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Euclides da Cunha: Uma Odisseia nos Trépicos FREDERIC AMORY Assi ocorre que no mundo algumas pessoas giudam a manter os en circulando-s, eoutras tontars depois apage- cada uma delas tem algo com o gue se ocupar ir i eimenson, ad sumer bialpa error d gang cg adver Iitast sidan vid ad utrydia aptur fei sim orroribus Hof suo huerirtoeggiu nockud ad iia. Anni Mao sobge im manuscrito compilado por Jon Erlendsson, padee Peontamenteensinar-Ibe-i 2m agraciados ante pela Musa belies 2 Bie, x dens iografia intelectual (Euclides da Cunha Uma Odisseia nos Trépicos) pode ser chamado este livro que vem precncherde snodo inadiavel uma facuna na vasta bibliogra- Ga do grande eseritor brasileiro, justamente cem ‘anos apéis sua eragiea morte, Em meio a tants arrativas sobre a vida de Euclides, esta obra de Frederic Amory possui mahiplos méritos, mas principalmente o de apresentat os pantos altos ¢ Daixos de ume trajetoria humana das mais fasci- ‘nantes, com exemplar conhecimento de causa, rigorosa pesquisa e andlises minuciosas de seus textos mais relevantes. Tais andlises ilursinam sobremancira 0s temas recorrentes ¢ 28 técnicas de escritura de seus ensaios ¢ ainda nas ajudam a entender com maior elareza as correntes fi Tos6fieas que influenciaram © pensamento de Fuclides. Movendo-se entre apreciagoes eriticas mais gencralizames ¢ outtas do tipo close rea- ding, Amory mantém excelente equilibrio entre 05 epis6dios historicos da vida do biografado ¢ sua produgio ensaistica. Daqueles 0 leitor se de- parard com gracas surpresas que revelam dados da conturbada existeneia do eseritor brasileiro, © que foram ado 56 revisitados mas também reavaliados, Neste sentido, € bom ue 0 leitor se prepare para retomar temas como o da sexua- fidade do Jovem ¢ do maduro Euclides, de sua irascibilidade, de suas "fugas” de uma realidade familiar que se tornara insuportavel ¢ das con- tadigoes de suas ideias, Por outro lado, cansard prazer notar 6 destague que Amory ia geniali- dade de Euclides que, vivendo em condigdes tao precitias, construiu um império do saber. Fuclides da Cunha; Uma Odisseta nos Te6ph os identifica anda tragos estilisticos da escritura enelidiana que nus fazem ver o quanto obrilhante escritor fluminense sabia utilizar sua linguagern em favor da melhor expressio ¢ da clareza dos conceitos. Tendo pendor para a filologia, mente aberta para a historia das ideias, gosto apurado A Rosaura Escobar, que me introduc no mundo des eulidiancs, a Leopolde M. Bernucs (que me gion através dewe meno até este lore EUCLIDES DA CUNHA: UMA ODISSEIA NOS TROPICOS ” Frederic Amory Tradugao Geraldo Gerson de Souza Aeelie ditorial Copysigit © 2009 Federie Amory Diteitos reservados protegdos pela Let go de y de eerie de gt pi ‘daa reprodugio total ow paca em autriayo, por escrito da eitora Dos Internacionas de Catalgaso na Publics io (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Bras) Amory Frederic aides da Camb: Una Oise nes Trips! Frederic Amory teadugio Geraldo Gecson de Sours. Coin, SP: Atel Editorial, 2009, ISBN 978-85 7480-408 Bibiogaia Cunha, Buses da, 1866-1909 2. Esrtores brasiios ~ Biograia 1. Tia, 9.07009 cpp-928.499 Indices para catilogo sistema 1 Bncstaes baler vida cobra 928.699 Dissitos eer ‘Areuit Enirosta trad da Aldea de Carapicubs, 87 t709-300 ~ Granja Viana ~ Cots SP "Tle a) 62-986 smacliecombr/ateie@atelicombr Printed in Brac oi five o dept legal 7 Sumario heeekg Leer, Jarra /2o/o Apresentagio ~ Leopolde M. Bernueci © Preficio : 7 1.Cenas da Infincia : see et 2, Uma Espada Lancada ao Solo 3B 3. Ondas « cee a 4- Os Peimeiros Imerkidios Jornalisticos 6% 5.Os Dias de Exército e a Engenharia Civil 7 6.Na Estrada para Canudos . - 99 7-Canudos € 0 Fim da Guerra eee 8.A Ponte e o Livro cee ey 9. Or Sertes: Temas e Fontes 5 6s 10, Os Sertées: A Narrativa : 183 ,Mareando Passo... . + « . rr) 12, A Mais Longa Jornada. . - , 7 13, Contrasts ¢ Confrontos : : 2st 14, Pera versus Bolivia 5 sees 285 15, Os Ultimos Dias Boe 309 16. Duas Provagées a 17.0 Declinio. , ne 18.4 Margem da Historia wes 359 Observagies Finais 5 5 wer Carta do Rio Purus 395 Bibliografia.. . . 5 c 0 oe Apresentagao IMA DE SUAS CONFERENCIAS N’Os Herdis, 0 historiador britanico Thomas N Care dee oc conse gu ise eee on idades; em seguida, aprimorando essa definigio, ogra também redimensio~ nar o seu papel para « Histria da seguinte maneir (© poeta que s6 se pode sentar numa cadeira e eompor estincias, nunca fari uma estincia que valha muito, Ele nto poderia cantar 0 guerrero heroico, nfo ser que, pelo menos, fosse também um guerreizo heroico, Creio que ha nele o politico, o pensador, 0 leislador,o lés0~ fo;~ num ow noutro grau ele podia ter sido ist tudo, ele € isto tudo. [..] Petrarca e Bocaccio ‘exeoutaraim missbes diplomaticas e, 20 que parece, muito bem: € fil de erernisso, pois haviam feito coisas mais dfces do que esta! Essas palavrzs poderiam muito bem servir para entender a personalidade complexa de Euclides da Cunha. Ele que foi poet te politico e gedlogo, com espantosa demonstragao de conhecimento em todas essas engenheiro, jornalista, historiadoy, militan~ freas, chegou também, jé nos tltimos anos da vida, a aceitar missées diplomiticas, como participante ativo, seja como consultor e relator. Esses encargos lhe valeram, logios como chefe da Comissio Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus na Amazonia; ¢, em situagdo de arbitragem territorial, ainda sob a batuta do Bardo do Rio Branco, enderam-Ihe um livro sobre assunto semelhante (Peru versus Bolfvia). Se Carlyle estiver cometo, Euclides passou no teste, pois sentar-se numa cadeira ¢ somen= te compor estancias é algo que ele, definitivamente, nunca péde ou quis fazer. A sua “engenhariafatigante”, que detestou durante todos os anos em que teve de trabalhar nessa profisslo, paradoxalmente deve té-1o ajudado de alguma forma a ser notavel poligrafo que chegou a ser. Dificil seria imaginar um Euclides somente escritor sen tado varias horas no seu gabinete de trabalho, isolado do mundo. seo Contrariamente ao que ele pensava que Ihe pudesse favorecer ~ cancentragio ab- soluta nos estudos, dedicagao exchusiva a sua arte de escrever ~ as outeas atividades ligadas principalmente as ciéncias o colocaram ao rés-do-chio, como também foi 0 caso de seu infeliz convivio familia, € claro, Para seus Biogréfos que até hoje se con~ centram nessa visio do Euctides heréi, escritor famoso, mas maltratado e imolado pela vida, sesta um tinico conselho: nfo separem 0 grande homem de suas misérias, ‘mas enfoquem a grandioeidade do individuo. assim mais ou menos como procede o bibgrafo americano Frederic Amory, neste nhecimentos profundos sobre Histéria e historiografia, este apaixonado euclidianista axto que agora apresentamos, Dono de co- comesou a estudar a vida € a obra de Euclides no comego da década de 1960. Desses dos anos até 0 inicio deste, quando a morte infelizmente o levou, a sta dedicagio a0 autor d'Or Sertées foi sempre continua, embora entremeada de outras atividades lectuais que claramente atestam a refinamento de seu espirito:classivista, professor de literatura medieval inglesa, solar respeitadissimo de literatura nérdicas (Noruege € Islandia) e, nas horas vagas, amante da obra de Euclides. O seu afeto pelo Brasil, pela inte nossa cultura, nossa gente ¢ literztura ficou emblematica e delicadamente gravado ‘numa tinica frase de uma de suas varias ¢ ordenadas pastas que deixou nos seus arqui~ vos: “My Brazil”. Nada mais cazinhoso do que esse gesto de alguém que dedicou tantas noites a entender um dos nossos maiores escritores, E “entender” é a palavra correta, porque estudar Euclides e sua obra pede anos de estudos, humildade e paciéncig, coisas todas que ele possuia. Eucides da Cunha: Uma Odiveia nos Trépicos no & mais uma, nem qualquer bio- ‘grafs do nosso escritor, falecido ha cem anos. Trata-se de um estudo impar da vida € obra de Euclides como até agora nio tinhamos visto, Se as contribuigdes de ou- tuos bidgrafos, tais como Eloy Pontes, Francisco Sylvio Rabello, Olimpio de Sousa Andrade, Roberto Ventura, sio inegaveis, em ne~ ‘ancio Filho, Leandro Tocantins, nnhuma delas houve tanta preocupaio, por perte de seus autores, de, como nesta ago- 1a, confrontar as problemticasfontes de informagoes, de oferecer uma compreensio cabal do posicionamento filoséfico e politico de E 1 seu casamento conturbado e, sobretudo, de ler, como s6 ele pode fa mais herméticos do biografado, Essas qualidades da presente biografia nfo bastam clides, de reencenar 0s fatos ligados é-1o, 08 ensaios para dar conta do rigor, esmero e erudigdo com que Frederic Amory escreveu a vita de uum escritor maior. Sendo os fatos que entram nela invariavelmente seetivos,e sempre filtrados pela subjetividade do bidgrafo, esse novo estudo sobre a vida de Euclides deixar marcas fortes na imensa bibliografia euclidiana sempre tio prejudicada de mitologias, Na verdad, seu mérito maior se deve 20 trabalho de desmitificar, sempre respeitando-o evidentemente, 0 escritor. Penso que isso s6 foi possivel pelo esforgo do bidgrafo de manter-se & distancia do seu objeto de esraco. O ato de ser estrangeiro pode sem divida té-lo ajudado; codavia, conhecendo a mente aguda, profundamen- 1 Fi LEOPOLDO M. aERNUCCE Prefacio ENSO QUE OS LEITORES MAIS CETICOS DESTA BIOGRAFIA jé estario ten- P= imaginar 0 que ela poderé conter de novidade. A estes dou razaio. Como © bidgrafo é um norte-americano,a ousadia de escrever mais uma biografia de Euclides da Cunha € algo em que, certamente, eles estario pensando, Se eu civesse sme dirigindo agora aos letores de lingua inglesa, para os quas esta biografa foi origi- nalmente escrta, poderiam encontrar nela subsiios para uma compreensio cabal da ‘ida de um dos maisimportantes escrtores latino-americanos. Todavia,o resultado das sminhas pesquisas sobre a vida de Euclides se destina ao pblico de Kingua portuguesa, principalmente do Brasil, pais que amei durante toda a minha vide e que frequentei dlesde os anos do segundo pés-guerra, Deixando de lado o atrevimento do bidgrafo, devo dizer-Ihes que do modo como as coisas se apresentam neste momento, ndo existe uma biografia de Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha completa ¢ confidvel em uaisquer linguas. Evidentemente, os esforgos dos estudiosos brasileiro que estuds- rama vida do nosso biografado tém produzido os melhores resultados e, certamente, nenhum deles no mundo anglo-saxfo pode até hoje equipari-los. Foi pensando nesse “timo piblico que encarei o desafio de sanar essa falha nos nossos estudos de autores brasileios importantes do final do século x1x ¢ comego do xx, época em que, por razbes que desconhecemos, alta cultura brasileira foi premiada com grandes nomes nna literatura € na historiogrefia. O que € mais pesaroso ainda € que, com excecio de tum punhado de especialistas nos Estados Unidos, publico de fala inglesa desconhece até hoje os nomes de alguns desses ilustres intelecuais brasileiros. ‘Quem consultar 0s textos biogrificos esritos no Brasil a partir das vésperas da Segunda Guerra Mundial iri deparar-se com muitas cenas de encontros de Euclides com 0s amigos ~sobretudo em Sto José do Rio Pardo -, bem como com cenas fami- liares com os dois fhos mais velhos, mas ~fato notavel ~ dificilmente encontrar al- gum vislumbre daesposa, Ana Ribeiro, filha de um conhecido general. ssa anomalia ‘uma omissio ou virtual supressZo da mie de seus filos pelos interessados na vida de wes Buclides, tem sido tio comum que Adelino Brandio, um dos seus tiltimos bidgrafos, no sentiu compunglo em apresenti-ia aos enores braslsicas através de uma série de ficgdes psivologicas (em Aguas de Amargura’), Tal situasao, tao peculiar, de exclusio de Ana de Assis das olhates piblicos foi causada pela crenga generalizada de que foi ela, com seu romance com o eadete Di- lermando de Assis, a grande responsivel pelas mortes violentas da marido ¢, mais tarde, do flho favorito, Quidinho (Buelides Junior). No entanto, detxando de lado os motivos dos bidgrafos de Euclides, permanece o fato de que pouguiesima coisa sobre «la chegou até os pesquisadores de hoje. Portanto, por falta de informasio sobre Ana « sobre seu rumoroso affair com Dilermando, fomos levados a compulsae foates duvi~ dosas ou seja, os dois livros do amante, escritos anos depois pare defender-se perante 2 opinido publica, ¢ 0 volume de Brando citado acima com todas as suas feyies n0~ ‘velescas, Como jf observei em outro estudo, “[a]iguma perspicaz.feminista brasileira devers vir a investigar este casamento ¢ clarifcs-lo”, Por outdo lado, fama da linguagem literria de Os Sertes, mesmo para os leitores brasileiros,é um tanto negativa, o que de modo algum se justifica. © que os incomweda éavariedade e abstrusidade do vocabulirio do autor, especialmente o mimero elevado de palavras dificeis referentes as ciéncias naturais, como na primeira parte “A Tere” ‘Aliés, alguns leitares ongulham-se perversamente da quantidade de diciondrios que tém de compulsar para cettificar-se do sentido que o autor pretendia dar a esses set- ros. No entanto, essa preocupagdo com 0 “léxico mental” euclidiano é excessiva, Um gedlogo profissional, Glycon de Paiva Teixeira, pesquisou a terminologia ciemifica de Os Sertos, cortigindo-a ¢ elucidando-a, € chegou & conclusio de que “[...] a recons- tituigdo convence, mesmo ao mais apaixonado admirtdor do escritor, que sua culrara {lac Euctides} nio alcangava nem o espisito, nein o método da geologia...”