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se deanna 4-4 Inds de Anima 0-1 dln ARFE-DA ANIMIACAO: TECNICA EHSTETICA ATRAVES DA MISTORDA, Mn Lie Se 293 46 p20 ange SBN 5729219, Aindustrializacao da animacao Parece absurdo colocar nestes termos — industrializagio— 0 enfrentamento das questies de producio do filme de animagio num momento em que praticamente faltava de tudo, Realizar um ou outro filme, no tempo que fosse necessirio, como ‘ez Winsor McCay, nio permitiria o desenvolvimento de um mercado que desse sustentaglo ao oneroso (e conseqiientemente caro) proceso de produgio. A nas- cente indastria cinematografica, em termos gerais, ainda buscava uma estrutura artistica, Para a animagio, em particular, os problemas eram mais dificcis. Os pri- 0 ros artistas precisavam tomar suas obras interessantes ~ 0 que queria dizer, pelo menos, ser vistas enquanto filme, com comeso, meio ¢ fim. Paralelamente, tinham de preocupar-se com a concepgio grafica € a realizago de movimentos convincentes. Afinal, nao custa lembrar que estivamoy no infcioda animagio ¢ nio havia profissionais experientes. Esses artistas eram desenhistas talentosos, tas fazer animagio implicava 0 conhecimento de novas habilidades — a maior parte ainda por ser descoberta. Como se esses problemas nio bastassem, a imprensa nio dava a devida atengio 3 animagao,” bem ao contrario do que sempre ocorreu com 0 cinema de agi ao vivo, © desafio desses pioneiros, como se percebe, era enorme. Nao apenas desenvolver a animagio propriamente dita, mas obter res- peito profissional ¢ criar uma audigneia “que pudesse apreciar ¢ aceitar os movi- mentos ¢ expressdes de personagens desenhados em papel”. Para produzir animacio de maneira rpida e barata, afim de atender a prazos ¢ orcamentos curtos, surgem os estidis de animagao, apoiados em novas técnicas © onganizacio empresarial. Criados ¢ gerenciados por animadores autodidatas no dominio do proceso basico de animagio, esses empreendedores recrutavam sua mio-de-obra nos departamentos de arte dos jornais, ensinando aos jovens cartunistas os rudimentos da animagio, $6 mesmo o grande talento desses artistas (que formarzo a primeira geracio de grandes mestres) para explicar o excepcional desenvolvimento técnico ¢ artistico da animagio entre as décadas de 1910 e 1940. A formagio em escolas de belas-artes, com sOlida base em desenho e pintura, era © ponto comum entre todos esses precursores. Esse salto da animagio paraa produgio cm larga escala vai acontecer nos Esta dos Unidos ¢ tem inicio imediatamente antes da eclosio da Primeira Guerra Mun- dial, fato que contribuiu para fortalecer a emergente indiistria cinematogrifica norte-americana como tm todo, pois deixou de enfrentar a concorréncia de pro- dutores europeus. Mais que isso, acabou por ocuparo mercado consumidor euro- peu ainda antes do término do conflito, estabelecendo assim, desde cedo, uma hegemonia na producio audiovisual em todo o Ocidente.” Ganhar em expressividade artistica a0 mesmo tempo em que s¢ agilizava 0 tedioso processo de produgio m2 animacio, constitufa-se numa tarefa determinante a ser devidamente equacionada se se desejasse seu desenvolvimento como um negécio lucrativo. Veremos como, entre a contribuicio de fatores de ordem técni- cae estética, aintroducio de procedimentos administraives completamente estranhos ‘aos esttidios de arte implicara numa revolugao na pritica artistica, na disseminagao da obra de arte (nesse caso, o filme de animagio) ¢ sua influéncia popular. John Habs & Roger Manvel, 7, 9.390. Charles Salomon, The His of Animation, ct, p.2 © Doral Craton, Bee Misey he Anima! Ft 1898-1928, cic, p. 218 tdi de anima ciemangrdfes (Rio de Jneire: Cvlzagio Brasileira, Como comprovagio da tese aqui defendida, observaremos que, apesar de todas as inovag6es vindas de diversos campos do conhecimento em auxilio a uma cada vez maior automatizagio do processo de produgio da animagio,emnenhum mo- | mento se vé questionada a importincia do objeto artistico ou a posicao central ¢ procminente do individuo que 0 produz dentro de qualquer esquema empresi~ Fial. Muito pelo contrétio, verifica-se um fortalecimento da entidade artista/obra, em beneficio da qual todos os esforgos devem ser direcionados com o propésito da melhor condigao possivel para o trabalho de criagio € produgio ~ uma terccira etapa, a que envolve a distribuicio, a principio aparentemente alijada das outras duas, estrutura-se em tomo das caracterfsticas artisticas do produto, a partir das quais é tragada a estratégia de divulgagio e venda. Evidentemente, nenhuma mudang: em comportamento hé muito estabelecido (ainda mais quando de grandes proporgées) implica imediata unanimidade — ou que s6 traga beneficios. A questio da individualidade, do ponto de vista pessoal do artista criador, foi motivo de polémica. Artistas do porte de Winsor McCay chegaram a colocar em diivida o fituro da animacio se ela fosse tratada comoum negécio, abdl cando da riqueza maior da arte, que é a contribuicio (formulada plasticamente) do conceito individual das coisas por parte de um ser humano espiritual eculturalmen- te elevado. A propria questio pritica de artistas se sujeitarem a padrées uniformes de representacio grifica impostos, necessérios a producio em larga escala, era moti- vo de preocupacio. Havia tanto o lado da sua anulacio criativa quanto a dificuldade em adotar tragos e formas plisticas que nao he diziam respeito. Afinal, o verdadeiro artista e sua obra vérn 3 tona quando se identifica uma contribuigio realmente autén- tica, original, resultado justamente da confluéncia, em condigées étimas, da sua visio de mundo ¢ dominio dos recursos expressivos. Aanimacio soube superar esses obstéculos da mesma forma que se observa