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FIGURAS DO SOM Lorenzo Mammi A transicéo entre misica antiga e mtisica crista medie- val é uma das questées mais problematicas e misteriosas da historia da mdsica ocidental. Faltam muitos anéis 4 cadéia que leva das poucas pecas gregas conhecidas — quase todas compreendidas entre 0 século III antes de Cristo e 0 século Ill da Era Crista - eo reperiério gregoriano, transmitido em manuscritos que remontam, no maximo, ao século IX. A la~ cuna parece ainda mais grave, se considerarmos que 2 mi sica crista inaugura uma estética e uma técnica musical ra calmente diferente da antiga, ainda que os sistemas musicais classicos continuem sendo repropostos, com maior ou menor fidelidade, nos tratados tedricos medievais. Muda, em pri- mero lugar, a tuncao da musica, que agora esté ligada a reza ~ uma reza crista, imploragao ou exaltagao de um Ser inatin- givel, e portanto express4o de uma distancia, enquanto a in- vocacao antiga era confirmacdo de uma continuidade com o ‘cosmo. Muda a linha melédica, que passa da estratura espi- ralada em volta de um eixo tonal, tipica do canto grego e, em geral, da tradicao indo-européia, ao arco melédico gre- Soriano, longamente suspenso a espera de uma terminacao Wisnick, 1989, pp. 71-2 e 97). Mudam também, radicalmen- te, os sistemas de notacao. Esse tiltimo aspecto, que abordarei nas paginas a se guir, parece-me de particular importincia: estudar a maneira. to a simbolo grafico, que por sua uzide & jjuda a descobrit a maneira ver, € 08 Me da seleciona, no flUx0 sono- Sor ur ta catia Str re onde In ro, os elementos que Gra, enquanto cutros elementos so mee rama gramndticn, enenso Cults ee eros os ou reduzidos 2 mero t palavras, estudar 0 desenvo a notaco signifi eae esenvolvinento da relacho sempre cam Bian tudar 0 desert sua realizacio sonora, entre sistema e al e a sua rea enfim: entr am som € re “ do em sistema a deter menosprez: gramética mus ne ate ‘mero instrumento de registro io ja plenamente articulado no wo da audicio. A lingua falada trabalha com unidades sdigo, e para transcrevé-las no stern rt acces veal rts pOnC adige dari conta nao tanto do som da fala, quanto dos aspectos que a lingua jé selecionou nele como elementos significativos. Isso comporta certa opacidade na passagem de um cédigo a outro. A escrita ndo consegue e nem busca dar conta de mudancas importantes no universo da fala, se essas mudangas ndo comportarem modificagées no sistema gra- matical ou nas relagées signo/significado. E 0 caso, por exem- plo, da transicao da acentuacéo quantitativa a intensiva, en- tre Antiguidade e Idade Média: na medida em que um fe- némeno sonoro inédito ndo cria um novo campo de regras ou de significados, mas simplesmente substitui um campo j4 existente, a escrita ndo encontra nenhuma razdo para regis- tré-lo. Por outro lado, mudancas consistentes no aspecto vi- sual da escrita, como por exemplo a transicio da caligrafia romanica 3 gética, ou até a passagem do alfabeto grego a0 latino, no acarretam necessariamente mudangas profundas no plano da lingua A escrita musical néo se comporta da mesma maneira, Perdue né0 lida com uma lista preestabelecida de fonemas, om ‘com um universo sonoro bastante fluido, Como bem sa- © Steomusicslogos, toda transcrigéo comporta a sele- evento musicais A escrita musical nio € wnsmissdo de um contetid FIGURAS DO SOM sao de elementos sonoros considerados significativos, ¢ a ex- clusio de outros, considerados irrelevantes, selecio que, om Brande parte, nao ¢ anterior 4 escrita, A partir de um énico evento sonoro € possivel escrever partituras diferentes, ¢ cada uma representa uma forma musical diferente, e ao apenas uma transcricio diferente da mesma forma. A nota. $0, portanto, € um elemento formante das obras, influ so- bre ela e € por ela influenciada: toda modificacio na escrita comporta uma modificacéo na linguagem musical, ¢ vice- versa! No entanto, essa interacio entre escrita e fenémeno so- noro parece ser em grande parte uma conquista ocidental, Partir justamente da notacio