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ESTRUTURA, HISTORIA € TRANSEORMAGAD: A CULTURA XINGUANA NA LOVEUE DOPEE, 1000-2000 d.() Michael Heckenberger west ete O ALTO XiMGU € rico em historia. Este artigo visa apresentar um esbogo dessa longa heranga, que abrange mais de mil anos de desenivolvimento cultural in situ? A despeito dessa riqueza, tem sido dificil para os antropélogos conceber a histéria xinguana, uma vez que tém focalizado nfo o passado, mas o presente —0s titmos € movimentos da vida na aldeia tais como experienciados em um contexto etnogrético. ’Apenas em pate pode-se considerar a reificagao do presente como conseqiiéncia de uma lacuna analftica, evidenciada na auséncia de uma arqueologia ou histéria documental adequadas ~ embora haja, de faco, uma falta promunciada destas, Ela é também resultado de uma percepgio geral: para observadores ocidentais, a modo de vida xinguano exala sentimentos quase subliminares de atemporalidade c adequagio ecolégica, imobilidade e imutabilidade, que hé um tempo atrés eram considerados representatives das sociedades “frias” (Appadurai, 1988; Fabian, 1983). Quando se esté dentro de uma casa xinguana, por exemplo, deitado na rede olhando para os caibros, uma armadura de postes e vigas, ou para as névoas de fumaga saindo da panela e da chapa de cerdmica, pecas centrais das grandes casas ovais, é de fato dificil imaginar que as coisas possam ter sido em algum tempo diferentes: nfo hd nenhum monumento ébvio do passado nas aldeias 22 Go 0s roves no ato Riven Lera histéria xinguana através dos trabalhos seminais de Karl von den Sceinen (1886, 1894), por exemplo, nao necessariamente transforma ou alarga essa imagem, referente & suposta variante xinguana da cultura da floresta tropical: os gréficos abundantes parecem desenhos dos tempos atuais, néo fossem as agora onipresentes bicicletas e traves de futebol. Devemos, no entanto, ler nas entrelinha: ceeaqren verdade, tem sido largamente notado desde o tempo de Steinen. Da mesma forma, a comparagio entre padrées demogrificos do fim do século XIX com os atuais (por exemplo, aproximadamente 3 mil pessoas em 1884, 650 em 1954 ¢ quase 2 mil hoj) lee ars o fo de . aly maiotia dos autores reconheceu esses fatores histéricos e alguns chegaram a fazer comentétios mais detalhados sobre os efeitos profundes provocados pelo des- povoamento (cf. Dole, 1969, 1984a; Galvao e Simées, 1966; Ribeiro, 1970; Silva, 1972) ow sobre a formacio do pluralism xinguano (cf. Bastos, 1981; Dole, 1993). No entanto, de maneira geral, os estudos citados sio micro-histéricos — abordam uma histéria de pequeno alcance; apenas rara ¢ hipoteticamente foi investigada a natureza do que aconteceu antes de 1884 (ver, particularmente, Becquelin, 1993; Carneiro, 1957; Dole, 1961/1962; Silva, 1993) fc. 1940- 1980), na verdade, 0 grande choque no se deve tanto & descoberta de construgdes de terra em grande escala, quase onipresentes em sitios pré-histéricos terminais, embora isso seja de fato surpreendente. A verdadeita surpresa se dé quando o antigo ¢ sofisticado plano arquitetural é revelado em sua integridade. As grandes aldeias fortificadas do passado remot dez vezes maiores que as atuais — e as vastas areas desmatadas a elas associadas algumas das quais documentam uma transformacio inesperadamente dramdtica ¢ intencional da paisagem pré-histdrica. Também a distribuicio de aldeamentos, caminhos, portos € outros aspectos topogréficos demonstra que no passado, assim como hoje,o built environment integrava uma drea muito mais ampla, sc estendendo para além das dreas das préprias aldeias. E bastante provavel que essa regio tenha comportado uma substancial populagao na Pré-Hist6ria tardia, somando talvez.dezenas de milhares ESTROTURA, ViSTERIA E TRANS TORMAGAD GB) 3 de pessoas, fixadas em povoados grandes e permanentes~ alguns dos quais contando com milhares de pessoas cada —, densamente distribudos por boa parte da bacia do Alto Xingu (ver Heckenberger, 1996, 1998a para uma discusséo mais detalhada). Independentemente da escala exata atingida pelas antigas formacées sociais “ingisons muda ves paecem sugerr uma desontnuldade ada entre ‘O pasado é um pais estrangeiro, onde se fazem as coisas de modo diferente”. A frase memoravel e freqiientemente citada de Hartley (1953) nos lembra que tanto a antropologia quanto a histéria tentam estabelecer significados corretos & distancia (Lévi-Strauss, 1963, p. 16-17; Thomas, 1991). Ao pensarmos entio sobre a historia xinguana, devemos nos pergunta tamos diante nfo apenas do problema interpretativo de estabelecer significados culturais corretos num contexto presente (etnogréfico) ¢ dindmico, mas também do problema temporal de estabelecer a histéria desses significados, uma histéria cul- tural, Construir uma tal histéria exige nao apenas que levemos em conta a questo da significagio, mas também que a remetamos sistematicamente a ages ¢, assim, possamos estender ao passado nossa interpretagio de agGes significativas, através do exame dos residuos ou produtos de ages passadas — da prética social sedimentada, Nossa habilidade no sentido de conceber analiticamente as coisas-através-do- tempo, ow a cultura-através-do-tempo, depende em tiltima instincia de questies acerca da visibilidade — 0 que, sobre o pasado, podemos concretamente visualizar no presente. Sob uma perspectiva arqueolégica ou documentiria, é evidente a importincia de questées sobre visibilidade, No entanto, essas questdes também atravessam © contexto etnogrifico, embora de maneira menos dbvia. Nao apenas existem problemas interpretativos substanciais acerca de como se penetra, ou se é penetrado, por uma outra ordem cultural (Geertz, 1995), como existem também grandes problemas relacionados & profundidade temporal: como entender a perfor- mance, elasticidade ou centtalidade histérica de caracteristicas ou aspectos especificos dessa ordem sem documentar sua forma exata, ou mesmo sua presenga, no pasado? Assim, embora possamos nos justificar assumindo que certas caracteristicas culturais (como simbolos, ptincipios, priticas, produtos, instituigées, etc.) séo centrais ou estratégicas devido 4 sua permeabilidade ou importincia aparente num contexto 24 eo ws rrves neat aine contemporines, devemos notar que se trata também de assumir que elas com- preendem elementos arraigados do padréo cultural AERNSMEae alate nos niveis estruturais “profundos” ou bdsicos so raramente discerntveis n as por meio de estudos que espago de tempo: é ap ‘que poderemos comegar a abordar questécs de estabilidade ou transfo esteutiral (Ohnuki-Tierncy, 1990). Estender nossa andlise para além do contexto dos vivos e de suas memérias exige uma integracao de evidéncias coletadas fora dos sistemas fornecidos pelo cont viviclo, Come, entéo, dar sentido aos contextos estéticos dos repistros sequeclsa GSMMstoAIED- que, embora incerpretados no presente, pertencem a0 passado (deixando de lado, por enquanto, as histétias orais dos povos, ou 0 que as pessoas pensam ou dizem que aconteceu em seu Prssulol? O desfio € desenvolver analogs) vilidas ¢ relevantes entre 0 passado € 0 presente. tendo em vista que dice qualquer conhecimento que ultrapasse os prdprios objetos é afirmar o conheci de padres operantes na cultura e na hist6ria e aplicar esses padres aos fatos” (Chane, 1967, p. 1305 ver também Charlton, 1981; Gould e Watson, 1982; Wylie, 1985, so- bre o uso de analogia). Varias analogias histéricas aplicadas A Amazénia ou a lar) gos segmentos desta (ou seja, afirmagdes como.