. Mas, aeres- centa o gedlogo com muita razao, [n}fo é nesta cigncia, que reside a imortalidade de seu genio, Muitos gedlogos escreveram ¢ escreverdo piginas mais acertadas sobre a geologia da Bahia e nao serio lembrados pela posteridade™. E ele est inuito certo; 1s cientistas, none-amesicancs ou brasileros, geralmente nfo trataram Euclides com tanta generosidade, No seu conjumo, para mim 0 “léxico mental” de Euelides néo € muito maior do que 0 de seu amigo, o prolifico romancista Coelho Neto, ou mesmo do que daquele Ftcrateur, Raw Pornpe's, que moreen tragicamente ainda jovem. Nao disponho, po- 1. Adelino Brandi, Agus de Amarpur, Rio de Jair, 1990 2. Dublicao em Leopoldo Bernucsi (ong), ican Cigna, Contocdsia em Eualdes da Cano (Sto Paulo, Edusp 2008), 0b o titulo de “As Biograia de Bcider 3. CE este breve enstio de Glycon de Paiva Teixeira, “Geologia de Canudos em Ox Sete, Digeto Beonsmics, 24, pp Bh dee. de 195, “Ldem, pp 5-66 %6 %H PREDERIC AMORY rém, de estatisticas verbais comparativas sobre o aspecto quantitativo dos léxicos dos autores brasieiros no periodo clissico, do final do século x1x a0 comego do xx. De todo modo, sé € possivel fazer com sucesso aniliscs estilistcas sobre as bases Jexicais de escritores quando eles, como Rabelais’ ou James Joyce, se inebriaram coma riqueza de seus repert6rios de palavras, Decididamente, Euclides nio foi um desses escritores ¢ seus estilismos geralmente estio presos & sua sintaxe, Sua pritica literdria € a mais comum de estilo sintdtico, e, como saber todos aqueles que leram muitos de seus tex~ tos, as verdadeiras dfculdades com seu “falar dificil” nfo residem no “léxico mental” mas nas experiéncias sintéticas que tenta Até os dias atuais, apesar dos grandes movimentos linguisticos da América do Norte e da Franca, pouquissimos estudos foram feitos sobre os estilismos sintiticos de Euclides. Conhego em especial um estudo da lavra do brasileiro Modesto de Abreu, Ext e Personalidade de Euetides da Cunbat, que, com referencia 20 estilo sin vvai muito além da gramética da estrutura frasal e contenta-se em abordar algumas categorias semanticas de itens léxicos. Em rapidas palavras, a tendéncia estilfstica dos textos de Euclides, que tem inicio «em seus primeiros ensaios para jornal com o simples estilismo das frases com “fins -surpresa”, chega ao auge em Os Serties, com hibeis exibigées de frases epifiricas € anaféricasrepetitivas’. Nesse mesmo tom, evidentemente, também nos deparamos com elaborados “finais-surpresa” de frases, como na sentenga rauito elogiada que descreve a perseguigéo de um vaqueiso a uma boiada que estourou, e termina. com a palavra “o vaqueiro”. Mas as repetitivas construgées paratiticas, nao importa & extensia, nao apresentam qualquer problema sério para o leitor, porque se desenvolvem num tinico plano sintético, Tem-se apenas que continuar lendo. Contudo, quando Euclides preci- sou escrever, em 1997, a cansativa monografia sobre as divergéncias territoriais entre a Bolivia eo Peru, que o governo brasileiro tentava mediar,teve de recorter, para a esti~ lizasao de seu texto, aquilo que, na sua opinizo, era um estilo apropriado & chancelaria, € mudou do plano paratitico para o plano hipotitico de muitos niveis sintiticos do discurso, Infelizmente, a0 contritio de Rui Barbosa ou de Joaquim Nabuco, Euclides tinha potico controle sobre a “fases-monstro colocadas nessa monografa que, inevi- tavelmente,extraviava o leitor antes de chegar ao final. De vez em quando, as modifi- 5.CE meu artigo espcime, inspira nos textos de Leo Spitzer ede Erich Auerbach sobre ete autor, “Rabelis"Hurvicane Word-formations and ‘Chaotic Enumeration Lens and Syntax”, Etudes rabii~ enn 9p 81-7298, 6. Rio de Janeiro, 1953. CE, além dese, estado mais recente de Neveu Corréa,*A Tapesatia Lingus ica de'Os Sexe, A Taperaria Linguistica de Or Setere Ouers Estuds, Sa Paulo 1978, ppt 2. Modesto de Abreu chama-as "Repetto ¢ Paisindeto", Estilo Penonalidade... pp. 189-190 8. CE Obra Completa, ed. Afranio Coutinho era. (Rio de Janeiro, 1956), wl. ng 179:“Estouo da Boiads” BUCLIDES DA cUNHA: UDA ODISSELA NOS TROFICOS H° 17 cages sintiticas que relativizam os sujeitos de suas frases sobrecarregam-nas com uma mirfade de frases subordinadas que as expandem em miltiplos sominais, de modo que ‘0 maximo que ele pode fazer € pontuar o pesado actimulo de palavras com um trago antes de conseguir lidar com os verbos e objetos da frase seguinte ~ geralmente a ser carregada também de muitos modificadores. Tenho certeza de que suas pesadas cons- trusdes hipotiticas marcaram-no entre scus colegas escritores como um estilista (em termos clissicos) “asidtico”. Assim, na virada do século xx no Brasil, Joaquim Nabuco, angou a famosa objesao de que Eucldes escrevie “com cip6”. Ndo obstante,porém, ‘ua desequilibrada hipotaxe foi preservada em seu repert6rio estilistico tanto quanto os “finais-surpresa” de suas frases. Um culto admirador, Leandro Tocantins, achou justo, entretanto, elogiaro estilo de Peru versus Batvia por seus “periodos impeciveis”. Nio estariam fora de propésito uma ox duas palavras sobre os principais temas dos textos do Euclides maduro, Como ainde na juventude aprendeu com Benjamin Cons- tant e outros mestres de mesmo ponto de vista o programa do positivismo, admite-se comumente no Brasil que Euclides foi toda a vida um positivista, com base no dito popular de que uma vez positivist sempre serd positivista. Na histéria do positivismo tanto na Europa quanto no Brasil, porém, essa fidelidade ao programa foi rompida constantemente pelos préprias pasitivistas. Na verdade, nfo ha provas, a0 longo de toda a vida de Euclides, de que ele tenha adotado; pelo contrétio, ha provas um tanto diretas de que tenha sido adverso a essa doutrina, Como ele mesmo escreveu 20 sliplomata Oliveira Lima em 5 de maio de 1909, principio, quando estudante, chegara aadmirar Auguste Comte por sua “matematica” (isto é,a geometria analitica), mas,em ‘outros aspectos, 0 fundador do movimento o aborrecia, e, a partir de 1892, comecara a distanciar-se da *minoridade” religiosa da seita brasileira!®. Pouco menos de seis meses depois, ao fazer a resenha de O Brasi? Mental, do portugués José Pereira Sam~ palo, renunciou enfaticamente @ qualquer lealdade ao positivismo brasileiro em favor do evolucionismo spenceriano™, A conversio sua e de outros homens a contribuigio Como em Eudes da Canta eo Paras Peri, , cd, Rio de Jancire 197 p 222 Seo leitorqui- ser somparar com ese imerecida clogio os longs periods inicias da monografa, eles esto citados no capitulo 14 abaiso (p28) 10, Carta a Oliveira Lima em Obra Completa, vol 1, 9.706. A matemitia de Comte nio era tio sprecada na Franga como no Brasil fa grande biograia de Comte excita por Mary Pickering ol. 1, publicado até agora (Cambridge, Eng, 1993), p.$85:"Ainda asim, [Paul Tannery] teve de admitir que ‘Comte nio etava to hem informado sabre os novos desenvalvimentos nas cincia» matematicsefsias ‘Consequentemente, mesmo os cientistes da épaca de Comte nio 0 levaram muito a xi". Sobre ofito Ge Eucldes ter evitado a minora religiosa dos postivsus braileros, ef. também “Din « Dis", Obra Completa vol 1p 58: pertencemos & minors ilastre dos que com ums abnegagio notve, vue todas a preceitos do nove dogma...” LCE Obra Completa, ol 1,pp 408-goq,na paste 11 da senha: “Basta a afirmativaincontestivel de ‘que, em nossas indagages centificas, preponderam, exclusives em toda a linha, o monismo germanico € ‘© evousionisma inglés. 18 Hh yREDERIC AmoRY BSIBS RSE z CRT WUE ES ERE EER TT or se saore ae ee 3+ Spencer ao darwinismo social foi reconhecida publicamente em 189: pelo poeta e ado Luis Murat, que decretou set Spencer “incontestavelmente o pai espiritual 3e zados nés"™, Esse abandono paradigmatico de Comte em favor de Spencer tinha ESversas razdes,mas a principal delas foi que Comte, mesmo que se possa consider 320 fundador da Sociologia, ainda assim nao tinha qualquer uso para as novas teorias ‘lug tais como foram introduzidas por Darwin, Alfred Wallace e Spencer; seu senor € que elas apenas fossem desarranjar “a permanéncia das espécies Essa virada de Euclides para as ideias evolucionistas inglesas, afastando-se de Comte ¢ do pottvismo francs, pode parecer um movimento Iigico, mas debxou sizumas consequéncias bastante indesejaveis, ou seja, 0 racismo inerente ao darwinis~ social, que na realidade nao aparece no sistema positivista de Comte. Por diversas vezes, nos ensaios posteriores de Euclides e em sua grande obra, suas discussdes sobre 2 sociedade © o avango ou regressio social slo tingidas ora com matizes mais leves, ora com matizes mais escuros de racismo", Esse “defeito” tem sido sugerido por alguns ranto na teorizagio social inglesa quanto no préprio carter de Euclides, mas apesar isso nao se deve concluir que seja ele um rematado racista. Vejamos melhor a questio, Na segio “O Homem’ de Os Sertées, sob o titulo de “Um Paréntese Irritante”, o autor se permite saborear um exemplo impertinente de um racist vulgar com relago as risturas de negeos e brancos nas regiées litoraneas:“...] @ mestigo [..] é menos que ‘um intermediitio, é um decaido, sem a enexgia fisica dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores”". Essa declaragdo ¢ daquelas que se podem ouvir facilmente nas zonas urbanas do litoral do Beasil,c nao se precisa de né sahuma fonte literéria europeia do século x1x para corrobor como se tivessem safdo da boca de Euclides, Guilhermino César sugeriu que talvez o falante nesse contexto, que se considerava um tanto fantasi isto de cel ta, de tapuia e grego”, estivesse em parte caracterizando a si préprio como 0 mestigo la. Tomando as 9 ilegitimo'®, Existe, porém, uma explicacdo mais ampla, que nao desculpa a erueza da citagao acima. 12.Apud Wilson Martins, Hiutiria da ntligéciaBroiirs, Sto Paso, 978 0 4.403 18. Como afrma Leszek Kolakowski, the Alienation f Reson: A History of Pasticst Taught, ta N.Guterman, Anchor Books, Garden ity. ¥¥, 1969, p59; do mesmo modo, Pickering, Auguate Cont, vol. 1,596 14. Observemse em especial of ensaio sobre os odisdlos peruanos em "Confito Inviive,” Obra Comet, vols pp.5-159, "Contrasts e Confienta,” pp. ssh e"Os Cauchetos pp. 235-2550 con ‘asio do enstio sobre oclima, Um Clima Calunizd"p.as3, A Sego "Um Paréneses eitante"na parte “0 Hoomen? de Or Sertes, Ova Completa, vo, pp. 6-168, tem um matin racist anda mai explicit. 1. Obra Completa wo. 119167 14. Guilhermino Césaz,“A Visao Prospectiva de Bucldes da Cunhoem Easier da Camba, confexéa- «ia pronunciad na Faculdade de Plosofa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (966),pp.36-37 (com refeéncin atodescrgio potica de Euclides em Obra Completa vol 15.656) EUCLIDES DA CUNHA: UMA ODISSEIA Nos TRPICOS #19 Se, coma deve-se fiver, comparatmos as ideias de Euclides sobre as chamadas “ub-ragas" brasileira com as qualficagbes europeias contemporineas de nacionalida- e, teremos uma visio bastante difeeate de seu pretenso racismo, A questfo com que se deparava Euclides era a seguinte: se a unidade de raga foi estabelecida na Europa “civlizada” pela singularidade de uma Ginica raga osiginl (de preferénc a ariana),ou entio por alguma caracteristica equivalente como infegridade de sangue, como podem assim sociedades multirraiais, como a do Brasil aleangar uma unidade ea nacionali- dade que a ranscenude? Essa 6 uma daquelas questes que, como dizem os franceses, so mal colocadas. Entretanto eja qual for a questio, devemos admitie com Euclides que os brasilciros “no tém unidade de rape fe] talvex nunca a terfo” de fato, a0 menos 20 longo do litoral brasileiro; porque, nio sendo assim, teriamos que fazer como ele faz, ou se, clevar uma rasa mestiga no interior do pats 3 preeminénci racial e ansiar que na raga mais antiga do sertio exteja 0 nicleo do Brasil como nago™. Dai sua lovficagio da mistura entre o indio €o portugués (0 mameluca) ea cotrespondente rejeisio daguela entre o negro ¢ 0 portugués (0 mulato), Mas essas respostas unilate- rais nunca bastariam para alguns de seus colegas; com efeito, logo que Os Serfes foi publicado, um critico apressou-se a apontar 2 ambivaléncia do autor na questo da raga entre a pretensa falta de unidade racial dos brasileios e “a rocha viva da nossa raga’ nos sertbes, aquela mesma rocha que os soldados republicanos em Canudos te- iam explodido com cargas de dinamite se pudessem'*. Até onde se sabe,o nico eseritor europeu racista que Euclides seguiu abertamente foi o austriaco Ludwig Gumplowica,cuja obra Rasenkamp foi traduzida para o fran- 8s € lida pelo nosso biografado”, ¢ que desenvolveu a tese no muito nova de que a Ita racial entre 0s forts 0s fracos era a fora morriz da histéria mundial Por alguma. ratio, Euclides, como confessou a Coelho Neto™, agradou-se desse “Gumplowicz terrivelmente sorumbstico” que satisfez profundamente seu pessimism sobre o futuro ddo Brasil. Ne parce “O Home de Or Sertés, onde Euctides apresenta Gumplowice 20 leitor na segdo “Uma Raga Forte’ ele mostra também como um elemento étnico vigoroso pode destruir um mais fraco como o mestgo, nfo apenas pela forsa bruta, » como a comunidacde mestiga de Canudos foi destruida, mas sim, de modo mais efcaz, pelo influxo pacifico de uma civilizas superior que pode suprimi-lo”. Numa era de imigragio multitudiniria e de importagio de equipamento tecnoligico e produtos de luxo da Inglaterra e de outros paises da Europa, Euclides, como Graga Aranha, 1 Repito aqui parte de meu artigo "Historical Source and Biographical Context Arserian Sais, 3, pp. 083-684, 1996 ‘8, Obra Complete, v0.14, 9-479 19-0 liv de Gumplowice fos publicado er x waduaid pars o francs por C. Base em 1893 20. les Compe, wp. 648 2. Hem, 988 ermal of Latin 20 Hh PREDeRIC aMORY preocupava-se com a integridade nacional do pats, Provacade pelo crescimento do comércio internacional ¢ pelis ondas de imigrantes vindos da Europa, que desagra daram a seu nativismo”, cle sutilizou a erua teoria da forga nua de Gumplowiez de modo a realgar a ameaga maior, na sua opiniio, da miscigenagio dos imigrantes com >. is INEUISES da civlizagio europeia ao Brasil, ou em busca de. matérias-primas ou para a construgio de ferrovias. Depois que Os Sertés foi dado a pablo, Buclides sbandonou a tediosa profist0 de engemheito civil, bem como as esperanas de algum dia juntar-se ao corpo docente dda nova Escola Politécnica de Sao Paulo, cujo dretor ele haviainsuizdo impruden-<* temente com as duras crticas que fer a seu programa cientifico, Depois deste timo revés, aproximou-se do Ministério do Exterior, entio chefiado pelo Bario do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos, que procurava um homer dedicado para dirigic ‘uma comissio mista de brasileios e peruanos com o objetivo de explorar as cabeceiras do rio Purus em territério peruano e estabelecer o tragado final da fronteira entre 0 Peru e 0 Brasil desde a nascente desse afluente do Amazonas, Felizmente, Buclides saiu-se muito bem aa entrevista com © Bario em Petrépolis, embora tenhha sido este quem mais falou, e 0 timido candidato ganhou o posto em razio, em grande parte, dos méritos de seus ensaios. No entanco, Buclides nfo era um homes talhado para suportar os attasos da che- sda do equipamento da comissio em Manaus e 0s rigores de uma viagem pelo rio e, durante o ano que pastou nessa exploragio, perdeu a saide tanto fisica quanto men- ral, Além disso, tinha pouquissimno conhecimento de navegagio a barco pelo Purus «quando o rio estava na estagio morta, ¢ assim sofreu alguns graves percalgos. Em sua maioria, os peruanos conheciaet meihor que ele o rio ¢ sabiam manejar muito bem seu barco ¢ eanoas, Ainda assim, foi ele © sua reduzida tripulagao que, no final, chegaram primeizo ao trecho superior do Purus. Viram entio que, por mio existir qualquer rio peruano que despejasse suas dguas no Purus,este podia ser reclamado totalmente pelo Brasil, de acordo com lei internacional da virada do século xx. Suas palavras de triunfo neste feito merecem mengio: (Os nossos olhos deslumbrados abrangiam, de um lance tts dos maiores vales da Tears © naquela dilatasio maravithosa dos horizontes,bunkados no fulgor de uma tarde incomparivel, © gue eu principaimente distingu, irompendo de tés quadrants dilatados € trancando-os inteiramente ao su, a0 nore a leste~ foi a imagem arrebatadora da nossa Pitia que nunca imagine! tao grande”. 