservadores, em detrimento daqueles cujas bases eleitorais concentra- vam-se nos grandes centros urbano-industriais. Dessa forma, unidades federativas como Sao Paulo, Minas, Rio Grande do Sul ou Rio de Janeiro encontrar-se-iam sub-representados na Camara dos Deputados e, mais ainda, no Senado, onde o ntimero de vagas era idéntico para todos os esta- dos, independente do tamanho de sua populacao. PSD, PTB e UDN foram os grandes partidos nacionais entao criados, sem deixar de mencionar 0 PCB que, mesmo contando com grande pres- tigio popular no periodo, seria proscrito em 1947, permanecendo na ilega- lidade. Partidos menores surgiriam entre 1946 e 1960, porém sua atuacdo leitoral estava condicionada a aliangas com os grandes. Até 1961 0 proces- so politico-partidario privilegiara 0 PSD, ao qual o PTB somara forcas na maioria das eleigdes presidenciais. Quanto 4 UDN, permaneceria como 0 segundo grande partido em ntimero de votos e, tendo perdido seu cunho de “frente”, passou a expressar interesses de uma “elite” intelectual forte- mente conservadora, Jé 0 crescimento acentuado do P'TB - apoiado pelo PCB ilegal conquanto atuante ~ ¢ as sobrevivéncias do “getulismo” seriam "A esse respeito, ver: SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Estado e Partidos Politicos no Brasil. Sio Paulo: Alfa-Omega, 1976. 4 Pelos quadros udenistas como equivalentes a0 avanco do “pe- melho” no Brasil, articulando-se, ‘valeu uma identidade “golpista”. mente em 1961, a UDN pela primeira vez levaria um candidato & da Republica: Janio Quadros, Entretanto, tratou-se de vitéria Posto 0 candidato eleito nao seguir os princtpios programaticos Hdo, especialmente em matéria de politica externa. Sua rentincia, de reabrir velhas feridas, levou ao acirramento da crise politica de- deada pela posse de seu vice, 0 petebista Jodo Goulart. A polarizacio ia. Como paliativo, representantes Politicos de muitos segmentos dominante, temerosos do avango dos movimentos sociais, esta- m 0 parlamentarismo como pré-condigao para o mandato, supon- tralizar um presidente ligado ao movimento popular em ascensio. biscito realizado em janeiro de 1963 a situacao seria revertida, retor- © © regime ao presidencialismo, ssim, © quadro politico no imediato pré- enfrentamentos. De um lado, no poucas vezes, aos militares, 1964 foi marcado por imi- a intensa mobilizacao popular e sin- feverberaria junto a0 “equilibrio instavel” do jogo partidério, que ser lido quer como a ruptura do assim chamado “pacto populista” esso na alianga PSD/PTB ~ quer como a emergéncia da Participacio nao tutelada, no ambito da politica. A expresso dessas lutas iria "ar-se nas reformas de base anunciadas por Jango, sobretudo a re- agriria, o que acabaria por desnudar, irremediavelmente, 0 perfil nte conservador dos parlamentares, Sua tendéncia 4 formacao de ees interpartidarias descortinou as fissuras no préprio seio da classe ‘inante, explicitando as contradicées entre suas intimeras fragdes. Pa- afigurar-se um impasse entre 0 Executivo e o Legislativo que cos- ser interpretado tanto a partir do cunho Progressista do primeiro, nto do extremado conservadorismo do segundo, revelando, porém, 0 ento da representatividade de ambos, 0 que inviabilizaria as formas cionais de condugao politica. grandes questées polarizaram as polémicas no imediato pré-gol- ss reformas de base ea luta anti-imperialista, mantendo o Executivo politica externa independente, tentando estabelecer, de alguma forma, 42 TRABALHADORES € DITADURAS } limites para as remessas de lucros a0 exterior e enviando seu projeto de reformas ao Congresso em marso de 1964. A monopolizagio e internacionalizacao da economia refletiam-se nes- sas disputas. De um lado, uniam-se setores udenistas e militares, visando “reconduzir” o pais ao “alinhamento automatico” aos EUA. Como pano de fundo, a Doutrina da Seguranca Nacional elaborada pela Escola Superior de Guerra (ESG) defendia a manutengao do padrao de acumulagio cen- trado no capital estrangeiro e no arrocho salarial. De maneira endégena, cabia ao alto comando militar assegurar a coesio interna da corporagio, alijando os segmentos mais ligados A vertente nacionalista para, dessa for- ‘ma, garantir 0 apoio do empresariado que, de hd muito, arquitetava a agéo golpista. - Em novembro de 1961 seria fundado 0 Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), congregando militares, politicos e, em especial, empresé- tios, com farto capital social e recursos internacionais, mormente esta- dunidenses. A sombra de outra entidade, o Instituto Brasileiro de Acéo Democratica (IBAD), o IPES configuraria o que Dreifuss denomina de 0 “verdadeiro partido da burguesia”, seu estado-maior para a agao ideoldgica, politica e militar. Tudo isso sem falar em papel equivalente desempenha- do pela Escola Superior de Guerra (ESG), em particular junto aos meios castrenses, O “complexo” IPES/IBAD promoveria um sem niimero de iniciativas ¢ campanhas contra 0 que considerava a ameaga de “bolchevizagao” do pais, tendo por dogmas a seguranca interna e o desenvolvimento “racio- nal’. Atuando nacionalmente, aglutinaria setores empresariais urbanos e mesmo rurais, estes tiltimos dispostos a obstaculizar a qualquer resquicio de efetivacao de uma reforma agréria, © golpe civil-militar de 1964 — e aqui cabe a ressalva de que o termo “civil” esta sendo empregado na mesma acepcao que lhe empresta Dreifuss, isto ¢, com nitido recorte classista " ~ representaria uma dupla reordena. sao. De um lado, alijou e reprimiu os movimentos populares e, de outro, ‘atificou as pré-condigdes para.a hegemonia do capital monopolista sobre os demais segmentos do capital. O golpe implicou a destruicao imediata i) Aeste respeito, ver: DREIFUSS, René, op. cit., capitulo VIII. “Tid. p. 417-418. EEEEEEE'’:S ~~ "ai 20 goipe” 43 is expressivas conquistas realizadas Pelos trabalhadores em suas Sprecedentes. Representou o fim do direito de greve, das associacées neses e da estabilidade no emprego, mediante a criacio do FGTS. u ainda a anulagao da Lei de Remessas de Lucros e da nacionali- do refino de petréleo, além de inviabilizar a reforma agraria, ardu- relvindicada e esperada pelos trabalhadores rurais, Representou, 0 desmantelamento, via violéncia explicita e aberta, de todas as izacdes populares € a sujeigio dos quadros intelectuais e de classe ‘Que pudessem vir a significar oposicao ao regime militar. 0 “vai ao golpe” 8s fragdes da classe dominante mais envolvidas com a tessitura do figurava a burguesia agréria/agroindustrial brasileira, contestada focos de pressio desde inicios da década de 1960: a lentos sociais rurais organizados, de outro, le um lado, proliferados por quase todo 0 © Projeto de reforma agraria enviado ao Congresso pelo ite Goulart. A desigual estrutura fundiaria e social desnudara-se e randes proprietarios reagiriam duramente contra tal exposicao através S aparelhos privados de hegemonia na sociedade civil, especialmente delas: a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA) do Rio de Janeiro dade Rural Brasileira (SRB) de Sao Paulo, Logicamente todas as dices marcantes dessa conjuntura corroboraram Para sua aproxi- ®, Porém, numa contraditéria dialética, também para o acirramento puta que historicamente as contrapunha. ida em 1919, a Sociedade Rural Brasileira teve uma participagao ‘armente ativa no debate nacional sobre a reforma agraria, tradu- 22 Posisao do segmento tido como o mais dindmico e “moderno” da © agroindustrial da classe dominante brasileira, congregando pode- interesses do setor mais industrializado dos “proprietarios rurais”", Be P08 no termo “proprietério rural” prende-se ao fato de que, em fungao sileira do pds-1964 e que implicaram, fades agricolas e seu profundo imbri torna-se dificil, a partir de entao, discriminar 'm exclusivamente & agropecudria daqueles que andes empresdrios que se dedicava 44 TRABALHADORES € DITADURAS mormente frigorificos estrangeiros, industriais do setor de beneficiamen- to alimenticio e correlatos, sem falar nas grandes empresas - nacionais e internacionais - que, mais recentemente, haviam passado a investir em terras, tanto em Sao Paulo, quanto no restante do pais. De outro lado, si- tuava-se a SNA, disputando a lideranga politica de toda a fragao da classe com a congénere paulista, desde primérdios do periodo republicano’, até periodos mais recentes. A situagio nao seria diversa no contexto inaugura- do pela década de 1960 e o golpe de 1964, ainda que ambas as agremiacées, ao defenderem suas propostas de reforma agraria, guardassem muito mais pontos de acordo do que divergéncias, em especial no tocante 4 defesa do “sagrado direito & propriedade”. ‘Todavia, a tensdo politica entre elas - sobretudo no que tange a disputa pela efetiva representa¢ao nacional da classe dominante agraria como um todo ~ nao deixaria de cessar no decorrer do periodo. Essa disputa pode ser ilustrada, por exemplo, pelas varias descricdes de solenidades de posse das novas diretorias da SRB, detalhadamente descritas nas paginas de sua revista, A Rural, que registrava tanto a presenca marcante de autoridades da administracao piiblica estadual e federal, quanto a total auséncia de representantes da agremiago do Rio de Janeiro.” ‘A medigao de forcas patenteava-se, até mesmo, na énfase conferida as matérias publicadas em cada um dos periddicos onde, por exemplo, em pleno governo Goulart, as vésperas do golpe de 1964, os dirigentes da SRB louvariam a criagdo da Superintendéncia de Politica Agraria (SUPRA) - implantada como anteparo a mobilizagao social no campo -, criticando duramente o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agricola (INDA) se envolviam, simultaneamente, em ambas as dimensées da produgio “rural”, Empre- sirios rurais tornavam-se, a0 mesmo tempo, latifundiarios e industriais, a frente de, muitas vezes, uma mesma empresa que centralizava miiltiplas atividades - urbanas e agrarias ~ correlatas. ‘© MENDONCA, Sonia Regina de. O Ruralismo Brasileiro. Sao Paulo: Hucitec, 1997; cf., sobretudo: MENDONGA, Sonia R. de. A Classe Dominante Agraria - natureza e compor- tamento (1964 — 1990). S40 Paulo: Expressio Popular, 2006, p. 32-34 ¥ Em niimero de abril de 1963 A Rural publica matéria sobre a solenidade de posse do novo presidente da agremiacao, o grande cafeicultor e industrial, Savio Pacheco de Almei- da Prado, apensando a lista de todas as entidades e drgdos piblicos cujos representantes, estiveram presentes. Dentre os quase cinquenta nomes registrados, nao consta nenhum pertencente 4 Sociedade Nacional de Agricultura. Aaa 20 golpe” 5 inécuo, enquanto A Lavoura, revista da SNA, adotaria postura dia~ Imente inversa, enaltecendo o INDA™. atudo, a disputa entre elas nao seria suficiente para obstar 0 consenso = ambas no tocante ao veemente combate a proposta de reforma agraria ao Congreso, a despeito de seus préprios projetos contemplarem < diversos. A documentagdo deixa entrever, com toda clareza, que agremiagdes disputavam, palmo a palmo, a condigao de “fala” ou esentante” legitima e autorizada de todos os segmentos agrarios/agroin- is da classe dominante brasileira, a partir da maior ou menor proxi- de seus quadros dirigentes junto ao Estado restrito nacional *. emais, dirigentes de ambas as entidades igualmente participaram di- ente do IPES, na qualidade de sdcios ou contribuintes, destacando- mes conhecidos como Savio de Almeida Prado, Edmundo Campos eira ou 0 Frigorifico Armour (membros da SRB) e Otto Frensel, Gilber- Sonforto e José Anastacio Vieira da SNA, entre outros”. © posicionamento da SRB contra a reforma agréria foi dos mais agres- tendo a entidade langado mao de sua imensa capacidade de mo- e organizagdo para atuar em distintas frentes, divulgando seu cionamento no imediato pré-golpe, fosse convocando eventos como sgresso Brasileiro para Definigdo das Reformas de Base, realizado em ede em marco de 1963%, fosse participando de foros académicos ~ 5 as Reunies Anuais da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso “Lavoura contaria, durante alguns anos, com uma coluna regular intitulada “INDA onde eram noticiadas as principais realizacdes do érgio em prol do “desenvol- mato agricola” brasileiro, Exemplo dessa postura pode ser ilustrado pela matéria "Cur- Lideres Rurais em Valenga”, publicada no bimestre janeiro-fevereiro de 1957, onde sta divulgaria o “grande éxito da realizagao do Curso de téenicas de lideranga rura} sab o patrocinio do INDA”. A Lavoura, Rio de Janeiro: SNA, jan-fev. 1957 p30 ‘exemplo, quando um dos presidentes da SRB, Souza Lima, fol indicado como Minis- a Agricultara em 1963, entidade o laudaria em sucessivas matérias, cobrindo suas se agenda politica como um demonstrativo de sua representatividade nacional cfutividade e sucesso de sua capacidade de pressio politica. Em contrapartida, a SRB noticiaria - exceto em tom de critica ~ que a recém-criada Confederagao Nacional “Agricultura (CNA), 6rgio maximo da representagio patronal entéo Implantado, era esidida por diretor da SNA. = MENDONCA, Sonia Regina de, op. cit. 2002, p. 35. REIFUSS, René. op. cit., p. 639-643; e: MENDONCA, Sonia Regina de. op. cit., 2002, ulo 1. 