gregoriana. Tanto a notacao Btega quanto as notagbes extra-européias sdo essencialmente alfabéticas: cada elemento sonoro é representado por uma cifra ou um ideograma. A mtsica € abordada pela escrita como fosse andloga a linguagem. Em seu ensaio sobre a origem da notacio ocidental, ‘Treitler (1982, pp. 237-79) aproveita uma distincao semistica para classificar tipos diferentes de noiagao. Segundo essa distingio, introduzida por Charles Pierce, um signo se rela ciona com seu objeto como simbolo, icone ou indice. O simbolo nao mantém nenhum tipo de relacio for mal cam a coisa significada. Baseia se cobre uma convencie, que pode nao ser totalmente arbitréria, mas em todo caso nao é estabelecida a partir de semelhancas formais. O sim- bolo é particularmente adequado, portanto, quando a coisa significada € abstrata, ou, mesmo sendo concreta, nao é vis vel. Exemplos tipicos sao as letras do alfabeto, que repre- sentam simbolicamente fonemas. 1 Isso ¢ evidente até quando a notagio responde a um cidigo relativamente & tavel, como na musica ocidental do século XIX: quando Rossini resolves cre ver por extenso as cadéncias de suas drias, ou quando Chopin encontrou uma, srafia para seus rubato, elementos ja presentes na pritica tornaram-se signifi tivos no plano da composiglo, ¢ portanto da forma musical com eviientes fexos na prépria pratica. sma analogia formal com ando representa 0 cristia- € um simbolo ayo posta numa estrada ) icone, a0 contrdrio, post 0. Act imas se torna um fone qua ar um cruzamento. ara sinali “foto com sua causa (indice descritivo; pode ser 2 de um ererg indice do Fogo, 010 Fastro de um por exemplo: a fumaca € Ine 5 y ora ge um t aadice de sua passagem); ou pode 4 o animal € indic rativo): as cores de um eles determinam uma exo. Ele se relaciona com ais complexe. E necucao (indice impe dem com sua © ; rativos, porque sao indices impe aio. 4 excrita musical moderna admite os trés tipos de sig- nos. As harmonizagdes de miisica popular, nas quais os a Jes ao representados por letras e/ou ndmeros, so simb6li- cos. Por outro lado, as grades que reproduzem esquematica- mente 0 braco do violio ou do alatde, nos manuai modernos como nas antigas tablaturas, carregam marcas que sugerem a posicdo dos dedos para cada som a ser obtido, e so portanto indices imperativos. A notagZo em pauta, ao contrério, possui um estatuto ambiguo. Ainda que se destine 4 execugio, ela nao é indicié- ria, porque a maioria de seus signos se refere diretamente a sons, ¢ apenas indiretamente aos gestos necessdrios para produzi-los. E simbélica, em larga parte, porque nela a re- lacao entre signo e signincado é arbitraria por muitos aspec- tos. A duracdo proporcional dos sons, por exemplo, é indica- da pela forma das notas, que séo totalmente convencionais. Os signos dinamicos também sio simbolos, na medida em que utilizam letras ou outras cifras para significar variages de volume ou de ataque.* O parametro das alturas, ao con- ‘Ae lina doverpentes ow convergentes Promrene da dont oe indicam acréscimo ou decréscimo S Poderiam ser consideradas icbnicas, porque, tririo, ndo 6 representado por um vocabulario de signos es Pecificos, mas pela posicéo dos signos (notas) no espago. A altura ¢ indicada pela posicao da nota, nao por sua forms, « uma seqiiéncia de notas ao longo da pauta forma um dese. nho que consideramos intuitivamente como a reproducao de uma linha musical. Entre as notas tomadas singularmente ¢ a linha que elas formam no conjunto hé, portanto, uma di ferenca substancial: aquelas sao simbolos dos sons, essa é um fcone da forma melédica. Os contornos que a escrita traca, no entanto, nao existem senao a partir dela, porque os sons, em si, ndo produzem linhas. A rigor, a passagem de um som a outro nao é um movimento, mas uma transformagio. A no- tacdo, portanto, nao se limita a reproduzir movimentos no espaco sonoro: ela cria a intuicao desse espaco e desses mo- vimentos.’ O carater iconico da escrita musical moderna se baseia em duas analogias preliminares: 0 correr do tempo é repre- sentado no papel por um movimento de esquerda para di- reita; a oposicao grave/agudo é realizada graficamente pela oposicao baixo/alto. Essas correspondéncias sio arbitrarias, e portanto simbélicas. Todavia, ndo sdo signos, mas apenas conveng6es que permitem a criagio de um campo de repre- sentacdo. A primeira delas é bastante Obvia, porque deriva do movimento da escrita. A segunda é mais problematica e mais recente Com efeito, a mtisica groga adotou por muito tempo a relacéo invertida, como testemunham os nomes das notas: hypate hypatén (a mais alta das altas) era o nome grego do SI, nota mais grave do tetracordo mais grave do sistema (abaixo dela havia ainda o LA, chamado prosiambanomenos, nota acrescentada, porque nao pertencia a nenhum tetracor do); 0 14, nota mais aguda, era chamada nete /uperboldion (a 3. Lévy (1980) utiliza os termos digitaVanalogico no lugar de simbsticoiconico, ab temativa que o proprio Treitle admite como possivel. Embora a teminoioga de Levy seja mais precisa teenicamente, preferimos manter a de TreiieePeirce, porque nela transparece mais diretamente a relacio entre sstemas de escnta € outras formas de expressio ou de organizagio cultural, ). Segundo a maioria dos ais baie das notas acTesce om ee cael a jenominagdes de peuaores, esas denominactes Co "com as cordas gurada ¢ fra, que ere segurada €™m Posie 0 ém, que a mes- graves para o alto, S8cht as culturas, e talvez se deva instrumentos maiores (mais al- mais ma analogia se encontra € ples observacio de que inst produzem sons mais graves - ee a maneira, a relagio entre a freqéncia de De qualquer maneira, 2 aed hen ota e uma certa posica0 no espaco era, Para OS Bregos, ail rica. Numa época indeterminada (provavel- Pee Aristonenos), a analogia foi invertida e ‘0 ainda hoje em uso, sem que a ino- de comentirio por parte dos meramente mente nos tempos de foi adotada a dispo vacio merecesse algum tipo teoncos A questio, de fato, era irrelevante naquele contexto, porque os gregos nunca tentaram desenvolver um modelo espacial do movimento musical. Para eles, as alturas eram atributos especificos de cada som, mais do que fungées de uma linha melédica. Formas espaciais, predominantemente geométricas, podiam ser aproveitadas para esclarecer 0 cal- culo dos intervalos nos tratados centificos,’ nunca porém para por no papel uma composicio especifica. Para essa al- time taref era suficiente marcar por um simbolo, normal- mente uma letra do alfabeto mais ou menos modificada, a siture de nots ser cantade ou executada. Se nao fosse pos- sivel deduzir diretamente a duracgéo pelas silabas do texto, Podia ser acrescentado um sinal especifico: nada para a sila- be breve (um tempo), um traco horizontal para a longa (dois tempos), um trago e um ponto para uma longa prolongada (trés tempos) assim em diante. Nem todas as notas, alids, eram escritas: algumas permaneciam subentendidas porque, analogamente ds duracées, a acentuacao do texto as tornava bvias. Notacao grega A figura (ver p. 50) reproduz uma lépide esculpida en- tre os séculos II aC. e I d.C., contendo texto e miisica de uma composic4o conhecida como Epitifio de Sicilos. A nota- $80 inicia acima da sexta linha de texto e € composta de duas ordens de signos: letras alfabéticas (em posicio normal, deitada ou invertida) indicam as alturas. Acima delas, tracos, Pontos, ou a combinacéo de ambos, indicam as duracdes, quando elas diferem da pros6dia regular grega. Na primeira Palavra musicada (hoson), por exemplo, 0 traco acima da nota relacionada com o segundo omicron indica que este deve ser cantado longo, contrariamente as regras da proso- dia. Na sflaba seguinte, o eta é uma longa de duracao irze- gular (trés unidades em vez de duas), como indica o taco coroado por um ponto; e assim por diante. Nesse documen- to, toda silaba do texto musical possui sua nota, completada ou nao por um signo ritmico. Mas isso nao acontece sempre. O primeiro hino délfico (século Il a. C.), por exemplo, come- cada maneira seguinte: Tr 58s K AMO [Ithi] kluta megalépolis Atthis, eukhaie[is|i phéropléio... ——_ sa composicéo respeita rigorosamente