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Tro 4 aa Vig O IMPERIO GRECO- ROMANO io dt fausiro + Cr Pe ee ee os 3 caAriruca 1 <. Oqueeraum ~"2° imperador romano?!"-* = © regime dos césares era muito diferente das monarquias com que estamos Ji} sais famiiarizados, ou sea, a realeza medieval e moderna; nio fosse pela ausén- =~! cia de uma verdadeira hereditariedade femniliar do trono, pensariamos antes no Império Otomano. Um rei do Antigo Regime era propriettio, por heranca, de ‘um reino que constituia seu patrimdnio familiar; afiogdo da familia ed heranga era aceita pacificamente e perpetuou-se com assombrosa facilidade. O impera : dor romano, por sua vez, exercia um cargo de alto risco: ocupava 0 tron0 no . como proprietéri, mas como mandatério da coletividade, e era por esta encarre- * sgado de dicigira Republica — do mesmo modo como, dizem-me,? os caifas eram. os mandatirios da comunidade de creates, enfrentendo os mesmos confitos san- AG guinirios a cada alterndncia de reinado. Claro que a coletividade que delegava 7 | __ poder ao imperador nao passava de urna fce20, de uma ideologia, mas bastava a existencia dessa fc¢Z0 para impedir que seu suposto representante tvesse @ ‘ legitimidade de um rei, uma legitimidade vinculada a sua pessoa inviolével 1 te © poder imperial é, portanto, uma delegeco, uma missio confiada a um in- dividuo pretensamente eseclhido ou eceito pelo povo romano. Assim, a sucesso Ge ceseres seria, em tese, uma “cideia perpétus de delegactes'? Por conseguin- te, ocorre insttucionalmente ums descontinuidade entre os imperadares, como 2 entre magistrados que se suceder no mesmo cargo. Em principio, as medidas 2” tomedas por um principe s6 continuariam vilides apés a sue morte se confirma das por seu sucessor; nesse sentido, conchui Mommsen,* 0 imperador no é um rei. A descontinuidade entre soberanos sucessivos era tal que, em qualquer con- sideragio pelo principio monirquico, o nivel de serilismo da linguagem useda para referi-se a um imperador reinente 56 se igualava ao grau de desprezo ou. rancor com que se podia falar (impunemnente) dele no dia seguinte 4 sua morte ~ basta comparar o que Marcial escreveu de Domiciano vivo e de Domiciano imrto, Digdosc a Taan, Pino menciona a falas de seus predecesores € corajoso Libiaio elogia Licinio e chama * Alem cise, spestr da pritica coment de sacesto Au I de fantoche de fot “As nots de rfertncias deta obra esto disponives no ste de editors: worw.cempus.cor.br. de maneira automitica, por direito ‘posse € explicitamente investido® ‘uma passagem categorica ~° ‘pode ser comparado a uma sucessio de grandes pateiotas que assumem os negdcios piblicos ¢ 05 transnitem naturalmente a sew suposto herdeiro, ou ainda con- quistam, 20 fim de ferrenho em Império Romano”, Essa descrig decénios do século IIL, mas po: _ dos primérdios de nossa era: “Com a idade de 19 ai propria e com meus proprios recursos, reuni um exército e libertei a Repablica.” Quel- quer cidadao dedicado, visando ao bem comum, podi desde ie se impusesse ~ e que se tratasse de um sena de origém grega, nem, mais tarde, germénica.! Essa doutring Império Bizantino nao era muito mais que ura fi pretenso consenso universal nascido quando vité mente, um ar de leitimidade ao eandidato vitorioso 20 trond; por outro lado, nao deixava de significar que este nfo era propriedade nem de um individuo nem mesmo de urna dinestia (pelo menos até o sécilo IV). Esse € 0 motivo da célebre aversio dos romanos & palevra ‘rei’: 0s escravos de um senher, do contrétio dos poves gregos e orientais que conguista- desse sistema a cada mudanga de reinadbo, surgia 0 risco de iodes de tranqiilidade, assim como a idade de ouro do século ‘muito mais ums excega0 do que uma regra. Houve casos em que o Império necessitava de candidatos a0 papel de salvador assist imperadores, sinados, e uns 40 usurp pretendentes condenados & morte scomerciais deveram sua ruina a dsputas pelo tone. malsucedidos que era do Império, Lyon e Pal 2 Qual a razto de tanto derrarnamento de sangue? Isso ocorria porque o principe ‘8 considerado 0 mandatério do povo ~ 0 que nao passava de ideologia, de uma ficsio, uma ver.que, na realidade, es -sucedera seu pai ou se apossara da purpura, ¢ veremos quem era seu © que nio era ideologia era 0 fato de que jamais se conseguiu esta regra automitica de ascensio 30 trono que impusesse a excolha do sucesor: semelhante norma constituria uma ‘ofensa a idéia todo-poderosa de soberania popular~ e faria de Roma um reino. Ne- ‘huma alterativa restava, entio, ao povo ¢ 20 Senado, senio legitimar os golpes que um descendente do principe reinante sucedesse o pai ou parente em seu ; “suporta-se de melhor grado cescolhido".'