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O problema teérico das lacunas e a defesa do consumidor O Caso do art. 159 do Cédigo Civil José Remvanno px Lota Loves Advogade — Professor Assistente da Faculdade de Direito da USP A questo das lacunas surge na teoria do direito a partir de pressupostos nem sempre explicitados. Por isso as vezes a questo mostra-se insoltivel ou sem sentido. Afinal, o que se esconde por trds deste tema é nada mais nada menos do que a prépria idéia fundante do que 6 0 diteito e do método da ciéncia juridica. Conforme a idéia do direito (objeto) © do modo de conhecé-lo (método) surge ou nao a idéia de lacuna, surgem ou nio hipéteses de explicacto. Conforme acentua EMILIO BETTI (*), se a orientagdo for de carster formalista, haverd uma série de processos relativos & interpretagao e aplicagao do direito, relegados & categoria de atos de vontade, arbitrérios, ineuscetiveis de xacionalizagéio e, portanio, de conhecimento verdadeiro. Uma outra orientagdo que incorpore a0 ordenamento € 4 teoria do direito as regras de decisio ¢ os préprios processos decisérios terd como efeito recolocar ou mesmo deslocar o problema das lacunas. 1. Norma juridica, ordem juridica e sentido da conduta A primeira questo a examinar é uma idéia de direito a partir da qual se poem as lacunas. Sem diivida é a idéia de direito como conjunto ou sistema de normas juridicas, especificamente, a norma juridica como critério de sentido da conduta. Que espécie de relago hé entre norma jutidica e conduta? Trata-se de uma descricao? Trata-se de uma forma de compreen- () BETTI, Emilio. interpretacion de la Ley y de los Actos Juridicos. (Trad. José Luis de los Mozos), Madrid, Ed. de Derecho Reunidas, sd.p. Cf. especinl- mente p. 127. R. Inf, legis], Brasilia a. 25m. 99 Jul./ser. 1988 239 sio? De fato, as normas nao descrevem condutas. Tradicionalmente se diz que as normas sao enunciados imperativos. O que significa isto? Pode-se ensaiar a resposta seguinte: a norma juridica é um pardmetro, uma régua (regula, regra), medida a partir ou em comparagio/confronto com a qual somos capazes de ler a realidade sub specie juris, sob 0 ponto de vista do direito, As normas — ¢ os ordenamentos como sistemas de normas — sao conceitos ideais, ou melhor, sio enunciados sobre conceitos ideais, nos quais se léem hipoteticamente as condutas sob o prisma da autorizagao, da obrigatoriedade ou da proibiggo. Neste sentido, as normas servem para reconstruir 0 significado da realidade e o sentido das agdes dos homens. Reconstrugio em forma juridica, Acompanhando assim o pensamento de KELSEN, nao hé como entender coisa alguma do ponto de vista do direito, a nfo ser a partir do proprio direito, visto como um sistema de normas postas. Isto estabelecido, pode-se deduzir ou inferit que no haveria condutas juridicamente sem sentido. Ha aqui uma aparente solugao do problema. Evidentemente, a inexisténcia de um sem-sentido juridico nio implica, por seu turno, a necessidade de uma univocidade de sentido. Em outras palavras, dizer que nao pode haver um sem-sentido juridico nao significa dizer que haja apenas um sentido para determinada conduta. 6 esta a linha de raciocinio de HANS KELSEN, como veremos. De fato, a distinco radical e insuperavel entre ser e dever-ser, sobre a qual se constrdi a teoria pura do direito, permite afirmar que os fatos em si, patticipantes do mundo do set, no tém qualquer sentido juridico em si mesmos. E este, parece, o verdadeiro fundamento a partir do qual se pode desconstituir as Iacunas como problema do ordenamento (e da teoria do direito) ¢ nao, como o préprio KELSEN as vezes sugere, a existéncia de uma “permissio geral”. Contrastemos as suas afirmagoes. No inicio de sua Teoria Pura do Direito vem claramente afirmado: “‘Simplesmente, este