46 TRABALHADORES E OITADURAS da Ciéncia) de 1962 e 1963 - ou mesmo enviando seus principais quadros para proferir palestras na Escola Superior de Guerra. Para a ciipula da SRB “prometer reformas sem dizer como vio ser feitas, sem uma critica prévia e objetiva, sem audiéncia conscienciosa da opiniao publica, constitui real- mente uma perigosa ameaga (...)”. A radical recusa a qualquer tipo de alteragao na estrutura fundidria bra- sileira integrou a plataforma politica da SRB desde inicios da década e todos 08 editoriais de A Rural desse periodo tiveram como tema a “ameaca” repre- sentada pela reforma, bem como a construgéo de uma autoimagem do seg- mento como “desprotegido” e “abandonado” pelo Estado. Sob este aspecto, alids, a entidade paulista coincidiria com a estrutura argumentativa veicula- da pela revista da Sociedade Nacional de Agricultura, mormente em face de um governo por elas tido como “subversivo” ¢ “indesejével”. Sendo, vejamos. © que compete evitar. Ressalta a gravidade do assunto e a dificuldade em que se encontra a classe agricola do Pais, pois sobre seus ombros pesa a responsabilidade das suas produgées, divisas para manter as importacées e alimentos para © suprimento das populagdes (..). Vé-se ela embaragada pela negativista agao oficial que pretende leva-la ao abandono para, com o caos e anar- quia, obter clima propicio para a implantacao de um regime que uma infima minoria deseja.”* Bastante semelhante seria o posicionamento da SNA quanto ao pro- jeto de reforma agréria de Goulart, conquanto os dirigentes da entidade adotassem tom bem mais moderado em sua argumentacio. Assim, mes- mo admitindo a existéncia de distorgdes na estrutura fundidria do pais os dirigentes da Sociedade Nacional de Agricultura acabariam, na prética, recusando a reforma, ao ponderarem que O simples acesso & propriedade da terra aos que nela trabalham nao é a solucao (..).Nao devemos substituir uma estrutura agraria que, apesar de seus defeitos, vem funcionando, por uma nova estrutura de perspectivas * A Rural, mar. 1963, p. 3. * A Rural, out. 1963, p. 3, grifos meus, aprevisiveis (..). O problema é, portanto, um problema social que nao limita a uma simples divisio de terras.”* diretoria da Sociedade Nacional de Agricultura, ademais, enviaria ao cutivo Federal projeto proprio A guisa de reforma agraria, prescreven- seguintes medidas: a) reformulagao agricola, incluindo a concessio 0 a longo prazo e juros médicos para a agricultura, técnicas agro- mais modernas, mecanizacao da lavoura e adubos financiados a os convenientes; b) reforma agraria propriamente dita, definida como uéncia de medidas que seguem ao que se chamou reformulagao agri- *, dentre as quais destacavam-se o parcelamento das terras devolutas ido, a recuperagao das terras devolutas das zonas mais afastadas dos centros e a identificagao das terras que, por sua extensao, difi- o desenvolvimento da producao; ¢) intensificagéo do auxilio as s de coloniza¢io mediante taxas sobre os loteamentos marginais dos des centros, e finalmente d) congregacao dos pequenos produtores anjeiros das grandes capitais em cooperativas.** O envolvimento de ambas as agremiacées na urdidura do golpe pode verificado a partir dos editoriais de seus periddicos, como este que se publicado em A Rural poucos dias apés 0 evento: agricultura foi um dos setores de atividade econdmica mais visados pelos elementos da esquerda radicalista (...). Desassistida e até castiga- da pela total auséncia de interesse das administragdes federais, tornou-se ‘a classe agricola objeto da predilecdo para os ataques desfechados pelos adeptos da ideologia comunizante(..). As entidades agricolas de Sio Paulo, inconformadas com a passividade e a aquiescéncia que se genera- izavam, decidiram promover na sede da SRB, concentracao de TODA A _ CLASSE RURAL BRASILEIRA para, em franco debate, analisar o proble- ma (..). De fato, doze dias depois da grande manifestacao do povo paulista, as Forgas Armadas, que sio parte integrante desse povo, punham as suas tropas nas ruas contra o governo opressor (..). Continuemos a luta e com- __plementemos a Revolugio! .” ‘A Lavoura, jan.