* Em conteapartida, patriménio hereditirio, © seus bretudlo a guarde imperial) feziam o mesmo! ica do poder,” a escotha menes passi- yal poucos pretendentes ousaiam se ‘por, seria designar seu flho (asim, Cémodo sucedeu a Marco Aurelio e dois prin- cipes ainda Griangas, a Teodosio)* ou adotar um ~a adogio era ‘ quanto a consangtinidade. (o curso de um dos piores vil em que os pretendentes se enfrentariam de armas em punho. Foi exatamente o que ocorreu em 193, depois do assassinato de Comodo, que nio deixou herdeiros~ e pode-se até supor que alguns dos rivais «que disputaram o trono entio teriam sido os mesmos que se confrontariam em 3b o Antigo Regime, a superstigéo dinistica que convertia o trono em uma propriedade de determinada familia, sempre # mes- thon, provocou iniimeras guerra cvs. io & come membre de wa famulia que se destacava ent |__tum de seus descendentes, concepgbes € simples: suck ‘ 0 IMPERIO ERECO-ROMKNG Essa situasdo sofreré poucas modficagées no século IV; o sistema de ci seré substituido por uma verdadeire monarquia hereditéria,s8 que nos moldes do ue Jacob Burckhardt denomina de sultenato:* a posse duradoura do tone cabs 2gora a um dos membros de uma mesma familia, como a dos segundos lavienes ¢ posteriormente, a dos teodosianos ~ mas caberia a um irmdo, lho, ti, soba aho ou primo? Era prudente que o feliz eleito pecmitise o degela de alguse ce seus parentes pelos militares fits familia, que julgeriam qual era a opcao mois convenient 3 De acordo com essa concepsio, 0 imperador e magistrado continua send: tum aristocrats ~ nd um pai de ami cigo seine contin arene reditério~e sua familia, uma gens arstocrtica, Oa, por mais quam ween, se tome senhor do mando, continua sendo senhor desimesmo.e pode foes ei gue bem entender -como, por exemplo, proceder como um "Césalouco" tone ue voltaremes a abordar mais adiante. Sua familia demonstra a means desoe Jelture patricia; por isso os escindalos e dramas familiares do prince oe Império, o mau eomportamento da fitha de Augusto ou 6 doen fas verdadciro, da imperatriz Messelina, que, por amor s onte Porsowrse do imperador sem que este soubesse Dai tants “edsares loscoe” cn ‘oma fendimeno que nlo se zepetiu no Antigo Regime eulopeu, care na hen redtaredade patrmoniel do rio, supeciecanente eon ea op Bilelade. Quem eso nperador omen ‘lo pai obtivera sorte; adignidade imperial no estava,entdo, ancorada an an “~_rochedo de propriedade patrimeonil que atzavese ox felon a ae Qual & 2 origem dessa concepsio aristocritica ¢ clientelista, curiosamente associeda 3 douttina “republicans” segundo a qual a comunidade cxcelhern ne Sali? Do ito de. cesarsmo se fruto da cidade antiga, que, quando republics, zads ti em comum com as repablicas tuas lem donome @ desocrica ia reine os fdividuos ¢ os reduz, a todos, a uma mesma vcome shee Farce how 2 segundy inca 19 Consthncio que ganhou dr hstrisdoesbaantn 293, , Superasse seus concorrentes — ¢, sobretudo, com a condigdo ‘Assim se delinia a historia de Roma: entre 0s anos 68-70 e 411-416, o com- bate entre os chefs recomeceva a cada geracio (com apenas cerca de duas ou ‘us exceyées), ou mais de uma vez por geragio. Um imperador nunca seré, ‘como os noss0s rei, 0 trangiilo propritério de seu poder, seguro de sua perma: Igo como um proprietirio que tem suas teras devs ditos vém-se queixar em contrapartida, um Ci € um principe malsacedido, mas um incompetente que & “ No Impétio, a palavra “repéblics"™ ndo deixard de ser pronunciada em mo- ‘mento algum ~ e nlo se trata de uma ficgio hipScrita.© Sob o Antigo Regime, remador da Panéata (antiga repito da Europa entre © Dantbio, 2. a Austria, Eslove- ‘aco concedew-ihe uma prédiga penao e pecmiu-ihe vver paciicamente em Prise negitistastardios, 0 imperadar € sempre o paladino da Repibico, p garda The cabem ele “nasceu para o bem-estar d vertebral, ruriaPara a maioria dos nobres, o regime imperial apresentava van- or meisque hes repugmasse adm‘: impano regs pera tancia da nobreza pel ado. Em termos mari rquia que pretencia permanecer classe dirigente p ‘que governava por intermédio dos imperadores; iva senfo ter uma profunda conscitncia de ‘Augusto, frmou-se ini lo momento e estatura do novo senhor e perpetuou-se « Tox O pri € todo-poderoso. Seu poder €0 i pleto € io ¢ comparithado com ningu ninguém ele tem de pres tamanha onipoténcia, A reno estava na concepeao romana de poder, do oluto e completo (0 mesmo de um oficial no campo de bat re seus homens, em que desobediénc Suas determinagGes podem requerer a aprovagéo do Senado, mas ele também pode legislar por editos ou meros mandades, que terio a mesma forga de uma lei © 0 iwpenio cael «© serdo incorporados ao corpo do direito romano, porque tudo 0 que © — decide é legal. Ele s6 consulta 0 Senado de acordo com a prépria conv e dele obtém 0 que quer,” de tal modo, escreveu W. Eek, que es decisées do .bam constituindo a fonte do direito, mais que 6 senanus-consulto, que force legal ce sua intervencio;” em caso de algum hiato gal do fideicomisso nao estivesse assegurada), ape- ‘ebenfezejo do Augusto para preench introdusio do procedimento inquisit co juia stuado acima daqueles submetidos 8 justica, Explicitando: ranscendente — ou, como diz foi definido com extremo esc nada tinha em comum, além do nome, com 0 que se Citando Peter Brown, 0 imperedor é um autocrata sagens sobre as quais nio nos estenderemos mi ‘O principe tinha direito de vida e morte sua execugao sem julgamento prévio, visto que a vide de smo de cavaleiros ou senadores,* estava submetida a seu quem bem entendess, a fim de decidir sua sorte; foi assim que os sobrinhos-netos de Jesus de Nazaré™ foram levades a Roma, 4 presenga de Domiciano, que vit com 6s proprios olhos que aqueles descendentes do rei Davi no passavam de campone- es inofensives, que cultivavam menos de um hectare, ¢liberou-cs para os senadores, prometendo-thes nem acreditar em delatores (ja em 458 © Senado}.