evento como tal (qualquer fato ou conduta), como elemento do sistema da natureza, nao constitui objeto de um conhecimento especificamente juridico — nao é, pura ¢ simplesmente, algo juridico. O que transforma este fato num ato jutidico (icito ou ilicito) nfo € a sua faticidade, nao é o seu ser natural, isto 6, o seu ser tal como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema da natureza, mas o sentido objetivo que esté ligado a esse ato, a significagao que ele possui. O sentido jutidico especifico, a sua particular significado juridica, recebe-a o fato em questéo por intermédio de uma norma que a ele s¢ refere com o seu contetido, que Ihe empresta a significagao juridica, por forma que 0 ato pode ser interpretado segundo esta norma” (°). A partir desta afirmagdo essencial entendemos com clareza a sua explicaco da inexisténcia de jacunas: nfo se trata de lacunas toda vez que o orde- namento como um todo possa ser aplicado, isto é, quando a partir do ordenamento como um todo se possa tirar um sentido juridico, mesmo (2) KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 5 ed, (Trad. J. B. Machado). Coimbra, Armenio Amado Ed, 1979, p. 20. 240 R. Inf, legial, Brasilia a, 25 om, 99 jul.foat. 1968 que diverso para varios casos, Lacunas haveria se fosse imposstvel, Jogica- mente (°), aplicar-se 0 ordenamento. Ora, para a teoria puta aplicar o direito € ao mesmo tempo produzir direito. “Com efcito, se deixarmos de lado os casosdimites — a pressuposicao da norma fundamental ¢ a execugao do ato coercivo — enire os quais se desenvolve 0 provesso jutidico, todo ato juridico é simultaneamente aplicago de uma norma e producao, regulada por esta norma, de uma norma inferior” (*). Logo, as lacunas so logicamente impossiveis. Por qué? Porque seja 14 qual for a variedade dos casos concretos, eles s6 fazem juridicamentc sentido a partir do ordenamento/norma ¢ isto quer dizer: néio faltam normas capazes de dar sentido aos fatos, O que pode ocorrer € a “‘indesejabilidade” de uma solugdo. Esta indesejabilidade esté, todavia, no aplicador ou no sujeito ¢ nao no ordenamento em si (). Percebe-se que a soluco vem de que 0 processo de interpretacdo, dentro do qual se pode insetir a lacuna, fica dissolvido num ato de criagao de regra ou norma particular, limitado por uma norma superior, que nao exclui o seu cardter propriamente criador. Visto 0 dircito como sistema de normas e vistas as normas como critério de interpretagio juridica da realidade, nfo h4 como falar logicamente — em lacunas. Isto para uma tcoria formal e aprioristica, como a de KELSEN. Haveria alguma diferenga se entendéssemos 0 direito do ponte de vista de um realismo juridico? Certamente haveré uma diferenga. 2. Lacunas como problema de decisio No caso de um ponto de partida realista, as lacunas tornam-se, de certa forma, um falso problema ou talvez um nio-problema. Tomemos como paradigma o trabalho de ALF ROSS. Seu ponto de pattida distingue-se do de KELSEN, Este vé o direito a partir de normas como enunciados essencialmente do dever-ser, distintos dos enunciados referentes ao mundo do ser, enunciados que seriam descritivos, Dada a sua matriz idealista, 0 fundamento do direito para KELSEN esté numa norma @ priori, que nao pertence ao mundo das normas postas, senfio do deverser em si, ji que é norma fundamental pressuposta. A juridicidade é a validade derivada desta norma pressuposta, ROSS toma outro caminho e outro ponto de partida. © ponto inicial é a controvérsia. A controvérsia e sua decisio fazem a esséncia do direito, se fosse possivel neste caso falar em esséncia sem ser mal compreendido. Ao contrdrio de KELSEN, para ROSS a efetividade © a eficdcia serao 0 inicio determinante de um sistema (seria aqui um sistema diverso do sistema simplesmente légico) juridico. O papel da @) Idem, p. 339. @) Idem, p. 325. () Idem, p. 239. R. Inf. legisl, Brosilia c, 25 on, 99 jub/ser. 1988 zat eficicia e da efetividade das decisdes tera também uma certa légica, mas subordinada & caracteristica da forga do Estado. De um lado ROSS poder afirmar que a forga nao € o respaldo do direito, mas 0 direito é em si a organizagao da forca (*). O papel do Estado, como ordem coativa, surge, de modo claro, na sua compreenséo do ordenamento juridico, como “con- junto de regras para o estabelecimento e funcionamento do aparelho de fora do Estado” ("). Neste sentido, pode-se perceber uma aproximacao ‘com outras correntes positivistas e pode-se igualmente perceber o papel dominante que o direito estatal exerce sobre a sua teoria geral. Afinal, todos os juristas pagam, de boa ou m4 vontade, um tributo ao Estado moderno, que exige 0 desaparecimento ou a desconsideragio de qualquer outro fenémeno juridico paralelo. Isto seria, no entanto, uma discussio mais para a antropologia juridica do que para um trabalho voltado para as lacunas (que pressupdem, em grande parte, justamente o direito e o Estado modernos). Para ROSS o direito vigente confunde-se com as regras aplicadas. As regras no aplicadas deixam de ser direito. Ora, toda controvérsia requer uma aplicagdo de regra decis6ria, de modo que em todos os casos haverd a decisio, o que nao permite falar em lacunas. Como haveria lacunas se cada nova decisio de controvérsia passa a integrar o direito vigente? Se estas decisSes passam a ser tomadas como apoio a hipdtese de que A ou B ainda é o direito vigente (°)? Assim, as lacunas ndo so apenas logicamente impossiveis, como sugetia KELSEN; séo também materialmente imposs{veis, na medida em que o direito vigente abarca mais do que um sistema escalo- nado e piramidal de regras formalmente vélidas. O direito € qualificado como direito vigente e esta qualificagio faz toda a diferenca. A vigéncia tem a ver com a faticidade, é uma “relagao entre 0 contetido normativo ideal e a realidade social”. Sendo assim, nado hé mais distancia insuperdvel entre a realidade ¢ a norma: ha entre elas uma relacao de implicagio, impedindo a existéncia de notmas ineficazes e de fatos irrelevantes juridi- camente. Nao é pela légica que se deduz a pertinéncia de uma norma #0 ordenamento, mas é pela observagio do seu uso. Com ROSS ji deixamos para tras as lacunas como problema do ordenamento enquanto sistema Igico-formal e entramos no campo da decisdo. As lacunas se resolvem na instancia decis6ria. O direito é regra de decisiio ¢ nfo esquema de inter- pretacZo puro e simples. Abandona-se a ciéncia do direito como descric¢a0 de um sistema ordenado de normas postas e passa-se & observacdo de seu carater tecnolégico. Isto significa que a ciéncia do direito nao [ndo] des- (6) “Es evidente que el poder judicial precede siempre a} legisiador. El juz formabe originariamente su juiclo de acuerdo con las reglas tradicionales de los costumbres”. ALP ROSS, Sobre el Derecho y la Justicia. 4* ed. (Trad. Genaro Carrié), Buenos Aires, Eudeba, 1977, p. 88. (dem, p. 34. @) Idem, pp. 90 0 47. maz R. Inf, legit, Brasilia a, 25 m. 99 jul./set, 1988 creve ou ordena as normas postas, mas [que] prevé decisbes a serem toma- das, levando em conta as regras de deciséo usadas normalmente, isto ¢, 0 direito vigente. Desta perspectiva, a solugo dada para a lacuna assume uma outra impostagiio. Considerado o direito como segra ou conjunto I6gico sistemético de nosmas (enunciados imperativos hierarquizados entre si) que dé sentido juridico ao mundo, 2 lacuna s6 pode parecer logicamente impossivel. Contudo, considerado 0 direito como conjunto de decisdes ¢ regras de decisio voltadas para o futuro, tendo em vista sua aplicagio também no futuro, a lacuna s6 pode existir se vier a faltar a decisio. A