-fev. 1963, p. 53-4 [grifos meus). 'A Lavoura, maio-jun. 1963, p. 8-9. ‘A Rural, abr. 1964, p. 3-4. 48 ‘TRABALHADORES E D-TADURAS Ou ainda: “ao comentarmos a realizacéo da ‘Marcha da Familia com Deus, pela Liberdade’, afirmavamos que, apés uma manifestagao tao elo- quente da vontade populas, néo terfamos diivida da vitétia da boa causa”? Por certo 0 golpe nao consistiu huma rea¢ao exclusiva ao projeto de reforma agréria existente no papel e nos pronunciamentos oficiais de por- ta-vozes do governo, uma vez que, a despeito de seu radicalismo verbal, tratava-se de projeto moderado eni'sew encamilihamento concreto.* Além disso, 0 programa fundidrio do governo Goulart nao se propés,em-mo- mento algum, a acabar com o latifiindio, pautando-se por um “veformis. mo populista”, como o sugerem alguns autores.” A intensidade da reagao, deveu-se, de fato e sobretudo, as alternativas contidas nos movimentos so- ciais rurais em prol das reformas em geral que poderiam, eventualmente, sinalizar para uma reforma agraria “na marra”, jd que tais mobilizacées indicavam a potencial ruptura das tradicionais aliangas que sustentavam as formas de dominacao vigentes no campo. Daf a pressio continua dos quadros dirigentes da SRB ter-se mantido mesmo no imediato pés-golpe, cobrando o atendimento de suas demandas através da organizagéo do evento denominado Concentragao Nacional de Ruralistas pela Democracia, ocorrido em sua sede em abril de 1964. Deste Encontro sairia um documento a ser entregue ao presidente Castelo Bran- co, destacando que A agricultura ndo impée formas de excecio, favores ou privilégios para existis, pois, gracas a sua acdo multiforme ela se adapta ao meio (..). Mas convoquem-se os homens capacitados da lavoura para a direcao dos ér- Bios relacionados com os assuntos da agricultura porque eles e s6 eles saberdo defender e orientar este inestimavel setor.! O lobby seria exitoso, pois ja em julho de 1964 a entidade comemorava @ nomeacao do novo Ministro da Agricultura, Oscar Thompson, diretor da entidade ¢ ex-Secretério de Agricultura do estado de Sio Paulo.” | ™Id., maio 1964, p. 3, __” No méximo limitavam-se desapropriagdo, medidas de ordem fiscal ¢ algumas poucas |omudangas na Constituigao, *° BRUNO, Regina. Senhores da Terra, Senhores da Guerra, Rio de Janeiro: Forense/UFRRJ, 1997, p.97, * A Rural, abr. 1964, p. 12. [grifos meus]. A Rural, jul, 1964, p. 49, po vai 20 golpe™ Mas se o golpe civil-militar de 1964 trazia em seu bojo a suposigao que 0 latifiindio, 0 maior adversdrio do projeto reformista, fora vi- Yoso, o Estatuto da Terra promulgado por Castelo Branco logo apés ovimento seria de imediato recebido como nova “ameaga” 4 grande iedade improdutiva. Afinal, o Estatuto foi uma espécie de“balao-de saio” no sentido de estabelecer limites a grande propriedade e de atin- por tal via, os segmentos agroindustriais da classe dominante mais ervadores. Divulgado em meio ao processo de redefinic¢ao e consolidacao das no- aliangas que dariam suporte ao novo regime, o Estatuto contou com Tepercussao t4o contraditéria quanto aquela demonstrada pela pré- historiografia especializada no tema, Criticado pela maioria dos au- ©s por seu carater antipopular, sobretudo por nao incorporar os traba- dores rurais no processo de reforma agrdria®, 0 Estatuto, entretanto, daria certo cunho reformista, exemplificado pela prépria reforma ia por ele prevista, apesar de inserida num conjunto mais amplo de edidas, vinculadas a racionalidade do Plano de Agao Econémica do Go- =no (PAEG), especialmente no tocante & anélise do papel da agricultura =2 0 desenvolvimento do capitalismo. Tratava-se de fazer frente a crise ica brasileira buscando, através da reforma agréria, ampliar o mer- interno e configurar uma “classe média rural” consumidora de pro- s industriais. Porém, tratava-se mais ainda de neutralizar os conflitos ensdes no campo, tal como jé se propugnara em outra quadra histérica a smaioria dos especialistas defende tal posi¢ao destacando, por exemplo, que os itens do Satuto que previam a participacao dos trabalhadores nao foram regulamentados. Ver: José Graziano da. A modernizagao dolorosa. Rio de Janeit ‘ahar, 1982; BRUNO, A Reforma Agraria na Virada do Século. Reforma Agraria ~ Debates. Campinas: vol. 0, n. 1, abr. 1993, p. 