* Suponhamos, todavia, que uma dentin F 0 acusado acs tribunais, ou sej, 20 Senado ~ reunido 1ordinéria, caso 0 acusado fosse um senador ou uma ot, para os menos privilegiados, o prefeito do pretiio, prefeito de uma cidade ou governador de provincia apenas para ler a sentenca, sem a presence de jurados; ou ordenar pessoalment ‘um simulacro de processo, em seu palécio ou no santu: imperador convocaria 0s um procedimento inguistorial em que o réu nio tinha advogad rao ‘eredicto e, em caso de condenagio, aumentaria ou diminuira, a seu bel-prazer, © rigor das penastradicionais, ra um absolutisme, porém fundamentado em uma - {continha em si uma contradigao e suscitaria sempre ~ certo mal-estar, © principe ~ escreveu Wallace-Hadrill - era ao mesmo tempo subli- 1,em si, a propria do cesarismo.% Uma citagao de Tocqueville seri suficiente: “Querer que o representante do Estado seja munido de um vas- + ta poder e, a0 mestio tempo, seja eleito constitul, a meu ver, a expressio de). 4 no caso de Marco Aurélio (os apologistas te 2 ese soberano como filsofe), ou no de piedoso pretexto~e com a ienciosidade tpica ‘Adriano suscitou em todo o Oriente o culto divino ow fu privada,escolheu 0 cristianismo como a religtio per “e ite indantes favores, ava a bareira que os fo de imensa franqueza, comentou seu horror diante dos ‘Assim se explica seu pragmatismo no terreno religioso: fe cuja paicio pelos espeticulos triunfo do cristianismo, 0 nome marcante nik mas o de seu sucessor, o amargo e devoto Constir subjetividade do principe, mas de determinada concep aque ele entendia como deveres a cumprir. Tes mandou gravar, como ura bi mente a imposigio da mor media a extensio de seu poder sobre seus sit - eito & moral, tanto privada quanto civica, ndo raro passava pela con sociedade. Na pratica, 2 moral privada confunde-se com a moral tar ou roubar constituem delitos pablicos. Se o poder imperi ele, conseguit reger tudo, em nome do bem publica, cial, nao se fez representar nem como um lumninoso poder pessoal, eram os princip giiéncia que 0s estudantes, que Nero e Cémodo, encoatrarnos u lifes com mais fre- fer. Com Caligula, virtues ou capncidads pectin em prt er tees poll, cone remn-thes tamanha magnitude: sto grandes porque reinam, vice-versa, Caliguls, se comparado a seus siditos, & como um deus: 0 senhor do mundo é superior 4 humanidade, do mesmo modo como, dizia ee, na escala dos seres 0 pastor é de uma natureza mais elevada que os animais de seu rebanho.” Cémodo, por sua ver, € grande por suas faanhas (ele ostenta os titulos de slgoz supremo dos sgerminicos e dos bretées), mas também por sua propria natureza; cunhou para S10 titulo de exsuperatorius. Seu império existe tdo-somente por ele e para ele; a -ado com Hércules, cuja pele de leso e clava ostents, Cémodo pretende © nove fundador divino de Roma, agora denominada de “colénia co- {que tantos entusiasmos provocava (como aqucle, que se pode jovern poeta Lucano): 0s fandticos partidirios de Nero aclamavam antigos e modernos e que acabou por re a mero cabotinismo: Nero gebava-se de combate, escreve dperas joga gi ‘Quando se possut todos esses 7 Situadas no contexto de sua époce, essas megalomanias implicam também certos valores. Sihanouk era a encamasio da. uno poder ~ esse sintoma de que a nacio participa da grande era neroniana rompew com o antiquado e pesado passa- ppara retomar o elo com a grande civilizagzo atemporal, sempre , por ser a verdadeira. Além disso, Nero angariou populasidade em sua capital atrelendo & sua pessoa nto os onerosos deveres dos cidadios, mas. continuow caminhando, as méquines administrativa e fiscal prosegu ‘curso ratineiro, Sues elucubragbes nto diziam respeito desi mesmos, do circulo estreito de seus respectives due eles pretendiem tomar conhecida de todos os seus st gem que residia 0 verdadeiro escéndalo: ela jue consideravam o principe uma propriedade dele rovincianos, que no ecompanhavam despertava o entusiasmo dos plebeus ava-se pela manutengio do status quo, pelo fechamento entre chefes e grupos ditigentes, e pela opinio dos go- is do que lidendo com grandes problemas, conflitos ‘egalomania dos “céseres loucos” nio era totalmente despropositada; ape- classe dirigente, como Ti ico e mais poderoso de mundo — Le sugestiva de Filon —1°5 cevaleiros © marinheiros. © a seus siditos, 0 fundamento lon, a admiraczo suscitada pelo iperadores, Filon captou aquilo de seu poder, seriam entéo, a acreditarmos em Fil poder e pela siquezs, Da aura que cercava os im ue © pensemento da época lhe permitia decif ‘ imagem do soberano é gigantesca, como a de w tro lugar-comum de que se dispuha para icamente para o vocabulério religioso e descrevia o pr Hoje em dia, podemes dizer mais. S ualquer que seja ela (0 Império, uma lere am tipo de miliardério. O tinico, 3¢ membro de ume coletividade, um partido politico militante), 2 QUE RA UW om aowaNe? 