em ‘outros momentos da histéria da arte em que, naturalmente, artistas mais talentosos (¢ artistas bem aceitos pelo piblico io artistas talentosos) ocupario postos de diregio, determinando as diretrizes que fundamentario a obra final, tratando de atribuir-Ihe unidade formal e coeréncia conceitual. E sobejamente conhecido o sistema de formagio de artesios desde a [dade ‘Média, em que aprendizes freqiientavam (passavam a morar mesmo) 0 atelié de (8) ‘um mestre por virios anos, até se encontrarem em condigdes de montar sua pré- pria oficina. Era comum darem seqiiéncia ao estilo do velho mestre. Com 0 Renascimento, essa pritica permanece, mas a autonomia do artista jé comega a depender de sua capacidade de apresentar um estilo proprio, bem de acordo com © cstigio cultural alcangado. Esse modelo permanece até hoje, apenas coma subs- tituigio das oficinas dos mestres pelas escolas de arte. Se hoje o pretendente a artista nfo consegue estabelecer um estilo que demonstre sus originalidade, a 50- iedade 0 desantoriza através da negagio do seu sucesso econdmico. Claro que essa colocacio ¢ simplificada para fins didaticos, pois diversos fatores extra-artisti- cos podem ser acionados com 0 intuito de promover uma atividade ~ embora, sem talento, esse esforgo nio leve muito longe, © que importa é que, com a automagiojindustrializacio de certas formas de arte a partir do comego do século XX, o sujeito com habilidade para o desenho que, por algum motivo, nao obtenha sucesso numa carreira solo ou simplesmente nio almeje essa forma de trabalho, tem a possibilidade de engajar-se em grupos envolvidos em produgées de massa. John Randolph Bray esté para o cinema de animagio assim como Henry Ford esti para a indtstria automobilfstica, tamanho o impacto de sua inovadora e efi- ciente organizagio na maneira de produzir filmes de animagio. Trabalhava em jor- nais como ilustrador, desenhando histérias em quadrinhos de grande sucesso popular. Sua ansia de cmpreendedor o fez partir para negécios proprios em que, logo de inicio, vistumbrava o potencial da animagio para scus desenhos, mas per= cebia que a novidade nao prosperaria se no encarasse o fato de que teria de com= petir por mercado com os filmes de agio ao vivo (quase sempre comédias), que eram lancados proporcio de dois programas por semana.” Alcancar essa regula~ ridade na producio de animacio era condicio bisica para este negscio prosperar. Bray, entio, procurou implantar na animacio principios ientificos de gerenciamento 3 moda das teorias de Frederick W. Taylor sobre produtividade no trabalho" Sua ‘stratégia para viabilizar a produgio atacava quatro pontos: primeiro, descartar ou modificar a maneira entio vigente de produzir animacio com esforcos em deta- > bid, 138 © Retr Drucker, Said pcpn, cit, pp. M20 [64 Ihes proibitivo do trabalho; terceiro, proteger os processos por meio de patente; quarto, aperfei- soar a distribuigio e o marketing dos filmes. Bray haviautilizado, em seusegundo filme, The Anis’s Dream (langaedo em meados de 1913), uma técnica que aliviava bastante o trabalho de redesenhar 0 cenério estitico em todas as folhas — um exemplo evidente da imperiosa necessidade de ; segundo, abandonar 2 producio individual ¢ partir para a divisio minorar 0 esforgo mecanico entranhado no processo de animacio, responsivel Por scu entrave artistico ¢ comunicativo. Simplesmente imprimia o cendrio nas fothas onde seriam desenhados os personagensanimados. Nas etapas daanimagao ‘em que as linhas do personagem se confundiam com o cenério, preenchia-se de branco terior do personagem. Muito esperto, Bray incluiu no documento em que requeria a patente dessa invengio todos os procestos de animagio entio co- hecidos até aquela data. A despeito das batalhas judiciais que se segnirim, 0 sistema implementado por Bray, com controle total da producao de animacéo como uma linha de montagem, atendia as necessidades mercadolégicas ¢ cumpria a inquestionavel necessidade de formacio de puiblico. A relacio de trabalho noestti- dio era clara: Bray era o chefe, ¢ os outros, os subordinados. Uma hievarguia foi stabelecida com a introducio de niveis intermedirios de fincionalidade. Se esse sistema, em princfpio, suprimia a individualidade ~ condicionando um alto nivel de uniformidade — no caso especifico da animacio essa situago acabou propician- do o aparecimento espontineo de c6digos visuais que, com 0 tempo, contribuiram para uma identificagao popular com o género (sem esquecer de que também dava infcio a estruturagio de um sistema-padrio na produgio do trabalho de animacao). Isso 6 reforga nossa tese de que aarte, sendo, em esséncia, uma aprecnsdo intui- ‘iva do mundo, estara sempre acima das condigées téenicas e, agora também, de sistemas de conhecimento aplicados 4 produtividade do trabalho artistico. Fica cla- ro como interferéncias bem conduzidas, mesmo externas ao sistema de conheci- )acabam ‘ments artisticos que impliquem incrementos no processo de prodiuca sendo consideradas no esquema de criagao ¢ interferem no resultado final da obra. No entanto, ainda assim, permanecem como acesséries operaciomais alheios a0 renciagio nos levari, cere da concepcio di arte, A insisténcia nesse tipo de Donald Crain, fe Mike te Animated Fl 1898-1928, ct pS. [65] por ocasiao da introdugio da informatica no processo artistico, ao perfeito enten- dimento de sua fungio como ferramenta para melhorar a eficiéncia produtiva eas solugées estéticas — jamais como a arte em si, como alguns quiseram considerar. Naquela época, apenas um outro estiidio de animagio rivalizava com Bray. Raoul Barré, artista canadense, emigrara para os Estados Unidos e, em sociedade com ‘outros artistas, transformara seu esttidio numa verdadeira fibrica de animadores, suprindo a inexisténciade escolas, Ao lado de Bray, mais 0 William Randolph Hearst International Film Service (criado em 1915), dominou a producio de animacio até inicio da década de 1920.