22, CE. atig "Nativiens Proviso", Ora Completa vl. 1, Pp. 87-90. 18 Oirs Compla vl. s08, Deve-scorrigi a palaves"wanscand’ do texto orginal paratrancan- oT, como aparece na segunda edi du Obra Completa (993), 0-195 EUCLIMES DA CUNWA: UMA ODISSEIA Nos TROPICOS 3 2 A siibita ampliagao da imagem de seu pats nas cabeceiras do Parus na Peru tema- tou usm caso de amor desesperado com a Natureza tropical do Brasil, pela qual, como declaeou, estava ‘perdidamente apaixonado”, e sobre a qual, en seu cérebro doentio, pairava o fantasma equivoco de sua falecida mie na forma da “culher de branco” que, na rdua viagem rio acima, havia povoado suas noites com tristeza, medo ¢ desejo. Nio exagero dizer que o estreito ambiente rural de sua infincia solitiria passada perto do angico da Fazenda Sto Joaguitn, de onde fazia arengas 20 gado, alargou-se como ondas nurs lago para finalmente engolfar no abrago de sua paixao todo o Brasil do Centro, do Nordeste e do Norte. E como acabou enlanguescendo no Rio moder: nizado, depois de ficar isolado dos “desertos” da Natureza brasileira! Mas a visio que teve do Brasil estando em territério peruano foi o climax de suas experiéncias no rio Purus,e dessas alturas tudo comesou aie rio abaixo por esse Leto tortuoso, com uma pansa de curta estada em Manaus, ¢ depois para casa, de barco a vapor até o Rio, que vivia nas vascas dat modernidade. Pensara em escrever um livro sobre o Amazonas e seu afluente meridional, o Purus, 20 qual daria o titulo de Paratse Perdida,além de outros projetos literirios, mas nada realizou desses planos, salvo al- {guns magaificos artigos sobre os rios Amazonas e Purus. De volta 20 Rio de Janeiso, tomara-se 0 ajudante indispensivel do Baro do Rio Branco, que em seguida encar- regou Euclides da elaboragio de mapas da Bacia Amazénica e de diversas regides por onde penetravain os bolivianos eos peruanos; pedira-The também que escsevesse aseca monografia Peru versus Bolfvia,na qual o autor procurava decidir historicamente uma disputa extraterritorial entre 0s vizinhos do oeste do Brasil em favor da Bolivia. (Seus argumentos foram ignorados pela comissio de sebitramento argentina, que atribuiu & ceada uma das nagdes a metade do territ6tio em litigio.) Assim, suas obrigagdes oficiais com os mapas ¢ a monografia afistaram salvo de alguns ensaios ocasionais. Emre 0 Barto e sua esposa infel, naturalmente pre- feria a companhia do primeiro e de seus amigos leais no Rio, “Nao cuidam de mim’, queixava-se ele de sua vida doméstica desordenada pela familia. restante da historia seré contada ua presente biografia. Aqui eu quis apenas Buclides da Cunha que encontramos; porque até agora he a atengo de seus escritos mais pessoais, resumir num s6 08 muitos apresentei ao leitor 0 Euclides engenhieiro civil e pretenso gedlogo, o Euclidesestilista de Kunsiprosa, 0 Buclides positivista na juventude ¢ evolucionista na vida madura, 0 Euclides repérter de jornal e historiador da Guerra de Canudos, e o Euclides explo rador do rio Purus. Sao essas as personae que a maioria dos leitores melhor conhecem. ‘Mesma assim, existe ainda outro que niio ¢ tio aparente, Refiro-me a esse Euclides autor de intimeros ensaios republicados em seu segundo livre, Contrasts ¢ Confrontes, 24. Em conversa com Coelho Neto como este confirnou em Lier de Prt, Sto Paslo 18, p24. a2 9 PREDERIC AMORY ‘em particular aquele sobre o Kaiser Guilherme 11 e as colénias alemas do Sul do Bra- _SE*; outro também sobve a “missio” imperial da Ruissia ao extremo Leste do pais"; finalmente, um outro sobre a expedisio semimilitar britanica ao Tibete™”. Em cada um desses textos, escritor deve ter tido uma grande fortaleza mental para enfrentar a pouca familiaridade com um dado assunto estrangeiro ou um personagem hist6rico, tnunca vacilando ém seu papel jornalistico de comentarista internacional ~ outra perc aa sua, No que se refere aos Estados Unidos, em disso, suas observagdes een Contras ‘es ¢ Confronto#® sobre a América do Norte no inicio do séeulo xx e sobre Theodore Roosevelt a nés parecem perfeitamente racionais, embora talvez no compartilhemos de sua admiragao por Teddy Roosevelt, que, nas palavras desse mesmo presidente, “hits te line bard’ como um “verdadeira” americano. Quio impossivel &, entio, que um hhomem tio multifirio quanto Buclides pudesse aigum dia terse encetrado na “visio do litoral”, como chamou o brazilianist Robert Levine™ a estreita perspectiva das po- ppulagGes comuns do litoral, os carioeas, que conheciam apenas as praias arenosas do Brasil e a velba cidade praiana do Rio de Janciro, hora de relembrar com gratidio dos nomes daqueles, vivos ou mortos, que me ajudaram nas pesquisas feitas no Brasil sobre a vida ¢ a obra de Euclides, a partir da ddécada de 1970. Entre os vivos devo citar Rosaura Escobar, « filha mais nova de Fran- cisco Escobar, que me introduziu no mundo dos euclidianos € me presenteou com viirios livros valiosos e documentos pessonts refativos a seu pai e a0 proprio Euclides, José Bicalho Tostes, que foi casado com uma neta de Euclides; na geragio mais nova, os professores José Carlos Barteto de Santana, que se especializou na formacio ‘entifica de Euclides, e Leopoldo M, Bernucci editor de wen texto cotaleence ano tado de Os Serties. Dos que ja se foram, o principal ¢ Olimpio de Sousa Andrade, autor de uma das melhores biografias de Euclides, que conta a vida do autor até a publicapao da pri- meira edigio de Os Serts, biografia que a morte de seu autor deixou inacabada; 0 professor César Guithermino, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, um 25. Ona Completa vol spp. 0-3 © 14-8 2 Idem, pp 14-14. 1 Ide, pp. sagt, 28, Ide, pp. 169 _guias observagies morlazes sobre a opin 10 Ideal American’ cf. pp 66-169, "Selidariedade Sul-Americana’, com al~ dos norte-amercanos a tepeito das “ser repli” da Anica Latins, 29. Acapresio vem da spuinte frase de Roosevelt "In doing your workin the great world its ste plan 10 fillowa rule Ponce bean? on the Fas Feld: Donk isch, dat il ie ine Bar” A frase Signiicao esiritoinexoravelmenteperseverane epostvamente combativo do americana, s0.Em Fale of Pars ea. ee RUCLIDES DA CONHA: UMA ODISSEIA Nos TROPICOS #25 hhomem de letras no sentido mais amplo da palavra; o dr. Oswaldo Galott, natural de Sio José do Rio Pardo e um renomado euclidiano; Adelino Brandio, advogado e autor de iniimeros artigos ¢ vitios livros sobre Euclides; e, mais recentemente, 0 professor Roberto Ventura, da Universidade de So Paulo, morto lamentavelmente tio jovem postumamente por amigos deixando inacabada uma biografia de Euclides, publica brasileiros do autor Conchuindo, quero agradecer & minha querida esposa sora do Departamento de Alemao da University of C: durante os cinco anos (2001-2006) em que escrevi a maior parte desta biografia e ain- da me recuperando de grave doenca; ela e nosso amigo, Leopoldo Bernueci, fizeram tudo o que podiam, milhares de pequenas tarefas, para tornar mais ficeis a escrita e as referéncias fora da biografia. Agradecimentos especiais devo igualmente a Jordina Elaine C. Tennant, profes fornia, Berkeley, seu apoio Guitart, especialista em linguas romanicas tradutora na ONU, por ter sedigitado e formatado o manuserito de meu ivro; por fim, estou endividado a Geraldo Gerson de Souza pela bela e exata traduo que fer do meu texto. 24% PuuDERIC AstonY Toe me HEF OERA a PRE 2 UCLIDES RODRIGUES PIMENTA DA CUNHA, autor de um dos maiores l= E- jamais escritos nas Américas mas,‘ronicamente, pouco apreciado fora do Brasil, nasceu em 20 de janeiro de 1866, a fazenda dos avs, chamada Saudade, em Santa Rita do RIS Negro distrito do municipio de Cantagalo, no nor- deste do Estado ~ entio provincia ~ do Rio de Janciro, O local de seu nascimento era uum povoado do vale do Baixo Paraiba, banhado pelo rio de mesmo nome que corre na diregio leste por todo o interior do Estado. Segundo nos informa Aires do Casal no inicio do século x1x7, alguns lugares do municipio de Cantagalo, na data em que foi algado a municipio (18:4), ainda eram habitados por remanescentes dos indios coroados, depois desta data ‘poucos em mimero, pusilinimes, ¢ aliados com [seus] conquistadores”, ou seja, os descendentes dos mineiros vindos do porto do Rio, em busca de ouro em Cantagalo, nos meados do século xvi. Em estado selvagem, os indios da localidade, os coroados ¢ seus inimigos naturais, os agressivos putis, inicial- mente haviam oposto feror resistencia &tentativa de colonizagao dos homens brancos, 1.A aceitagio de Os Serés pelos Ieitoresestangeiros fi pequena antes e depois da onda detadusoes dese livro no final da Segunda Guerra Mundial. Vents, por explo, os raros estos de norte-ame~ ‘Montero Fanos ingles, tchecosealemes sabre olvo sew autor, que vém relacionados em Reis, Biblograi de Eade dt Cana Rio de Jao, 171, sob os mimes 118, 184, 186-189, a7s8: Um recente ebutoprestado a Os Svs no exterior, as a publiago de ua tadusio em espanol es € romance do ecritor peruano Mario Vargas Ll La Gun dal Fin del Mundo (Barina, 198i ua versio feconaizada de seu tema a "guerra ntte.a governo repubicano do Brasil eum der religion, Antonio Conselhio,e seus segsidores nos sertes da Bahia, Sobre a intertextalidade de Os Serie La Guera cf Leopoldo M. Berauzi, iors de a Malestendide (un Extudia Ttetualde La m | Mund de Marigot) New York, eter Lang 2980. R Marner Wascrman, “Maro Vargas Llosa, Eulies da Cunha andthe Strstegy of Inereataliy", Pu, 083), pp bona, May, 1993, Ane sgor, oa tao espanhola de Or Screéaraquela que aleangou maior eeptviiade. CE.a {udiciosa conelusio do eniio de Gilbert Fee, "Eocides ds Cana, Revelaor da Reldade Brailes, ‘Gh IPE co inuodugio de Obra Completa de Bucldes d5 Cink, eA. Cutis wo. 1p. 2, Manuel Aires do Casal, C sa Brac (St, reimpe Sao Paul, 1945) ol Msp 4. ies 08 cariocas, como eram chamados na lingua tupi, No entanto, os colonos brancos acabaram por conquistar 0s voroados e, em alianga com estes, venceram os puis; dai por diante, nio foram mais perturbados em seu trabalho de batear ouro e escavar, por ‘meio século, os mortos de Cantagalo a procura do precioso met 6 veios auriferos até que exauriram a terra, onde, no comeso do século 1x, vivia na saquearam todos ‘miséria uma popullasao mista de indios, mamelucos, brasiliros portugueses € escravos negros. Na segunda década desse século, porém, a terra cabriu-se de cafezais, eo café, cuja produgio tripticou no Vale do Parafba da década de 1830 & de 1860°, tomou os antigos assentamentos mineiros do interior da provincia do Rio muito mais ricos do que tinham conseguide com 0 ouo. Euclides da Cunba nasceu e foi criado numa época de grande prosperidade para sua familia; no entanto, teve a inflincia seriamente perturbada por tragédias familia- res. A mie, Eudé ‘una, filha de pequeno cafcicultor de Cantagalo, ‘morreu ainda jovem de tuberculose, deixando o filho Euclides com trés anos de idade a filha Adélia com apenas doze meses. As duas criangas foram entregues aos cuida- dos da tia materna, Resinda de Gouveia, que as levou para avila serrana de Teres6 ia Moreira da polis, um belo lugar ao sul de Cantagalo; no entanto, Dona Rosinda também veio « falecer menos de um ano depois e, desse modo, em 187, a outra irma Moreira, Laura Garcez, assumiu os cuidados dos dois érfios ao lado de seus dois filhos (um destes adotado), na grande Fazenda Sio Joaquim em Sio Fidelis vila situada um pouco acima e a leste de Cantagalo, A morte da mie perturbou para sempre as lembrangas ‘que Euctides guardava dela. Ja no funeral, para espanto das pessoas mais velhas da familia, chorou copiosamente junto ao caixio: vva que iriam levi-la para ser enterrada viva‘, Mais tarde, por volta de seus trinta anos de vida, uma pés-imagem da mae como a “dama de branco” influenciowthe a visio. Seu distirbio psiquico, mesmo quando niio estava “ m sua dor e insompreensio, imagina- sndo coisas,” tornou-o um ho- ‘mem excepcionalmente supersticioso, ainda mais s¢ levarmos em conta que gostavt de ser considerado, profissionalmente, um homem de ciéncia, 0 que na verdade era, se nio por atureza, pelo menos por ser formado em engenharia e ter ecebido uma boa educagdo geral. Amigos e conhecidos proximos dignos de confianga dizem que Euclides tinha medo de fantasmas, principalmente da fantasmagerica figura materna que Ihe apareceu num meio-dia, quando ia para o trabalho em Sio José do Rio Pardo (Sto Paulo), onde reconstruia uma ponte, ¢ outra vez em Manaus, em seu retorno da 3. Alguns dados sobre a produto sparecem em Syhsio Rabello, Fue da Cunha 2.ed, Rio de Jane 11966, p10, Tadavia, com a exaustio do slo, produgioeafeira da vale do Paracas verticalmente 1a década de 180; cf Emilia Vor da Cost, Da Sozal 2 Colona, Sao Pl, 1966, p22, 4 Historie latads em Eloy Pontes, Vida Dramatic de Eudes da Conha, Rio de Janeiro, 938, ps 26% FREDERIC AMORY Budéia Morera da Cunha, mae de Buches da Cunha. nucLIDES DA CUNWA: UMA ODISSEIA Nos TROPICOS ¥¢ 27 expedisio de reconhecimento 20 alto Amazonas’. Além desses sintomas neuréticos de-um trauma de iafincia, desenvolveu na escola militar uma moléstia pulmonar com complicagbes tuberculosas, que o deixou virias vezes acamado no periodo de 1887 4 "899, mas que nao The foi fatal, como fora no caso da mae. te", dizia um colega nos meados da década de 1890, “alvez wm ‘doente imaginsrio’ mas de fato doente™ pai de Euctides, Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha, que sobreviveu & esposa © 20 filho,¢ origindrio de familia luso-brasileira de comerciantes de escravos de Salva~ ddox, Bahia. O avd paterno da familia Cunha, o velho Manuel Rodrigues, era um por- Sle eca um homem doen- ‘tugués dono de um navio negreiro, o “Pestana”, que na primeira metade do século x1x realizou feequentes ¢ infimes viagens entre as costas da Africa Ocidental ¢ os portos de Salvador ¢ Rio de Janciro, Sua esposa, Tera Maria de Je baiana com quem, dziam,o neto Buclide® se parecia no fisio e no temperamento. Esse easal luso-brasileiro tinha uma boa situagao financeira,o suficiente para realizar constantes viagens de lazer a Portugal, até que, numa dessas jornadas 