decisio “equivocada” nade tem a ver com as lacunas, O que tem a ver com as lacunas € a nao-deciséo, ou a indecisdo. Ora, visto 0 direito como sistema de decisoes — sem espago para a indecisio —, tampouco resta espaco para a lacuna. Chegamnos, pois, por dois caminhos diversos, & eliminagdo das lacunas, quer pela sua impossibilidade ftica (sempre hé deciséo), quer pela sua impossibilidade Iégica (sempre h4 regras a aplicar), Mas aqui € preciso esclarecer com mais detalhe a hipétese jé aventada por BETTI de que uma impostagao tedrica nao formalista pudesse abordar de forma distinta o problema das lacunas. Na verdade o que BETTI parece querer dizer é que ¢ vidvel constatar as lacunas e assumir a necessidade de preenché-las. Esta € também, de um certo modo, a posicio de BOBBIO. Esta posigdo, no entanto, continua a aceitar o pressuposto da divisao inicial do pensamento juridico tradicional que faz a escansao insuperdvel entre ser e dever-ser. A razio esta irremediavelmente dividida. Daqui para frente vamos enfren- tar © desafio das lacunas como problema da interpretagdo. Elas se ligam a0 espago que vai da constatacao do conflito A formulagao de uma regra particular ou de uma deciséo particular. Estamos, pois, no processo ¢ no momento interpretativo-hermenéutico. Mesmo aqui os problemas nio sao poucos. 3. As lacunas como problema da interpretagao Para comecar, toda interpretagao parece carregar algo de irtacional € nao controlavel. Qu pelo menos parece estar mais fundada em crencas @ adesdo a valores do que em saber cientifico. E verdade: 0 racional e o itracional aparecem hoje como dois hemisférios da razéo sem que haja nada que ligue atos de intelecgao e atos de vontade. Justamente por esta linha divis6ria poderia operat a hermenéutica. Ela pretende ser a desco- berta de critérios para o entendimento e o conhecimento, na medida em que o conhecimento j4 no é mais externo ¢ contemplativo do ponto de vista da relagéo sujeito-objeto, mas implicativo e intencional. Em outras palavras, a hermenéutica pressupde mesmo a relacio do sujeito com o objeto de forma absoluta, introduzindo a questiio inafastavel do “ponto de vista”. De tal maneira que o saber torna-se essencialmente motivado: isto implica uma idéia de que o saber e o conhecer partem de perguntas moti- R. Inf, tegisl. Brasifia a. 25 on. 99 jul./sot, 1988 243 vadas ¢ motivadotas ¢ ndo de perguntas soltas, Assim a hermenéutica jurf- dica é a interrogacdo de um texto legal ou de uma regra decis6ria ou mesmo de um precedente a partir de motivagdes. E estas motivagdes podem ser divididas em duas espécies: 2 primeira é a necessidade da decisio ¢ a segunda é a dos valores que 0 intérprete (seja 0 individuo, seja o proprio “sistema” de interpretagao, ou seja uma espécie de intérprete impessoal que encobre os valores dominantes socialmente) pressupde ao fazer a sua pergunta. Isto jf carrega em si outra conseqiiéncia: as perguntas em certa dimensdo j4 trazem uma resposta. E, de fato, a maneira pela qual GADA- MER formula o niicleo da atividade hermenéutica: “Uma das concepgées fecundas da moderna hermenéutica € que todo enunciado deve ser cons derado como uma resposta a uma pergunta e que a Unica via para entendé- Jo consiste em fazer 2 pergunta da qual esse enunciado é uma resposta. Por conseguinte, uma primeira distingio a fazer com respeito a herme- néutica tradicional ¢ 0 fato de que a hermenéutica filoséfica esté mais interessada nas perguntas que nas respostas. Qu melhor, interpreta os enunciados como respostas a perguntas que tem de compreender. Os fatos se encontram nos enunciados. Todos os enunciados sao respostas. Porém, isso nao é tudo. A pergunta a respeito da qual todo enunciado é uma res- posta esté, por sua vez, motivada; por conseguinte, em certo sentido toda pergunta é igualmente