“a Amaz6nia é”, “os amerindios so”, ou “as sociedades de terra firme s4o”) deram importantes contribuigées no que se refere aos paradigmas dominantes estruturalistas ¢ ecofuncionaliscalevolucionistas | Entretanto, essas analogias basciam-se estritamente na etnologia ¢ dependem, parcial ou implicicamente, de nogées a-histéricas de um imperativo ecolégico ou estrutural (cultural) inerente que sobrepujam histérias especificas: © que nos falta sio estudos ) detalhados sobre trajeté: ‘Sricas especificas, com profundidade temporal _ “Wiiciente para avaliar padres de longue durée, particularmente estudos que se) estendam até a Pré-Histéria. O Alto Xingu é um lugar privilegiado para um tal estudo, pois If convivem comunidades indigenas relativamente nao-aculturadas e bem documentadas (de 1884 20 presente), que possuem claramente uma histéria “profunda” na drea (isto é, dec. 800-900, pelo menos, ao presente). Assim, podem-se desenvolver analogias histéricas que ndo,dependam de pressupostos uniformes genéricos, nunca antes testadas de forma concreta no que diz respeito & Amazénia em geral. Uma vez que a histéria esctita comega apenas em 1884, a possibilidade de definir o perfil temporal da cultura xinguana anterior a esse tempo depende largamente da arqueologia; a possibilidade de “reanimar” esses perfodos mais remotos com vida cultural depende da validade, relevancia ¢ escopo das analogias entre a cultura contemporinea (emogréfica) ¢ os residuos arqueolégicos, @UBDORAgeH pHNilepadalngun GlpOrtanto) naolapenae ESIRUTERA, HISTORIA C TRANS TOR MACAD GP) 5 io se trata apenas de uma tentativa de empregar a etnografia na busca de um melhor entendimento do pasado, ou, inver- samente, de utilizar a arqueologia (ou a histéria) para um melhor entendimento do presente, Trata-se, ainda mais, de tentar revelar e relacionar padrées relevantes, visiveis ¢m niveis analiticos diferentes (ou seja, relativos a escalas espago-temporais varidveis), buscando entender histéria e cultura num sentido holisticos em outras palavras, trata-se de criar um didlogo conceitual entre modos diversos de pensar a histéria. sim, padres culturais relevantes sao reconstruidos em varios oe de um continuum hist6rico-cultural (“fatias de tempo") isto €/ compreendendo o “sistema” (ou partes significativas deste) em diferentes pontos do tempo € do espago, e ligando-os concretamente para revelar tragos comuns, que tefletem nao apenas a existéncia de uma continuidade entre aspectos desarticulados da cultura, mas fundamentalmente os principios estruturais ou a ordem culeural subjacente — uma unidade de sentido organizada em torno de esque tipicos (conforme Ortner, 1990, (GEGD Geertz, 1991; Hodder, 1996). No Alto Xingu, o desafio de criar uma histéria cultural, num sentido holistico, é facilitado pela durabilidade de algumas caracteristicas altamente vis(veis da cultura xinguana através do tempo, tais como: padrao de assentamento regional e organizacao | espacial (por exemplo, configuracao ¢ localizacao de aldeias), economia de subsisténcia ¢ tecnologia (manufacura da cerimica, uso da terra em torno das aldeias). Perceber a continuidade desses aspectos fisicos (coisas) ao longo do tempo, produtos de priticas sociais sepetitivas permeados por sentidos redundantes e compardveis, permite-nos infer continuidade também no nivel dos principios subjacentes. A partir de andlises desses aspecto: (GGA Sem pretender me adiantas, 2b eo os roves ov atie xivee jadangarque se teleem 20 tamanha dasaldeias; ou a comelajanecte eee outros fatores como mobilidade, regime de subssténca, etc hé uma continuid A base empftica para a cronologia proposta e para as interpretagoes a la associadas me foi fornecida pelas investigagdes arqueoldgicas ¢ etnogréficas condu- zidas no Alto Xingu no perfodo de 1993 a 1995 (ver Heckenberger, 1996, para uma discussio mais completa). E preciso notar que muitas das conclusdes alcancadas aqui esto em concordancia com.as de outros pesquisadores, embora minha proposta nao seja fazer uma revisio ou sintese das mesmas (para sinteses recentes da pesquisa arqueolégica conduzida antes de 1990, ver, particularmente, Becquelin, 1993, Silva, 1993; ver também Carneiro, 1957; Dole, 1961-1962; Sim@es, 1967). As recons- trugées histéricas anteriores foram formuladas em termos mais preliminares, mes- mo especulativos, devido & falta de dados arqueolégicos ou etno-histéricos mais detalhados. © presente estudo nos permite utilizar uma chave mais empitica nas reconstrugées do passado pré-histérico (anterior a 1884), inclusive uma seqiiéncia de datas radiocarbénicas, mapeamento sistemdtico e estudos distribucionais de sitios inteiros, andlise detalhada de tecnologias pré-historicas ¢ levantamento regional de sitios (numa rea de estudo de aproximadamente 1.200 km?). MACROCONTEXTOS. Através das seqiiéncias culturais conhecidas (1000-2000), a 4rea do Alto Xingu foi marcada por um padréo cultural regional distinto tanto daqueles da 4rea ama- Zénica adjacente, quanto do Brasil Central. Em parte, essa distingéo cultural, pa ticularmente evidenciada nos padrdes de assentamento e de subsisténcia, pode ser relacionada & geografia fisica ¢ &s condigées ecoldgicas da bacia — tinicas e relativa- mente circunscritas; entretanto, ela é em maior medida um reflexo da estrutura ow natureza subjacentes as préprias culturas xinguanas. Uma estrutura que, embora singularizada no Alto Xingu, pode ser remetida a um conjunto mais amplo de gru- pos, parte de uma histéria ainda mais profunda, compreendendo as periferias do sul da Amaz6nia, Se pensarmos em termos macroscépicos, veremos que hd profun- das raizes histéricas ligando povos através de amplas teas geogréficas, além de vas- tas conexGes ligando grupos coexistentes aos mesmos processos histéricos, quer dizer, estruturas sécio-histéricas articulando regi6es em sistemas macrorregionais. ESTROTURA, TASTHRIA C TRANS EORMNAGAE a9) 7 Dessa forma, entender a cultura xinguana através do tempo requer em primeiro lugar entendimento dos macrocontextos nos quais se dio a mudanga ou a continuidade, tendo em mente a adverténcia de Turner (citada acima), segundo a qual tudo esta em movimento, embora lentamente — até mesmo os contextos mais amplos da geografia e da topologia. GEOGRAFIA E ECOLOGIA As nascentes do rio Xingu situam-se quase todas numa bacia sedimentéria formada a0 longo dos flancos do Planalto Central (um vasto plat, situado a 1.000m- 2.000m acima do nivel do mas, que se estende por grande parte das regides Central, Oeste e Nordeste do Brasil) (Fig. 1). Os maiores afluentes descem num gradiente moderado que se inicia nos altos topogréficos ao sul, leste ¢ oeste da bacia ¢ vio gradualmente se nivelando ao chegarem na prdpria bacia (onde descem a menos de 0,25m por quilémetro). A altitude média da érea nuclear da bacia do Xingu € de 300m acima do nivel do mar, contendo um sibito declive de 75m de sul (13°30°S; 350m acima do nfvel do maz) a norte (11°30’S; 275m acima do nivel do mar), principalmente entre 12°30’ e 13°00’. Ficura 1. O Alto Xingu, Amazinia Meridional, entre o cerrado ea floresta 2B SB Os roves yo atin niwew Os limites da bacia a0 norte correspondem aproximadamente aos extremos ais altos do préprio rio Xingu e se definem no estreitamento da topologia ampla e plana da bacia por um solo que vai progressivamente se tornando mais alto ¢ mais ondulado abaixo da confluéncia do Xingu (Morend), particularmente abaixo de sua confluéncia com o rio Suié-Missu (Diauarum). Esse efeito funil é largamente responsdvel pela extensa inundagio que ocorre na estacio chuvosa, formando amplas varzeas ¢ canais pronunciadamente sinuosos na bacia acima de Morena. Abaixo de Morené, 0 rio Xingu é caracterizado por um curso mais direto e por uma considerdvel diminuigao na variagio ecoldgica das vérzeas. Segundo a denominagio antropoldgica, o Alto Xingu refere-se a porgbes nnucleares da bacia como um todo (em torno de 40 mil kim’), area caracterizada por uma ecologia em mosaico definida por condigées topogréficas, pedolégicas ¢ hi- drolégicas locais que, embora bastante diversas, se restringem a bacia, Em termos macrortegionais, a bacia pode ser considerada parte da zona de transigio entre as florestas equaroriais das terras baixas do sul da Amazénia c os cerrados tropicais do Planalto Central brasileiro. No entanto, iso é um tanto enganoso, uma ver que, em termos gerais, a vegetacio, o solo, a fauna e a flora encontrados no Alto Xingu séo caracteristicamente amazénicos, Trata-se na verdade de uma grande “Iingua” da Floresta Amazénica, alojada entre os limites da parte mais alta do Planalto Central, caracterizada genericamente por um meio ambiente de cerrado (mais aberto) ¢ por tum solo menos erodido, ¢ apenas ocasionalmente por florestas-de-galeria adja- centes aos cursos d’4gua. A PERIFERIA MERIDIONAL DA AMAZONIA Ha uma correspondéncia marcada entre as provincias fisioecolgicas do sul da Amaz6nia (Floresta tropical) e do Brasil Central (cerrado) com as culturas a elas associadas, compostas predominantemente de fulances de linguas do tronco macrotupi no primeiro caso edo jé no segundo. As sociedades jé que ocuparam o Brasil Central por pelo menos mil anos (Wiist e Barreto, 1999) catacterizam-se por possuirem estrutura social, cosmologia e organizagao espacial recorrentes em toda a regio. Jé nos perfodos pré-hist6ricos tardios, os vizinhos dos jé eram predominantemente tupi, mais especificamente falantes da lingua tupi-guarani, Embora mais diversos em tetmos de padrées de assentamento e morfologia social, os povos