20 pais natal, ‘maride morreu inesperadamente. Dona Teresa logo contrait novas nipeias —com um baiano, Joaquim Pereira Barreto ~ mas os dois filhos mais velhos do primeiro casa~ mento, Manuel e Antonio, nao se entenderam muito bem com o padrasto e acaberam era uma fazendeisa deixando a casa, por volta de 1660, para tentar a sorte na entio florescente provincia do Rio de Janeiro. O comércio de escravos com a Africa Ocidental fora abolido a partic de 1850 por proibigdo da Inglaterra, secundada por leis brasleias, mas isso no interrompeu o planitio Ge café na provificia do Rio, realizado agora por excravos que antes eram empregados nas minas de ouro de Cantagalo, Manuel empregou-se como guarda-livtos e perito contador da nova riqueza agricola no vale do baixo Paraiba, enquanto o irmao Antoni dade financeira da Corte, tal como o Rio era conhecido na época. Nas suas andangas dle fzenda em fazenda na regido cafeicultora de Cantagalo, como auditor financeiro, Manuel acabou encontrando a filha de Joaquim Alves Moreira, Dona Eud6xia, com quem veio a casar-se. No dote que a jovern trouxera pare o casamento vinha incluida {oi trabalhar como amanuense numa empresa da comuni~ ‘uma pequena fazenda em Santa Rita do Rio Negro. Sem divida, o jovem guarda «Sobre sua grande supestigio co suds da funa,"A Faria de Euclydes:Testemunbos", Dom Garmarr, 105.1, sai de 194, € Olimpio de Sousa Andeade, Hissr eIntopretag de “Os Sorta’, 2, $30 Paul, 1966, pp. 25-224 6 Disse-o Teodoro Surapai em x99, rtm dscursoproferido no Testisuto Geogrifico ¢ Histrica da Bahis,"A Memoria de Buslides da Canta no Decimo Aniversisio de ua Morte, Reva do Institute Gengraphio « Hise da Baba, n. 4,108 9.254, Sobre a constant hemoptine de Euckides, cf. Sousa Andrade opt, p77, Dilermazdo de Asis, Traétia da Piadae, Rio de Janie, 19$2 99.1521 ecarta indita da espose de Eucides, Ana Ribeiro da Cunha (4 de fevereiro de 99, cleo Familia Escobar) “Euclyes tem estido bem docat, teve uma congestio pulmonar pond mito singe pela boca, Durante noite elle passa bem, forém fica muito nervoso" 28 PREDERIC AMORY Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha, pat de Eucides da Cunha, EUCLIDES DA CUNHA: UMA ODISSEIA Nos TROPICOS 4 29, -livros baiano nao tinha intengio de ficar para sempre contando o dinheiro dos outros a, que dispersou sua familia, alterou qualquer intuito que pudesse ter tido de tornar-se, como 0 sogro, um cafeicul- tor em Santa Rita. Durante a doenga final de Dona Eudéxia, quando ela ja no podia ppermanecer em casa ¢ 0 casal ¢ os filhos tinham de ficar com as irmas dela, Manuel no vale do baixo Paraiba, mas a morte prematura da espé vendeu a fazenda de Santa Rita’. Seu relacionamento com os filhos apés a morte da esposa tornou-se cada vez. mais esporidico, E verdade que sempre manteve contato com eles enguanto se mudavam de uma tia materna para a outra, mas, segundo parece, nunca viveram sob 0 mesmo teto enquanto os filhos eram menores. Em Sio Fidélis, Dona Laura ¢ 0 marido, coro- nel Magalhaes Garcez, administraram uma grande fazenda, onde Euclides e sua iema foram criados 20 lado dos primos, No verio,a familia se mudava para a casa da cidade, onde o coronel, que chefiava uma facyio local do abolicionista Partido Liberal, fazia fanuel, que prestava servigos de guarda-livros para trés firmas seus contatos politicos da cidade, limitava-se a vistar os filhos na residéncia dos Garcez. Quando, em 1874, Eulides iniciou os estudos priméios com os dois primos em Sio Fidélis, é possivel que © pai tena visto com mais frequéncia, mas trés anos depois a familia Cunha voltou a dispersar-se. Manuel, convencido pelo isméo, assumiu um cargo lucrativo rum banco da Corte; Euclides, por desejo da avé parerna, foi mandado a Salvador por arn ano (177-1878) para estudar€ Adeliapermanecee com dona Laura em Sio Joa- a desse ino o poem ora perdido, escrito por Euclides com o signiticativo titulo de “O Orfto™ Em 18/8 ou 1879, Buclides acompanhou o pai a cidade do Rio de Janeiro para frequentar outras escolas e, como sempre, ficou alojado com parentes, dessa vez.com o tio paterno Ant6nio e sua esposa Carolina da Cunha, Somente depois ‘que Manuel conseguiu poupar com seu trabalho no banco e na contadoria dinheiro suficiente para comprar, por volta de 1890, uma fazenda de café, Tsindade, em Belém do Descalvado, a cerca de duzentos quilometros ao norte da capital de Sio Paulo, é que ele sua familia tiveram um lar proprio. Satisfeita sua ambigao na vida, Manuel passou o resto dos dias curtindo sua viuvez em Trindade, As constantes remogées do jovem Euclides de lar adotivo para lar adotivo ¢ de ‘escola para escola na provinciana Rio de Janeiro e em Salvador (Bahia) estabeleceu 0 padrio do chamado “nomadismo” de sua vida profissional 1m contraste com a cstabilidade da vida do pai. Apos mais de um ano de viager nhecimento ao alto Amazonas, seu pai tardiamente admoestou-o por earta (13 de de- ia expedicao de reco- ‘zembro de 1906) sobre sua presteza em viajar para qualquer lugar do interior do Brasil, 7, Sousa Andeade (pct poopriedade de seve avis cet local de nascimento, a0 sitio de seus pais em i ) £0 Unico dos bidgrafos de Bucides que junta a fazenda Saudade, a Riss "ato partcalarizado em A Fain de Euclyes", Dom Cas jo PREDERIC AMORY sama missio qualquer, sem se preocupar com o sustento ¢ 0 cuidado da esposa ¢ dos =. ou do velho pai”. Nao obstante, este mesmo vivera longe dos filhos ganhando seu sustento como guarda-livros, também mostrara desejo de que o fio se formasse em engenharia militar na Escola da Praia Vermetha. No que diz respeito as auséncias > las, apesar desta falsa impressio de contraste entre pai efilho, os dois eiveram algo em comum na juventude: escrever poesia, Manuel, que tinha sensibilidade literéria € ‘boa cabeca para ntimeros, compusera uma comovedora elegia pela morte de Castro Alves (871), popular “poeta dos escravos” e o incensado “poeta condoreito,” cuja fmagem na elegia € a de uma guia que voa nas alturas” ‘Agi um da trja i da ara, Vi o mundo straws da névon ecu Da negra cena, Valsjou, or instante, sobre ter, SoprouTheo vendaal, que a morte ener, Perdeu-se no buleo! ‘A clegia de Manuel, com esses bons versos oi lembrada pelo ilho, como tum poe- a ocasional digno de citagio em seu discurso de recepgo na Academia Brasileira de Letras, para a qual fora escolhido pouco tempo antes" A correspondéncia entre pai e filho no auge da carreira de Euclides raramente toca no passado, com se estivesse esquecido ou continuasse doloroso, mas, nas cartas ‘0s amigos € conhecidos do periodo de 1903 a 1904, 0 escritor rememora certas cenas da infancia no Rio provinciano que assinalam seu desenvalvienento emocional. Numa ‘que esereveu em 22 de margo de 1903, dé gragas por ter tido a oportunidade de viver nos arredores salutares de seu primeiro lar adotivo, naquela “alpestce Teres6polis, onde passei os mais verdes anos [1869-1870] € me criei, de sorte que a adorivel vila forma © censrio mais longinquo das minhas recordagdes e das minhas saudades. E natural aque dat s6 me venham emogdes superiores..""2, Um ano depois (14 de fevereiro de 1904), confidenciou, de maneira mais critica a Machado de Assis « impressio de in- facia que tivera da cidadezinha de Nova Friburgo, povoada por muitos imigrantes suigos alemies, um centro comercial a meio caminho entre Camtagalo e Teres6polis que, durante uma excursio com o pai, ele ¢ a irma tinham visitado, "Mesmo dessa 9.0 text dessa cary aparece em Dilermando de Assis, pp. 11920. 19, Composto em 1874 «publica, no ano seginte no Aman Lat Brsilireimpresso em Por- tugal,« poems inteito aparece em “A Familia de Buclydes", Dom Carmora i 1 CE 0 por-eseito 2 caren que enceven 20 pai (42 de setembro de 1903) em Obrs Compa, ol. 1, p63 "2 dem, 9637 RUCLIDES DA CONHA: UMA ODISSEIA Nos TROPICOS J 32 encantadora Nova Friburgo tenho uma impressio exagerada. Foi a primeira cidade que eu vis € conservo-the neste rever na idade viil, uma impressto de exianga, a ima- gem desmesurada de uma quase Babilénia...”?, Um bicho do mato, ele tirarf seu personagem, como confessa em outra carta (em data) do mesmo ano, dos pequenos fazendeiros ¢ agricultores “brancos pobres” das provincias. “Além disto fui sempre um timido; nunca perdi esse trago de filho da roga que me desequilibra intimamente ao tratar com quem quer que seja"™, Numa dedicat6ria em versos (1903) assinou com am oreio como “Este caboclo, este jagungo manso,/ Misto de celta, de tapaia e grego"™, ‘mas o ar interiorano de mal-estar social nfo era totalmente uma afetaglo literdsia de ‘um autor nacional Nio temos, em suas cartas, qualquer mengZo a seu segundo lar adotivo en Fidélis. Contam, porém, que seu maior prazer em Sio Joaquim era contemplar um io de quatro montanhas, o Valio dos Milagres, que se podia svistar melhor do alto de um angico, em frente da “casa grande” da fizenda. Quando 0 vale grandioso na conjun © gado era artebanhado nos campos a tarde e trazido para os curras, Euclides, ien~ pregnado das maravilhas do vale, costumava discursar aos bois do alto de seu poleiro, gritando-thes “discursos fogosos, apelos, exortagées, em que se imiscufam histérias que as mucamas narravam"™®, Como em sua excitagio havie 0 perigo de que cle viesse acai, um eseravo negro acabou pondo fim a essis performances serrando o velho an- ico, Estas e outras declaragées, que haveriam de ocorser na sua vida, nfo so menos indicativas de seu amor & natureza ¢ sua solidao sem palavras. © campo que Euclides conhecia, desse modo, na idadle mais impressionavel, em toda a sua beleza nas redon- dezas de Sto Fidelis ¢ Teresopolis, jf era para ele a patria, gracas & forte influéncia que cxerceu sobre sua imaginagio”. 18, Obra Complete vol. mp. at 14 Idem, p 640. 1s. "Dediatéria Licio de Mendongs", Ofra Completa ol 1, p. 636. Dos versos dessa dedicate ‘io se devia trae a conclusio de que o autor estavasugecndo alguma mistura 4° iadioe pormagués nos ascendentes de familia, como 8 aicendéneia inetga de sua avs patern, que pode ter sido pare indi. 1s, Pontes, 18 17. CE Gilberto Feyre, Perfil de Bucs ¢ Otros Pes (Rio de Janeixo, 1944, p ag." impostvel separar Bulides desea paisagem-mfe materna que ve deia interpsetar po ele {quanto de seu narisismo, como por ingém mais” sto através de seu amor ARAPMORAR ARTS & med ee uf 2 Uma Espada Langada ao Solo "MA FOTOGRAFIA! NO ALBUM DA FAMILIA cuNHA mostra Euclides com I ] ddez anos de idade e foi tirada provavelmente por um fotdgrafo profissional no iltimo ano em que o rapazinho frequentou a escola de Sio Fidelis. Vesti- o.com bastante formalidade, inzongruéncia,como “um cavalheiro e um intelectual”, aparece de pé junto a uma escrivaninha empunhando com s mae direita o dorso de um livro, mantido contra o tampo desse mével. A sobrecasaca, abotoada contra o peito, desaparece de ambos os lados, como se quisesse mostrar por voltas de uma corrente de relégio feita de ouro, presa a um botio do colete por um grande pendente também de ouro. As calgas, compridas demais, juntam-se embaixo caindo em dobras sobre os sapatos. A ponta de um lengo branco ressalta do bolso su- gravata-borboleta cabelo molhado, escovado para baixo, € partido exatamente ao meio, O menino que jixo um colete e duas perior esquerdo; em torno do pescogo um colasinho de bico e un falava com tanta excitagiio aos animais do Va 10 dos Milagres esta irreconhecivel nessa foto, salvo pela angistia visfvel nos olhos. Nao é incomum, no Brasil do século x1x, vestiras criangas com exagero num costume inglés ou francés*. O livro na mao direita de Buches jé antecipa, simbolicamente, o convivio com os livros ¢ os beneficios da ‘curopeizagao na sua vids intelectual. Mas nio foi s6 0 vestuirio da crianga [brasileira]: a educagao toda teeuropeizou-se 20 contato maior da col6nia e, mais tarde, do Império [do Brasil], com as ideias € as modas inglesas e francesas, E aqui se observa um contraste: o contato com as modas inglesas ¢ francesas operou, principalmente, no sentido de nos artifcializar a vida, de aos abafir 0s sentidos ¢ de nos tirar dos olhos o gosto das coisas puras e naturais; mas © contato com as 1. Reprodusida com muita Frequéncia, como em Dor Caxmuara, 20 2. Sobre as roupas das eriangasbrsileirae na pc do Impéio, cf Gilberto Fret 6, ea Rio de Janeito 198, vol 1, pp. 88 € 35, 5.Ver adiante p34 Subrdore Musam= wuw 34 of PReDeRIC AMORY ‘Euclides da Cunha quando cianga ides ede face 4 aC Sao eqn favo Jame ma pode ai ‘owes ace aia Pat = Com dei Reni deses Ay col ent am emer a — {deias [europeias), ao contro, nos tcouxe, em muitas pontos, nogies mais exatas do mundo «da propria natureza tropical. Uma espontaneidade que a educasio portuguesa e clerical fizera secar no brasileio! Accuropeizacio da cultura superior luso-brasileira propagou-se para o interior indo da Corte para as cidades cafeeiras da provincia do Rio, agora enriquecidas. Entre elas, Siio Fidéls hacia superado, na metade do século xvi, todas as outras na produgo © exportagio de café, uma preeminéncia econdmica que Ihe foi conferida pela localizagio favorivel 3 beira da parte navegsvel do Baixo Paratba, que transportava para o Rio de Janeiro a maior parte do café produzido na reg io leste da provincia, ou para consimo na cidade, ou para reembarque para o exterior“. Em tetmos culturais, a cidadesinha podia orgulhar-se de seu teatro ~ onde se podia assstir& representagio de algumas ppecas por companhias portuguesas em visita -, de duas orquestras ¢ de trés jornais bissemanais, que, ao lado das noticias dfrias, publicavam pegas beletristicas da autoria de cidadios com veleidades literitias. Na cidade, o Club dos Aventureitos possuia uma biblioteca cujas prateleiras exibiam obras francesas ¢ ingleses,além das portuguesas’ Para esse refigio havia imigrado, em exilio politico, vindo da itha da Madeira, um por- tugues liberal, bem-educado, Francisco José Caldeira da Silva, que instalow na Casa Gamboa uma escola particular ~ 0 Colegio Caldeira ~ destinada aos filhos de fizen- deiros ¢ comerciantes, onde ele e seu corpo docente ensinavam Gramitica Portuguesa, Retéricae rudimentos de Latim, Francés ¢ Inglés. Poi no Colégio Caldeira que Eucli- des e seus dois primos aprenderam as primeiras letras em diversas kinguas A pose € os trajes de Buclides vistos na fotografia simbolizam as aspiragbes soci culturais que a familia alimentava para ele, mas nem por isso dev se inferir gratui- tamente que tum menino de de7 anos, talentoso como era, tivesse tido acesso imediato aos recursos intelectuais de Sio Fidélis. Afirmagoes segundo as quais ele, ainda estu- dante da escola prim: nha conhecido os hersis da Revolugdo Francesa a0 ouvir as discuss6es politcas do tio, coronel Garcez,¢ de seu mestre-escola, ot tinha lido real- mente Voltaire, Rousseau, Montesquieu, L. tine, Hugo, e de Musset na biblioteca ddo Clube da cidade ~ essas afirmagdes no passam de clogios vios*. Euclides ainda ‘no estaria preparado, escolasticamente, para ler ou entender a histdria da Revolugio Francesa ¢ a literatura romantica. 