uma resposta, Responde a uma necessidade, Sem uma iensio interna entre nossas expectativas de sentido e as concepgbes amplamente difundidas, ¢ sem um interesse critico mas opinides domi- nantes, nao existiria qualquer pergunta” (*). Se assim 6, abrem-se aqui novas perspectivas: passa a existir, no processo de interpretagao, uma dimen- sdo cognoscitiva subjetiva. Em outros termos: o saber tem sua diregfo e seu sentido a partir de motivagdes que o produzem. Desta forma, 9 problema das lacunas em direito surge justamente no espago das questées colocadas pelo intérprete a0 “ordenamento”. Se a sua motivacio ndo corresponde a “motivagio” do “sistema”, certamente aparecero as lacunas. Caso con- trério, as lacunas nfo aparecerao ou sero um problema inexistente, mesmo que apenas [ogicamente inexistente, porque, ao fazer suas perguntas na mesma chave de sentido do “ordenamento”, tender a dar as mesmas res- postas j4 dadas. Na mesma diregio se pode afirmar que a “constatagio da lacuna, embora aparentemente tenha um significado descritivo, representa, na eeverdade ‘um procedimento inventivo” 29), As lacunas sio, assim, tipicas da “Ciéncia do Direito de modelo herme- néutico”, em que “se distingue a atividade legislativa da executiva e judi- ciéria”’ (*), Neste espago de interpretagao vai a lacuna, Como vai também ®) GADAMER, Hans Georg. A Razdo na Epoca da Ciéncia. (Trad. Angela Dias). Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1983, pp. 71 e 72. (20) FERRAZ Jr, Terelo Sampaio. A Ciéncta do Direito, 2* ed. Sio Paulo, Atlas, 1080, B. 85. aD Idem, p. 80. 4 R. Inf, legisl, Brasilia a. 25 m. 99 jul./set, 1988 © espaco criado “quando as necessidades de uma sociedade j4 em modifica- fo comegam a romper com uma espécie de admiraco acritica pelo jurista do direito positivo vigente” (), Ambas as caracteristicas — separagdo das fases, de produgao normativa ou sua “procedimentalizacao” e fixidez positivada de regras decis6rias em contextos de mudanga social — sao especificas da moderna sociedade indusirial. Parece, pois, bem tipico 0 caso da interpre- taco do art. 159 do Cédigo Civil brasileiro em situagao de conflitos entre ptodutores ¢ consumidores. £ 0 que veremos a partir de um caso paradig- matico. 4. Interpretagiio do art. 159 do Cédigo Civil A produgo industrial de bens de consumo pée uma novidade em cena: danos ¢ prejuizos causados aos consumidores por defeitos de fabticagio. Em principio so afastadas as regras da compra ¢ venda (vicios ocultos da coisa vendida) por dois motives: a) a relagéo fabricante-consumidor nao existe juridicamente como um contrato (0 consumidor compra de um inter- mediério); e b) os prazos dados na disciplina redibitéria séo incompativeis com a manifestagdo de vicios ocultos em bens mais ou menos complexos. De outro lado, a regra da responsabilidade civil (art. 159 do C. Civil) fala em agio ou omissio voluntéria, imprudéncia ou negligéncia. A producdo em empresas nfo permite falar em “vontade"’: quanto a negligéncia ou im- prudéncia, como constaté-las, se, na mesma série de produtos, uns apresentam defeitos e outros no? Que fazer? A evidéncia dos danos forgou um proceso de interpretagéo do art. 159, que 0. ampliou sem falar em lacunas, mas cujo efeito foi exata- mente impedir o “aparecimento” de uma lacuna, isto é, a constatagao de uma deciséo inconveniente, um “caso duvidoso”, uma “lacuna ideolégica”, a falta de um texto legislativo explicito. Podemos analisar o caso publicado na Revista de Direito Mercantil ne 61 (S. Paulo, jan./mar. de 1986, pp. 61-63) e que ali comentamos. O tribunal decidiu da seguime maneira: responsabilizou o fabricante e o ven- dedor de um medicamento em conjunto, um pelo vicio oculto da coisa que vendera (responsabilidade contratual) eo outro pela auséncia de cuidados na fabricagéo (responsabilidade extracontratual). Juntou, pois, duas espécies juridicas © legalmente distintas numa s6 decisio. Fundov-se, para isso, em indicios, valendo-se do art. 136 do Cédigo Civil. A confuséo conceitual denuncia varias coisas que se podem explicar a partir da evidente recusa do tribunal de constatar uma “lacuna”, ou seje, uma previséo legislativa suficientemente expressa, clara e explicita (!