tupi, assim como os jé, formam um conjunto de culturas relativamente ligadas — uma macro- tradigio eaum “complexo bélico-teligioso” (Viveiros de Castro, 1992). Particularmente no que diz respeito As suas cosmologias distintivas ESIRUTURA, MSTORTA CTRANStHRIMACHD 2 drea compreendida entre 0 Alto Xingu (a leste)® ¢ as terras baixas da Bolivia (a oeste). Grande parte da regido Centro-Oeste do Brasil a terra baixas da Bolivia ~ | incluindo 0 Pantanal e 0 Chaco, os Llanos de Mojos, 0 Guaporé,)assim como a Periferia Meridional —representam reas de contato entre povos de diversas Iinguas ~denominadas pelos lingilistas de dreas de “invasio” (Kaufman, 1990) , possuindo meios ambientes também marcadamente variados. E portanto dificil conceber a Periferia Meridional no contexto de tal diversidade cultural, dificuldade agravada pela pronunciada fragmentacéo cultural resultante do contato com os brancos. A primeira vista, quando confrontada, por exemplo, com o pano de fundo colorido do mapa etno-histérico de Cure Nimucndajn (1981), AUPeRifeeaiiVeneaiouaneaAeee Sever Hlacobviando peloqued;maspeloquenaoeeo verde quase sdlido indicando do Brasil Central, ou 0 ndo menos marcante — embora menos claramente delimitado — ouro dos tupi do sul da Amaz6nia(@GU@ESRG ERGO aera pela mistura dQ@i(aRaR MESEIUBEIB) < outros, além de uma larga medida de verde e ouro. Entretanto, embora a Periferia Meridional forme uma cunha entre os tupi (Amaz6nia) e os jé (Brasil Central), ela no é simplesmente uma conveniéncia arbitrdria formulada post hoe para descrever os grupos que por acaso ocupam a drea entre os dois povos (GERRI e Raa NeSeSTO Es provinciaslclltes GaSlonnaleD marcam os limices\da mais culturalmente heterogénea Periferia Meri ional, profunda, tal heterogeneidade se transforma num bloco quase continuo de povos aruak, se estendendo do Alto Madeira e Montafia (aleste) a0 Alto Xingu. A Periferia Meridional rem tanto a ver com histéria quanto com geografia; e, enquanto 0 corpe social é diverso, 0 esqueleto, a estrutura social profunda, é em boa parte da regio, origem aru: ‘ig. 2). Em outa palavras HA euI ESPs Reo tae Fa Tena ridional resultam nao apenas de uma proximidade ou interagio geogréfica, 11s também de uma heranc2 comum, a saber(@2Gila gomedia Soe oetliniel BROTONpI CERPAVOSEAIAR AO SUSAN et Schmide, 1914, 1912)-0s primeiros colonos aruak (maipure) do Alto Xingu, que chegaram & regio por volta de c. 800-900 (ver abaixo), jd traziam esse modelo cultural, E, portanto, um erro considerar o Alto Xingu uma drea cultural discreta ¢ isolada, produto de condiges singulares de aculturagio simétrica entre os diversos grupos, ou, por outro lado, subsumi-lo a um substrato cultural geral do tipo floresta tropical (isto ¢ Amaz6nica) ou Brasil Cen- tral." No Alto Xingu, esse padrao cultural bésico (aruak) reteve sua forma por mais de mil anos, ainda que aries ido transfor eaeiaaiaeac iso longo do tempo, ~~ evidenciadas, por exemplo, no estabelecimento de uma cultura regional multiling’ Sonhecida hoje como culturaxinguans Podemos estender essa discussio para destacat 30 Se 65 Paves oy atte Kiwee B navies se corse A crup0s saipuran Ficura 2. Mapa da Amazbnia Meridional mostrando as dteas dominadas por falantes de linguas tupi Llinhas horizontais)¢j@(linhas obliquas), a Peviferia Meridional, as dreas com evidéncias arqueoldgicas de construgbes de terra (como valetas, estradas, ete.) € a distribuicgo dos grupos maipure da regifo, inclusive: 1) xinguano; 2) parecis 3) bauré; 4) mojo; 5) verena/guand: 6) chang; e 7) piro. que os povos maipure partilharam caracteristicas culturais distintivas através da ‘América do Sul (sto é hierarquia social, regionalidade, sedentarmo e agricultura” relativamente intensiva, aldeias concn; das Antilhas a Periferia Meridional -, uma protocultura, ou melhor, um “substrato aruak” de Amaz6nia antiga, A elaboracio dessa “visio ampla” de histria cultural esté para além dos propésitos desse artigo; entretanto, tais modelos “culturalistas” nao representam de forma alguma uma idéia nova no que conceme & AmazOnia (ver Basso, 1977; Dole, 1961-1962; Heckenberger, 1998b, 2000a; Lathrap, 1970, 1985; Lévi-Strauss, 1969, 1973; Schmidt, 1914, 1917; Steinen, 1886; Viveiros de Castro, 1992). Embora também nfo me proponha aqui desenvolver uma discussio geral sobre a origem ou antigilidade das Mnguas maipure no sul da Amazénia (bauré, mojo, pito, chané, terena [guana], pareci, eas do Alto Xingu), gostaria de destacar aque € provavel que todas ~ ou a maioria ~possam set remetidas a uma antiga migra- $0, ou série de migracées, para a regiso do Alto Madeira; de onde posteriormente se expandiram para oeste (Acre e Peru), para sul (tetas baixas da Bolivia) e para leste ESTRUTORA, HISTORIA CTRAWSEARAAGKY > J 7 (Periferia Meridional).6 Os terena (guana) e os chané limitam as extensdes desse processo ao sul, enquanto os pareci ¢ 0s alto-xinguanos limitam-nas a leste. O que é mais importante aqui € que os pareci (incluindo kaxiniti, uaimaré, kozarini, iranxe, saluma/enawené-nawé) ¢ os aruak xinguanos (pelo menos, yawalapiti ¢ mehinako/ waurd/kustenau) ~ os chamados aruak centrais (Urban, 1992) — estdo estreitamente relacionados ¢ representam um movimento de aruak na Periferia Meridional, che- gando ao Alto Xingu por volta de c. 800-1000. Essa conclusio, baseada em princ{- pio na proximidade lingiiistica, apdia-se também em correlagées prelimina- res acerca de evidéncias antropométricas (Santos e Coimbra, neste volume) e, par- sicularmente, nas amplas semelhancas culturais, ESOVEMA CULTURAL E ESTRUTURA PROTOTIPICA As sociedades maipure que se espalharam ao longo da Periferia Meridional — expecificamente os aruak centrais ou aqueles povos que adotaram seus modos de yida (por exemplo, bakairi, karib alto-xinguanos) — se destacam na regiaio por uma coo 27 ‘exmo no uso geral do territério — como, por exemplo, na localizacéo das aldeias, Jecais de atividades especiais, trilhas, pontes e portos para canoas. Assim, através desses tragos durdveis e visiveis, que implicam continuidade =m outrés aspectos menos vistveis, a seqiiéncia cultural também representa uma sradicio cultural singular: a tradicio regional xinguana. As fronteiras desta tradicio, embora mais ou menos flexiveis ao longo do tempo e néo precisamente delimitadas até 0 momento, correspondem aproximadamente aos limites da bacia xinguana. Baseando-nos principalmente em mudangas sensfveis nos padrées de aldeamento secnologia da ceriimica, em evidéncias etno-historicas e em uma seqiiéncia de dados dé radiocarbono (Quadro 1) podemos reconhecer, nessa Tradigao Xinguana, varios ‘periodos significativos de transformacio. Esses elementos fornecem a base para uma diviséo da seqiiéncia cultural em duas fases consecutivas: a fase Ipavu (c. 900-1600) Quapro 1 — DaTAGOES DE RADIOCARBONO PARA O ALTO XINGU, SEGUINDO Os S{TIOs Sitio Lab, Ne Idade ajustada por C13 (AP*) Ano Nokugu Beta-72260 180 = 60 1770 dc. Ipatse Beta-72264 190 = 60 1760 dc. Kuguhi Beta-72266 340 #50 1610 d.c. Nokugu Beta-81301 360 + 70 1590 d.C. Tehukuge Beta-72265 440 + 50 1510 4.C. Kuhikugu Beta-72262 440 70 1510 d.c. Miararré Gif-3307* 600 2 80 1350 d.C. Tuatuati GiE5365* 680 + 60 1270 4.c. Hialugihici Beta-88362 690 # 60 1260 4.C. Nokugu Beta-78979 700 + 70 12504.C. Kuhikugu Beta-72263 900 + 60 1050 d.c. Hialugihici Beta-88363 910 + 80 1040 dc. Morena Gif-3308* 920 + 90 1030 d.C. Nokugu Beta-72261 1000 = 70 950 d.C. Nokugu Beta-78978 ‘Moderno - Obs.: 1) Nao esto incluidas as séries de datas confusas de Mt-Ax-01 € 02; 2) datas Beta-Analiticas (Beta) sio reportadas aqui pela primeira vez; datas seguidas de asterisco sao reportadas em Becquelin 1993, p. 228-230; 3) a amostra Beta-78978 nao é considerada segura pois foi coletada numa profundidade de 50cm abaixo da amostra Beta-81391 (1590 d.C.) na unidade de escavagao 95 origem de contaminagio desconhecida ~ AP (Antes do Presente) é a expresso usada para a datagio de perfodos arqueoldgicos. O infcio do Presente, conforme convencionou-se, equivale ao ano 1950 d.C. As indicagées usuais a.C. € d.C. continuam também a serem utilizadas. (N. do E.) 38 @ os roves on nui aiveu rracesmaDrocanngncas Secunia henguane Tae | 1694 4750 i | ingens |1500— | 1400 Inova Iie Nigcnase (asec) ES Ficura 4, Datagées radiocarbdnicas do Alto Xingu. Obs.: 0 ntimero do laborat6rio esté entre as idades calibradas (em negrito) e as no calibradas da mesma datagio. a fase Xinguana (c. 1750-presente), separadas por uma fase transicional (fase Proto- Xinguana) (Fig. 4). Cadla uma dessas duas fases foi ainda subdivida em um estégio mais remoto e outro mais recente, para melhor explicitar mudangas sensiveis."