3. Freyte, Sbrados¢ Macomber volt pp. 31-36. 4. Sobee a prosperiade ea cultura de Sao Vids durance 2 infincia de aides, A, Ribeiro La rego, O Hamem ea Sera, Rio de Jancito, 1950, 9p. 207-208, ¢ Ely Post pp 20-2 5-0 acerv das biliotzcs pablcas do intsior da provincia da Rio, em #873, 6-4 consti, em sa maior parte de obras em portugues sobre agricaltura, hist étiea ees, Primitivo Moacyy dl natrapo a Provinias, Se Paulo, 1939, vol. 1, pp. 262-263 6. CEE, Pontes pp. 23-33,¢ Sousa Andrade, Mitra ntrpetata.. P19 €19 RUCLIDES DA CUNHA: UMA ODISSEIA NOs TROPICOS #35 | Apos ter-se formade 99 Colégio Caldcira, iniciou sua educagao secundria em Salvador ¢ na cidade do Rio de maneira irregular, porque a famifia mito se decidia sobre quais escolas ele deveria frequentar em seguida. Em Salvador, durante 0 ano escolar de 1877-1878, cursou o Colégio Bahia, dirigido por Carneiro Ribeiro, am pro- fessor secundiério de “gramitica filossfica” [= nocional?)’, e por seu assistemte, 0 c6- nego Lobo; depois, vigjou para o Rio de Janeiro, onde esvoagou sucessivamente pelo Colégio Anglo-Americano (ou Brasileiro), de José Pacifico da Fonseca, em #8793 em 1880-1882, por outros dois colégios, o Vitbrio da Costa e 0 Menezes Vieira, este mais famoso; ¢ finalmente, em 1883-1884, pelo popular Colégio Aquino, diigido por um virtuoso pedagago, Jodo Pedro de Aquino. Atualmente, essas escolas ¢ seus diretores rio passam de nomes para nbs, com excegao do Colégio Agjuina,que granjeou alguma fama no final do século x1X gragas a seus professores. O colega de escola de Euclides no Aquino, Escragnolle Déria, pintou sea disetor com as seguintes cores: “Educou gratuitamente alunos sem conta, Meigo até a Ligrima, puro e generoso, severo como 0s justos, grave sem ridicule, sempre todo de preto, com um charuto a fumegar entre conhecen a funda as pobrezas envergonhadas do Rio" O baixo prego da mensalidade € 0 alto nivel de ensino levavam estudantes como Buclides a essa escola, Em especial, dois professores do Aquino —o historiador Theo philo das Neves Lea formaram com suas aulas a mente do adolescente Euclides, is, de onde desprendia a mais sossegada das vores, 0 Dr.Jodo Pedto de Aquino € 0 matemitico Benjamin Constant Botelho de Magathaes ~ Na verdade, foi Neves Leto quetn iraprimiu nele a impostincia histérica de Danton (6 heesi dos positvistas brasleiros), de Marat, Robespierre e Saint-Just na Revolusie ‘Francesa, de tal mado que,em seu primeiro ano de escola, o menino foi instigado a es- crever um soneto sobre cada um deles?. As ligbes que aprenden sobxe a Revoluco Fran cosa seeip aplicadas,em seus artigos de jornal ¢ em Os Serts,rebelito de Cenudos de 1896 ~"A nossa Vendeia™®. Quanto ao professor de matemstica, Benjamin Constant,é ‘mais conhecido na histéria cultural e politica do Brasil como o propagandista do posi- tivismo francés, que ideciogicamente levay 0s militares a0 poder no governo provisério da Repablica (1889-1891), sob a bandeira positivista de Ordem e Progresso. 2. Sua espcialidade de aco com Primitivo Money, ol. 11, 0.57 &, Bxcragnolle Deri, "Buelydes da Cunha’ so volume memorial da autoris de witios autores, Por Protec Adora: In Memoriam de Bue de Cota, Rio de Jansine 933,940 Sobre ess série de vonetos, fa caret afirmagto de Francisco Vendacio Filho no efbogo bi fico reprodusido ma inteodusio de Obra Compe de Buclides da Cunha, vol tp 34 18.Cr. os doe artigos com exe tuo publcados no jonas © Bada de S. Plo 4 de marge 17 de ju Iho de 897, Or Sefer ed, Betts, pp, 318365 ~ como em Ora Complete, wl.12 pp ss-s8,ea5t€ respectiamente. A fonte francesa da anslogia entre Venda ¢ Canudos pode ter sido o romance de Victor Hugo, Quarre-cingt-tcize sobre o qual fA. Brandho,"Eclids eVictoe Hug, Emilia de reader Euclidian, tp. 543 198; Li M.Bernuce, “A Nossa Venda?” A Imitgtode Senter, pp. 25-8 36% pREDERIC Amony Euclies da Cunha aos doze anos. No entanto, nos dias de escola de Euclides, como nos informa Escragnolle Déria', “[nJaquele tempo nfo delineava repsiblicas, nem mudava o futuro, constrata poligonos, resolviaincdgnitasalgébricas” nas classes do Colégio Aquino. Na Escola Normal do Rio de Janeiro, para mulheres, Constant tinha até entio uma reputagio puramente académica por ter-se absorvido nas abstrusidades da matemétiea, a ponto de esquecer a capacidade e até mesmo a presenca de suas alunas. Na Escola Normal, nas palavras ia enchendo o quadro-negro de figuras, enquanto mur- de outro comentarista™, “el murava um incompreensivel monélogo”, a0 qual as mocinhas, conhecedoras de seu jeito, nfo davam a menor atengo, mas ocupavam a hora de aula com outras coisas, es" ‘tudando, copiando as ligdes, ou fazendo croché. A hora chegava ao fim, mas néo para 0 obrigada a ‘mestre Benjamin Constant, cuja diretora escolar porta da sala de aula chamar-the @ atengio trés ou quatro vezes por dia por estar excedendo o horitio, Essa qualidade de todo complacente do matemstico extasiado e do impassivel professor, ue sempre falava por cima das cabesas de seus alunos € nao tinha, como meste, ou: 14,*Buclyes da Cun, em Por roti Ader oP. 12,0 homem de lets Jot Medeiros e Albuquerque, aad Ur Lider Mititas", Bute da Cunbae Outres Bude, Rio de Janeto 196, p-1 Peregsino, "Benjamin Constant, 1128 opinides politicas a nip ser uma aversio pessoal a0 Imperador Dom Pedro 11 por nfo nomed-lo rapidamente para uma cadeira universiiria na Escola Milita, instruiu Euclides em matematica para os dificeis exames de ingresso na Escola Politéeniea e iniciou-o na filosofia de Auguste Comte, mas sem nunca té-lo convertido num posi- tivista confesso. Enquanto frequentava a escola secundéria na cidade do Rio, de 1879 a 1883, Ev clides, segundo um decreto ministerial de 1879, era obrigado a fazer testes de profi- cincia de seu rendimento escolar. Passou nos exames de Portugués (1879), Geografia, Francés, Retorica e Historia (1880), Inglés e Aritmética (1881) e Geometria (1882), mas fracassou no exame de Latire (e883), talver porque, no Colegio Aquino, estivesse mals interessado em escrever poesias do que em estudar a lingua ea literatura da Roma an tiga. De qualquer modo, seu mau aproveitamento em latim nao o impediu, mais tarde, de ler por si préprio os elissicas gregas e romanos em tradugio®. Temendo que esse poctar de seu sobrinho o impedisse mais tarde de frequentar o curso de engenharia, 6 tio Antonio € 0 pai consultaram o diretor do Aquino sobre o rendimento escolar de Euctides, ¢ sentiram-se aliviados quando souberam que seu rebento era excelente aluno de Matemstica e de Histéria. Entre seus tentamesliterdrios da juventude, podemos deter-nos um pouco em seu primeivo texto em prosa, “Em Viagem’, que dirigiu aos categas do Colégio Aquino, Escragnolle Déria e outros, e foi impresso na primeira pagina do jornal escolar O Demecrata (4 de abril de 1884)", Opondo-se ao projeto de estender trilhos de trem através do Brasil central, na década de 1880, 0 breve texto é uma rejeiyio impiicita de ssa fstura carreira de engenheiro, Jé na abertura seu estilo é bastante “euclidiano"™. “Meus colegas", comega com certa agitagio, “[e}screvo-vos as pressas, desordenada- mente... Guiam-me a pena as impresses fugitivas das multicores ¢ variegadas telas de uma aatureza esplendida que 0 tramway [isto é para a escola] me deixa presenciar 1 Por exemple, Taciides eTicit, Uma passgem de 4 Historia da Guero Plone, 2 aparece studs numa nota tere eigso de Os Sete (Ohra Compt, wo. 1,99. 93-98ve num disso proferdo no Instituto Histérico e Geogrifco Brasileiro hi uma tefertnca a Anais, 54 (Obra Compe, tol. 1,p425). Exqulo e Esipides si nomeados uma vez no ensaio sobre a revolts naval Keay de 93 1894 (lr Completa, vols, pp. 2918), mas nd cit obras esses autores, salvo urna eeu “Feo ( 0: Pera) de Esquils€possvel que Buctides no tena ldo tata aga grega quanto pens Nicolas Sevcenko,a Literature coma Mist: Puts e Cras Cultural na Republica ed, Sa Pat, 68,9204 pet, oP . o-vos As presses, desordenadarment” (ct) com frases semelhantes em seus dexpachos enviados de Canudoe: “E postivel que das nosaseépidas de um dito, em que of periodos no se alinham corretos, disciplinadose calmamente meditados,ressurabrem exagero” (Obra Complet, wl. 1 p.$08)s¢ ema Os Sees *O que eerevemos tem o tao defétoso desaimpressio isola Aa, desfavoreid, ademas, por wm meia contrapost 4 serenidade dy peasament,rothidopelasemogdes tas civlizadores e construtores de nayio do Novo Mundo e aqueles do Velho Mundo, maquinadores € politiqueiros. Dai por diante, em seus eseritos", a Ordem ¢ julgada Principalmente por sua boa atuagio no Brasil Sua aversio inicial aos jesuftas no era sem relaglo com os primeiros tenteios religiosos fora do Catolicismo institucional, com vimos no ji citado “A Flor do Car~ cere” e em outros poemas como “A. Rit” (1888), “Lirismo a Disparada’ (18892) e, em cspecial,"A Cruz da Estrada’ (188)). Nesse wlsimo poem", dedicado a um colega da Colégio Aquino, o poeta atua como um guia e um intérprete do simbolo da cruz nos sertées brasileitns, sob a fice de estar buscando Deus ne local, emboea sind fonge de ter uma visio dessas regides: Se vagares um dia nos sert Come hei vagado— pitida, dntence, Em procura de Deus ~ da fé ardente [Em mein das saides.., ‘Se sondares da selva 4 entranha fria Aonde dos cipds na relva extensa Nosdalma embala a crensa Se nos sertes vagaresalgum dia Companheiro! Has de ve- [ie.,a cruz) 9. Obra Compl, vl 1, p12. Sobre ese ens, ilbero Freee, Pepi de Buches pp see, 10. CE Os Sorte, em Gbra Completa, vel. 11, p. 15, bem como algumas obserasies desfwvories, peste dts 1.°A Cruz da Esrads" (Obra Compl, wl. p63) inspire mis estrofes in tuo Alves Boa Vista" (em sus Obra Compote E, Gomes, Rio de Janeiro pho, po), a deaneins de umn poeta palo” que pasea ploy camp 12, Obra Complete, vo. yp. 637 ins do poema de Cas 4 noitnba 4K PREDERIC 5MORY Nessas paisagens visionérias 0 “palido” poeta tem uma certa semelhanga com aque~ les “pilides atletas” da Igreja Catdlica, os jesuitas, que na estrofe inicial de “Rebate” contemplam diante dos olhos uma simples miragem de Deus, por cima do “existir no vasto Saara enorme”, mas iludem-se intelectualmente pensando que conhecem a Deus e “co'a razio sondais a profundez dos Céus™, “A Cruz da Bstrada” como o verdadeiro crente que nada tem a nlo ser sua fé em Deus , enquanto nosso poeta vé-se em a dirigi-lo em suas peregrinagées espirituais. Deus € 0 Ignoto e, como ele chegou a incia, jncognoscivel; sua implicagdo era, enti, mais do que pensar, em altima in menos necessidade de fé Perder a {é ou, pior, renunciar a ela era para esse buscador igualar-se ao “bruto, ¢ vil descrente” de “A Flor do Cércere”, um prisioneiro de si mesmo, ou antes 2o ateu sofisticado de “A Ris” que deve alienar-se totalmente de si mesmo. Como ateu, Eu- clides mal é reconhecido na persona de “A Rie", que manifesta sua descrenga numa autoironia byroniana, num riso incontrolivel e em lagrimas arrependidas. © poeta precisa exercitar-se para personificar um “spleenético” milord anglais sob a infuéncia de seu descontentamento: [iad entrincheirando-me entre Uma cangio de Byron E um cilix de wgnat.., Assim —eu resolv, inditerentee fio, Cheio de orgulho spleen ~ como umn bangueio inglés, Sepultaena ronia 0 pranto meu sombrio...4 Alimagem da descrenca meio reprimida é tio inventada quanto parece pouquisi- mo caracteristiea de Buclides, mesmo na pessoa de um incrédulo Tomé Por outro lado, o humor voltairiano da irreligiosidade em “Lirismo 8 Disparada” < mais espontineo, mais brincalhao. Esse poema lirico descreve a perda da graca do Céu por um sonhador como o Uriel de Emerson, por ter desrespeitado a Deus. Os serafins, os guardas-noturnos dos céus, prendem-no ébrio de sonhos no boulevard da Via Lactea, ¢ os santos, escandalizados, apedrejam-no com estrelas.Jé que para ele a divina Providéncia € responsivel por essas indignidades, prometeu junto com Voltaire © Comte a nunca mais pér os pé: na praga azul do firmamento — os corpos celestes entrariam em colapso total e a Besta apocaliptica daria coices, cle se gaba, se eles 0 13, Obra Completa, vol. 1p. 632 14 Td p69: EUCLIDES 9A CUNHA: UMA ODISSELA NOS TROPICOS FE 55 fizessem algum dia. Mas,entrementes, como um profano mortal privado dos céus, ele cera f¥ apenas no othar de sua amada: Deus néo the fiz falta onde ela esta A dificuldade da crenga religiosa numa era cientifica como a de Buclides fez. com ‘que se Ihe tornasse cada vez mais impossivel acreditar, como fizera até entio, ou na Igreja Catdlica visivel ou na invisivel, apesar de ter sempre respeitado o Catolicismo dos colegas brasleiros. Contudo, como alguns de seus poemas jé proclamam, foi impe- lido quase com ardor fehl, na juventude, a buscar algo em que pudesse acreditar nia sabi dreito 0 qué. Mais earde na vida, teve de resguardar-se de criticas as suas crencas seligiosas taaco dos livre-pensadores que conhecia quanto dos membros mais eaélicos de sua familia. As dolorosas respostas aos detratores de ambos os lados podem dar-nos a medida de suas crengas futuras ‘Na quarta campanha de Canudos, quando cavalgou pela primeira vez por agueles sertées prefigurados de “A Cruz da Estrada”, foi dar mum hospital de campo e capela de franciscanos alemaes,em Cansancio (Bahia) onde assistiu a uma miss, de joelhos um gesto espontineo de solidariedade espiritual com os franciscanos alemaes, que, aio obstante, sentia a necessidade de justifcas,em seu dirio de campanha, 20s “com panheiros da impiedade”, 20s livre-pensadores. “Nao menti as minhas crengas", ele os adverte, eno trai a nossa fé, transigindo com a rude sinceridade do filho do sertia™ Nesse di engas”e “nossa fe" esto igualmente acima de qualquer censura Qual era o nicleo de suas crengas no chegariamos a saber até seus tltimos anos de vida, logo depois de ter sido recebido no Instituto Histérico e Geografico de Sao Paulo,em novembro de 1903. No dia 22 desse més, fez uma profissio de fé de sua dacta iguorentia em carta particular enderegada 20 romancista Coelho Neto, numa reasio a algumas insinuagSes de atefsmo, provavelmente da parte de membros da familia: “Entio... eu nao ceefo em Deus%! Quem te disse isto? {...] Nao. Rezo sem palavra rho meu grande pantefsmo, na perpétua adoragao das coisas; e na minha miserabi~ lissima e falha cigncia sci, positivamente, gue hd alguma coisa que cu nd sei... Ai