6 acarreta sempre um sentimento de vinculaglo, de fidelidade, de emor, de live dependencia dos governadas no tocante figura do chefe, ps dicio: que este no ecja percebido como tendo sido criado Ier\nio se pode ser, 20 mesmo tempo, designado Polico importa que, em tese, o poder supremo no p na realidade, fosse imposto por uma camarilh que essa origem seja de algum modo exquecid: ‘see soberano parega rei foro caso; ou da heredita- riedade da caroa em sua fami; ou, em Roma, do simples fato de ele se encontrar ‘no trono e, como o ret leto, parecer ali estar por uma eepécie de dirito a sua posse. Aealdade a pessoa do chefe, uma vez que ele reina por esse direit subjetivo, nao é fruto de nenhuuma crenga inculcada por ates de propaganda ou hébito, messign uma conseqiiéncia automitica do patrotismo, do “instinto gregério’, do sentimento de pertencer a uma colevidade. Na Gra-Bretanha do século XIX, todo inglés pariota considerava sere, lealmente, um grande bomem. Na auséncia de um testemunho explicit, pode-se supor que houvesse, no Império Romano, um elo automético do tre imperadores ¢ seus suiditos, do mesmo modo como poderos tera certeza de que, naquela época,o céu era zzul. Seri necessiio mencionas a ligec30 das catélicos com seu papa? O exemplo mais espantoso € a conquista aparente do Tuminismo e da liberdade: 0s ocialistase socialdemocratas europeus por volts de 1900, que cultuvam seus chefes bem-amados."® (0 imaginirio monarquistaestava presente por toda a parte em Roma. B xelas de prata'® eram ornamentadas com cenas que exaltavam o impera familia, suas vitérias; sobre os bolos que eram distibuidos & populagio de dos ios publicos, via-se o imperador (ou seu génio, ido uma cor- uc ie ofertava um sacrificio dian signias milita- 03.9 dana, durante os jantares, consistia em oferes brinde ao soberano: setidava-se com um "Viva 0 impersdor!” o génio do: reinante.! As pessoas entusiesmavam-se com x passagem do senhor qu: este fazia sua entrada triunfal em uma cidade, Leptis Mi Sabine MacCormack demonstrou qual era 0 consenso ‘radas solenes (adventus) dos imperadores, que a popal aclamar."9 Por todo o k Essa admiragao virtuosa ndo distingue o homem de sua fungio; dai os siditos se curvarem diante do individuo, de sua familia, de seus caprichos. Em contra- partide, essa veneracdo pelo individuo sera vivenciada por todos os sucessivos ‘ccupantes do cargo. Os imperadores assim venerados nfo eram lideres carism’- ticos; para citar Fustel de Coulanges, nio se acalentava por eles “esse entusiasmo irrefletido que certas gerages nutriram por seus grandes homens" o principe podia ser um homem mediocre e, nao obstante, ser amedo, honrado sinceramen- te-como um ser divino. “Ele nio era deus em virtude de seu mérito pessoal; era deus por ser imperador. ve 8 1wPERIG BREGO-R Sera que devemos avancar ainda mais? No Antigo Regime europeu, a relagio de livre dependéneia colone-se com freqiéncia, se nao sempre, de sentiments. lismo (0 otlebre “amor pelo rei"). Chegeriam os habitantes do Império Rom: a esse amor que nio é um afeto de eleicio, mas um sentimento inerente a con- digdo de sidito, por uma vinculacio aceita de dependéncia ndo-regulamentar ‘quanto a determinado individuo? A tinica generalizagio que podemos fazer & no tocante ao Antigo Regime." Saint Simon era demasiadamente préximo do tro- ‘no para ser to ingénuo; apesar disso, em uma ocesido em que Luis XV adoeceu, “realmente se teria encontredo na capital um milher de homens toloso sufciente para sacrficer suas vides a fim de poupar ado re’, escrevew um contemporinco, que descreve essa tolice como algo nada surpreendente, de que se poderia estar certo mesmo sem vé-lo com os proprios olhos."® Na Roma imperial, quando de uma enfermidade de Caligula, os romanos ofereceram a vida por sua cura;)* um tribuno da plebe ofertara a sua em troca da de Augusto, que caira de came;2® cesses fatos, contudo, costurnam ser relatados pelos historiadores como excegdes notéveis. Wt 16 Em todo caso, amor ou no, a populacdo do Irhpério também tinha boas axes por assim agir. Ao estudar a plebe de Roma, veremos mais adiante que, por uma espécie de antiparlementarismo, ela preferia a imagem do sobereno 4 Repiblica, porque 0 soberano @ palfareil)Enquanto o imperador se dizia republicano ¢ suas moedas celebravam a gloria dos romanos, set povo sentiase monarquista. E, a0 estilo monarquista, tudo o que o imperador facia passava por “diva”, fruto de sua “indulgéncia’, ai compreendidas a mais banal formalidade _administrativa, tal como presentear com seu retrato todos os veterans oretrato cera dado sempre, mas era preciso recorrer 4 generosidade do principe. Para citar Mireille Corbier, essa ficgio, extraida do vocabulério das relagdcs familiares, per- mitia a um regime fundado sobre o militarismo reencontrar a sociedade civil" Essa ceracteristica do estilo monirquico ¢ plena de significado porque, em um sentido, a palavra “didiva” devia ser tomada ao pé da letra. O imperador era uum benfeitor~* e uma didiva é, por definigio, estranha a gencralidade anénima das leis ¢ regulamentos, pois pressupée ume individualidade. Sem entrar em Imalores detalhes, 0 César era juiz supremo, 20 menos nominalmente; apenas cle ppodia conceder o privilégio que bem entendesse, mas qualquer pessoa tinha o di- reito de solicti-l, de the dirigir um pedido, fezer-the uma petigio, apelar a seu tribunal Para aléra das magistraturas eda legislaclo, escreveu Clstidia Moatti, cada homem livze, cidadao ou peregrino, cede cidade, cada provincia podia ter com seu imperador uma relasdo direta.