? (RONOLOGIA XINGUVANA © Quadro 2 ilustra o raciocinio bisico para a periodizagao cronolégica. Na fase Ipavu mais antiga (c. 800-1400), havia um padrio cultural pré-histérico mais ou menos estével, marcado pelo estabelecimento de pragas circulares e pela manufatura da ceramica distintiva na érea, ambas caracteristicas de ocupagées da tradicio xinguana Fig. 5; Quadro 3). Esses grupos, ancestrais dos aruak do Alto Xingu, representam, aparentemente 0 ponto terminal a leste de uma expansio que se originow a oeste no fim do primeiro milénio .C. (c. 800-900). Esse padrao sofreu drametica mudanca por volta de 1400, documentada pelas fortificagSes encontradas em varias aldeias do periodo pré-histérico tardio. Na fase Ipavu tardia (c. 1400-1600) grandes aldeias fortificadas, descritas abaixo, dominavam a regido. A medida que os padres locais ESTRTURA, HISTORIA C TRAWSTURMAACAD G3 9 opbexy 2 vormnjnur oxSepHfosuos (O8BT-0Z8I)— ourstexe paxesntreas) dna 9 (e8uodyy punted) qurey sooipyuod sodnad sop owuaunisarede | — weg eu Tareyeq 2 FAns ‘feu sop ommouoarede | — IILAX 910998 op seuzapung sejad soprznponun sopiqiow sozoxaa a soauajora sonbexe & opraap [evora: eurarsis op ogSezrjiqeasasop epider — PSBT-OSZT metus vurnBusy asm coupasty-orord opopreg, SALNVUIIANV SOUTER SO NOD SOLVENOD ~ 0, LLT-OFLT souenSurx so wos snadoma soreiuos somaund (nome 9 pinewey sop srensaour) dma sop ou (euspi20 » pesusi0 soxajduzos) wayypaBoad onssarduros — — opsyjndodap — onupuos > oraupp srew oyeaue> ‘feuorpHoyy, elugmeury yo PeNuaD jIseig oF ogSerIp ur eIpdome oysuedxe ep o1syuL — (serurapued -x9) nadoms owsiperuojos op sorsz1put sorigj9 sionyssod soxoursd (quey) peiuartg oxajduroy op sagsednso sesaurd = — Patop19 oxajduros op seroppe sep jeuorseindod ovSvapnu = PaUEP!PO oxajduro> op svrappe sep EMINNs orSesoquia—— eigeg ep JoLa1U! ou ogsuedxa 9 yeuo‘oendod oxuswne — — (Gqenme) sepenstox peauopig oxajdwoz op ssodednoo sespound == 0SZ1-0091 0091-0071 00FT-008 pouorsrsuny, aso ‘oyequ09 ap opoysag mypine navdy aso pmioqus mand 2005 contoasty-a1d opoyiog SVOLLSPA.LOVUVO/SALNANIWAOUd SOLNAAT svivd SIVUNLIND SOdOpAd SIVIN.LIND SOG} SO CANNDAS SALNININIOW SOLNEAG - Z OWA 4.0 @ os roves po atte Kine vuadypuy vonsjod eSuasozd ep owuouajoauasop sa9ssy 9 [euorsendod onui2us95039 stoapaso steuopsendod sopsped ap oxusurtzajaqeises arufiows oursrusfipuy Jevopeindod opsersdnoas vouey onbueg op eus8ypur ogsensiurupe coypuap > os1jgnd assoumuy soreur voyonsero oxSeindodap ap ossaooid o as-aduroxinut ‘fersuaBro1> oxSeursea ap seureiBoad 2p oust Joqeise o euawstpna eorppLu eIouarstsse epeqyprouss .ruenSurx zed, (L261 ‘wanseg) owued iqeéey ‘Suodsy sompuy Sop ovdeoojaa ‘sortapsesq od openstupupe eusdypuy anbred ap ovSe1> (1961) PeuoPeN nosnpy op seoysauar soobipadxs sejad epesoqrota soo{Sojour sassarovur sop opSeaotias (6661-S561) serurapids sejed vpesnes roygnseie> jeuorsejndod epiod (c¢61-79g1) (ofmaneg “wren? ‘souroyiaure soupeorssiur Sa04¢y ‘aioaAKee {UOPUOY oxssiAtI0.) sesmnbsad sep onusume a stetiofseurynutr 9 soxraqisexq sossar20U (0661-026) (uueurourpy prurypg tiadoyy suouyong) sewroe sspSypodxo sestourtad (0261-0881) sausso3d-9661 0661-0861 0861-0561 OS6I-psst onpuen puemnSury aso ‘oorigasty opopiag (NANIZLG NIa NoA) CAVULSIOAY OLYENOO OULAWRId ~ ¥BBT — stecvarn, vistdaia CTRANStIRNAGAD ae 4 1S accentamento se tornavam mais orientados para a ocupacao permanente de sitios ectificados, a populacéo regional ia sc concentrando nesses sitios. Durante a fase Ipavu, destacaram-se dois complexos singulares de sitios: 0 ‘Complexo Oriental, que ocupou a parte sudeste do niicleo da bacia do Alto Xingu, =o Complexo Ocidental, correspondente as grandes aldeias fortificadas iden- SBicadas a oeste e norte do lago Tahununu. Esses Complexos esto mais préximos do que chamarfamos del “culeuras arqueolégicas’, pois possuem aspectos da culeura Sarerial essencialmente idénticos. Os aruak contemporineos do Alto Xingu sio os descendentes desses grupos do Complexo Ocidental, embora as duas linguas aruak siro-xinguanas (yawalapiti e wauré/mehinako) talvez remontem a uma divisio pré- bistérica do Complexo Ocidental em termos do eixo norte/sul. © Complexo Orien- sal corresponde a aldeias menores, nao-fortificadas, identificadas em torno do lago bununu, compostas aparentemente de uma ou virias estruturas circulares (algumas das quais podem ser identificadas como casas). Os aldeamentos remontam a grupos aacestrais das comunidades de lingua karib do Alto Xingu, conforme atestado pela historia oral karil Esse padrao foi rapidamente alterado pelos impactos iniciais do contato com ‘es curopeus (c. 1500-1600), cujos efeitos mais notdveis foram o despovoamento €a disrupcio dos sistemas sociopoliticos macrorregionais. Durante a fase transicional, Ficura 5. Planta do sitio pré-histérico de Nokugu (MT-PX-06). Obs.: aldeias historicamente ocupadas por grupos xinguanos durante 0 perfodo entre o final do século XVIII ¢ 1973 sio marcadas com circulos abertos, inclusive: 1) Ahangitahagii; 2) Waurd; 3) ¢ Atl. Pontinhos pretos assinalam unidades de coleta (2,0m2) positivas, ou seja, que produziram material arqueolégico de superficie. Notem-se a praca central ¢ as estradas radiais, 4.2 65 ovis v0 att niwee QuapRo 3 — Stri0s ARQUEOLOGICOS PRE-HISTORICOS E PROTO-HISTORICOS DO ALTO XINGU E PRESENGA DE OBRAS MONUMENTAIS Referéncia do sitio Nome ‘Obras monumentais on fg Mc-Fe-01* ‘Makahuku # Nao = Me-Fx-02* Ipavul ¢ Nio = Mc-Fx.03* pave I+ Nio _ MeFr-04* Ipavu IIL Nao = Me-Fx-05 Noviari + Sim 16 Me-Fx-06* Nokugu + Sim 1 Mt-Fx-07* ‘Tuatuari + Sim 13 Me-Fx-08 Miarasré # Nao = Mr-Fx-09 Yakaré * Sim 12 Me-Fx-10 Narid + Sim - Melt Kohikugu ** Sim 2 Me-Fe-12" Ipatse Nao (C. Oriental) 20 Mc Fx-13* Hialugihiet Sim 3 Mt-Fx-14* Tehukugu Nio (C. Oriental) 19 Me Fe i5* Kuguhi Nao (C. Oriental) 18 Me Bx-16" Netonuga Nio (C. Oriental) 2 MeFx-17* Heatsikugi Sim 4 McFx-18* Kagahier Sim 5 Mc-Bx-19** Sect- Nao? 6 Me-Fx-20™ Nao? 7: Mc Fx-21™* Nio? 8 Me-Fx-22** Agikwangaku Sim 9 Mt-Fx-23** Tnagu Nao? 10 Me-Fx-24** Wagihiti Sim? 4 Mc-Fx-25" Agahahiti Nao (C. Oriental) - Mt-Fx-26°* Trafununu Nao (C. Oriental) - McFx-27** Ehumba Sim? - McFx-28" Gahanguga Sim er MrEx-29"* Angaanga Sim - Me-Fx30** Meinaew Sim 15 Me-Fx-31 Waurd Sim 7 Cbeerapdes: 1) Outs fontesrelevantes: (na segunda coluna) + Simes, 1967, 1972; # Becguelin, 1083s * Sila, 1993; * Dole, 1961/1962 (Mc-Fx-12 a Mt-Fs-31 foram registrados pelo autor junta com a XIV Coordenagéo do Instituto do Patriménio Histérico e Anistico Nacional); 2) * Ident. Fade unicamente com base na tadigéo oral indigena; 3) Afirma-s a exstenca de outtos provéves ioe Br histéricos nas proximidades das aldeas contemporneas avd (ro Tuatuari anguro/kalapalo conforme ssteurutn,visténin ¢ Teansconmnacie <9 4 3 Proto-Xinguana (c. 1600-1750), a manutengéo de fortificagdes substanciais nas fas cessou ¢ muitas delas foram abandonadas pelas comunidades do Com- ‘Ocidental. Por volta de meados do século XVIII, comunidades do Complexo Qsiental migraram para algumas areas previamente ocupadas por aldeias do Com- “plexo Ocidental.\Apés c. 1600-1750, os Complexos Oriental ¢ Ocidental se fun- "Gram, formando a base de uma cultura regional multiétnica (fase Xinguana) que © continua até o nosso século. O periodo entre c. 1720-1770 foi pronunciadamente “conturbado devido as exploracbes dos bandeirantes, que adentravam 0 Brasil Cen- ‘ezal co sul da Amazénia — como conseqiiéncia da descoberta do ouro e da escravi- acto das populacdes amerfndias. E A fase Xinguana mais remota (c. 1750-1884) comegou com os encontros face 4a face entre xinguanos c luso-brasileiros, relembrados vividamente nas historias orais xinguanas (Basso, 1995; Franchetto, 1992). Essas entradas tiveram breve duragio, ¢ no século XIX (até 1884), os europeus aparentemente ndo mais estiveram na bacia do Alto Xingu.