esti, neste bastardinho (e é a primeira vez, depois da aula priméria, que 0 escreve) a mi- sha profissio de fé"”. Em resumo, igual a muitos intelecruais de mente cientifica do final do steulo xix, Euclides gravitou, através dos anos, em tomo de uma espécie de agnosticismo ~ um agnosticismo panteistico que admite os mistérios tanto de Deus quai da nacureza, Voltando mais uma vez-a Ondas,nio precisamos estender-nos sobre sua poesia de amor adolescente pela simples razio de que, surpreendentemente, pouca coisa esere- ‘yeu sobre esse tema nessa coletines. © mais juvenil de seus poemas de amos que sait 15. Obra Completa, wl 1. Bp. 650-51 1a Ldemvol.14 539 dem, p 638 6 9H peEDERIC AMoRY Missa em Cansancio publicado, “Tristeza” (1883), é uma composi¢lo de época que segue totalmente os mo- delos romanticos francés e brasileito'®, eo nico poema, um soneto petrarquiano,“Ri- mas” (1885),em que uma dama entrega-se aele completamente com um beijo,refere-se ‘to pouco a alguma mulher de seus sonhos ou de carne e sso, que, no momento de seu casamento (to de setembro de 1890), pde dedicar os versos 3 noiva (com o nome de “Soneto”), sem Ihe mudar uma tnica palavra®. A sexualidade de Euclides durante a adolescéncia parece ter sido virtualmente sublimada em seus trabalhos escolares , como na poesia lirica cortesa do comeso da Idade Média, a mulher é apenas metoni- smizada retoricamente em seus poemas de amor como 08 “ibios amados”,ou 0s olhos negros que inflamam o desejo, estando ela prépria distante dele e desencarnada. ‘No entanto,a ars peetica de Euclides, um poems em duas versoes —“Ultimo Canto” (1886) e “Fazendo Versos” (r887) — que resume sua pritica poética, merece um exame literisio. A primeira versio do poema foi feita para ser recitada na Escola Militar um piblico constituido de cadetes com senso critico agudo", antes que publicasse sua segunda verso na Revista da Familia Académica, em janeiro de 1888, Em ambas as versées,o poeta volta a fingir uma velhice prematura diante de seus vinte anos, como aparecera no tiltimo verso de "Mundos Extintos", citado atras, mas agora essa atitude tem a apoid-la uma lembranga da morte da mie: “Mui cedo ~ como um elo atroz. de luz e p6 / Um sepulero ligara a Deus minbvalma...”.A autoexpressfo tinha deconten- der com fortes inibigdes nessa sua alma cativa. De um lado, desse seu lamento, entre as cenas campestres de sua infincia, corren, “[cJom a légrima primeira, a primeira angio”. De outro lado, porém, sua dor era assim mesmo capaz de irrtar-se contra essas efusdes poéticas;¢, por isso, na primeira versio de sua poética (“Ultimo Canto”) cle termina inconclusivamente com um desejo: “[...] eu teria um imenso prazer / Se podendo domar, curvar,forcas, vencer / O cér'bro € 0 coragio, fosse este tltimo canto 7 O fim de meu sonhar, de meu cantar.."™, Estes versos voltam a ecoar as palavras do fragmento de seu didtio de 1886 (citado atris, cap. 2, p. 42), onde registrou sua luta 18,Cf com Ora Complete, volt. 63,08 poems “Triste” de Alfed de Musser (ere complies Pars 19, vol. 159.234) e "Tita", de Fagundes Varela (Peesias Completas, Sto Palo, 956, pp. 60-63 € 169-61) e"Tisteza", de Gonsalves Dias (Poesia Complete Pros Exelbids M. Bandeira eo, Rio de Janeiro, 1959 Pp 19.Cf em Obra Completa, ol, pp. Sgt 6s2.A exiliaso do poema é ade Petratea no famoso soneto 134"Pace non eo, 20. As duas verses aparecem em Obra Completa, vol. 1, pp. 632-640 © 42-63. Lend esses textos, podemos dscarr a opniso de Souse Andrade, Hitria Interpret... 33, de que Ondas “alo sustentadiante da mai ligeiea aalise 2A primeiraversiofidedicadaa us colegaca Escola Milita Morea Guimares,quceriamaietardeum «xiticomilitaradbrso de O Sete e pode ver em Or Sete: uszr Cris (Rio de Jair, a904) pp. 70-88. 22. Ura Compl, vo. 1s P63 643, 2 Idem. sf 9k PREDERIC AMoRY para conter os sentimentos de raiva contra seus colegas nas primeiras semanas de aula za Escola Militar. Agora, sio seus sentimentos de saudade da mie e a poesia que the inspira sua perda que ele deve sufocar; mas, evidentemente, nem esses sentimentos nem aqueles ele eve total poder de controlar a seu bel-prazer. Na boa forma romantica, o jovem Euclides como poeta-eritico nfo distinguit entre a natureza e @ arte ao fazer que a (sua) poesia nascesse espontaneamente de cemogdes humanas ou das circunstincias da vida. Se a poe: pressio de softimento ou de alegria, e os poemas concebidos nesses devaneios dos sertdes podem ser personificados como "filhas selvagens / Das montanhas, da luz, dos céus ¢ das miragens™, entio, na segunda versio de sua postica (“Fazendo Versos”), 0 poeta-critico nao precisava mostrar-se to insatisfeito por sus arte ser “natural”, isto ela mesma, uma ex 6 inspirada na natureza, eampouco devia preacupar-se em demasia com a tecnicidade da versificagio. Os vos da verdadeira poesia nio se levantam e caem a propésito das cesuras ¢ dos pés métricns, Nao queria ele as restrigBes neocléssicas do francés Boi- Jeau nem do portugués Feliciano de Castiho, mas a liberdade sem peias € o fogo da imaginagdo de um Victor Hugo e dos rominticos franceses!?* Dois ensaios, publicados na Reise a Familia Academica —"Criticos", de maio de 1888, e “Heréis de Ontem’, de junho do mesmo ano -, complementam a ars poetica do jovem Euclides com outras reflexdes sobre a literatura oitocentista da Europa e do Brasil. A ars poetica é umn minimanifesto romantico com uma revelasaio zutobiogrifica da principal fonte emotiva de sua poesia, enquanto esses dois textos de critica alon- gam-se sobre o valor humanitério da literacura, o papel cultural dos escritores numa nnagio ¢ 6 nove realismo social do romance em oposigi 1a poesia, Em “Herdis de Ontem’, Euclides recorda os poetas brasileitos do periodo somantico ~ Gongalves Dias, Castro Alves e Fagundes Varela ~a quem exaltou como “os brilhantes educadores dos nossos corasdies"™em nio menor grau do que 0s pensa~ dores e Iegisladores do Brasil oitocentista. Mas, na década de 1880, jf tinham passado 10 a0 velho idealismo romantico havia muito os dias desses herdisliterarios, como ele sabia, o Parnasianismo franco- -brasileiro era o movimento poético da vez ¢ o realismo social francés, enunciado pela primeira vez-ao mundo luso-brasileiro por uma conferéncia de Ega de Queirés”, dominava, através da intermediagao literécia do romancista portugués, o romance no Brasil e deixava insipido o gosto pela escrita mais romantica. 24 Obra Completa vol. pe 630 6 25. Nao obstane, como observa Sousa Andrade, MigiriaeInerpreapi,.. p23, Beles seguia em sua versifcago at mesmas regras que ee citicamenteeacaresia.Todavia, 0 extreme formalisms dos ‘purnasianos estar além de sus capacidades poticas (como diz Ely Poatesp) 24. Obra Completa, vl p $2, 17. "Realsmo como Nova Expressio da Arte," una apresenasio orl, sem texto, reconstnsa por Anténio Salgado em Hlstria das Confrincis do Casino (py), Lisboa, 293 RUCLIDES BA CUNHA: UMA ODISSEIA NOS TROPICOS #59 Essa mudanga de gosto induziu Euclides, este romantico tard, a eserever outro ensaio, “Criticos”, no qual sao contrapostas as escolas concorrentes do Romantismo do Realismo de maneira tal que € possivel airmar que Romantismo é rauito mais 6 contrapeso do que a inverso do Realismo, De um lado, os idealistas romnticos devem lembrar-se de que 0 romancista realista “é as vezes obtigado 2 descobrir um quadro ‘mais livre que muitas vezes surge entre outra coisa elevada’, por exemplo, a poesia r0~ rmantica; mas, de outro, os realistas que sto insensiveis & sublimidade de Victor Hugo quando cria Jean Valjean ~ uma monstruosidade humana para eles ~ devem entender que,se semelhante fendmeno, monstruoso ou sublime, nunca vive realmente, "pode e deve exist, por direto artstico, Insistindo, assim, na aceitabilidade do tipo crimino- so mais do que real de Hugo em Les Misérables, Buclides no estava apenas escudando uum idolo literério contra o ataque dos crticos, mas também defendendo um principio da arte, o principio hugoano do sublime-protesco, que seria grasts modo o equivalente romantico do Realismo na Franca. Embora estivesse do lado dos idealistas ¢ contra a tendéncia predomiaante de Realismo na literatura fin desgcle, seu objetivo em todo 0 seu ensaio, "Criticos’,era por um freio nos excessos doutrinsros tanto dos romanticos quanto dos realistase, se possivel, enfiar um pouco de senso nos “anaifibetos da arte” do mundo todo®. Apesar de algumas reservas subsequentes acerca da mentalidade *pouco cientifica” de Hugo como homem de letras (em “Divagando”, 13, de 24 de rmaio de 1890)", a admiragio de Euclides pela arte em verso e prosa do autor francés nunca esmoreceu, © proprio sublime-grotesco introduziu-se lenta ¢ cuidadosamente no estilo antitético de Os Sertbe2® Poderia parecer igualmente que sua propria poesia estendia-se a essa obra que alcanca o seu mais alto climax, como o faz 0 poema inacabaclo “O Paraiso dos Medio- cres", de 1896, mas basicamente ela era incompativel com sua arte em prosa, a que sempre era uma coisa A parte, feita para a acasido. Isso apenas equivale a dizer que Buclides era um poets ocasional ¢ informal, que podia usar a forma do soneto muito tem mas nada de exato em termos mais técnicos. Em sua vida artistica madura, zepu- daria sudemente Ondas com uma “observagio fundamental” sobre suas tentativas pos ticas primigenas, mas ja como um escritor em germinagio na Escola Militar sentira a necessidade de um meio mais flexivel de expressio em prosa e visualizava a frente 28. Obra Complets, vot P10 2. Idem pP 5°56 $0. Coma, sor exemplo, no oximono“Hércules-Quasimodo", Obra Completa, ol 1.70, na des ctigao da constraczo do templo em Canudos (pp. 25-226), ambos citados or Adetino Brando em seu artigo sobre Hugo e Eulides em Enciopéia de Etudes Pucidianos, 0 tp 29-38 398 "a. Obra Completa, el 1, pp. 654-655- Comparem-se os prime vers do poema com alongs frase de*A Tess, Oda Completa, vole sp. 8° tera, porém, permansceelvada, alongando-eeem planus mplas ete, ver cap m1, p.25 planes uma carreira jornalistica no toma-li-di-c4 da vida quotidiana™. Isso nio era tudo que ha -m seu novo programa literario, que estava repleto ademais com o mais elevado id térica francés, onde anotou: “Eu tenho um fanatismo tio insensato pela palavra, pela tribuna que, faga embora o que fizer de melhor para a sociedade, terei cumprido mal no humanitério, como ele mesmo expressou nas margens de um manual de re ‘0 meu destino se nio tiver ocasio de, pelo menos uma vez, eguer a minha palavra sobre a fronte de qualquer infeliz, bandonado de todos..." Esse desejo, embora extravagante, Ihe seri concedido, e mais de uma vez. 22." "Quanto a min, arescenta Escldes, sou ser im jomalista. Mas vo ter de care ‘bengal a todo o momento pars defender minhas ideas Em conversa com Moreira Guimares, confor= sne ita Umberto Peregrino em Dom Cusmarra, 1, p.ayicl para o meso efeito a frases com que termina sex ensao “Ceticos", Ora Completa vo. 1p. 20. Quando Euclides diz mais tarde em Atos ePalaras’ 2 bra Completa vot p.54),"Nao nos destinamos& imprenss’,encontriva-se no limbo profsional ¢ sscava prestes a er reintegrado no exéct, 5. Obra Compl, vol. 1, p. 52. Eneonta-se aqui o germe daquilo que Nicolau Sevcenko chamow ur como missio"na escrita de Bucldes. Ver N. Seveenko, Literatura come Mise, 192.10 EUCLIDES DA CUNHA: UMA ODISSEIA NOS TROPICOS ¥ 61 4 Os Primeiros Interlidios Jornalisticos ANDO, NO FIM DE 1888, NOSSO “cADETE DA ESPADA"— ou “da baione- ta? foi recebido, no circulo republicano de jornalistas do jornal A Provincia de Sia Paulo, por seu editor-chefe, Jlio de Mesquita, a cidade de Sio Paulo constitu pequeno reduto do republicanismo, como se o futuro do pais,em termos politicos e econdmicos, jé coubesse a essa cidade de cerca de quarenta mil almas ou menos". A total aboligo da escravatura ~ em 13 de maio ~ nfo prejudicou, como fizera 1a provincia do Rio de Janeiro, a cultura cafecira paulista, de ver.que agora o trabalho livre dos imigrantes, empregados a parts de 1870 a0 lado dos escravos?, substitufa qua~ se totalmente a mao de obra servil. Nessa provincia, 2s plantagdes feitas no rico solo roxo nio se afogavam no mercantilismo da monarquia central nem deviam aos bancos sua estabilidade econémica,a qual era assegurada pelos reinvestimentos de capital em outras empresas, bem como nas préprias fazendas?. Com efeito, acolhida que 0 editor-chefe e o pessoal de A Provincia de Sdo Paulo deram a Euclides foi o primeiro passo para que a familia do escritor' decidisse mudar-se 1.CE Raymando Faor: "Jo rpublicanismo, expraiando-se peas cidadesefrzendas de Sio Paulo, leito para engrossa e crescer [...] De Sao Paulo, a dguastanshordam para Minas Gers £0 Rio Grande do Sul, mantida 8 Corte em isolamento, dada a proximidade da provincia conservadors slo Rio de Janezo[..”. Os Denes do Pader, Porto Alegre, 1985, ol 11, p. 42. Sobre aacolhida de Euclides pela cidade de So Paulo cf Sousa Andeide, HisriaeInteprtap. pp 37 ©. 2 Sohne a imigrago para Sto Psulo no tlkimo tego do século XIX, cf Edgar Carone, A Replica Felha, Sto Paulo, 1975, 0. spp 1. 2, Acerca das vantagensecondrmicas, paitiase socials de Sto Paulo yobre o Rio de Jancio cf outa vex Fao, volt pp. 4-466, 462-464, 6 em especial, pp.sa6-508.Sabeeo espitito progress dos pau lista na década de 2880 ef Emilia Viot da Costa, Da Monarguia@ Repibza: Momentos Desrvoy S80 Peulo, ron pp. 390 €s.