123-45;____. op. cit., 1997; CAMARGO, Aspasia. A ques- ctise de poder e reformas de base. In: FAUSTO, Boris (org). HGCB. So Paulo: el. vol. 3, tomo III, 1981; dentre outros. estudo anterior, foi possivel perceber a articulacao de uma proposta com conteti- ivalente — ainda que em outra conjuntura histérica ~ por parte dos segmentos de © proprietérios rurais agremiados junto 4 Sociedade Nacional de Agricultura, nas ss de 1900 a 1930. Seu objetivo consistia em multiplicar as pequenas propriedades a8 agricolas menos dinamicas, com vistas a configurar um “colchao amortecedor”” =quenos proprietarios que pudessem atuar no sentido de impedir mobilizacées rurais te dos “sem terra”. MENDONGA, Sonia Regina de. op. cit., 1997. ‘TRABALHADORES E DITADURAS Por certo, as reformas do governo Castelo Branco adquiririam nova configuracao, a comegar pelo fato de serem viabilizadas ndo mais por in- termédio de uma frente com 0s setores populares e sim através da repres- so ao conjunto dos movimentos sociais e da lenta destruigao de certos ca- nais institucionais de mediagio entre Estado e sociedade civil organizada. Com isso, as reformas foram desenraizadas de suas bases sociais originais, tornando-se uma “concessao” do regime, o que significava afirmar o fim de qualquer possibilidade de reforma agraria voltada transformagao ra- dical da estrutura fundiaria vigente. Isso nao significava, todavia, afirmar que a reforma agraria reapresentada fosse totalmente desprovida de pre- tensdes “mudancistas”. A rigor, a reforma castelista, definida como “democratica e crista”, volta- va-se para a maximizagao da producao e da produtividade, bem como para a consolidagao da grande propriedade privada no campo, sob a égide dos principios da técnica, racionalidade e da ideologia do planejamento. O pri- meiro governo militar, apropriando-se do projeto oriundo da gestio Goulart, deslocou-o para a esfera dos técnicos e da eficdcia a eles atribuida, deixando de lado o movimento social mais amplo que lhe havia dado sustentagao. A reacao das entidades patronais rurais foi imediata. Os grandes pro- prietdrios sentiram-se “traidos” pela Emenda Constitucional que introdu- ziria o Estatuto da Terra, empenhando-se prontamente em mobilizar suas bases para organizar um “contragolpe”. Com a diferenca de que, agora, jé nao era mais cabivel a velha justificativa-cliché do combate ao “comunismo”, da mesma forma que nao mais se tratava de projeto orquestrado por um pre- sidente “comunizante”. Ainda assim, o sentimento de “traicao” relacionado a0 novo governo seria 0 eixo articulador do discurso veiculado pela SRB: Reafirmou-se, por unanimidade, a posigéo da classe agricola contra qualquer emenda constitucional para a reforma agraria(..). Ficou evi- denciado em suma, que a forma pela qual o governo conduz esta matéria é motivo de grande intranquilidade no meio rural que, se aprovada nas bases noticiadas, certamente criaré tremenda anarquia nem todo o setor (...). O projeto do governo pretende inaugurar o absurdo conceito de “la- tifindio.®* ° A Rural, jul. 1964, p. 18 [grifos na fonte]. “vai ao golpe” 51 A rigor, a maior especificidade do Estatuto da Terra residiu no fato de iplar duas estratégias distintas e contraditérias: uma, “distributi- , destinada a alguma “democratizacao” da propriedade rural e outra, tivista”, antecipando a opgao que prevaleceria a partir da década de através da chamada “modernizagao da agricultura”.* Essa tensdo de icipios € um claro demonstrativo da disputa de interesses intraclasse ‘inante agroindustrial no perfodo. Assim, enquanto se iniciava, na pr- a implementagao de uma politica produtivista emanada dos organis- da sociedade politica, remanescia um espaco de disputa pela reforma ‘ia, no seio da sociedade civil. Afinal, os interesses imbricados ao pri- ‘0 governo militar elegeram a reforma agraria como alternativa para a icultura brasileira por partilharem do ponto de vista de que a estrutura \didria consistia em obstaculo ao desenvolvimento pleno do capitalismo pais. : Entretanto, nem mesmo tal ambiguidade aplacaria os animos e interes- dos grandes grupos agroindustriais paulistas que, através de editorial jominado “Mantenhamo-nos em Armas”, afirmariam, sobre o Estatuto Terra, que ~ Consumou-se 0 derradeiro ato do drama agricola nacional com a im- posi¢do da