° Para se estabelecer no mercado, o esttidio de Barré teve de desenvolver técni- ‘cas que 0 colocassem em condigdes de competicio. A solugio encontrada por Barré para contornar a necessidade de redesenhar os cendrios baseava-se num sistema de corte das folhas onde estava desenhado ou o personagem animado ou o cenirio estético — dependendo da necessidade da animagio. Se o personagem se movi- mentasse numa pequtena étea, cortava-se essa drea das folhas do cenirio, que eram sobrepostas as do personagem. Caso contririo, cortava-se a folha do personage, contornando-o, deixando uma tira fina que o ligava & parte perfurada para o regis tro (que tinha de ser perfeito). Jé Bill Nolan (antigo colaborador de Raoul Barré) implantou 0 cendrio desenhado em compridas folhas de papel, que, movimentadas por tris do personagem caminhando no mesmo lugar, criava a ilusio de movimento horizontal, Era também uma solugio para movimentos em panorimica no dese- nho animado (mais um exemplo de solucio técnica diretamente integrada 20 mutirio expressivo). Com as condigies proporcionadas pela organizacio empresarial da produgio ¢ pelas técnicas que tornavam menos oneroso o trabalho repetitive, surgiam as séries de desenhos animados com personagens destinados a marcar épocas. A expressio “desenho animado” vai aparecer com a primeira das séries de personagens — The Newlyweds, de 1913 — realizada por ninguém menos que Emile Cohl (no entanto trabalhando sozinho, a taxa de um filme a cada vinte dias, por dez meses — um espanto!), durante sua temporada nos Estados Unidos. Tratava-se de uma adap- © Charles Solemn, The Hisory of Aniation its 22 % Donald Craft, Bere Mid: te Animated Fl 1898-1928, ct, 9. 83 (66 tagio dos famosos quadrinhos do desenhista George McManus, The Newlyweds and Their Baby. Justo na largada dessa excitante etapa do desenvolvimento da animagio, duas ggandes descobertas sio anunciadas. A primeira surge em dezembro de 1914, quan= do € patenteada aquel que efetivamente foi a maior contribuigio técnica para a animagio tradicional até o advento da computagio grifica: 0 desenho sobre falas de cluldide transperente—no Brasil, vulgarmente chamada de acetato, Essa inovagio cou- be a0 animador norte-americano Earl Hurd.®> E impressionante o impacto que essa absurdamente simples tecnologia vai tra~ zer para a animacio, logo se institucionalizando como padrio na indiistria (sgora, sim, a palavra “indtistria” vai mesmo fazer sentido). Ela afeta desde 0 process bisico de confeccio técnica da animacio (desenhos, materiais, efeitos, etc.), pas~ sando pela sistemnatizacio da linha de producio dos esttidios, com um maior nivel io do trabalho (trazendo mais eficiéncia), além de, principalmente, proporcionar a liberdade ar- tistica que faltava para a animagio desenvolver todas as suas possibilidades vistiais de especializagao de tarefase, conseqiientemente, ampliacioda di (ou quase), caracterizando-se definitivamente como uma arte autGnoma de valor estético inquestionavel — sem falar de seu apelo popular. Com o acetato, as figuras animadas ganham completa independéncia dos cené- rios, com beneficios enormes para ambos. Aos cenérios poderia agora ser dada maior atencio plistica, sem limitagSes expressivas. Dos mais simples aos thais complexos, a concepeao, odesenho ea pintura dos cendtios subordinavam-se ago- raunicamente a consideragées artisticas, fissional dentro da animagio — os paisagistas, cendgrafos dos desenhos animados, nstituindo logo uma nova categoria pro- Fotografias poderiam ser usadas como cenério, permitindo uma forma ripida e de grande precisio para os filmes que combinavam desenho animado com imagens reais. Partes de um cenério poderiam ser pintadas em folhas separadas de acctato, Permitindo uso de planos, um significante aperfeigoamento para a ilusio de pro- fundidade, Por sua-vez, as figuras animadas em acetato ganhavam uma autonomia de movimentos impossivel de outras maneiras quando combinadas com cendrios complexos, Era uma solugao sob medida para animar grupos de figuras com movi- Valle Richard, Nomon McLarey, Mavpulsor of Movement, cit, p. 21 mentos diferentes no tempo e no espago, colocando-os em acetatos separados que eram sobrepostos em camadas sobre © cendrio. Quando a cor apa rece como solucio industrial satisfat6ria para 0 cinema, se~ ria impensivel imaginar a ani macio sem 0 uso do acetato, Aliado ao conceito de trabalho hierarquizado introduzido por Bray, teremos aqui estabelecida a préixis do estudio de animacao-— base paraa simulacio por computa- dor, a exemplo da agio bascada em keyfames, um desses conceitos de trabalho hierarquizado na animagio tradicional. O advento do acetato — a revolugio proporcionada por esse singelo aparato no sistema produtivo da animagio ¢ a dimensio estética a que era dado acesso aos desenhos em movimento em fuungio de sua aplicagio ~nos dé a oportunidade de abordar uma idéia defendida por te6ricos da comunicacio em voga principalmente nas décadas de 1970-1980, quando, sob o bombardeio propagandistico da indiistria da informitica aplicada i computagao grifica, se indagava (na verdade, afirmando) a respeito do que vinha a ser efetivamente arte. Como na fase inicial da micro- computagio, quando mesmo os programas mais primitivos para processamento de texto tinham de ser criados pelo ususrio, se se quisesse algo minimamente funcional (para tanto, precisando dominar alguns rudimentos de alguma lingua- gem de programagio, coisa normalmente enfadonha, como qualquer c6digo estr- nho com 0 qual tivéssemos de nos familiarizar), d4 