* A pessoa do imperador era o recurso supremo em todas as coisss e suas relagdes com seus siitos cram virtualmente Noua da Tradurora: O autor faz. um trocadilho com bieyat (0 "bem-felto", que pode see ido do francs como “dadivs" e bienfaiteur [‘banfeltoe}~leralmente, 0 bieyatow & aquele que fiz ou concede uma bia 1 0UE ERA UW IwPERAOOR RORANO® ia pessosis. As intimerassoicitagSes dirigidas a0 principe, juiz ¢legislador supremo partiam, em geral, de siditos insignificantes ~ 0 que mostra a idéia que © povo fezia dele" 0 principe era o pai de patria, seu pronunciamento era a palavra final do diteito ¢ da justia Quanto as relagSes concretas entre o poder © a p baseavam-se em uma concepsio militar dopey smulto em uma cidade, 0 imperador, fosse Tibéxo,* Diocleciano ou Teodsio, ppodia tratar seus siditos (e mesmo seus concidadios) do mesmo mode como of Estados modernos tratam os indigenas de suas coldnias: enviando as tropas, que pespetravam um massacre™ e, em seguida, cortavam a cabeya daquela entidade que era 8 cidade, na pessoa de seus conselheiros municipais (pouco importando se cabia ou no a estes qualquer parcele de culps, segundo os pontos de vista stusis) 2” Ere notério que, em caso de conflte, toda a populacio ~ricose pobres ~ abandanava a cidade e buscava refiigio no campo ao redor, fadados a ali mor rer de fore, esgotamento ou sob os sabres das soldados.%° Em eircunsta ‘comurs, a existincia nfo era nada melhor. O Impétio, com sua pol: seus delatores, constituia o que hoje chamam ‘mesmo sob os melhores principes, evitava-se fal coligidos por Ludwig Friedlinder so elogiientes.° As instituigbes ¢ os privilégios herdados da cidade republicana recuaram con- nuamente diante da onipoténcie do imperador, e nem sempre em beneficio da populacto. No decorrer do século dos Antonines e da Paz romana, os tribunais com juradas e a acareagio de réus ¢ acusedores foram pouco a pouico cedendo espace, tanto no émbito civil quanto no penal, & jurisdiglo imperial, com seus procedimentos inquistorais, delatoes e sentences prolatadas pelo juz, A perspectiva resignada de uma morte violenta fazia parte da mentalidade da €poca; a morte, naquele Império, rondava por toda parte e a todos, pequenos e ‘grandes 7 Jé mencionamos as usurpacdes incessantes, a morte violenta dos prin- ipes ne proporgdo de dois para trés, a lei da selva vigente na classe governante, o direito imperial de vida e morte as tropes enviadas contra a populacio, o fato de-o imperium ter esvaziado a idéie de um “direito” penal; aliemos 2 tudo isso 4s requisigbes abusivas, a impunidade com que os letifundiérios aniquilavam os ‘Pequenos proprietirios, o circere privado para os devedores, o abuso de poder por parte da administracdo e de poder por parte des poderosos, o alto grau de ferocidade e arbitrariedade das repressbes juridica ou politica, as epidernias de caga is bruxas ou is adulteras, a venalidade, « corrupgio, as fraudes e squeezes desmedidas dentro de acministracio, da justigae da vida econdmica Segundo alguns historiadores, essa ¢4 margem inevitével de abuso que sem pre existiré, © tudo isso nio passa de um amontoado de particularidades his- trices. Cremos, porém, que os fatos citados nada ttm de anedoticos e que hé uma diferenga crucial a separar nossas sociedades modemas das de outrora, nas ‘quais essa suposta margern estendia-se 4 sociedade civil quase inteira ¢ o poder lagdo, essas, em geral, caso de revolta ou tu. poe. parte do funcionamento usual a ume boa ordem além daquela do Estado (20 patronagens de que fala Libanio 2? e que info se reduziam a um pacto de protecio dos peq: latifundisrios: os soldados protegi ‘um sindicato operdrio dominado pelo crime organizado. 18 ‘Ao Jado das massas monarquistas © dos gregos, o imperador & um monarca, sum basileus, cuja relagio com seus siditos encontrava expressio no juramento de fidelidade & pessoa do sober 4 Republica e suas les), Todas 0s anos para condicionar imposto sendo a spontinea para 0 monarquismo = ¢ nada tem a ver com o sistema de patronagem e clientela: trata-se de um pacto ue liga incondicionalmente os sicditos figs a uma familia reinante, pela fo mesmo modo como outros tém o dever ibém 0 governo das consciéncias © a inalaremos que jé encontramos dela- fores no segundo decreto de Ciren: que emissérios denunciam uum homem que subtraiu de um lugar piblico algumss estétuas do prin: decreto comprova que as imag: ‘Nas massas populares ~ em poder do imperador é o de umn ‘sua mera ideia faz ttemer. Libinio o traduz bem: "Entre aqueles que ignorem tudo da égora, nin- tio temerério a ponto de supor-se mais forte que a lei ~ e, quando digo ale, refiro-me aquele que a elaborou; poderieis ere, 5 imperador, 08 quais basta a ténica zariam vosso régio poder?"2"€ Quando tentamos poder represeatamo-lo como total e simples, ¢ 0 concebemos # partir do modelo das relagdes interpessoais de comando da vida cotidians. "Pratica o bem e, da autor vid ris elogios’; do contrério ela lancara mao de sua espada, escrevett Sto Evidentemente, 0 imperador ou 0 governador da provincia néo ‘Nota da Tradutora: Expresso que podera ser traduaida como “protegdoextorsva™ i | I | ' i t | que eka Uw salam decapitando seus st ‘guém em pessos, mas « m ‘ivos e proibigbes partissem todos da boca do , Como para ofilho ps ‘agem contra os decretos de Céser, afirmando se dese fatoo grat le imperial é tudo. Defender ido a lado com o imperador, Naturalmente, 0 poder imperial era tio remoto quanto grandioso e, para o comum dos homens, ratava-se mais de uma grande idéia do que de uma realida- diana: combater “lado a lado com 0 imperador” no sigaifcave, na pratica, ais que obedecer ao centurido ou ao legado de uma legito. E um poder anilogo 20 dos deuses: César e os deuses sio, em virios graus, seres superiores rmanidade comum, e podem ser considerados tode-poderosos. Essa analogia, na medida em que nio passava de uma analogia & qual ninguém se deixava iludir, fornece a chave de um fendmeno que ainda hoje provoca debates: o culto dos e809 acreditavam de fato que eram deuses? es. Existem iniimeras formas de cren as pantomimas cerimonisis de que das piblica e privada sto repletas. Uma coisa é um sentiment se empregam para express A respeito da utiliza nunca ninguém, nem ent 108 podemos cer). Era um termo exagerado, que se tomou possivel gracas a concepsao pouco extremada que 0 pagenismo tinha dos deuses. Os argumentos de Fergus Millar aio so convincentes,™ e acreditamos mais em Bowersock: "Nenhum ser pr sante jamais acreditou na divindade de wm imperador vivo pudesse compreender 2 divinizacao de um imperador depois ‘ainda assim, impossivel confundir um deus imperial com deuse dlitos' impossivel, ontem como hoje, avocar um homem por wm ser que no morrera jamais; a0 ver o imperador pessar, quand in is comridas no Circo, ninguém o considerava um deus vivo. Nas palavras de Santo Agostinho, 0 27” cculto imperial era de adulagio, ndo de crenga. iy, © culto imperial tem raizes profundas sobre as qusis voltaremas a comen- y/ ‘ar, mas seu carter religioso & falso. Nao passe de um culto institucional, assim.” como as cidades gregas divinizaram outras entidades politicas; sob a Reptblica, haviam-se estabelecido os cultos da deusa Roma, do Povo de Roms, dos “roma. ‘nos comuns benfeitores’, da Pistis (ou seja, da Fidelidade a Roma e da Boa-Fé romana)™ e até de detorminades govern , antes de a Repiblica ceder luger ao regime imperial; de forma andloga, € a funcia imperial que seri 7 € INPERIO GRECO-ROwAMD divinizada na figura do impersdor, mais que os homens de ceme e esso(¢, com freqince, demasiado humanos) que se sucederto no trono, Ese alto to of «ial nao nascia do pensamerto “primitivo™ ou popular, nem da superstcas cue cerca 0s "homens divinos’, tas como Apolénio de Tiana ou Jesus de Nocty apesar de um relato muito citado de que o futuro imperador Vespasians toni, a none rus ¢ ficilrefataressas alegacBes: se os imperadores fossem de fate considera, dos deuses, nfo seriam designados por expresses como “o deus Augusto: ou 99 deus Adriano’, assim como se dzia simplesmente "Apolo", cujo cariter diving gra inequivoco. Além dist, confer a um soberano a3 tothe! rawr Kens jdénticas as dos deuses, implcava que esse soberano, em si ndo fave rane lo panteio; se retomarcs a0 combate, of aqueus te honrardo igual s ak inne (ison theb, diz Fenix a Aquiles no eéntico IX de liad, Os letrados no davar importincia ao fato™ ou soriam, Um texto de Ar. ano diverte-se com um humor consciente e et dlvinizaso, inclusive no proprio leito de morte: “Ai te min! Chee eee Warne (oa tm deus" gracejou Vespasiano, moribund. Apenas Caligula “imaginas te considerado um deus pelos alexandrinas, porque estes ussrnas inguager sagrada que os demais homens reservam aos deuses ¢ imas conseqiiéncias ¢ ndo pela metade” 22 © cote imperial constitu’ um flso enigma histérico, O que aos perece ine igante € que se pudesse qualficar de deus wm homem; para nés, cistios ua ‘Antes do cristinismo, rownaat A hipérbole era tio consciente que se tomava o exidado de circunscrevé-la a limites prudentes; observernos, com eftito, que o imperador era tratado de deus, porém a distincia, quando nao estava presente, jamais face a face. Os sacrificios de seu culto nao eram oferendas zo principe em si ~ nem mesmo quando o principe era Caligula - 7 mas a um deus qualquer, pela sate do principe Ei licio, 0 imperador no era um deus vivo, a0 contrério; praticamente o tnico lugar do mundo em que o culto Ito imperial nao passava de uma linguagem e de um ritual to a06 reis helénicos ¢ aos imperadores romanos, que come- 3, nos tempos de Alexandre, o Grande, foi uma ‘um fendmeno arcaico, popular, que remontasse a tempos ancestrais ¢ ingénuos, Essa demonstraco de fidelidade foi determinada, instituida e elaborada poles autoridades | s, pelos notiveis; trata vase de uma criagio da alta cultura, a hipérbole™ e a ciéncia do ritual®9 que nela se mat sm revelam a intervengao dos letrados ¢ de especialistas em culto, Do mesmo modo, qualifcar Stalin de geno nfo foi uma iniciativa popular, mas de seus propagandistas. De resto, a realizagio do culto era responsabilidade dos notiveis a plebe ndo tinha nem a obcigacio nem a possibilidade de manifestar sua lealdade”® (os cultos publicos, longe de dizerem respeito a toda a cidade, em geral eram reservados & elite). © populacho par- ticipava das ceriménias exclusivemente como espectador dos jogos, sobretudo dos combates de gladiadores, sendo que & festa para ele tna tanta importincia quanto 0 zelo monérquico. Apenas a classe governante e abastada interescava-se pelo culto; seu partido era o da ordem romana, No entanto, invengdo de notiveis ou no, 0 culto néo deixava de ser um sande espeticulo oficial, uma instituigao publica ~e era isso, e nio a hipotética ivindade do imperador, que fazia dele um: wento de poder. 