votagio da emenda constitucional alterando o artigo 141 da Carta Magna do pais e com a do Estatuto da Terra, como foi denominada a Reforma Agraria (... Todos se aliaram para o sacrificio da agricultura brasileira, a qual seteria de impor uma politica de inspiragio alienige- na, sob a filosofia punitiva de retaliacao das propriedades (.... Abriu-se uma fenda nos direitos do homem (..) com o pesar daqueles que se vi- ram frustrados pelo resultado do movimento ao qual se entregaram e do qual esperavam a redengao. Nao ensarilharemos nossas armas, muito pelo contrario, com elas nas maos continuaremos a luta que para nds se apresenta sagrada”, Contando com um espectro de aliangas politicas mais regionalizado do que a SNA, a Sociedade Rural Brasileira abrangia os segmentos mais * SILVA, José Graziano. op. cit., 1982. » A Rural, ago. 1964, p.3 [grifos meus]. 82 ‘TRABALHADORES E DITADURAS modernos da agropecuéria nacional - concentrados no ptéprio estado de Sao Paulo e também no Sul, em particular entidades agrérias paranaenses ~ em suas campanhas em prol da grande propriedade. Foi em seu nome que a SRB langou-se no combate ao Estatuto, cobrando a retribuicao pelo apoio prestado a chamada “revolucao redentora”. A jé citada Concentragao Nacional de Ruralistas ~ cuja lista de integrantes da “classe agricola” foi Publicada na integra em A Rural" — aprovara carta de principios deixando claro que qualquer desapropriagao de terras - fosse a titulo de reforma agraria ou ndo - era por eles considerada “abominavel”, ainda que seu alvo fossem as terras devolutas da Unifio localizadas as margens de rodo- vias ou ferrovias. Na verdade, o Estatuto da Terra deve ser entendido, para os fins dessa reflexdo, como um campo de forgas no qual, desde a elaboracao do projeto até sua aprova¢ao final, registraram-se confrontos entre governo/ técnicos (em particular aqueles oriundos do IPES®) e as distintas fracgGes da classe dominante agroindustrial organizada: os primeiros, advogando sua im- Plantagao e os segundos, sua derrocada. Regulamentado com consideravel volume de vetos e alteragées, principalmente no tocante A distribuigéo da terra € ao apoio a ser prestado ao trabalhador tural, o Estatuto emergiu como instrumento de atua¢ao do Estado restrito em dois planos: a reforma agréria e 0 desenvolvimento agricola, Porém nao se tratava - como queriam dar a perceber os dirigentes de certas agremiagées de grandes Proprietarios do periodo - de uma legisla- sao ameacadora do latifiindio. Bem ao contrério, ela fora concebida para forcar a sua modernizacio, ao prever sua imbricacéo ao conceito de em- °* Foram elas: Associacio Paranaense de Cafeicultores, Pederagio das Associagées Rurais de Minas Gerais, Federasao das Associagdes Rurais do Rio Grande do Sul, Federacao das Associagdes Rurais do Estado de Séo Paulo, Federagdo das Associagdes Rurais do Estado da Bahia, Associagdo Rural de Manaus, Federagdo das Associacbes Rurais de Estado de Mato Grosso, Associagéo Paulista de Avicultura, Unido das Cooperativas de S4o Paulo, Associagao dos Criadores de Nelores do Brasil, Associacao dos Criedores de Cir do Brasil, Associagao Paulista de Cafeicultores e Sociedade Auxiliadora de Agricultura de Pernam- buco. Curiosamente, nio ha qualquer mengio ou mesmo convite& Sociedade ‘Nacional de Agricultura. A Rural, mai, 1964, p. 4, © Eaziam parte do GRET tanto representantes da vertente reformista do IPES, quanto Cumantscentes da experiéncia de reforma agraria realizada no Estado de Sao Palo por Carvalho Pinto, além de técnicos dos Ministérios envolvidos. BRUNO, Regina. op. cit. 1997, p. 137-8, ai 20 galpe” 53 rural, prevista pelo Estatuto como isenta de desapropriagio. Ade- ‘ele seria também caracterizado como uma lei de desenvolvimento © que nao s6 “suavizava” sua intencionalidade politica como a um texto pleno de ambiguidades, fruto da enorme resisténcia e o politica movida pelas entidades patronais da agricultura brasileira. curto prazo, porém, nada disso minimizou as pressdes exercidas contra qualquer iniciativa que “arranhasse” a estrutura fundid- vigor. Para seus quadros dirigentes ainda prevaleceria, mesmo em .) a frustra¢éo moral do povo apés o movimento revolucionario jos a preparar e acionar. Pressentimos que a préxima fase da cional e muito acentuadamente a dos agricultores nao