para entender, ainda que em icas (no.caso, a elabo- Parte, a confusio iniciada ao se querer atribuir a solugdes t ragio de programas grficos para computador) o status de verdadeira criacio artisti- ca. Dizer que um programa de computador para trabalho grafico é uma obra de arte € confundir 0 objetivo da ciénciv/tecnologia com o da arte —justamente o que temos distinguido enfaticamente ao longo deste relato histérico. No caso da com- putagio grifica, trata-se exatamente da aplicagao de conhecimentos cientificos na %Arlindo Machado, Miiuina ¢imayinirio (So Paulo: Edesp, 199), p. 138 68 producto tecnoligica de uma feramenta sofisticada para aépoca atial (no se esquueca disso), empregada no proceso de criagao artistica. Essa questio voltari a ser abordada quando chegarmos a0 desenvolvimento da animacio feita por computador, mas, a0 registrar esse t6pico nesta passagem da histéria da animacio, queremos chamar a atencio para a figura do introdutor do acetato no desenho animado e, sob 0 critério de criacio artistica proposto por cettos teéricos da comunicagio (chamados “teéricos da imagem”), questionar se a folha de acetato transparente seria uma obra de arte. Aqui ¢ ficil; nesse caso, nio precisamos ser nenhum grande pensador para contestar veementemente esse ab- surdo, Temosa nogioclara de que essa folha de plistico inerte nao nos diz absolu- tamente nada—mas que, quando utilizada por um individuo talentoso, dentro de um conjunto de regras que se utilizam de cédigos de linguagem devidamente ma- nipulados, pode vir a constituir-se em um poderoso suporte para que a verdadeira arte se manifeste: a visio do artista expressa plasticamente. Os teéricos poderiam alegar que 0 acetato nao é um produto “inteligente”, como cles imaginavam (ou ser que continuam imaginando?) ser o programa de computador. A esse respeito, até as autoridades académicas mais interessadas no desenvolvimento.de sistemas autématos para manipulagio de informagies (enganosamente chamados de “inteligéncia grtificial”)jé abdicaram desse conceito, por entenderem, enfim, que inteligéncia—sensibilidade e raciocinio — ni se con- segue por meio de processamentos matemiticos apenas: quer seja somando 2+2, ou dividindo # ++» por» 1+ 0 = []. O programa grifico sozinho, ou mesmo com 0 auxilio de um técnico nao artista, dificilmente nos emocionaria, nos preencheria com aquela sensagio ow apelando para a instrucio algoritmica inexplicdvel de satisfagio que nos envolve quando defrontamos com uma verda- deira obra de arte. Dentro do atual estigio cultural da humanidade, dizer que um programa grafico, por si mesmo, seja uma obra de arte € querer zombar da sensi- bilidade —e inteligéncia— humana. Quanto a pessoa do Earl Hurd, a desy nica (dificilmente qualquer algoritmo por si mesmo, aplicado A computagio gréfi- to da importincia de sua invengio té&~ «a, viré proporcionar tamanha revolugio), pergunta-se: com 0 que ele contribuiu — inclusive fazendo uso do acetato? Hurd era em= em termes de criagao artisti [3] pregado do esttidio de John R. Bray quando conseguiu a patente do acetato, mas, apesar das vantagens legais ¢ financeiras oriundas de sua invengio, continuou em- pregado de Bray.” Nesse estiidio, ele realizou o trabalho artistico que the dew algum destaque ~a série em desenho animado Bobby Bumps — para, em seguida, cair em esquecimento (passou a trabalhar no departamento técnico do esttidio de ‘Walt Disney). Apesar de bom desenhista, do ponto de vista artistico a contribuicao de Hurd para a animagdo € quase nenhuma, pois nao legou obras nem conceitos estéticos aplicados 4 imagem animada de significativa importincia, Nao enrique- cu nossa cultura visual. Faltou, justamente, arte, A outta descoberta técnica que repercutird nos sistemas tanto produtivo quan- to artistico da animagio seré a retoscopia, Inventada pelos irmaos Max e Dave Fleischer no ano de 1915, nao se compara a revolugio proporcionada pela intro- dugio do acetato, mas, até pela maneira como foi explorada artisticamente pelos seus idealizadores (que se tornaram reforé cia obrigat6ria para a animagio enquanto arte), sugere a colocagio de seus atitores em contraponto a Earl Hurd. Basta iniciar di- zendo que sio os “pais” de personagens antolégicos como Koko, o palhago, Betty Boop e Popeye — fcones do imaginstio visual do século XX. E af temos criacio artistica — nao ha como existir confusio. A rotoscopia era um engenhoso artificio para se obter movimentos realistas no de- senho. Uma seqtiéncia de imagens reais pré- filmadas era projetada frame a frame (como » um projetor de slides) numa chapa de vidro, permitindo que se decalcasse para 0 papel cs os \atogte pao doers oe ogi da fou acetato a parte da imagem que se dese- atte do poco a omscont Heche jase. Abriam-se novas oportunidades para. recan Fim instute ® Charles Solomon, The Hist of Animation, cit, p25. Donald Crafion, Bef Micky: the Animated Fil 1898-1928, cit, p. 168 efeitos especiais, amplitude de movimentes; mas também um mercado muito luctativo para a animagio: os filmes de instrugio ¢ educativos. Mecanismos téeni- cos complexos podiam ser facilmente explicados pelo uso de desenhos animados, © a rotoscopia ampliava esse aleance Com essa técnica, os filmes que misturavam desenho animado com agdes 20 vivo ganharam impulso. Era ficil fazer um dancarino real transformar-se em per- sonagem desenhado sem que este perdesse o ritmo, a sutileza ¢ a sensagio de solidea da imagem real. E ai surge a questio: qual a vantagem, para a animagio, em reproduzirtal equal, mecanicamente, o movimento dos seres ¢ fendmenoscinéticos do mundo real? Aqui se toca num dos temas mais caros 3 discussio artistica a partir do século XIX, que é a representagio da natureza. Ora, arte ¢ ilusio, mas