|Essa primeira fase Xinguana representa um periodo de consolidacéo cealtural, quer dizer, de fusio de diversas culturas, que deu lugar a uma cultura re- gional multigmnica/lingtiistica. O processo de integragio social e aculturagio no sistema ‘cxltural xinguano tem raizes pré-histéricas, conforme indicado tanto pela aproxi- macio geogréfica quanto pela interagio entre os Complexos Oriental ¢ Ocidental {€ 1500-1750), ¢ continuou ao longo das fases subseqiientes ~ Proto-Xinguana e Kinguana. A fase Xinguana recente (1884-presente) se define pela chegada da ‘expedicdo etnolégica alemé liderada por Karl von den Steinen, o qual documentou um sistema cultural regional relativamente estavel, essencialmente idéntico (grosso modo) a0 que existe hoje (Steinen, 1886, 1894). PRIMEIRAS OCUPACOES ‘As primeiras ocupagées da bacia do Alto Xingu de que se tem noticia se iniciaram por volta de 800-900 d.C. As datas radiocarbénicas provenientes de camadas iniciais da estratigrafia cultural intacta (terna preta) feitas em trés sitios do alto Xingu —Nokugu (1000 + 70 AP), Kuhikugu (900 + 60 AP) e Hialugihitt (910 + 80 AP) — documentam uma ocupagéo quase simultinea no fim do primeiro milénio A.C. Em seqiiéncia cronolégica correta referente as escavagées desses sitios, datas radiocarbénicas demonstram que a terra preta consiste em depésitos acumulativos formados durante séculos de ocupacdes continuas (ou quase continuas). Em cada caso, a ocupagio inicial representa aparentemente o estabelecimento de uma aldeia circular, com uma praca mais ou menos “limpa” de artefatos e de terra preta e um anel de dreas domésticas a0 seu redor ~ indicada pelos depésitos estratificados de 414 8 05 r0v05 py atte tives fora preteencontrados em torno da praga. Trata-se, em outtas palavras, dainstlagso do “modelo de assentamento” xinguano. A répida aparigio de vitias aldcias circular \ entre 800-900 d.C. talvez representea ocupasio inicial dos aruak na bacia do Xingu, ou pelo menos uma “onda” colonizadora vinda do extremo leste da bacia. ‘Com base no que se sabe atualmente sobre seqiiéncias culturais em dreas adjacentes 2o Alto Xingu, no Brasil Central e no sul da Amazénia, pode-se dizer que €provavel que ocupagées ainda mais remotas tenham ocottido no Alto ‘Xingu, embora este fato carega de documentagio. Sao largamente conhecidas as ocupagSes em grutas ¢ abrigos sob rocha no Brasil Central e no sul da Amazénia, no periodo de 11 mil anos atrds, ou pouco menos, até o primeiro milénio d.C, (ver Barbosa, 1976/1977; Kipnis, 1998; Magalhaes, 1994; Schmitz, 1987; Schmit et al, 1981; Wiist, 1990). Essas ocupagées de pequena escala caracterizam-se pela presenga de industrias e prolifica arte Iticas e de estratégias de subsisténcia baseadas na caga-coleta ou numa horticultura incipiente. Na regido do Alto Batovi, préximo &s margens sul da bacia do Alto Xingu, se encontra a gruta Kamukuaka, cujas evidéncias de arte litica pa- rietal (Ireland, 1990) sao provavelmente indicios de uma ocupagio mais antiga, tal- vez associada a sitios do Brasil Central do perfodo pré-cerdmico (Tradigao Itaparica) ou das primeiras populagses ceramistas da regio (Tradiggo Una). A auséncia de Brutas e abrigos sob rocha na bacia ~ os sitios de ocupagéo pteferidos dessas tra. digoes remotas — pode ter inibido uma ocupagéo mais extensiva por parte dessas Populagdes (no perfodo pré-Ipavu). Na histéria oral xinguana, Kamuleuaka éum local sagrado e importante ¢ representa, juntamente com outros lugares sagrados localizados no meio do rio Culuene (em termos de latitude, mais ou menos paralelos 2 Kamukuaka), os limites ao sul do territério xinguano, conforme os definem as comunidades contemporaneas, Os limites do territétio xinguano ao norte referem-se a ocupagées remoras dos yawalapiti a0 longo do rio Xingu, entre Diauarum e Morend (alto do rio Xingu, propriamente dito). Comparadas a outras linguas aruak (Medeiros, 1993; Payne, 1991; Francherto, neste volume), existe proximidade lingiistica entre as duas Inguas aruak alto-xinguanas, o que sugere que s6 recentemente ocorreu distingao entre as mesmas, talvez pouco antes, ou nio muito depois, do inicio da ocupasio aruak no Alto Xingu. A histéria oral dos yawalapiti apdia essa hipétese, pois indica que seus ancestrais ocuparam sitios abaixo da confluéncia (entre Morend e Diauarum) antes de migrarem para o nticleo da bacia do Alto Xingu provavelmente antes do comeso do século XVIII As datas radiocarbénicas que pré-datam a fase Ipavu (anteriores a ¢. 800 d.C,) foram obtidas por Simdes em sitios préximos & confluéncia dos rios Suid-Missu e Xingu (Diauarum) e, embora confasas ¢ internamente inconsistentes ESTRUTURA, HISTIRIA C TRAWSEERNACAD > (todas em relagao de inversio estratigréfica com datas mais recentes), levantam algumas questées interessantes acerca de poss{veis ocupagées a céu aberto na drea neste periodo.'> Simées (1967) foi quem primeiro definiu os materiais provenientes da bacia do Alto Xingu e os do Diauarum'® como duas entidades separadas (fases); a fase do Diauarum (comegando em c. 1000-1100) era mais antiga que a fase Ipavu (c. 1300). Com base no que sabemos até 0 momento, esté claro que as manifestagées arqueolégicas pré-histéricas (c. 800-1000 e posteriormente) séo contemporineas ¢ estreitamente associadas entre as duas areas. Ceramicas diagnésticas da Tradigio Xinguana (fase Ipavu) foram identificadas em Diauarum e em outros sitios préximos, da mesma forma que construgSes, estas também diagnésticas das aldeias do Com- plexo Ocidental na prépria bacia, do perfodo pré-histérico tardio (¢. 1400). Isso nao exclui a possibil Diauarum (Alto Xingu), quer culturalmente relacionadas Tradigao Xinguana dade de que tenha havido ocupagées mais remoras na drea do posterior ou nfo. Por outto lado, é possivel que os aruak tenham ocupado Diaua- rum e outras dreas mais cedo do que o nticleo da bacia do Alto Xingu e chegado mais tarde nas partes sul ¢ leste, isto é, na 4rea entre os rios Caluene e Culiseu. Todos os materiais pré-histéricos encontrados até 0 momento na bacia do iculares Alto Xingu sio aparentemente vestigios de ocupagdes sob a forma de aldcias posteriores a c. 800-1000 (fase Ipavu). A origem da aldeia circular'com praga é uma questéo importante para a pré-histéria regional, visto que aldeias similares apareceram subitamente no Brasil Central por volta de 800. As aldeias circulares do Planalto Central, associadas as tradigdes ceramistas Aratu ¢ Uru, sio claramente as progeni- toras das populagdes jé contemporaneas, mas é plausivel que sua aparicdo tenha representado uma inovagio para as culturas locais do Brasil Central (ocupages em abrigos sob rocha), ¢ no necessariamente uma substituigdo de populagao (Wiist ¢ Barreto, 1999). Se alguns grupos tupi (ndo-xinguanos) do sul da Amazénia (como tapirapé, munduruku) também partilham dessa configuragao de aldeia, isso parece se relacionar mais a padrées culturais que abrangem a regio da Periferia Metidional ‘em geral do que a um suposto trago prototfpico de antigos povos tupi, uma vez que a maioria dos tupi do sul da Amazénia possuem aldeias de planos irregulares ow ocupam aldeias com uma ou pouicas casas comunais. Essas grandes afinidades quanto aos padres de assentamento enfatizam a natureza transicional do Alto Xingu, tanto cultural quanto ccologicamente, entre o Brasil Central eas terras baixas do Amazonas. No entanto, como notei acima, ndo se deve esquecer que essa configuragio de aldeia parece ser onipresente entre grupos aruak da Periferia Meridional ¢ reas adja- centes: quer dizer, jd faz parte do padrao cultural prototipico que fundou os aruake centrais ¢ do sul. E interessante notar que alguns dos mais evidentes correlatos arqueolégicos dessas aldeias circulares (aneladas) da Periferia Meridional ¢ do Brasil 419 4.6 © Ws roves rn att rinse Central encontram-se nas Antilhas e relacionam-se aparentemente a povos sala- doid de lingua aruak, datados de c. 500 a.C. (Heckenberger e Petersen, 1996; Pe- tersen, 1996), E ainda incerto 0 motivo pelo qual os grupos aruak migraram em primeiro lugar para o Alto Xingu. Até o momento nao hi evidencias de conquista ou des- locamento de outra populacao estabelecida, 0 que corrobora a opinizo de Schmidr também poucas evidéncias que respaldem sua especulacao de que grupos de elite imigrantes (‘senhores”)renam se enxertado nas populagGes locas (ibid). De qualquer modo, o faccionalismo e a rivalidade entre as linhagens de chefes, que podem ser ‘econstruidos através das cisées contemporiineas, podem ter restiltado em migrages de longa distancia.” Isso também é bastante semelhante a um aspecto integral do Processo de cisio da aldeia edispersio a0 longo da baciae, de fato, é carscterstca comm das sociedades hierérquicas em geral (Kirch, 1984; Sahlins, 1968). Inde- pendentemente dos fatores que os levaram até Id, os antigos colonos aruak esta- beleceram um padréo cultural que continua até hoje, « que serviu de modelo & aculturagio de outtos grupos imigrantes (karib, tupi e outros) A MONUMENTALIDADE DA PRE-HiSTORIA TARDIA dentro ¢ ao redor das aldeias. Essa nova elaboragao estrutural pode ser considerada como