20 Divindade ficticia ou nio, nem por isso 0 povo teria 0 imperador menos em conta de um ser de grande porte, Seu culto, novidade da alta cultura e da alta sociedade, explorava as idéias humildes e ingénuas disseminadas e expontineas acerca da sublimidade do poder soberano. Na imaginacio popular, os senhores todo-poderosos (pelo menos acreditava-se que assim o fossem) guardavam certa analogia™! com os deuses, invisiveis como eles. Quando se mede:a extensio dessa analogia, o culto imperial néo mais surpreende. Agradego a Christophe Goddard, cujas objesdes, na Ecole francaise de Rome, me instigaram e me de- ram matéria de reflexao. ‘Tudo o que se costuma chamar de sentimento monarquico apresenta-se aqui com a liberdade da retérica religioss. Como os deuses, tem-se com o rei uma relagio assimétrice, heterénoma, hipotética, total, lnnginqua e pouco eficaz O rei é de estatura superior & dos homens. Caso se constate que, na pritica, 0 monarce ocupa o topo de uma escala hierarquice da qual ele é apenas o degrau a BRece mais alto, este parecerd ser de uma natureza diferente da dos degraus inferiores, a comegar pelo do grdo-vizr. Assim como a superioridade dos deuses, a sua ni0 se deve a nenhum mérito particular, a nenhuma virtude, ou talento politico; @ tao-somente uma caracteristica natural. O rei no é um homaem revestico do poder reali como os deuses, ¢ o representante de uma espécie viva peculiar superior, a espécie régia; sua pessoa é indissociivel de sua funsio — outra caracteristica, alids, especifica. B muito pouco dizer que sua legitimidade nao €0 carisma pessoal de um ditador nem a de um magistrado ao fim de uma Constituigio:?® ele reina porque reinar é inerente & sua natureza real; se um deus se materializasse no meio dos homens, dizia Plato, nenhum outro além dele poderia sobre nés reinar, Nao respeita esse ser superior era uma blasfémia pessivel de punicéo. Ninguém ignora que o rei é onipotente, mas como a Providéncia, que esté por toda parte, embora nao Ihe percebamos os efeitos concretos. Como ela, © rel reina sem governar, ¢ seu poder nio é medido por sua intervencio no destino de seus siditos; estes dependera mais da sociedade civil e dos podezes ais proximos de cada um deles: seu petrono, sua familia, seu senhor. O poder do rei, como o da Providéncia, ¢ tio total quanto impalpével, no é cle quem decide o montante de nosso salétio. O rei é uma imagem espléndida e temivel, ‘mas remote, que paira acima dos povos; sua poténcia é presumida, e s6 pode ser mensurada porque seus siditos tim a oportunidade de experimenticla na existéncia cotidiana. Ninguém se questiona, tampouco, se esse poder no sera, talvez, mais aparente que efetivo, se o gréo-vizir no sera mats poderaso do que © rei: julgames pelo titulo, Enfim, o soberano ccupa um grande lugar na visio que se tem do mundo; & o homem mais célebre de seu império, e sua existencia, como a dos deuses, interessa a todos; nos confins da Espanha e da Siti, 0 timo dos siditos do Imapério sabia que havia um imperador, mesmo nem sempre co- hecendo o nome de quem estivesse ocupando o tron naquele ano especifico, Seesse era. sentimento das masses populares, compreende-se que o cultoimpe- rial tenha conseguido subsistir durante o dramatico meio século em que houve ‘quase tantos imperadores sucessivos quanto o nimero de anos do periodo: 0 que se celebrava era 2 imagem da monarq 2a Sea lealdade podia revestir dessa forma uma metéfora religioss, era porque centre o governante e a multidio de governados havia quase a mesma desigual- dade de porte que entre os deuses pagios e os homens. Até o século XVII oci- dental, as massase seus soberanos eram tio assimétricos quanto as criancas e 0s “grandes homens’ (os governados, como criangas que sfo repreendidas, podiam softer castigos corporais, torturas e suplicios}."# Naqueles tempos pueris, no bravia 0 que se chama opiniio publica ou conversas sobre politica;* era possivel ‘maldizer 0 re e seus impostos em umn assomo de célere, mas nio se discutia alta politice no ambito do povo. Opiniges ultrajantes ou zombeteiras que eu e voce odernos escrever ou ter sobre nosso presidente da Repiblica nos teriam custado a aliberdade ou a vida ha menos de trés séculos. Além disso, a deferéncia obedien- te dos pequenos em relacao a0s grandes, nobres ou notiveis, 36 se extinguiu no decotrer do século XIX. Ha nesse ponte uma dobra geolégica da historia, 22 A partir desses pressupostos, deverse ressaltar que nada é t20 rigido: 0 amor pelo imperador nao era monolitico como # fidelidade de wm cio a seu dono, ¢ tragos de ceticismo e uma suspeita de mé-f6 acompanhavam-no em surdina. As vvezes, ocorria a alguém que o atual rei ndo passava de um pobre homem, ou que seus ministros 0 enganavam. Sob o Antigo Regime europeu, a imagem real era “salva” pela crenca de que a culpa nfo era do monarca, mas de seus ministos. Encontrava-se a dupla imagem do soberano por toda parte ¢, mais de uma ver, Wallace-Hadrill tem razio, O imperador era, para os pagios, um ser superior e, para os cristios, era sacratissimus; s6 podia ser abordado de joelhos. Em outras circunstncias, porém, era ou devia ser um bom principe, do qual se esperavam Aemonsteagses de afsbilidade e simplicidade. Por isso, mesmo o rigido Constin- cio Il vangloriava-se de sus Do reinado de Augusto ao de Hon6rio e chegando até Bizincio, houve ceri- ‘ménias durante as quals 0 imperador ajoelhava-se diante do povo romano reu- sido no Circo e mandava-the beijos.