jamais poderia abdicar da referéncia do mundo fisico, onde, afinal, existimos enquanto organismos biolégicos tanto por sua riqueza plastica e fenomenoligica quanto pelo que representa como meioambiente para aespécie humana. Abdicar da natureza como referencia artistica (em qualquer forma expressiva) niio traria apenas empobrecimento estético: significaria a negacao da condicio existencial do homem, A natureza, como referéncia, pode estar representada na arte mais ou menos realisticamente, mas, quanto mais se petcebe a interferéncia da visio (estruturagio plistica) do artista no objeto de arte, mais esse objeto se aproxima do status de obra de arte. E 0 que permite 20 cinema, largamente baseado em imagens realistas, conceber obras nesse nivel, demonstrando cabalmente a veracidade da afirmacaa acima. Na pintura ¢ na animacio, o fato de o artista dispor de controle total sobre os elementos de sintaxe pléstica (além da maneira indireta de traducio formal do que sua visio capta) extrapola suas possibilidades expressivas, Se esse artista conta com artefatos que ampliem sua percepgio e a manipulacio das imagens e fenéme- nos do mundo, nao ha diivida de que ele alargar4 seu horizonte. No entanto jamais para subordinar-se aos determinismos do mundo real ~ seria a anulagao da arte (¢ da animagio, em particular). Isso fica muito evidente quando dispomos, hoje, de lum processo mais sofisticado de captura e simulagdo de movimentos por via digi- tal, em que percebemos, distintamente, quando é utilizado como ferramenta ar- tistica (0 andride malvado que assume diversas formas no filme O exterminador do _futuro II, de James Cameron, 1991) ou quando tem por finalidade propésitos cien~ tificos ou técnicos (a simulagio da trajetéria de uma bala como forma de elucidagio de tum crime). Num caso (0 artistico),a captura digital do movimento ¢ das formas do corpo de uma pessoa real ¢ apenas o ponto de partida para uma série de inter~ feréncias que buscam expressividade visual, no importando se, para isso, as leis fisicas da Gptica, da mecinica ¢ do magnetismo tenham de ser categoricamente fraudadas; no outro, a agio c a imagem devem ater-se o mais fielmente possfvel is regras do universo fisico, sem margem para a imaginagao ~ do contrério, deixa de ser ciéncia, (Os irmios Fleischer, apesar da engenhosidade técnica, eram artistas talentosos. Conscicntes do risco do naturalismo inexpressivo que a dependéncia severa da rotoscopia poderia implicar nas produces com expectativas artisticas ambiciosas, atuaram de maneira extremamente criteriosa na exploragio de seu invento. Nio deisaram de tirar vantagem econémica da aplicagio da rotescopia como simulagio do movimento teal em filmes téenico-cientificos (tanto que se aliaram a John R. Bray para explorar essa vertente dos negécios), mas montaram seu proprio estti- dio, com uma clara definicéo para a arte, ¢ transformaram-se numa das escassas forcas criativas que ainda conseguiria incomodar o império de Disney.” Nao € pouca coisa. ‘Seu primeiro personagem de sucesso, o palhaco Koko, tornars célebre a série de deserihos intitulada Out ofthe Inkwell, que, a0 longo da década de 1920, contri- buiri significativamente paraa afirmacio desse tipo de programa no gosto popular. Tiram vantagem do recurso da rotoscopia inclusive para a concepgio fisica e psico- I6gica do personagem, que se questiona sobre sua origem, oferecendo oportuni- dades para a exploragio criativa de gags, numa mescla equilibrada de humor proprio comas formulas que comegavama criar rafzes. Suas histérias vio combinar figuras reais com personagens de cartuns que “irocam de mundos”, em que 0 proprio animador participa das aventuras, tanto como criador como criatura, real ¢ dese- nhado, sofrendo as agruras dos universos paralelos. Os Fleischer levam 3s iltimas conseqiiéncias as possibilidades daquele espeticulo que esti na base da animagio, 0 lighting sketches, procedimento que havia alcangado seu maior sucesso com Gertie, © Charles Solomon, The History of Anmaton, itp. 7 a] 72 de Winsor McCay. As questbes de ordem formal eram rigorosamente considera- das, a ponto de Dave Fleischer insistir no uso de determinado tipo de lipis para obtengio de tragos de melhor resultado plistico!” Combinavam todas as téenicas entio conhecidas (sistema de corte, acetato, animacio por fases, rotoscopia, etc.), de acordo com o que pedia a cena, ou seja, a técnica corretamente subordinada 3 necessidade expressiva, As conquistas estéticas do universo da animacio que iam aparecendo eram incorporadas ¢ retrabalhadas com vistas 3 adequagio dos perso- rnagens ¢ stu efetiva empatia. Um exemplo era 0 OUT OF Sie INKWELL conceito de animagao eldstica, Emile Cohl e Winsor McCay j4 anunciavam esse procedimento, mas experiéncias de animadores como Bill Nolan 0 definiurcomo recurso caracteristico da arte daani- ‘magio, no qual 0 corpo de um personagem se comportaria como uma borracha, cujas partes passavam a ser extremamente flexiveis. Assim, TERRITORIAL RIGHTS | em yez de dobrar 0 cotovelo seguindo as limita- our ore mawent corres | Coes nanurais deangulacio, 0 braco teria a flexibi as Ah ml lidade de uma mangueira de jardim. Isso permitia pope a uma soltura ¢ fiuidez de movimentos espetact aa¥0 Kok lar, possibilitando agSes engragadas com muito eres apelo visual. Detalhes dessa natureza demonstram bem em que campo estavam envolvidos 08 irmios Fleischer, o que explica a tremenda popularidade, longevidade e influ- ncia de suas produgdes artisticas. Devido a esses desenvolvimentos, as séries de personagens se impdem no merca- do. A competicio entre os esttidios, que se multiplicavam, tornara-se um vicio. “Todos os procedimentos técnicos até aqui abordados se encontravam plenamente difundidos. Técnicas