sera das mais a5 (.... Mantenhamo-nos unidos e agarrados a nossa terra”. go, se no pré-1964 setores da burguesia ligados 4 producao de bens 10 basicos e sensfveis aos apelds de reforma agraria acabaram io-a por motivos politicos, no pés-1964, neutralizado o “perigo sta’, essa mesma burguesia se omitiria, redundando no arrefeci- do governo quanto a seus objetivos reformistas. Essas pressdes e re- Itaram em sucessivos recuos por parte da equipe governamental ida de elaborar e implantar o Estatuto. ‘primeiro recuo traduziu-se na introdugao de um capitulo sobre “Po- Agricola” numa legislagao que deveria ser eminentemente agraria, que serviu para torné-la politicamente mais palatvel no Con- 0. O segundo materializou-se na exclusao dos instrumentos de refor- ia originalmente propostos, em especial as figuras da desapro- -40 por interesse social e do Imposto Territorial Rural. Ja o terceiro lava-se aos érgaos diretamente responsaveis pela implementacao do : os ja citados IBRA e INDA, uma vez que a criagdo de duas agén- -gestoras da mesma matéria era a garantia de desencontros e inacao, do fato de serem seus primeiros titulares adversarios politicos de lon- al, jan. 1966, p. 5 [grifos meus]. -avaliagao de um dos integrantes do GRET, os nomes escolhidos demonstravam cla- te tal impossibilidade: o presidente do INDA, Endes de Souza Ledo, além de usinei- ‘elemento francamente oposto a Paulo de Assis Ribeiro, nomeado para o IBRA. Este o seria “sincero, lutador, um sujeito inteligentissimo, mas um homem estratosférico, je era um executor”, Apud BRUNO, op. cit., 1997, p. 114. 54 TRABALHADORES € DITADURAS Desvirtuou-se, assim, completamente, a versio original do Estatuto, tendo ele sido aprovado conforme os interesses das fragdes da classe domi- nantes agroindustrial que mais o haviam combatido, Dai por diante, os vitoriosos dirigentes da Sociedade Rural Brasilei- ra passaram a referir-se ao primeiro governo militar como “reino” dos “conluios” e “intengdes conspiratérias”. Editorial de sua revista chegaria a afirmar, dois anos depois em tom francamente irdnico, que “a opera- a0 Reforma Agréria desenvolveu-se como manda o figurino militar. O Planalto tragou o ‘azimute de marcha’. O Congresso Nacional, a fortaleza visada, A Constituigao, 0 troféu. As linhas de comunicagao, a salvo dos sabotadores.”” Quanto aos sistematicos recuos do governo, a agremiacao, em nome de seus aliados, comentaria, em 1966, de modo simultaneamente comemora- tivo e critico, que 7 Devemos lembrar que a filosofia daquele movimento que levou 0 povo as ruas englobava a recuperacao moral, o respeito e a dignidade. (..) Competia corrigir erro politicos que longos anos de corrupcao e de- magogia haviam implantado. (..). © panorama politico, entretanto, se apresentava confuso. Os auténticos Ifderes revoluciondrios foram pros- critos; os partidos extintos (...). Impunha-se a revisio das leis votadas com fito demagégico, dentre as quais se destaca o Estatuto da Terra e 0 do Trabalhador Rural (..). O novo governo herdando elementos de proa da sua atuagao passada demonstrou que nao trilharia a linha que lhe impunham os anseios do povo. A agricultura foi mantida num plano inferior. Os outros setores tém vantagens crediticias e fiscais: a agricul- tura nao, O café, riqueza impar, continua feito navio-escola que abriga aprendizes de politica agricola.” O resultado final dessa contenda consistiu na garantia de que a refor- ma agraria seria meramente transitéria, cabendo ao Estado restrito papel Permanente apenas no tocante as politicas agricolas. Em contrapartida, em meio a todo esse processo emergiu e consolidou-se 0 novo conceito ® A Rural, mar. 1966, p. 5 © Ibid.,p. Consagrou-se a separacao entre gricultura, binémio tio caro aos » derrotado, cedeu espaco para a ca- -m alteragées na estrutura fundidria } € possivel afirmar que se verificon no pais uplo golpe do campo, a partir de 1964. De um lado, por terem sido coparticipes e, de outro, pela vitéria em inviabilizar a aprovacao do to da Terra em sua verséo original, implicando a segunda derrota ‘4m projeto de reforma agraria em tao curto espaco de tempo. A SRB r-se-ia, expressivo porta-voz, politico a partir de entao, como o mais classe dominante agréria do Pais. 2 P.2 [grifos meus),

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