os ritmos quantitativos do texto, e portanto nio necesita de signos de duragdo. Pela mesma razéo, a melodia nao precisa ser ano- tada por completo, porque em larga parte acompanha 0 mo- vimento dos acentos melédicos, Das dezessete sflabas desse fragmento (descontamos as primeiras duas, que faltam no documento original), a notagao marca a altura exata de ape- nas oito, aquelas cuja entoacdo podia ser equivocada. ‘Ao que parece, quem escreveu esse documento pensou no som de cada sflaba como numa unidade composta de trés niveis: um, estdvel, imanente ao texto e regrado pela prosé- dia normal da lingua; outros dois (as alturas e os ritmos), contingentes, indicados apenas enquanto contradizem ou complementam as caracteristicas estaveis da silaba. Para os gregos, de fato, a musica era lida com objetos sonoros pre- estabelecidos, as silabas, portadoras de valores ritmicos e me- I6dicos préprios, ainda que parcialmente modificdveis na composicao. Esses valores séo combinados segundo regras f- xas - os gregos indicavam essas regras com o nome de pe- #téia (0 mesmo nome com que indicavam as regras dos jogos de tabuleiro). A musica nao se desprende das silabas, e por- tanto a musica grega cléssica desconhece 0 melisma: cada si- aba carrega uma ou, no méximo, duas notas Notacao bizantina Os documentos bizantinos remanescentes sao contem- poraneos ou até um pouco mais recentes do que os gregoria~ nos. Portanto, ao colocar a notagao cristé oriental como elo de conjuncao entre a notacdo grega e a gregoriana, estou propondo um critério légico, e nao cronolégico. A notagio bizantina ainda é simbélica, mas ja nao simboliza alturas ou duragées fixas, e sim movimentos entre alturas. Os tes sig- nos fundamentais sio ison, oligon e apostrophos, que indicam respectivamente repeticao da nota, movimento ascendente € LORENZO Mi AMM FIGURASDO SOM 3 ss = descendente. Signos adicionais indicavam 0 intervalo exato Set Fe dos movimentos e outras caracteristicas, como dinamica ou eS e tipo de emissdo. Os nomes dos trés signos principais signifi- NS 4) x cam, literalmente: 0 mesmo, o pequeno {intervalo] e o vira- SS do, ao contrario. Na teoria musical bizantina esse signos se one s revestiram de significado simbélico muito forte, segundo i= =) uma tradicio pitagérica e neoplaténica: foram relacionados yee) ' | aos trés primeiros néimeros, a triade de Plotino (o Um, 0 Ser = SG = = ea Alma), e finalmente a Trindade. Esses trés intervalos sao at BB r j as notas soberanas (tonoi kyrioi). Combinados com outros sig-~ 3. se J 2 s nos, geram toda a gama dos intervalos, divididos em Corpos 7S. oS Sees & (05 graus conjuntos) e Espiritos (os intervalos maiores). Me- oes diante essa complexa simbologia, a notacdo bizantina se des- ee os is 3 prende dos objetos sonoros da lingua (as silabas) - é essen- ses < g cialmente uma notacao de intervalos. Mas o intervalo € por aps ie 2 LA ' sua vez hipostaziado num objeto sonoro, um corpo mistico Ag aa 2 estatico, independente do movimento da voz. Por isso, 2 no x Sones i tacio bizantina continua sendo uma notacao simbélica, ae £ Re ° como a grega. 305 bee 3 ots gta Notacao gregoriana e s oe af is IX (ver p. 54). Os signos gregorianos (neumes) sto muito a © I } ie) mais indeterminados e varidveis do que os gregos e os bi- re = ' zantinos, e se parecem mais com um desenho do que com do eo \-< uma escrita. Nesse exemplo, eles sao bastante independentes ~, 455 do texto e nao se limitam a acompanhé-lo segundo uma li- - Fi 2.42. can nha paralela, dispondo-se, ao contrario, ao longo de arcos a ee ee aproximados - € a assim chamada disposicdo diastémica, ane que nem sempre é utilizada nos manuscritos gregorianos. os x > y t KX E Contudo, ainda que os neumas estivessem todos na mesma 4 altura, a forma de cada um deles sugere movimento ascen- 43 ed dente ou descendente. De fato, a notacio gregoriana nao & uma descrigao de objetos sonoros, mas de movimentos so- st ha FAO Me ter as ned titreomins me ov 092 mt ae at ado Mp Glos, whom = e sais (@Pofusfa dre Dom: 11 ae AO nol verre adore: Bs Kite we og et peeks , a ee in ECE rape S é e ee 45 penn ae Sut dmrabilins 2, tied pis ir ig pena atocesfé flu bominum- Lew Azdchon Aitivsa He Rag Ae dh Aig Uti sia eee eee noros. & uma escrita icénica, baseada numa analogia funda- mental entre 0 espaco da pagina e o tempo da misica: 0 eixo horizontal indica a sucessao no tempo (esquerda/direi- {a= antes/depois), enquanto 0 eixo vertical alto/baixo passa a indicar agudo/grave. Por que 0 canto gregoriano precisou desse novo tipo de escrita? Porque, a partir da cristalizagio de um conceito de consciéncia, nos primeiros séculos do cristianismo, 0 que Passa a interessar nao € mais 0 objeto sonoro, mas 0 sujeito que canta. A misica passa a ser encarada no como um fe- nOmeno objetivo, mas como uma aco subjetiva Essa transicdo € nitidamente visivel em Santo Agos nho, que se ocupou repetidamente de misica, escrevendo inclusive um tratado sobre o assunto, 0 De musica, em seis livros. No livro XI das Confissdes, Agostinho propée pela pri- Meira vez uma tese psicolégica, e nao cosmol6gica, sobre a natureza do tempo e utiliza, para tanto, um exemplo musi- cal. De fato, pergunta Agostinho, como podemos medir o tempo, se o tempo é mera sucessao de um instante apés ou- tro, sem extensao? Da mesma maneira, responde o santo, como reconhecemos a forma de uma melodia, embora a me- lodia também seja mera sucessao, e, portanto, nao haja ne- nhum momento em que a melodia inteira possa ser percebi- da. Mas, se forma é 0 contorno dos objeius, e a musica nao tem extensao, mas apenas sucessio, que tipo de forma pos- sui uma melodia? Uma primeira resposta é que o instante também possui uma certa extensao, porque embute a memé- tia do passado e a expectativa do futuro (pela meméria e a expectativa a alma se projeta além do instante presente). Mas essa resposta néo é suficiente, porque nesse caso todo instante da melodia teria uma forma diferente. O que faz com que os instantes da melodia se retinam numa forma unitaria, que todos os segmentos do canto estejam reunidos segundo uma sucessao intuitivamente presente, é a intengao do cantor, aquele que tem a melodia em mente. Ao ouvir uma melodia nés tentamos portanto adivinhar o que o cantor tem vento interior que SUA VOZ Vai concretizy, em mente, 0mm xe a escrita gregoria au em mento Mp interior que a escrita Bregoriana procirg ee vrimeira vez na histéria da mtisica representat, Pela P Notacao polifénica Essa partitura (ver P. 57), de oS moderno, ¢ mais antiga composicéo polifonica conhecida: uma elabora. mas Nijuss vozes da seqiténcia Benedicta sit. Encontra.se ss das copias remanescentes dO tratado Musica Enchiria. remonta provavelmente ao século IX. A disposicio cries, com o incipit monofnico sobre a palavra Alleluia no. fado separadamente, Iembra as partituras bizantinas. Com cieito, entre os séculos VIII e IX houve uma aproximacao en- tre Oriente e Ocidente, devida em parte a0 movimento ico- hockasta (destruicao das imagens: 726-787), que levou muitos monges orientais a fugir para o Ocidente trazendo seus ma- nuscritos, em parte devido a politica exterior dos reis francos, Tudo isso explica 0 campo de interesses do Musica En- chiriadis, mas nao lhe retira a originalidade. De fato, o siste- ma de notacéo proposto pelo tratado se aproveita da preci- so simbélica da notacgo oriental, mas a organiza numa dis- posiao que lume induilivamente visivel U movimento sonoro. A relacio entre texto e notacao musical se inverte: j4 nao € a linha do texto que carrega a msica como um seu atributo, mas € 0 espaco da pagina, andlogo e isomorfo 20 €paco sonoro, que inclui texto e muisica como movimentos bid em sua superficie, Sendo esse espaco, justamente, ‘perficie, nao € dificil reconhecer que muitas linhas a seronte simultaneamente. Com efeito, o Musica rei se Pie tratado a indluir uma teoria do con- , ainda que embrionéria, dis, que ae ms 1285, Sepa 2 tH 40 tratdo dedicada & pobfonia, v. Apel (157 © sa, harcer wrt the Musica Enchitadis, ered fr hans! FIGURAS DOSOM 2 never 6 84: Simones cephttergattpvalenerrp, Sea i licrame nae = FEaay raerret erplramecnen boone ¢ Z autor dessa partitura tFONSPOrtOU a preg sume: © oe yantinos NO espaco metafSricy slica dos bizant 3 Stiadg sio simbolica €Uriana. Sob outro ponto de vista, a Notacig nla notacdO oa iis € extraordinariamente pobre: nla ha, dp Mason Te eapago, sem intensidade, duracio oy gi! pone. especificos. Néo a ons, mas apenas po, nos crecteres APT a 6a primeira a reproduzie Fs s Em outras Pom sonoro mediante uma metéfora ey°" tratora de um ever a estrutum represciitada ¢ oc cial exate ¢ "gD" stos no possuem qualidades, Num cae pera se gio do Musica Enchiriadis € oposta e compl. sentido, ae sgreco-bizantina. Esta descrevia pormeriyy, mere 0 corpo sonoro (corpo fisico, na Grécia clésses amt mbolco, em Bizincio), abstraindo porém de sua py, OP jentro de um movimento sonoro continuo; a notary a hee Enchiriadis, ao contrario, representa a posicao em s; separada do corpo que a encarna. O que ela ressalta nig > ponio, mas a linha; no a nota, mas a quantidade do in. tervalo, Nisso, ela paga sua divida a cultura bizantina, sem divida, a notagao ocidental moderna esta mas proxima a0 Musica Enckiriadis do que ao Papadike. No entan. to, sua origem néo est4 nesse tipo de notacao, mas na nots. do neumatica gregoriana, em sua modalidade diastémice, Desta, a notago moderna herda a posicao de compromisso entre 08 registros do simbolo ¢ do icone. De falu, au encat »ar-se nas pautas, os neumas perderam grande parte de suas capacidades descrtivas: alguns de seus caracteres, como a virga © 0 punctum, passaram a ter significacao ritmica. De qualquer forma, nossa notacéo manteve a ambi¢do de repre- senter no apenas (ou ndo tanto) os sons, mas sobretudo 0 Movimento sonoro total que constitui a forma do evento , em Bizancio), abstraindo porém de sua po. ore ean movimento sonoro continuo; a notagig do Musica Enchiriadis, ao contrario, representa a posicao em « ceparada do corpo que a encarna. © que ela ressalta nay fo ponto, masa linha; néo a nota, mas a quantidade do in, tenalo. Nisso, ela paga sua divida a cultura bizantina, Sem divida, a notagéo ocidental moderna esta mais préxima a0 Musi Enchiradis do que ao Papadike. No entan. to, sua origem no esta nesse tipo de notacao, mas na nota- éo neumética gregoriana, em sua modalidade diastémica Desta, a notagdo moderna herda a posicao de compromisso entre os registros do simbolo e do icone. De fato, ao encai- xarse nas pautas, os neumas perderam grande parte de suas capacidades descrtivas: alguns de seus caracteres, como a sirga e 0 punctum, passaram a ter significagio ritmica. De qualquer forma, nossa notagdo manteve a ambigéo de repre- sentar no apenas (ou ndo lant) us sons, mas sobretudo 0 ‘movimento sonoro total que constitui a forma do evento orque Set Prntido, a SoluG Letras, 1989. VOZ E VALOR NA CONSTITUICAO DA TEXTUALIDADE Trene A. Machado O inacabamento como perspectiva teérica Dois anos apés sua morte, Paul Zumthor esta de volta ao mercado editorial com uma obra to provocativa quanto as obras que 0 consagraram como medievalista e pesquisa- dor apaixonado da poesia oral nas vérias formas de sua ma- nifestacao. Nessa obra péstuma, Zumthor cumpre o desafio de interpretar 0 mito de Babel que, inicialmente, ele declara nao ser signo de nada, nao reunir figuras de herdis e nao agregar mais do que personagens coletivos e sem nome. No entanto, Zumthor reconhece no mito de Babel uma “das mais dramaticas representagdes de nosso destino”. Com isso ele se desvia da rigidez. de sua hipétese inicial e elabora uma das mais instigantes interpretacdes do mito ~ Babel impée-se com toda a forca de signo. Ao longo de mais de duzentas paginas, Zumthor se debruca sobre um texto de néo mais de vinte linhas, construido com o rigor de uma novela de Ka ka, em busca de um objetivo preciso: “extrair Babel da cro- nologia e restituir-Ihe sua intemporalidade” (Zumthor, 1997, p. 208). O resultado desse percurso é 0 encontro do mito como signo cujo significado esté longe de ser um mero “tri: unfo da confusao”. Babel é signo do inacabamento: “sua his

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