¢ 32-36 também sobse a diversificaso da capital polit do ca asa inde cf, Francsco Foot Hardman & Views Leonard, Hiscéria da India edo Trabalho no Braril, S30 Pao, 1991 PPS “Sua ima, Adela deiara a fimia Garcez em Sio Fidelis ea fazenda Sto Joaquim pace acomps- shar 0 pai a Sto Paulo como governanta do Rio paraa lorescente provincia paulsta,O clima politico elterrio da cidade de Sio Paulo poderia ser um bilsamo para as sensibilidades ainda puras de Euclides, mas foi a promesta de grande prosperidade oferecida pela provincia que levou o pai, Manuel, um guarda-livros,a deixar poucos anos depois o Vale do Paraiba e comprar modesta fazenda «em Belém do Descalvado, a cerca de duzentos quilémetros da capital paulista, para nela plantar café. restante da familia imediata poderia pecmanecer em Sao Fidélis,assistn do continua decadéncia da provincia do Rio; mas Manuele, depois,o proprio Buclides iriam misturar sua sorte com o futuro estado de Sao Paulo, um plantando café e 0 outro construindo pontes ¢estradas por toda a regigo, Ficou para tris o Vale do Paratbe, ance Enclides cresceu e seu pai um dia escriturou os livros dos cafe afindar-se-ia cada vex mais em dividas e entraria em decadéncia, tal como Euclides a viu na iltima vez, c 1902, “entre as ruinas” das plantagées ao longo do solo do alto Vale’ ‘Contudo, no intervalo entre uma carreira e outra,o ex-cadete, alvo da admirasio do eultorescariocas a regio corpo de imprenta de Sio Paulo, 20 associar-se ao jornal A Provincia de Sao Paulo, nada mais tinha em mente que escrever sobre o colapso da monarquia ealcangar um piblico mais amplo com sua mensagem politica ainda demasiado académica, lio de Mesquita «estava muito entusiasmado com seu novo colaborador, 2 quem saudou pelas colunas do jornal como um “mogo de muito talento ¢ de vasta ilustragio™, mas timorato Euclides conhecia melhor a si mesmo e suas limitagdes, como confessou a Mesquita em ousro ‘momento (em carta sem data, de 18902): “Apesar de uma mocidade revolucionatia, sou tum timido. Assusta-me qualquer conceito diibio ou vacilante””. Por isso, nos prime’~ 10s artigos que escreveu para A Provincia, suas ideias sobre a politica brasileira recor~ sem inguestionavelmente aos “ismos” que, no seu entender, slo nessa época as certezas “cientificas” de qualquer discussio bem-informada dos fatos piblicos — por exemplo, 0 paralelismo historico entre as evolugdes francesa brasileta (afastadas uma da outra cexatamente cem anos),0 positivismo de Comte ¢ 0 evolucionismo de Darwin Spencer: Contudo,o brithantismo intelectual de suas apresentagGes podia ser tio artificial quanto sua ignorincia de que « politica de bastidores realmente existia,e as pessoas e os fatos frequentemente desapareciam diante das abstragGes de sua argumentalo. “noviciado”™ de Euclides na imprensa durou do final de 1888 & metade de 1890 © compreendeu quatro séries de artigos, comesando com “A Patria ¢ a Dinastia” e S."Bntre as Raina Obra Compe, vl, pp 84-18 como em Cantrastes« Cofomtn publiad Drimeizamente em O Estado de , Paul,8 de seterbro de 1902,com um texo ligciramente diferente, sob titulo "Visando”. «. pd Eloy Pontes. 6, 2. Obs Completa, ol. 1, p. os Walnice N, Galvio & Oswaldo Galati, Corenpondnie de Buds da Guna Sto Paulo, 1997p. 120, atibuem aera carta a data de 1900. ‘Termo que di titulo ao conjunto dos primeitos artigo jonnalisicor de Bucldes organizado Souss Andrade em Obra Completa, vols PP. 54% €8. 64 FRRDEKIC amonY sab fete > por ~Questées Sociais” em dua tes ¢, depois, com “Da Corte”, “Homens de Hoje” em duas partes, e uma cronica partes; continuando com “Atos ¢ Palavras" em oito par sem titulo sobre uma tentativa de assassinato de Dom Pedro 1; assim concluindo com *O Ex-Imperador”,“Sejamos Francos”e “Divagando” em quatro partes’. Todas, com excecao do uiltimo trio, foram publicadas em A Provincia de Sao Paulo antes da queda da monarquia (depois disso esse vetusto dirio passou a chamar-se O Esta~ do de S. Paulo, como € até hoje); 0s trés tltimos artigos foram publicados no jornal republicano carioca Demeeracia (uma folha de vida curta). As primeiras duas séries de artigos, até “Atos ¢ Palavras”, foram escritas em Sao Paulo, e as demais no Rio de Janeiro para onde 0 autor retornou mais ou menos no final de janeiro de 1889 a fim de retomar a vida militar que deveria chamar nossa atenglo nesse fluxo de escrita jornalistica € nao tanto ‘0s momentos fugazes de historia que deles defluem quanto a concepsio mental do jovem joalista nessa fase de desenvolvimento intelectual, nun soal, sublevagio do pais ¢ incerteza geral. Isso porque 0 dominio que tinha sobre suas spoca de crise pes- ideias era com certeza um pouco mais firme do que aquele sobre os acontecimentos {que ocorriam & sua volta, Quando, por exemplo, a revoluglo republicana finalmente se consumou, Euclides foi pego completamente de surpresa, assim como a maioria dos cariocas"® e, mesmo estando no Rio de Janciro, dela tomou conhecimento somente no dia seguinte, 16 de novembro. No entanto, ao escrever os artigos acima citados, segundo s a instrugio escolar € seus préprios talentos, tinha em mente acima de tudo a matemética e« rigorosa apli- cago da ciéncia & histéria © a vida social. Evidentemente, sua nogdo de ciéncia no cra exatamente a nossa, de vez que era fundamentalmente matemética¢ inteiramente deterministica, e como tal estava muito aquém da verdadeira ciéncia social, apesar dos atavios doutrinarios com que Comte, ou Benjamin Constante os postivistas brasilei~ ros adornaram-na, Na obstante, ao debater suas ideias nos artigos, ele se conscienti- zou um pouco tarde de que o formalismo matemitico da ciéncia nfo podia incluir-se nos imprevisiveis processos da historia ow nas fantasias do comportamento humano (0 que na verdade teria sido excluido); mas, durante a maior parte de seu noviciado, ‘mostrou-se um rematade comtiano, que acreditava na supremacia intelectual da mate~ mitica ¢ prezava a invensio da sociologia pelo autor do Spstéme de poitigue postive 4. Com exclusio da ernics tobe atentado contra a vida do Imperadon as quateo aie de artigos rtado vem reprodusia em cto reimpresas em Obra Completa, vol. pp 43s a exbniea sobre 0 Ploy Pootes, 4 Vide Dramdtca....pP-97-10- 10, Dia-e comumente que o catia asstn &revalugio "bertifcado Lobo em earta comentada por Sézgio Buargue de Holinds, & sonforme observa Aristides jes a Bra, Rio de Janez, 1969, ppg tz, ‘Quaisquer que fossem as prevengies que pudesse ter tido contra si mesmo em ca- Dinastis"e “Qu 6 se sent livre, como também proficiente o bastante para dar aulas & monarquia ¢ a0 piiblico leitor sobre a sociologia e a evolucio. Todos devem aprender (em “A Pi- tria e a Dinastia”) que a evolugdo é uma lei do cariter bastante positivo das ciéncias stdes Sociais”, no riter privado, nos primeiros artigos, “A Patria sociais, mas gloriosa em seus objetivos, pois é ela quem traz a revolusdo, 0 progresso © a civilizacio para o Brasil, como antes trouxera para a Franga. [0] seu curso, como est ¢ fatal, nexorivel, nao ha tradisdo que The demore a marcha, nem revolugdes que a perturbem 1. E, ja que ela esté voltada para 0 futuro, ento com cada avango nes- sa direc, 0s reacionarios na monarquia que tém a cabega no passado serio sempre empurrados para tris, quer queiram quer nfo, em pleno século xx, como covardes batendo em retirads. Dizem que a democracia brasileira (como em “Questées Sociais") foi purgada do partidarismo pelo consércio das ciéncias ¢ pelo pendor natural de “nosso tempe~ ramento”, que a revestiu de toda a ligica das dedusées cientificas, de modo que nio mais a apreendemos como um tipo de governo, mas como uma conclusio filoséfica que somos obrigados a aceitar. Em termos comtianos, “a democracia é, pois, uma teo~ ria cientifica inteiramente desenvolvida, simboliza uma conquista da inteligéncia, que a atingiu na Sociologia [a maitiscu observasdo metédica da vasta escala da fenomenalidade inferior sintese final de todas 6 de Euclides) depois de se ter avigorado pela 8 racionais (podemos assim dizer), Um democrata pode ser formado politicamente como um gedmetrs (1), assim iz Euclides, mas felizmente a histéria nacional tem uma presenga marcante em sua educagio: outrora instigado devidamente pelo “velho cazrancismo” da dinastia Bra~ ganga-Habsburgo de Dom Pedeo 11 e seus ancestrais, ou pela heroismo dos lideres ‘executados de levantes locais do passado, na Minas Gerais do final do século xvitr € asileiro deve ser ele mesmo, no Pernambuco do inicio do século x1x, 0 republicano historicamente, um revolucionatio. A continuidade da hist6ria ¢ o claro carter pro- positado da evolugio podem ser personificados para ele na imagem de Pascal sobre a hhumanidade: um individuo gigantesco tinico que percorse a passo largo as idades"™. O hiiperracionalismo desses avangos politicos nto é muito surpreendente, pois Eu- clides continua sob as asas de Benjamin Constant, seu antigo professor de Matematica «€ um arquipositivista; ¢, como tantos intelectuais brasileiros de seu tempo, como disse a respeito de si mesmo (numa carta @ também estava “nessa época [final da década de 1880] sob o dominio cativante de Au- Lticio Mendonga, sem dia nem més, de 1904), 1 lve Completa, vl. 1, 9.544 Ter, 546. 18 Ldom pp 54-507. gusto Comte™, Alusdes as obras Sintese Subjetiva e Curso de Filosofia Pasitiva desse autor" aparecem com frequéncia no jornalismo de Euclides até final da década de 1880, € o programa positivista comtiano de reforma social através da cineia o predis- pés, subsequentemente, a voltar ao exército em novembro de 1889 para iniciar a car- reira de engenheiro. Todavia, a partir de 1890, durante grave crise financeira do novo governo republicano, o nosso escritor perdeu todo o respeito pelo seu “antigo fdolo”, Benjamin Constant, em virtude de sua politicagem ¢ favoritismo como ministro da Guerra no gabinete™. Aos olhos do protegido de Constant, essa foi a primeira fissura na superficie do positivismo brasileiro Uma segunda série de artigos de Euclides ~ “Atos e Pelavras", em oito partes ~ sai no jornal A Provincia a parti de janeiro de 1889. Agora avertando a mao, mesmo ne~ gando ser um jornalista, Euclides optou por atenuar “o estilo campanudo e arrebicado” de sua eserita!”e fazer alguma justiga & oposiglo, nem que fosse porque ela a todo o tempo estava-se tomnando menos séra ¢ os republicanos estavam fadados a vencer cedo ou tarde. Portanto, entre os monarquistas, é mostrada (na parte 11) sua indulgéneia até ‘mesmo para com a brutal Guarda Negra constituida de escravos libertos e capociras, que exam contratados sub-repticiamente por um funcionrio conservador do Governo para hostilizar as reunides de republicanos e dissolver as manifestagdes estudantis de solidariedade & Repiiblica. A maior parte dessa unidade, diz. Buclides com uma certa mordacidade, apenas “saiu da exploragao dos semborei"— pelo decreto de 13 de maio de 1888 ~“para a exploragio dos eceravos"— isto 6, dos conservadores. “‘Demais”,acrescen- ta, “a raga negra, em sua esséncia nimiamente afetiva, harmoniza-se admiravelmente & latina, profandamente vinculada & nossa sociedade — constituindo-a quase...". Desse ponto de vista, a Guarda Negra era uma abesragaio social da politica partidéria No outro extremo da monarquia, ao pé do trono, Euclides nio pode deixar de apreciar (na parte 1v) as boas qualidades do Imperador, que em seus anos de declinio tinha-se dedicado a estudos diversos tais como astronomie linguas seriticas, tal qual 14, Obra Completa, vol. p. 6. 1s. Pars referéncae comparativasconsulte-se mew arigo "Euclides da Cunha and Bruiian Post- ism em Lase-Braziian Review (Summer 1993),36(9, PP. 99 © 92:24 16, Consultem-s techos de uma carta esr 40 psi e itada por Soust Andrade, Histriae Inter pret. P56 7. Obre Complets, vo. 1,549 18. emp. 53. Em 7 de mao € 15 de juno de 2095, Jol Bicalho Tostespublicou em © Demeerata «na Foe de S. Paulo, respectivamente, dss verses de um documento que Exclides, junto com dois ‘outros individuos de mesma opinito, um do Rio Grande do Sul e outro do Cears, drigiu contea a Confederagio Abolicionista, numa critica justficivel a suas propostis para promovero bem-estac dos sscravoslibertos (de 13 de maio de 1888) Esse documento de rigoatestaindiretamentealgumas cengas 4 Euelids a respeito dos negros, em particular o fato de“ raga preta africana ser muito superior em aetividade & raga branes" EUCLIDES DA CUNWA: UMA ODISSEIA NOS TROPICOS FE 67 um rei-fil6sofo que pretendia ser. No irdnico cumprimento que Buclides the fez como. homem de espitito ele seré capaz de avaliar a forya do evolucionismo historico de Spencer na “marcha retilinea e imutivel das leis naturais da cvilizagio"” e pode entio julgar por si mesmo se seu regime se harmoniza com essas leis ou no. Contudo, justa- mente porque o Imperador era tio sibio e bom, isso jé prova para Euclides o quanto 0 Império é mau, deixando & parte seu governante. Outros elogios a seu “espirito”e & sua austeridade sio um pouco insinceros partindo de nosso colunista, que vé na sevolugio, a0 tempo desse benigno potentado, um oportunism justficivel, plenamente endos sado pelo Zeitgeist. Felizmente para todos os brasileitos, a revolugio seria incruenta € 6 destronamento do Imperador, calmo e digno. Acomodagées como essas& oposigio afrouxaram e constringiram, alternadamente, « propria posigdo ideolégica de Euclides como apologista republicano. Embora seus adversirios dissessem que um conceito socioligico de Republics, que deve ser gover- nada segundo os prinefpios positivistas do dever € do direito, era bom demais para ser verdade, cle objeraré (na parte 11) que a sociologia é uma ciéncia que est em sua infincia e ainda € incapaz de decidir a viabilidade do canceito ~ um depreciamento da cigncia social em desconformidade com sua insisténcia nels em “Questdes Sociais 1” No entanto, se, para efeitos de argumento, devia concordar com seus antagonistas (na parte v2t) de que nfo existe essa coisa de partido republicano, era apenas para exaltar o republicanismo acima da politica, a uma quase-doutrina religiosa como o dogma da “Igreja”positivista oficial”. A devogio ao ideal da Repiblica nao podia ir muito mais, Jonge na diresio do positivismo puro. Sobre a reconsideragio final da monarquia, por fim, descobre (parte vil) que a velha sociedade imperial est morrendo “naturalmente, comicamente™, de pura inanigl0, seu fervor revolucionério esfria um pouco,e ele realinha seus paralelos franceses& his- ‘ria brasileira. Nao o vulcdnico Danton com sua grande oratéria, mas, antes, a genia- lidade eémica do ancien régime, Mole, serie « presenga mais adequada na derrocada politica da monarguia brasileira ~“ hilasiante dégringolade”, na previsio de Buclides”. Ainda assim, a vacilante instituigio conseguiu sustentar-se por quase mais outro ano sob a decidida lideranga do Visconde de Ouro Preto na chefia do gabinete ‘Ao término dessa segunda série de artigos, Euclides estava de volta a sua provincia natal, Rio de Janeiro, onde passou a primeira semana de feverciro de 1889 com a tia eo tio, os Garcez,e com a inma Adélia, em meio as cenas rurais da infiincia, agora visivel 19, Obra Completa vl.) P55 2M. Idem, p58:°A peopagands epublicana toricamente tem, antes de rado,o cater doutrndro de arm sporti. 21 dem 9.360 22 Idem, 539. 