alternativas, utilizadas por animadores que, por motivo de ‘ordem pessoal, cultural, geogrifica ¢, por que nao dizer também, profissional, tiveram enorme desenvolvimento nessa mesma época. Por nfo serem os mais utilizados no processo industrial da animagio — nao estavam por trés dos filmes Donald Craton, Bie Mi the Animated Fim 1998-1928. ci. p. 175 que popularizaram esse género de cinema ¢ Ihe forneceram um conjunto proprio de conceitos artisticos -, abordaremos esses procedimentos e os principais cineastas i dependents (chamados assim por se situa- rem na periferia do mercado da animagio) nas paginas 81 ¢ seguintes. Dente as diversas causas que concor- reram para.a vulgarizacio da animacio, esti a pullicagio de livmos e peridics. S6 para se ter uma idéia da influéncia dessas publica- Ges, basta informar que Walt Disney, ape- sar de ter estudado em escola de arte, se instruiu em animagio tendo como consul- ta alguns dos livros mais conceituados so- bre 0 assunto: Course in Motion Picture Photegraphy, de Carl Gregory, e Animated Cartoons: How They Are Made, Their Origin and Development, de Edwin G. Luz." O lie vro de Lutz, especifico de animagio, incluia descrigio de conceitos artisticos da anima- ‘glo que, no comego da década de 1920, ji se encontravam padronizados, a exemplo do crossover, ciclo, agio repetida, animagio clastica, equalizagio de volume, etc. Na verdade, até havia contribuigdes de- mais, técnicas ¢ estilisticas — uma situagao em parte parecida com a que se comega a verificar atualmente, na qual os processos digitais, mesmo tendo muito o que aper feicoar, ji oferecem um leque satisfat6rio th, 201 fe Ewin. Late (192 de possibilidades técnicas 4 espera de artistas que encontrem uma equivaléncia cstética ¢ cultural, Esse € um tipo de desafio que exige ma notivel capacidade scletiva, em que se devem fazer descartes precisos entre gimas de alternativas a fim de eliminar coisas supérfluas, exageros, em diregio a um maior controle & ‘cocréncia. Trata-se de consolidar tm sistema de conhecimentos, sem o qual é imposs{- velo avangode qualquer cigncia— porque a arte também necessita de tum conjuunto organizado de cédigos fandamentais aos quais se referenciar, sob pena de insufi- ciéncia comunicativa. Foi esse tipo de negligéncia, em nome de uma stposta liber- dade absoluta (!) de expressio, o responsivel pela degenerescéncia daarte moderna, a partir de meados do século XX, afastando-a do interesse do piiblico. Em sentido inverso, tivemos justamente numa uniformidade aleancada pela animagio na década de 1920 e aperfeicoada nos anos 1930 (tio criticada pelos de- fensores da tendéncia “artistica” — livre de formulas? ~da animacio independen= te), que dotou esse cinema de uma linguagem visual propria universalmente assimilivel — contribuindo nao apenas para sua afirmacio como entretenimento rentivel, mas também fornecendo um apoio seguro paraousadas (e bem-sucedidas) cexperiéncias formais. [As séries de personagens se encaixam com perfei¢io a esse momento em que havia uma demanda por produces de massa ¢ uma conseqiiente necessidade de uniformizagio da animacao, que ajudasse o ptiblico na compreensao das hist6rias, F 0 piiblico que exige a manutencio de personagens, num processo natural de identificagio. E, da mesma forma que no cinema de imagem real - com persona- gens como Carlitos, Tarzan ou cowboys do faroeste — os produtores de animagio satisfazem esse desejo de ver 0 mesmo herdi em vérios filmes. E claro que, nessas circunstincias, se ativa um poderoso proceso de retroali- mentagio, em que os anscios do piiblico influenciam a arte, ¢ vice-versa. Se as séries se tomam a salvacio econémica da animagio e seu principal canal de comu- nicagdo com o piiblico, a instalagdo dessa operagio industrial haveria de afetar a concepgio ¢ feitura dos filmes, com resultado direto na caracterizagio da persona- lidade das figuras desenhadas. Eaqui que uma pritica que se institucionalizou como ‘marca registrada dos desenhos animados vai aparecer e se transformar em eficaz instrumento de individualizagao de personagens: a repetigdo de poses, expresses © mo- L 78] vimenios utilizados em todas as aventuras. Aliado a um niimero limitado de cendirios usados em todos os epis6dios, cria as condigbes visuais bisicas para identificagio do universe ficcional espectfico de um personage — além, Gbvio, da enorme eco- nomia em trabalho e tempo. Entretanto, as transformagies oriundas do advento das s6ries no param por af Por meio delas, a animagio vai ainda superar a forte tendéncia inicial de sempre se tir na participacio direta do animador. Em vez de uma presenca literal, 0 ani- mador safa de cena (embora jamais em definitivo), permitindo aos personagens, enfim, uma independéncia como aquela que experimentamos com a maioridade. Essa liberdade vai contribuir para a proliferagdo de uma verdadeira fauna de tipos, 6s mais variados, que acabam servindo de alter ego e para manifestagbes ideol6gicas de seus criadores. Até pela maneira do desenvolvimento da animagao, as primeiras “estrelas” do tniverso do desenho animado terao formas humanas. Mas os velhos rabugen- tos, no entanto, os garotos pestinhas, as familias neurdticas ¢ tantos outros po pulares protagonistas 20s poucos foram cedendo espaco para os simpéticos animais de formas antropomérficas. ‘Como vimos, os animais estiveram presentes desde o inicio da animagio, en- tretanto em condig6es subalternas, Essa ascensio dos animais ao estrelato aconte- cc paralclamente retirada do animador para os bastidores. Era uma opgio perfeita para a deflagragio de fantasias sem limites, ainda mais tirando proveito de um processo universal de identificagio que existe entre nds humanose o mundo animal. Em stta nova situago— no