uma extensio da estética cultural do monumentalismo, tepresentada através da seqiiéncia em uma variedade de estruturas comunitérias (por exemplo, pragas, cone, Pontes, casas dos homens, casas dos chefes). Todavia, é preciso destacas quea Construgio das imensas estruturas terrestres no fim da Pré-istéria teatualizou essa esrética cultural de construgdo ¢ controle do espaco em novos niveis, alcangando uma escala verdadeiramente monumental. E interessante notar que muitas das cul- turas mound-building\das tercas baixas (como o Llanos de Mojos, a costa da Guiana, © médio Orinoco ¢ as grandes Antilhas) correspondem, a: Os trabalhos terrestres do Alto Xingu sao de vitios tipos, dos quais 03 mais Obntins slo valetas escavadas ao redor~ es vezes dentro — das aldeias, separadas ou “08 Pares, © aterros lineares colocados nas margens da praca central ¢ dos maione ESTROTURA, HISTARIA E TRAWSUORIGAGAD D4 7 caminhos radiais (Fig. 6 7). As valetas, de até 15m de largura e 2,5km de com- primento, tém, ao que se sabe, uma profundidade de até 3m, contando com a altura adicional criada pelas elevacées intetiores produzidas pela terra retirada das mesmas. As colinas situadas as margens da praca e dos caminhos atingem alturas de até 2m (tornando-se ainda mais altas com a aproximagio da praca). Sem diivida, esses trabalhos foram construfdos ~ ou ao menos funcionaram por um tempo — como parte de um esquema arquitetural integrado, que se articulava com ~ na ver- dade pode ser considerado como o “Amago” de — uma drea construida mais extensa, incluindo dreas de cultivo intensivo (terra firme), caminhos intricados sitios saté- lites (atividades tempordrias especiais e provavelmente sitios residenciais, portos per- manentes, pontes ¢ outros). As datas de radiocarbono relacionadas a esses elemen- tos nos trés sitios acima mencionados indicam que eles foram construidos apés ¢. 1350, muito provavelmente entre 1400 ¢ 1500. Essas construgées de terra —as valetas periféricas em particular—sio elementos importantes para uma caracterizagao das sociedades pré-historicas tardias as vésperas Ficua 6. Planta do sitio pré-hist6rico de Kubikugu (MT-FX-11). Obs. aldcias historicamente ocupadas pelos kuikuro durante o periodo de c. 1850 a 1961 sio marcadas com cfrculos abertos, inclusive: 1) Atitka; 2) Kuilugu; 3) Lahatud J; 4) Lamakuka; e 5) Lahatué I. Pontinhos pretos assinalam unidades de coleta (2,0m2) positiva, que produziram material arqueolégico de superficie; circulos com x indicam locais de escavagao. Note-se a praca cen- tral eas estradas radiais. 4 § SS 05 novos ro auto Kinae eo ma o ‘ ae mt — B90 3UI PAK RED A eseeverie Life Seseacio recente Qa heats, Lp auraco, ae Soa 8 Figura 7. Planta do sitio pré-histérico de Kuguhi (MT-FX-15) mostrando a casa (I) ¢a possivel casa (2); a datagio de 1610 d.C. foi obtida da escavacio na lixeira elevada 20 lado da casa do contato com os europeus. Em primeiro lugar, ao contrério do que proclamam certos modelos genéricos populares sobre a AmazOnia, as aldeias fortificadas eram bastante grandes (20ha a 50ha) e permanentes. Se as aldcias mais antigas também Foram grandes e permanentes, sua escala, definida fisicamente pelas trincheiras, nao deixa nenhuma diivida de que as sociedades que as construiram se constitufam de populagées substanciais, que nao tinham nenhuma intengao de abandond-las. O tamanho maximo das aldeias da Pré-Histéria tardia (de 40ha a 50ha) foi estimado com base na distribuigao de vestigios de cerimica doméstica por sobre toda a super- ficie de dois sitios, Nokugu e Kuhikugu (isto ¢, dentro, ¢ nio fora, das valetas mais periféricas). Se é possivel dizer que, assim como hoje, as casas gravitavam em torno das pragas centrais, pode-se presumir que essa distribuigéo indica uma ocupagio ESTROTURA, HISTIRIA C TRAWSEERAWAGAD simultanea de toda a drea definida pelas valetas. O fato de que os depésitos de serra _preta diminuem & medida que se sai da praca central em diregio &s porgbes periféricas da aldeia (ao ponto de se tornarem ausentes em muitas reas diretamente adjacentes as valetas periféricas) sugere que as dreas marginais eram ocupadas de modo menos intensivo e por periodos mais curtos, provavelmente mais ou menos coincidentes com a construsio de valetas caminhos elevados. Nao cabe aqui discutir as razdes da elaboragao estrutural das aldeias (ver Heckenberger, 1998b), mas parece razodvel afirmar que as valetas, a0 menos, tinham uma fungdo defensiva. Se considerarmos as construgdes de terra como projetos piblicos de certos chefes — como qualquer obra publica empreendida nos dias de hoje -, devemos entender essas obras no contexto da competi¢ao entre chefes; 0 raciocinio persuasivo dos chefes deve ter sido na época 0 da defesa, que pressupde em primeiro lugar uma ameaga, isto é, a existéncia de um estado de guerra relativa- mente marcante na regido (Heckenberger, 1997). A proximidade entre as aldeias fortificadas (separadas apenas por 5km) indica que a principal ameaca néo vinha dos vizinhos imediatos. Da mesma forma, a falta de um agregamento aparente entre grupos de aldeias, formando espacos neutros entre elas (buffér-zonei), indica que a guerra ndo era empreendida por um grupo aliado de aldeias contra um outro grupo similar. Para ir mais além, 0 padro nao-ofensivo da interacio intergrupal, baseado em estratégias de defesa, evitagao, prevensao c acomodacio, tem sido historicamente um aspecto-chave da sociedade regional xinguana, isto é, 0 padréo cultural bésico (ver Gregor, 1990, 1994; Gregor e Robarchek, 1996). Essa ideologia de uma interagao — geralmente — pacifica, cuja reversio para a agressdo se daria apenas como reago & provocacio, aparentemente preveniria conflitos prolongados ¢ penetrantes (dentro da bacia) que levariam & construcéo de fortificagées substanciais. Com isso nfo pretendo negar a existéncia de conflitos entre os diversos grupos de interesse, inclu- sive, talvez, entre comunidades inteiras, mas me parece mais provavel que a ameaga penetrante, que provocou a fortificagéo das aldeias, fosse direcionada a grupos culturalmente distintos (guerra externa) da periferia da bacia do Alto Xingu e alhures, trago caracteristico da guerra durante todo o periodo histérico. Como Gregor (1996, p. ix) observa, até mesmo “[uma] cultura nio-agressiva, quando confrontada com um vizinho belicoso, enfrenta uma escolha amarga: submeter-se ou resistir (..) [e assim], a guerra se torna contagiosa”, mesmo sea resisténcia ¢ fortemente nao-ofensiva. Como ja foi mencionado acima, a breve ¢ tardia ocupacio de dreas distances da praca central (evidente na falta de solos de terra preta) — mais ou menos coetinea com o perfodo de fortificagao das aldeias (construcio de valetas) ou pouco depois — indica que houve uma concentragéo da populacZo ou um surto de crescimento interno, embora isso seja menos provavel. Tal concentragao teria ocorrido inde- Ay 5 0 Ge 05 roves 0 atte ninew pendentemente do estaruto dessa guerra ~ se era interna, ou seja, se envolvia apenas 6s grupos culturalmente relacionados da bacia, ou externa, como foi sugerido acima. No que se refere & hicrarquia local, com a criagaio de demarcagées duraveis nas aldeias — tais como valetas, ruas fixas, etc. -, as divisdes sociais (chefe/homem comum) tornaram-se menos suscettveis a possiveis redefiniges. Sem dtivida, havia mobilidade social entre os grupos ¢ uma considerével rivalidade faccional entre (ou centrada em) os chefes mais poderosos e as familias que ocupavam o mais alto estatuto social. Mas, ainda assim, a capacidade de controlar atividades ptiblicas, rituais e politicas — jd fisicamente centralizadas — nao apenas tornou-se mais objetivada ou cristalizada através da proximidade fisica de certos grupos sociais com a praga (o coracao da vida politica e ritual da aldeia), mas também subjetivamente preservada, uma vez que os filhos dos chefes eram “preparados” por eles para o offcio, mantendo acesso privilegiado nao apenas ao prestigio, mas também as informag6es cruciais, ao saber esotérico, necessirios & pritica do mesmo. O poder dos chefes, portanto, constitufa- se em sua capacidade de controlar 0 acesso & esfera dos assuntos puiblicos, do conhecimento ritual necessirio para direciond-los, ¢ a unia dimensio regional, uma vez que os chefes mediavam, senéo controlavam, as interaGes entre a aldeia e o mundo externo. E evidente que, nas méos de antigos chefes, a hierarquia simbélica € economia politica rudimentar que existem atualmente — separando chefes de homens comuns — foram mais desenvolvidas. Um aumento