*® O Circo era, em Roma, o lugar no qual © povo romano, por meio de gritos, protestos, zombariss, desforrava-se de seu senhor, presente a vista de todos durante as corridas de carros.” A dupla natu- reza do principe mostrou-se plenamente por acasiao da visita de Constincio Ila Rome, em 357. O soberano fez sua entrada em um carro dourado e conservou, 20 longo de todo o trajeto, uma atitude hierivica e uma imobilidade de extitus, contudo, uma vez dentro do Circo, "muito the agradou a verve zombeteira da rlebe, que, sem chegar a0 ponto da fatuidade, nlo abdicou da hberdade de ex: pressio [libertas] que lhe € congénits; 0 préprio imperador soube manter uma justa medida”™® entre a altivez e a familiaridade, Justa medida que a Juliano, ex- cessivamenteflosdfico, excapava; nio gostave de falar de igual para igual com to- dos, nem de “misturar-se com seus siditos". Assim, quando fez de Antioquia sua capital, manifestantes aproveitarem a tradicional licenca das Saturnais ou festas e inicio do ano para langar contra o principe as mats mordazes invectivas 2° Na verdade, a idéia que se fazia do principe era ammbivelente. De um lado, era ‘um ser imponente, venerivel e amado como o rei de nossas cantiges populares; de outro, era o governo, de que em noses conversas nos bares pouco falamos bera~ sfinal, deve-se a César 0 imposto que the & devido. Essa mesma dualidade ‘manifestava-se no Egito, onde ofara6 era, a9 mesmo tempo, um deus vive e um Potentedo 40 qual os contos populares reservavam um papel nada respeftivel e ‘mesmo ridicule 2 Temninaremos, entdo, com dois assuntos de antigos didlogos de tavema. Os agricultores € marujos, escreveu Epicteto 2" maldiziam Zeus quando fazia mau tempo ¢ falavam incessaatemente mal de César; Céser no oignorava, mas sabia ue, "se castigasse todos os que o amaldicoavarn, deixaria seu Império as mos- a G MPERIO BRECO-ROMAED cas", No entanto, seriam os stiditos de César, pelo menos, capares de discemir seus imperadores uns dos outros? Estes nio cram sempre os mesmos, nie era sempre a mesma conjuntura? De sua fongingua Cirenaics, Sinéso, por volta do ano 405, escreveu ¢ um amigo: "HA sempre um imperador, sim, meus compa, triotas 0 sabem bem: os coletores de impostos recordam-nos todos os ance, To, davia,ndo se do 20 trabalho de saber de quem strats; encontro entre nds quem acredite que haja um perpétuo Agamémnon a reinar."% Sinésio tinhe metivo pessoais para opinar que seus principesestavam demasiado distantes > porém que diz nao € falso: para a maioria de seus siditos, o imperador nio pessava de tum objeto de veneragao— e de um mau humor impotente. Um vue andloge & ‘age terceira pessoa do plural que usamos em nossas conversas nos bares, exe trocemos lamtirias pelo governo e pela politica. T I cartruce 2 Os pressupostos da cidade grega, ou por que Sécrates recusou-se a fugir Para tentarmos explicitar esses pressupostos, partiremos de umm texto célebre, que idealiza a reslidade grega, mas esta longe de criar uma total iusto. As Leis de Platio no pretender ser nem uma utopia nem mesmo ma meia utopia; ademais, Platdo no é Thomas Morus nem Fousies, ej se sabe 0 quanto ele se inspirou em legislacdes auténticas. O filésofo acalentava a esperanca de que o fandador de uma cidade qualquer o incumbisse de seu projeto constitacional, ¢ tomou todas as providéncias necessirias para nfo p6r seu sonho a perder: desen- volveu um progranta radical, mas admissivel. Ele nada tern de pensador totalité- tio, como jé 0 caracterizeram —! ou, se merece esse rétulo, e supondo-se que o totalitarismo seja um qualificativo invaridvel, capaz de atravessar os séculs sem malores distorgdes, nesse caso grande parte da realidade politica antiga deverd ser considerads totalitaia, uma vez que Platio nada fez elém de sistematizé-la As Leis, com efeito, nisso comparaveis a Cidade de Deus, io uma daquelss obras moniumentais que resumem uma dada sociedade ou civilizacSo em urna imagem ‘mais verdadeira que a propria realidade; por isso, sua falsdade, sua profindidade ‘e também sua verdade, responsveis par conferr forga & nidade irreal da obra de arte Profundidade: Platdo identificou, com muito distanciamento, trés caracte- sistas principais da cidade grega~ 0 écio dos ricos, as festas coletivas e aquilo que chamaremos de militancia do cidadio ( 30 trac, come veremos, constituia 0 pressuposto ticito de toda a politica antiga e fio que, com Benja ‘min Constant, valew a Platio sua reputagio de totaliério). Embora, para Plato, ‘essas tréscaracteristicas sejam baseadas na razio (todos conhecemos seu genio para lepitimar determinados estados de fato), ele faz alguns ajustes, de modo que sua coexistincia nfo soja a de trés esferas independentes reunidas apenas pelos acesos da histéria ( cidedio rico, sustentado por seus escravos,tinha como tnico dever Iutar por sua cidade ~ para o que se supunha que ele desfrutasse de muitas horas de lazer e descanso, devia cantar, dancar e beber nas festas pablicas em homenagem aos dewses. A riqueza tinks uma finalidade civiee, e a pestos ocioce nio deveria dedicar-se a nada mais além da festa ~ e nio a entiquecer por meio de seu trax balho. Segundo Platio, esses tréstragos historicamente independentes recebem, assim, uma unidade sistemética,a fim de se mostrarem mais de acordo com 0 que constitui sua verdadeira esséncia, Plato, filho de uma sociedade excepcio- nalmmente politizada, ‘etrata a cidade grega em estado superiativo"?

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