mais de magico, mas de cronista da alma humana -, animador se sentia & vontade para explorar toda a diversidade de valores sociais, langando mio dos miiltiplos recursos expressivos proporcionados por sua arte ~ divertindo, criticando, emocionando; objetivos bem distantes de atividades que tém na técnica e na ciéncia sua razio de ser. ‘Omnis representativo, admirado e influente personagem desse perfodo da ani- macio seré o gato Felix. Seu sucesso era tamanho que, segundo Crafton, no mundo do cinema como um todo 6 perdia em populridade para Chaplin ~ mas, como ste, ultrapassava barreiras de classe social ¢ idade, No seu mundo ambiguo © hid, p. 317 76 (surrealista mesmo), nao daria para imaginar aescolhade outro animal que noum, a cultura — gato — com toda sua carga simbélica hé tempos incorporada em para trafegar com desenvoltura, habilidade e sabedoria suficientes paraa superacio de tantos (e em tio distintas circunstincias) desafios, Felix, porém, nio foi o primeiro gato dos desenhos animados — nem seria 0 {ltimo, Tampouco reinou solitario nas telas dos anos 1920 —légico queapareceram imitadores para tentar aproveitar-se da “onda” de sucesso felino, Dentre todos, chama atengio a si de Disney, personagem animal princi- ilaridade do gato Juli pal de sua primeira série, Alice Comedies. Também o primeiro astro animal de Disney, o coelho Oswald, baseia-se em Felix. Até o simbolo maior do império Disney, Mickey Mouse (que seré criado no auge do sucesso de Felix, na segunda metade da década de 1920), foi flagrantermente inspirado nas formas arredondadas preenchidas de preto do famoso gato. Entio, por que Felix, entre tantos, se distin guia? A despeito de diversas respostas que poderiam explicar apenas em parte esse afirmar que, na verdade, se ata de um caso fen6meno, nao temes daivida e1 dlassico de c icosdo ca njungao de conhecimentos intuitivos espec Apesar da influéncia de madores talentosos que psssaram pelo esttidio res~ 1po artistico. lo de diversos an ponsavel pelos filmes de Felix, aperfeigoando seu formato, cle foi o produto da mente privilegiada e modesta do artista Otto Messmer. Nio apenas 0 aspecto plistico, mas o temperamento, as hist6~ Tias, as tiradas de humor, o ambiente. Felix era o resultado da visio de mundo desse artista num perfodo efervescente da histéria do séculoXX, logo ap6so final da Primeira Guerra Mundial, Um ro- mintico numa era de extremos, cuja obra é teste~ eset Colao oe munha da vitalidade e delicadeza de um espitito que jamais se afastou de seus principios, A coe~ réncia do seu personagem, em si, é uma prova. Sendo produto de uma linha de montagem da indistria do entretenimento, teve a sorte de contar com a supervisio de seu criador em todas as etapas do processo de produgio ao longo dos anos. iz Messmer nio 36 era um artista talentoso, mas experiéncias artisticas anteriores a Felix: foram determinantes para a concepgdo extremamente bem-sucedidade sc personagem. Com certeza, a mais importante foi a série em desenho animado haseada no personagem Carlitos, de Chaplin, paraa qual Messmer estudoua fun- do os filmes daquele artista, frame a frame. Algumas facetas do comportamento de Felix chegam a ser comparadas aos maneirismos de Carlitos. Sua concep¢io formal nao teve nada de aleatério. Foi uma abordagem racional de ordem estética e funcional. Muito embora as tentativas de solugio industrial para introdugio do som e da cor no cinema estivessem avangando, tecnologicamente continuava restrito a poucas experiéncias. Por isso, o desenho de Felix tinha de considerar as condi¢des técnicas da midia em preto-e-branco, aagilidade necessi- ra a0 processo de confeccio em série dos filmes e, ao mesmo tempo, nio descui dar do apelo visual. Bem de acordo com as logo conhecidas teorias psicol6gicas da _gestalt, naturalmente se optou por formas arredondadas, reconhecidamente atraen- tes. Formas circulares seriam também mais ficeis e répidas para desenhar, recobrir ¢pintar. Chapar 0 corpo de preto facilitava a pintura, destacava ¢ dava unidade a0 personagem — aliado & forma arredondada, propiciava também melhor harmonia icularmente feliz, pois abrandava uma certa dureza nos movimentos do personagem, uma saida radical em busca de gestos e ages que maanimagio, Essa opgio foi pai stabelecessem plena identificagio e empatia. No cendrio predominaria o branco, com desenhos com poucas linhas. Criava-se um contraste com 0 personagem. Esse conjunto visual sintético se mostrou extre- mamente eficaz na comunicagio de imagens em movimento, reforgando a atengio nas seqiién- cias de gags inteligentemente bem-concebidas. ‘Messmer imaginou um personagem espirituo- so. Nio se tratava de um simples bonequinho animado; fora dotado de tragos expressivoscom movimentos para obter exatamente os efeitos. £292 27 po Sisco Filo oe ve OS. wren 2 onaneactn cre 8b dort desejados. Para tanto, Messmer aplicouos prin- 0 ese sto Dos Hesse © Jol Cancmaker, Fee the Tvs Tle of he Wels Moat enous Cat (Nova York: Pantheon, Books 1991), p38 cfpios de encenagio explorados pelo teatro & pelo cinema mudo de Charles Chaplin, reco- nhecidamente eficientes, Além do mais, 0 gato se prestava maravi- Thosamentea metaféricas comparagdes com 6 c2> # comportamento humano. £ um animal admi- rado e temido; é indiferente e sensual; inde- pendente e familiar; perfeito para encarnar as miltiplss ficetas da personalidade humana. Daf a riqueza da personalidade de Felix, em contraponto ao conhecido maniquefsmo das - m criaturas de Disney, que muito em breve to- = mariam de assalto 0 mundo da animagio. Se Seetape cere e Savan (027 tade de pornos bracos e acariciar, era também ana bichano de caninos afiados que nos lembra- vam seu lado feroz; se aparentava um distinto humano caminhando