®) para o caso de defeitos de fabricagao, ou seja, a recusa de denunciar pelo menos um caso de davida ow insuficiéncia de critérios legislativos. Em suma, recusou-se a falar em 22) Idem, p. 81. (13) BETTT, Op. cit, p. 191. R. Inf. legisl, Brasilia a. 25 n. 99 jul./set. 1988 245 caso “duyidoso”. Daf valer-se de recursos a mais de uma espécie de res- ponsabilidade, a critérios bem mal utilizados de distribuigdio de énus da Prova etc. Quais as confusdes originadoras deste julgamento? Se o tribunal fosse falar diretamente em responsabilidade do fabricante, teria que enfrentar de vez a responsabilidade por risco ou por resultado: ela vem disciplinada no Cédigo Civil nos artigos £.518 e seguintes ¢ ld nio se prevé responsabilidade por defeito de produto. Prevé-se a responsabilidade na guarda da coisa, mas um produto fabricado e consumido nio é coisa da qual o fabricante tem a guarda. O produto esté em circulagao. De forma que expressamente as regras ali previstas nfo se aplicam claramente a0 caso. A saida foi o uso de uma tegra de “negligéncia”, via expresso “omissio de cuidados”. O fabricante procurou safar-se da acusagio de negligéncia alegando que nao omitira cuidados, tanto que fabricara a coisa de acordo com férmula aprovada pela autoridade piblica e que, além disso, a fabri- cago estava sob fiscalizagdo federal, que nada constatara de defeituoso. tribunal rejeitou o argumento, dizendo que a autoridade fazia a inspegao por amostragem e niio em cada unidade comercializada: uma delas poderia escapar, E facil ver que se escapa uma ou outra, o fundamento da decisio néo pode ser a omissio de cuidados que, de forma geral, foram aplicados na linha de fabricagao. O verdadeiro fundamento é a atividade de fabricagio, 0 risco de errar — inyoluntéria e inevitavelmente — na fabricagio em série de qualquer coisa, No entanto, para néo negar o seu ponto de partida (o dogma da culpa) e ainda assim obter a decisio a favor do consumidor, © tribunal fez um esforco de integragao, construiu uma decisio ¢ evitou falar em lacuna da lei, para que nao se constatasse um campo de decisao em aberto, decisio nfo regrada, arbitrdria. Outra observacio curiosa: o tribunal faz um apelo aos indicios como meio de prova, de maneira bastante incompetente, errénea. Os indicios a que alude o att. 136 do Cédigo Civil séo os relativos & conclusio de ‘“‘negé- cios” juridicos. Ora, no caso, a compra ¢ venda no estava em discussao: © que estava em divida era a prova da causa do dano, isto é, se o produto for a “causa causans” do evento. Ali se tratava de usar indicios para prova de um fato hist6rico e no de uma relagao juridica. Tratava-se, pois, de fazer apelo ao art. 335 do CPC, que permite justamente fazer conjecturas sobre fatos histéricos, Era um jutzo de probabilidade (empirico) que se fazia e ndo um juizo de certeza (Idgico). Daf que a aplicagdo do art. 136 era evidentemente inadequada: todavia se explica pela confusdo n para ocultar o verdadeiro motivo de decidir. A simples observagio deste caso permitenos retomar 0 que fora dito na parte inicial deste trabalho: as lacunas déo-se como problema de inter- pretagdo ¢ decisao, de aplicaco do direito © s6 podem surgir para uma teoria juridica (modelo) que nfo se reduza ao modelo analitico, seja ele mais ou menos formalista. mb R. Inf. tegisl. Brasitia @. 25m. 99 jul./set. 1988

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