68 4 raepenic AMoRY mente deterioradas, 1 fazenda Sao Joaquim, em Sao Fidelis, Em seguida,sumou para a capital ealojou-se temporariamente no bairro de Sao Cristévio,afim de preparar-se Escola Politécnica 0 para os exames de adaptagio em diversas cigncias e completar na ceusso de engenharia civil, que tinha interrompide desde 1885-1886, Na segunda sema- na de maio,jétiaha prestado todos os exames, mas, seja 0 que for que o dissuadiu, ha FREDERIC AMORY chefe de operétios e de homem de letras, visando quase o ideal dessa vida intensa, da qual trarou superiormente o extraordinario Roosevelt em seu timo livro"™, Na Su- perintendéncia, apesar de todo o seu esfargo e dedicacao it maneira do sexto trabatho de Hercules, foi promovido uma nica ver, a chefe do distrito de Guaratingueta, em 2.de dezembro de 1901. esse periodo de constantes viagens e trabalhos de construgio teve a inesperada compensagio de conhever um futuro ¢ importante colaboradar na composigio de Os Sertis isto é, Teodoro Sampaio, uma das figuras intelectuais mais respeitadas do Brasil do final do século x1x. Entre 1894 € 1905, Sampaio conheceu Euclides em Sio Paulo, nos primeiros anos de sua carreira de engenheito,¢ egistrou um desses momentos: De volta de seus srabalhos de campo, erazix am ax de eSdia 4 teat-the uma repugniincia invencivel. Nio que a vida ativa de engenheiro The pesasse; mas porque no encontrava na fanglo, como exercida, a superios elevacio, capaz de o libertar da pasmaceira de uma técnica aque the parecia duvidosa. [...] Mas 0 Buclides, na sua vida de engenheiro exrante pelasregides do Oeste de Sio Paulo, me desaparecia por longo tempo. Era uma raridade quando me surgia de improviso em casa a contar-me a sua odisseia e a maldizer 0 seu tédio que jé se prolongara por muito tempo™, Mas, felizmente, durante a escrita de Os Sertées, quando Euclides mais precisou de sev conhecimento das pessoas e dos kageees da interior da Bahia, os dois homens voltaram a encontrar-se mais de uma vez em Sio José do Rio Pardo. Outro grande desapontamento profissional de Euclides, com o qual terminaremos este capitulo de sua vida, nfo foi na carreira téenica que seguiu, mas numa que Ihe foi negada, a de professor da Escola Politécnica de Sio Paulo, fundada em 1892-1893”. Para comegar, Buclides cometeu um deslize no momento em que a Politécnica estava sendo organizada, ao publica, em 24 de maio e x de junho de 1892, dois artigos em 0 Exstado de 8, Paulo™, nos quais eriticava 0 programa pedagdgico da Escola criado por Anténio Francisco de Paula Souza, fundador e futuro disetor da instituigao, Parte dessa critica foi susctada inevicavelmente pela origem francesa e pela tendéncia po- 34. Ora Ganpca ol p.6 55 Sumpaio data esse encontro do comego de pa em "A Meme de Euclid da Cans no Desimo Anivessio de sua Mor", p. 247-28; mas Sousa Andeade (Hira Interop.) sredia que os dis omente podiam terse encontado ent oil de 199 0 comeso de 89 a4 Tenor SunpuiaA Meméia de Bes da Cun p24 27 Esa tie eta fi recoastidarecentmente por Bato de Santana, Cio ¢ Art ap sn Bstuder Aeron, p57 ch seu artigo "Bucs da Cus a Escola Poicnic de Sto Pal 1900) pp 97196 181 Em Obra Completa v.19. EUCLIDES DA CUNHA: UMA ODISSEIA NOS TROPICOS H€ gf Teodoro Sampaio. o2 % PREDERIC AMORY itivista da Escola Politécnica do Rio, ao contrisio da recente Escola de Sio Paulo, de conformidade com a formagio educacional de Paula Sowza, era uma recriagio ‘rasileira da “Technische Hochschule” alema ou suiga ¢ no tinha uma concepsio positivista (ainda que alguns professores fossem positivistas). Assim, a Escola do Rio bascou-se, em termos positivistas, na matematica a partir da qual se deduziam apli- .6es a determinados problemas técnicos, enquanto a Escola de Sio Paulo era mais :ndutiva e preocupava-se empiricamente com um conjunto de ciéncias aplicaveis as artes mecanicas ¢ as indtstrias™, ides tinham No entanto, é oportuno afirmar com franqueza que as eriticas de F © propésito deliberado de insultar Paula Souza e sua proposta curricular para a Poli- técnica. E possivel que os defeitos de Paula Souza tenham sido acentuados, mas ele «ra origindrio de uma familia antiga e ilustre¢ tinha viajado para os Estados Unidos a Europa, onde estudou na Eidgendssische Technische Hochschule de Zurique, em 861-1863, na Technische Hochschule de Karlsruhe, graduando-se nesta em 1867. Em 1900, durante sua administragio da Politécnica, uma facgio de professores positivistas da Paulo feito por uma comissio chefiada pelo norte-americano Orville Derby, mas Paula cola havia ditigido fortes criticas ao levantamento geogrifico do estado de Souza, sempre sensivel a reputacio da nova Politécnica, defendeu a Escola. com isso indispas-se com o amigo Derby: E bem possivel que o epissdio tenha tornado o funda dor da Politécnica mais cauteloso a respeito dos positivistas hiperciticos da faculdade. Seja como for, 08 ataques de Euclides ao seu programa curricular para a Escola tinham ‘o mesmo espirito negativo que usaram para criticar o levantamento de Derby A opiniao de Euclides, expressa em seu primeito artigo, era que, desde a revolugao sientifica dos séculos xv11 € xvii, 0 legisladores tém-se ocupado das reformas da educasio, as quais, embora merecedoras de elogios, foram de realizagio extremamen- te dificil, como esta exemplificado de forma “eloquentissima no desastroso projeto” de Paula Souza, aprescntado ao Congresso do estado. Pode-se observar mais direta- mente a futilidade da reforma pedagégica se compararmos a uniformidade altamente segulamentada e estéril das universidades francesas com a vibrante independéncia e a intercompetigdo da Hochschulen alema, muito mais fértl em ideias navas do que a rotina estagnada de todo o sistema universitrio francés". O programa de Paula Souza ~“uma coisa desastrosa”-, se for transformado em lei (como o foi), ind desfigurar “de ‘um modo deplorivel a feigao superior da nossa mentalidade™* a9. Barreto de Satan, Cina e Arts. 40. Gina Completa, vol. 1, p. 387-88. A admirago pelo ensino superior na Alemanba nto é nati- salmente,m ato de espeito pela formasio de Paula Souza, as, ants, um indicio do quanto Beles inha-seafatado da antiga delieasio da alte culo francesa. 1. Lem 938 Essas critics, de forma bastante surpreendente, slo o prekidio de uma revisio no ‘mais das vezes verbal do vocabulério técnico usado por Paula Souza em sua proposta essas “incorregdes imperdodveis”, Assim, na frase “matemiticas e ciéncias aplicadas is artes ¢ indistrias’, mateméticas* devia virno singular, nao no plural, por sera tnica ciéncia a adquirir, num de seus ramos, a Mecinica, um caréter de inteira unidade” (2); e “artes indistrias” € uma combinagio redundante. Além disso, “geometria plana e no expago” deveria restringir-se a “geometria espacial’, ¢ € possivel que “geometria su- perior” denote geometria diferencial e integral, mas em si mesma a expressio é vazia, etc. Na mistura de matérias que se devem ensinar na Politécnica no curso de trés anos, Euclides procura (como um antigo estudante positivista que foi) alguma classificasio hierarquica, como nos escritos de Comte ou de Spencer, que os sistematizasse de al- gum modo, mas em vio, Observou, porém, que no curriculo da Politécnica, que ele amplia sob varias justificativas, foram esquecidas a astronomia (‘a base cientifica da geodésia”), a biologia, a economia politica e a “engenharia geografica’(2)* segundo artigo, escrito cerca de uma semana depois, enfatiza alguns pontos ventilados no primeiro, como, por exemplo, o cariter vazio do termo “geografia supe- rior", a auséncia da astronomia no curriculo e a inefcécia de uma reforma legislativa da educagio universitiria sem uma orientagio filos6fica. Tolamente, Euclides achou ‘que, depois de esperar alguns dias por uma resposta a suas eriticas ~ por arbiteirias € obscuras que tivessem sido ~ e de continuar sem receber qualquer refutagao, mas apenas o siléncio, estava “limpidamente provada a incompeténcia’ de Paula Souza em seu programa da Politécnica. Chegou mesmo a fantasiar que o amor pelas ideias que adotou nessa critica com certeza o absolveria, como critico, de um ressentimento pes- sozl ao investir contra o projeto da Politécnica, que, como o colunista expés “linpida mente”, no € praticével para © grandioso fim a que visava. (Anda assim, o Congresso do estado aprovou o projeto tal como foi apresentado,) Contudo, Euclides ainda nio estava totalmente satisfeito com sua exposiglo, porque duvidava de que a sociedade brasileira estivesse pronta para tolerar ou entender “esse grande ideal de um preparo filos6fico comum, presidindo a todas as atividades” (cientificas) e ser necessétio or- sgtnizar de modo adequado o ensino da ciéncia na nova Escola. Um preparo “dificil e longo” sera este, e nao sob 0 efeito de generalizagbes apressadas e combinagdes fceis, que “a intima solidariedade das cigncias nfo faculta™®. Duas preocupagies, agora mais metodolégicas, absorviam-lhe a mente: um simples dado das ciéncias exige muitas vezes uma miriade de consideragbes, ou um julgamento pratico. De um lado, por exemplo, o conceito nuclear de calor na geologia pressupde, 12, Oba Completa 1 pp 389-590 4. Idem, pp. 398302, jelativa wachou witrdtias: Ro, mas yuzacm tas que to pes- impida- mmgresso nda no wiedade preparo sitio or “dificil e ts faccis, 1 simples gamento ressupde, para explicé-lo, um conhecimento de quimica, fisica, astronomia ¢ matemitica. De ‘outro, a pritica da agricultura a que o agrénomo deve aplicar-se tem pouco a ver com as ciéncias superiores do cilculo infinitesimal, da mecanica ou da astronomia, de que le pode prescindir incondicionalmente ao fazer um julgamento, Por tiltimo, a indés tria brasileira, que esta nascendo, nfo deve presumir que € original em seus processos ‘quase cientificos, porque j dispde de tantas boas invengdes em paises estrangeiros (isto na Europa e nos Estados Unidos) que pode importar.No total, a educagao poli- técnica no Brasil continua a ser completamente remodelada e diferenciada muito bem de acordo com as diferentes carreiras cientificas, ao passo que a indiistria brasileira, na virada do século xx, ainda est na infincia, eo projeto da Escola Politécnica constitui “uma tentativa eminentemente civilizadora, ainda que mal baseada™* Nio é de admirar, portanto, que, mais tarde, quando Euclides decidiu seriamente candidatar-se a uma cadeira (em junho de 1892) nessa infamada instituiglo, Paula Souza nao the tenha prestado atengao. De 1892 a r904, com a ajuda das pesquisas de Barreto de Santana, podemos acompanhar a continua rejeigao de Euclides entre 6s candidatos ao cargo de professor da Escola, No comeso, em resposta 2 algumas cartas (que nao chegaram até nds) que escreveu a Teodoro Sampaio, esse amigo dew 4 reconfortante opinigo de que, nos dois primeiros anos de curso, haveria duas cadei- ras, uma de engenharia civil e outra de artes mecainicas, as quais seriam preenchidas por nomeagio; posteriormente, seriam preenchidas outras cadeiras por concurso entre os candidatos, mas de modo algum “a politica” interferiria no resultado", O velho correspondente de Euclides, Reynaldo Porchat, que talvez. tena tido uma premonigio de alguma composigdo interna em seu favor, escreveu-lhe, em 26 de novembro de 1893, dando-Ihe uma opinio contrivia, a de que na verdade o fator “politico” do favoritismo iria pesar na escolha dos candidatos*”, Nesse meio tempo, em outras cartas 20 amigo Joao Luis Alves, de Campanha, Euclides ressaltava que o objetivo de sua candidatura era uma cadeira em mineralogia e geologia: ele estava “absorvido pelo estudo da Mineralogia, vivendo numa éspera sociedade de pedras™*. Ele mesmo resumiu nos seguintes termos as oportunidades e as desvantagens que tinha diante de si®. _H. Sobre as origens das indistriasbrasleirasveja-se as obras clisics de Stanley Stein, Te Brazilian Ceton Manufacture: Teste Enterprise tan Undedcecoped Ares, rg0-r9so, Cambridge, Mass, 957.0 Warren Dean, Te Industralizaden of Sto Paul, Austin, 969 45. Obra Completa, vol: P. 392-95 46. A-cara de Sampo, de 19 de agosto de 893, €citada por Jost Carlos Barreto de Santana, Ciznea Arts p5. ‘7 Acara de Porchat tani &ctada por Barreto de Santana, Citneia «Arts pp. 38-9. ‘6 Carta de a3 de abil de 196, em Galvio 8 Galo, Corepondncia de Eucider da Chrba, 9. . Idem pp. 95-98 BUCLIDES DA CUNHA: UMA ODISSEIA Nos TRAPICOS 95 Jo cidadio A, cheio de isioa convicc, baseado em anteriores exerplo,ftos pasa dos com outros, afirmava-me que isto de concurso em S, Paulo no valia nada, endo invaia~ velmente nomeado persona grate do governs, ..]- Logo aps 0 cdado B,confidencialmente, fazia alusio & minha seta positivist fu, positivist!) ea bir especial de algumas iniéncias pelos que a [a scita positivista] professam. /O cidadio C, lembrava-me artigos meus, de 92, 9 Bade (de S. Pele, em que combati energicamente a mancia pela qual foi organizada a Escola [Politénica, ets. Um outro, comunicavi-me a exstencia de terivel adverse, um dos primeins geslogos do Brasil, dsefpulo brag dirt de Goris ee et. /Tmagina que imenso esfargo para ficar a cavaleiro de cudo isto. Nesse actimulo de opinides, a do cidadio A, que representava Porchat, era com certeza & mais correta ¢ no menos que a do cidadto C, quem quer que fosse ele. O discipulo do francés Gorceix, que chefiava a escola de minas de Ouro Preto ~ isto €, Francisco de Paula Oliveira ~ era de fato um “terrivel adversirio”, visto que também cra favorito de Paula Souza, mas, come aconteceu, cle recusou a oferta da cadeira de rmineralogia ¢ geologia que Euclides eobicava. Depois disso, porém, a cadeira foi ofe- recida 2 outro candidato que a aceitou. Euclides, imperturbado, perseverou na ilusio de que,em algum momento de sua vida, haveria um lugar para ele na Politécnica De 1896 para 1897, Paula Souza mudou os procedimentos da escolha do candidato. Inicialmente, algumas cadeiras deviam ser preenchidas por nomeagio, de acordo com as dotagdes oryamentirias do Congresso do estado, como Sampaio dissera a Euclides, as restantes seriam distribuidas por concurso aberto entre os candidatos, a medida que fossem entrando mais recursos do estaclo. Mas agora, como em 1896, Paula Sou- 2a pensava que um concurso livre e aberto apenas “traria males para a instituicéo € para 0 justo progresso de nossos trabalhos"™ ras restantes da Escola foram preenchidas somente por nomeaglo. Teoricamente, por essa norma, Euclides poderis ter tido melhores possibilidades de obter a tio sonhada ®,¢, consequentenrente, em 1897 as cadei- cadcira visto que, em iikima andlise, as nomeagies seriam apresentadas 20 governo do estado para a aprovacio final,c esta seria determinada politicamente sem Ievar em conta a importincia cientifica dos candidatos votados originalmente. Esss opsio, para melhor ou para pior, encorajou Euclides a manter sus candidatura até 0 amargo fim, quando finalmente a retirou por fal de apoio dentro da Escola Nesse meio tempo, porém, comerou a mudar de ideia com respeito a manter a cor- rida em fusea dessa cadeira. Entre outras coisas, em abril de 1896 sua esposa Ana caiu ‘numa profunda apatia, que os médicos diagnosticaram como antipatia fisica x0 clima de $0 Paulo,¢ recomendaram uma mudanga de ambiente, para outro focal. marido, 50, Boro de Santana, Citi etre. 6, 96 9 FaEDERIC AMonY

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