sobre duas Felix era um bichinho fofinho, que dava von- pernas, era também visto animalescamente apoiado sobre quatro patas; era visto em situagSes elegantes, em ambientes distintos, mas nao se furtava a freqiientar 0 monturo, comer lixo ¢ enfrentar selvagens perseguigdes de cachorros. Ciente de siia funcio ¢ responsabilidade, Messmer nao hesitava sequer em abordar 0 erotis- mo ea sexualidade, sem concessées puritanas. No entanto a caracteristica que ais sobressai quando lembramos de Felix é 0 uso absolutamente surrealista que cle faz das partes do sett corpo — se necessirio, aplica o mesmo procedimento até para coisas em principio intangiveis. Felix destaca partes do seu corpo para usar da maneira mais conveniente; se for preciso, todo o corpo assume a forma desejada. Felix tem o poder até de manipu- lar formalmente as sensagdes — basta aproveitar o sinal de interrogagio que surge na tela enquanto ele se pergunta por uma determinada solucio, e pronto: transfor- ‘ma-o numa ferramenta providencial. Com isso, ficamos sempre na expectativa de {qual maneirismo Felix langaré mao para superar seus problemas ~ problemas to insélitos quanto seus artificios. Por exemplo: no filme Pedigreedy, de 1927, Felixé barrado num exclusivo clube de gatos, sob a alegagio de queali sé freqfientamaqueles de “estirpe linear” 0 que © exclufa, com seu evidente perfil chapado de preto. Nesse caso, ele vai safar-se fraudando sua origem de per sonagem de cartum. Apesar de sous superpoderes, nem sempre Felix leva a melhor ~ até porque, como se pereebe, as situagies sfo tio inusitadas quanto suas aptiddes. Otto Messmer tira proveito disso para dar vazio a experiéncias formais hem de acordo com as vanguardas modernistas: defor- macio de perspectivas e toda sorte de estranhamentos, ‘como os surrealistas; aplicacao de padrdes geométricos, de acordo com tendéncias neoplisticas € concretas; ex- ploracio dramitica de sombras, como os expressionistas, etc. Nada gratuitamente. Tudo dentro de uma estrutura narrativa que se apoiava completamente na fantasia, Em que outro mundo Felix poderia existir? Essa simples constatacio condicionava toda a criagio. Tratava-se, afi- nal, de um mundo artificial, abstrato, portanto sem li- mites, estando af os elementos naturais de sua forca cexpressiva. Felix tinha plena consciéncia do mundo irra~ ional que habitava, mais que isso, estava perieitamente adaptado a ele. Demonstrando um enorme poder de imaginacio, Messmer (como virios outros artistas e em ‘outros meios) apelava para as lembrangas de sua percep Gio na infincia,"‘na capacidade de nos maravilhar comas coisas quando somos pequenos, para justificar a prol ragio de lugares exéticos, inverossfmeis. Mas isso io bastava. Era preciso dar forma A imaginacio. E af emer- gia todo otalento de Messmerna articulagio plistica des- “Dold Crafon, Bef: Mik the Aninaed Fle 1899-1928, cit, p. 338, ra de umn fisbeok. Ot Messmer 73] 80 sas imagens fancisticas, traduzidas em alego- rias simples, mas de poderosos efeitos visuais. Messmer dé seqiiéncia 3 linhagem de ge~ niais artistas animadores iniciada por Emile Cohl ¢ Winsor McCay, inclusive partilhando do gosto ¢ explorando, inteligentemente, 0 po- tencial surre: daanimagio. Seu despertar paraa animagio foi provocado pelos filmes de Winsor McCay, assistidos por ocasiio dos lan- ‘i camentos entre 1911 ¢ 1914, particularmente o espeticulo de variedades em que esse artista formidavel exibiu Gertie the Dinosaur. De acordo com Solomon,” o escritor Aldous Huxley teria dito que Felix oferecia uma licio para os cineastas expressionistas curopeus de como evitar a presungio ¢ o hu- mor sem graca que estragavam seus trabalhos. Declaragdes desse tipo, de pessoas oriundas de campos da arte dito “sérios”, como a litera- | cura ou a pintura, ainda que raras, de tio in- tensas demonstravam as qualidades ea ampli- tude do sucesso da animagio por meio de personagens como Felix. A transcri¢i0 doclo- gio de um outro famoso escritor, Marcel Brion, historiador da arte, membro da Academia Francesa, publicado por Solomon, certamente dé uma nogio mais precisa da repercussio sem fronteiras do persona- gem Felix o conseqiiente alcance artistico proporcionado pela animacio: Eleescapuiira da real lade dos gatos; havia sido carncterizado com uma extra ‘ordindria personalidade. Quando ele esti caminhando como um homem preocu- pao, com sua cabegaenterrads nosomibros, sets bragos para tr, cle no cabe em John Caneraker Fis: the Tried Tae of he Wolds Most Famous Cay ct pp. 1314 at, 3, ‘um gato, ¢ireal num homem... Nada Ihe é mais fmiliardo que o extraordinsrio, «quando cle nio esti envelvide pelo fantistico, cleo cra. Eessastia fculdade critiva que nos prende completamente a Felix. Isso surge de dois estimulos _mentais:espantoc curiosidade, 2s virtudesdos poetasestbios... Felicconstr6i um ‘universo usando apemas duas propriedades, ambas originadas nel, signos mate- riais do estado de sua propria alma: 0 porto-de-exelamacao ¢ o ponto-de-inter- rogagio, Nada mais é necessfrioparaconstruirium mundo.” A hist6ria do gato Felix, ¢ essa citagio em particular, aponta, explicitamente, onde se encontra a matéria-prima da arte. Nessa esfera, a técnica nfo ousa tomar parte, até porque nao teria serventia alguma, Por isso, mesmo quando adequada- ‘mente manejada (e digo isso com o computador em mente), sea técnica nao esti- ver a servigo de um artista, jamais proporcionaré a satisfacio estética ¢ 0 gozo intelectual s6 possiveis quando se detecta a assinatura visual de um criador, com toda a carga de sua ideologia. Essa ¢ a grande diferenga entre uma imagem e uma obra de arte. © GE Mave Bion, pud Charles Soemon, The Hisoy of Animation, ci. ps M.

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