da guerra externa gera, talvez, como conseqiiéncia, um decrescimento do conflito interno (Murphy, 1957). Certamente, 0 fato de que uma comunidade constréi uma barreira durével entre si mesma e 0 mundo “exterior” indica que um “contrato social” de alguma espécie est se operando. Entretanto, devemos também reconhecer que a mobilidade — uma resposta comum as tensdes sociais internas — é reduzida, configurando-se numa estratégia eficiente para a re- solugao dos conflitos internos. Nesse sentido, o resultado da fortificagao da al- deia e da concentragéo da populagao era provavelmente a ampliagao da tivalidade entre facgGes politicas e outtos grupos de interesse. De fato, a aparentemente abrupta construgao de valetas (c. 1400-1500), que envolveu a mobilizagao de substancial forca de trabalho, deve ser também considerada no contexto da competigao e como uma empreitada dos chefes, Assim, a hierarquia, a integragdo regional e o sedenta- rismo tém sido estruturas bdsicas através da seqiiéncia cultural, provavelmente se tornando mais rigidas e elaboradas nos perfodos pré-histdricos terminais, coincidentes com a construgio de valetas. Finalmente, mesmo que aceitemos 0 tamanho das comunidades, sua densida- de na regio ¢ sua hierarquia interna, a0 mudarmos para o contexto dos modelos evolucionistas tradicionais das grandes sociedades hierérquicas enfrentaremos um ESTRUTURA, HISTORIA C TRAWSEERMWAGAD problema aparentemente paradoxal: a falta de uma hierarquia regional explicita. Em rermos de escala e ideologia social (refito-me aqui ao modelo hierdrquico de socia- lidade, descrito acima), as antigas aldeias xinguanas se encaixam bem na categoria genética de “chefia’."* Na verdade, falta-thes apenas um elemento para que se encaixem a hierarquia de assentamento bimodal ou em sétie, em ourras palavras, aldeias preeminentes (chefes). Enquanto 0 processo de cisto rela- plenamente nessa categoria: cionado & rivalidade de starus dentro de uma estrutura social hierdrquica (a ramifi- cacdo, apud Firth, 1936) produz hierarquia entre as aldeias mae ¢ filha, no hé nenhuma evidéncia arqueolégica, histérica ou etnogréfica que indique que a hierar quia local ea integracao regional (simécrica) tenham se uansformado em hierar- guia regional duradoura. Ao contrério, o que existem so intimeros sitios grandes (ou seja, ritual e politicamente auténomos) e pouquissimos sitios pequenos — isso se relaciona tanto com uma “heterarquia” (complexidade nao-hierdrquiica, ou lateral, seguindo Crumley, 1987, 1991) quanto com centros de poder que se realocaram através da regiZo ao longo do tempo. Consideradas num sentido sincronico, essas aldeias variavam umas em relagio as outras no que se refere ao tamanho absoluto ¢ ao poder relativo, mas essa assimetria era temporéria, ¢ regionalmente as aldeias estavam mais ou menos em relagio de patidade, ou seja, eram integradas através de um padrio formal de interagio entre comunidades iguais (ver Heckenberger, neste volume). A ORIGEM DO PLURALISMO XINGUANO Hi evidéncias de que, por volta de 1500-1600," um outro grupo cultural (ndo-aruak) também estava presente em éreas a leste da bacia do Alto Xingu — trata- se dos antigos ancestrais dos karib do Alto Xingu. Foram investigados ts s{tios arqueolégicos préximos ao lago Tahununu, localizado a leste do rio Culuene, que se distinguem das aldeias circulares descritas acima em termos de padrao de assen- tamento e vestigios de ceramica. Também a tradigio oral desses grupos identifica a rea como territério dos grupos karib xinguanos, particularmente dos ancestrais dos cuikuro/matipu, além de localizar cinco antigos assentamentos, dentre os quais esto os trés sitios arqueolégicos mencionados (as aldeias ancestrais dos kalapalo ¢ dos nahukwé, ao que tudo indica, se fixaram primeiro — ou também — em dreas mais 20 sul). O sitio arqueolégico de Kuguhi é particularmente revelador; com datagdes de radiocarbono de 340 + 50 AP (c. 1600), muito provavelmente representa uma tinica ocupacio, ligando diretamente a histéria oral karib com a arqueologia. Nao apenas o tamanho dos sitios do Complexo Oriental contrasta mar- cadamente com o das aldeias fortificadas contemporineas do Complexo Ocidental, of 52 eo es raves nate rice mas também a forma das aldeias de cada uma dessas 4reas se distingue. As casas cizculares nao sc situavam ao redor de uma grande praga, como as do Complexe Ocidental isso ¢ sugerido pelo tamanho imenso da casa Tehukugu (com aproxime damente 55m de diémetro), com datacdes de radiocarbono de 440 + 40 AP (< 1500) ¢, mais diretamente, pelo fato de que logo atrés da tinica porta da casa Kise guhi hé um grande depésito de lixo. Embora duas estruturas grandes e circula: tes tenham sido identificadas no sitio Itsagahiti do Complexo Ocidental, loca lizadas de cada lado da praca central (imediatamente fora do monte marginal da praca), nenhuma outra estrutura desse tipo foi encontrada durante os detalhados mapeamentos e investigagSes dos depésitos superficiais em Nokugu, Kuhikugu Hialugihiti. Isso sugere que as estruturas circulares eram também estruturas espe- ciais (como as casas dos chefes), inovagGes estruturais nfo-tradicionais que ou resultaram de contatos com as aldeias do Complexo Oriental, ou foram reocupa- ses feitas por estas de aldeias abandonadas do Complexo Ocidental. Essa questo ainda esta em aberto, mas est4 claro que os dois sistemas de assentamento cram fundamentalmente distintos: as aldeias do Complexo Oriental eram organizadas em torno de uma ou algumas malocas circulares que abrigavam toda a comunidade, teminiscentesdo padrio das aldeias karib da Guiana, enquanto as aldeias do Com- plexo Ocidental eram caracterizadas por uma infinidade de moradias situadas a0 ~ longo de areas amplas, mas gravitando em diregao as grandes pracas centrais, Da mesma forma, a manufatura da cerimica das aldeias do Complexo Oriental se 6 distingue tanto daquela do Complexo Ocidental quanto da xinguana contemporinea. Em meados do século XVIII, os karib do lago Tahununu deslocaram-se para ceste do Culuene, aparentemente fagindo da hostilidade dos “{ndios bravos” ou talvez mesmo de brancos comerciantes de escravos (Dole, 1984a). Os ancestrais dos karib que viviam a leste do Culuene mantinham indubitavelmente relag6es culturais com seus vizinhos aruak, bastante pacificas ao que parece, a julgar pela proximidade fisica. Todavia, antes da sua migragio para oeste (1740-1770), os karib e os aruak eram culturalmente distintos. Como os karib estavam perturbardos ¢ em fuga, sua movimentagao para oeste os colocou bem no centro do territério aruak — ou, a0 menos, no que havia sido previamente terra destes tiltimos. Assim, 0 deslocamento dos grupos karib para oeste resultou em sua ocupagio de varias dreas entre os rios Culuene e Culiseu, provocando uma retirada dos aruak, que tiveram de abrir mao dessas dreas—o que indica que houve uma interagao pacifica entre os dois povos. Ao contratio das dreas logo a oeste do Culuene, que foram ocupadas pelos aruak por séculos, nao hé nenhuma evidéncia de que esses povos (Complexo Ocidental) te- nham vivido préximo ao lago Tahununu, O movimento dos karib esta documen- tado arqueologicamente por uma breve ocupacéo do Complexo Oriental, marcada ESTRUUURA, TSTORIA C TAWSEHRNACHY 5D por uma casa circular (de 22m de diametro) com datagio de radiocarbono de 190 + 60 AP (c. 1760), localizada nas proximidades da atual aldeia kuikuro no lago Ipatse. E interessante notar que uma ocupagéo tardia no sitio de Nokugu (Complexo Ocidental), onde nenhuma casa circular foi encontrada, foi datada por radiocarbono de 180 + 60 AP (c. 1770). Talvez esta tenha sido a tiltima ocupacio aruak do sitio, apés as valetas defensivas terem sido, ao que parece, abandonadas ~ embora uma comunidade waurd (aruak do Alto Xingu) marginal cenha se localizado logo atrés das margens do sitio (adjacente & valeta mais periférica) de meados para fim do século XVIII (segundo Steinen).. Parece pouco povével que achemos a primeira aldeia circular dos karib (isto é, de modelo aruak); de toda forma, foi preciso uma mudanga ainda mais profunda do que aquela que incidiu sobre a forma fisica da aldeia (0 paleo) e sobre os padres existentes de interago direta (a cena), para que os karib se incorporassem & cultura regional xinguana: eles tinham de adotar e participar dos rituais intertribais, quer dizes, precisavam aceitar, em larga medida, a cosmologia ¢ © etos sobre o qual esta se funda (0 scripr cultural). Essa transformago parece ter ocortido entre c. 1700 € 1800 — durante o boom dos bandeirantes do Brasil Central, da corrida do ouro e do escravagismo (ver Heckenberger, neste volume). O préximo panorama que conhecemos dos karib, ou de qualquer outro grupo xinguano, é tragado por Steinen (1886, 1894): naquele tempo, os karib jé tinham adotado padrao cultural caracteristico dos aruak alto-xinguanos, assim como os kamayurd e 0s aweti, de lingua tupi. Os karib abandonaram sua distintiva manufa- tura da cerimica, seu padrao de assentamento (malocas), ¢ 0s tupi abriram mio desua belicosidade caracteristica e “virou gente” (Coelho, neste volume); esses diver- sos grupos — os aruak xinguanos do sul (mehinako/waurd/kustenau) ¢ os do norte (yawalapiti), os karib e os tupi -amalgamaram-se no sistema cultural regional, plu- ral, conhecido etnograficamente. Esse processo se iniciou em algum momento entre 1750 ¢ 1884, mais provavelmente no perfodo compreendido entre meados de 1700 ¢ inicio de 1800, e, no curso de algumas geragées, esses grupos imigrantes foram aculturados & sociedade xinguana. Assim, esse nio foi apenas um processo de fusio, de aculturacao simétrica ou “intertribal”, mas de incorporagio das populagdes imigrantes, freqiientemente refugiadas no sistema cultural xinguano existente. Tanto © perfodo proto-histérico (apés c. 1730-1750) quanto o histérico (ou etnogréfico — apés 1884) sio discutidos em muitos outros estudos deste volume, inclusive em minha contribuigao seguinte, que trata mais especificamente do perfodo que vai de 1750. até os dias de hoje. 54 ws raves vente idee DISCUSSAD A reconstrugao que aqui apresento dessa longa, complicada ¢ por vezes tumultuada histéria culeural € obviamente tentadora e representa apenas um entre * varios cendrios posstveis. O esforco é exploratério e levanta uma série de quest6es; os dados sio preliminares e hd intimeras lacunas de tempo ¢ espago. Meu objetivo, no entanto, nao é tanto o de convencer o leitor de que o cendtio apresentado est correto, ou correto em todos os seus detalhes — poucos dos quais foram exaustivamente explorados; é mais 0 de reformular 0 modo pelo qual pensamos a histéria xinguana: tomar seriamentea histéria, o passado. O que €apresentado aqui é uma histéria, que promove uma certa perspectiva, Antes de mais nada, trata-se de uma “visio ampla” , destinada a entender as grandes linhas da longue durée. Petiodos temporais distintos, cada qual marcado por descon- da histéria —embora certamente no a mais ampla tinuidades culturais significantes (transformag6es), relativos a0 monumentalismo da Pré-Histéria tardia ou aos desastrosos efeitos do “contato” com os europeus, por exemplo, se definem e se colocam no contexto de uma trajetéria de maior alcance — uma estructura sécio-histérica mais abrangente. Essa visio necessariamente subordina detalhes significantes e variag6es locais, mas, uma vez estabelecidas, as grandes linhas podem ser refinadas, e as interpretag6es mais detalhadas, que penetram mais fundo nas dimensGes histéricas da cultura xinguana, podem ser buscadas. Sem dvivida, ela serd criticada por ser muito “estrutural”, por ignorar as agGes ou a eficécia dos individuos, eventos, comunidades, etc. Devo admitir que partilho dessa apreensio, mas posso apenas responder, seguindo Braudel (1980, p. 31), que, para o bem ou para.o mal, a “estrutura domina os problemas da longue durée”. Portanto, a discusséo aqui se centrou sobretudo em periodos mais remotos, principalmente porque os tempos mais recentes (apés c. 1800) e as duragSes mais curtas do “tempo social” eda vida cotidiana so abordadas nas contribuic6es subseqtientes (inclusive a minha). Tendo dito isso, gostaria de enfatizar que a estrutura é multiescalar, fractal, na verdade, e portanto ndo cresce como um edificio através do qual e contra 0 qual ages ¢ eventos se moldariam numa dialética infinita: 0 que é “estrutural”, condicdo- limite, num certo nivel, pode ser “antiestrutural”, 0 amago gerador,” num outro. Construir a histéria, portanto, envolve problemas bastante complicados de escala, de visibilidade e, evidentemente, de perspectiva, que devem ser abordados através de um alinhamento, dentro do possivel, das histérias alternativas. Uma coisa é certa: entender a histéria xinguana requer abordagens sintéticas. Se a cultura, a histéria documental ¢ registro arqueolégico sao textos para serem lidos ¢ interpretados, cada qual, & sua maneira, abertos a diversas leituras, 0 entendimento histérico obyiamente “intertextual”. Adquirir tal entendimento ou sintese, entretanto, é tarefa ESTRUTURA, HISTORIA C TRAMS TOR AWAGAE facilmente enunciada do que executada, ¢, no tocante & Amaz6nia em geral, comecamos a aventar esse caminho. Hi diferencas epistemolégicas bésicas, por exemplo, no modo como meus sores xinguanos ¢ eu vemos a passagem do tempo, 0 passado ea significagio de esse passado (fragmentos de cerimica, valetas ¢ coisas do género), diferengas se referem 4 ordem ei relevncia que essas “coisas” histéricas assumem para cada Por exemplo, certo dia, eu estava ao lado de uma das principais valetas que ‘eeatornam o sitio pré-histérico de Nokugu, quando o principal chefe da aldeia, “Afakaké, reiterou a explicagio kuikuro para as mesmas (ver Villas Boas e Villas Boas, 1970). Ele disse entéo: “Eu sei que vocé nao acredita em minha histéria, conte-me a sua". Apés virios meses andando, mapeando, colerando ¢ escavando em Nokagu ¢ ‘=m outras antigas aldeias, eu tinha de fato uma histéria para contar: mostrei-Ihe, ‘entlo, fragmentos de cerimica ¢ ferramentas de pedra; desencavei porgdes de terra (pret — solos antropogénicos que subjazem uniformemente as Areas de antigas ‘ecupages ~ ¢, depois, de terra vermelha — solos naturais que ficam fora ou nas periferias dos assentamentos externos. Mostrei-lhe minha escavagao, que dissecou a valeta 20 lado da qual contévamos nossas histérias; alguns meses mais tarde, ele me ajudou a terminar as escavacies. Eu expliquei o que pensava sobre o tamanho ea disposicao da antiga aldeia, disse que pensava que era presidida por chefes poderosos ‘edefendida contra ataques por enormes fortificagies. Afukaké disse que gostou da minha histéria; na verdade, ele me contou que este sitio devia ser um que nao havia sido feito por Fitsi-Fitsi, figura mitica da histéria dele. Ele também me contou uma outra histéria sobre uma antiga aldeia inimiga com valetas e palicadas, ¢ apreendeu imediatamente o que eu disse sobre a antiga aldcia ¢ onde estava localizada, nao porque minhas hipéteses tenham feito muito sentido, de uma maneira abstrata, mas porque se adequaram aos seus modelos ou &s suas imagens preexistentes de como as coisas so ou devem ser, tais como a forma de pracas e aldeias, ou a maneira pela qual os potes sio descartados. Os ktuikuro também contam sobre um tempo em que seus chefes eram mais fortes, suas aldeias, maiores. Somos afortunados, portanto, 20 pensarmos sobrea histéria xinguana, uma vez que, mesmo entre essas perspectivas radicalmente diferentes, hd muito com o que concordar: hé uma linha narrativa muito clara. Accontinuidade da cultura xinguana é palpével. Uma simples comparacao da disposi¢ao de uma aldeia antiga, como Kuhikugu, com uma aldeia contemporinea ‘o mostra claramente: 0 “amago” da aldeia, a praca ¢ os caminhos que saem radialmente dela sGo idénticos. A continuidade também € evidente na localizagao da aldeia, ou seja, nao € preciso que nos distanciemos muito de uma aldeia contemporinea pata cruzarmos com uma antiga. As vastas extensGes de floresta derrubadas no tempo das D5 5 os vives ve atte ine antigas aldeias — sem diivida, assim como hoje, destinadas as tocas de mandioca — seguem 0 mesmo padrao de uso intensivo da terra ealteragao da topologia verificado nas aldeias de hoje — uma vez mais, no entanto, o grau de alteragao é muito maior nas primeiras. Fragmentos de cerimica pré-histérica, a maioria dos quais de varios utensilios de cozinha funcionalmente distintos, indicam, para todos os intentos propésitos, formas idénticas as atuais. A continuidade em sua funcao também € clara, nao apenas por causa do conservadorismo na manufatura, mas também pelo tipo de desgaste das pegas provocado pelo uso. Quando perguntei sobre os potes, disseram o seguinte: “Esse [pote] é abukugu, foi feito para cozinhar mandioca, esse pote [atangi] foi feito para cozinhar peixe, Esse para mandioca, o outro para peixe™ (c eu podia sentis, seno ouvir, “pela milésima vez”). Em poucas palavras, a cultura xinguana imprime sua marca em quase tudo 0 que a cerca, Até mesmo as coisas mais aparentemente mundanas, pequenas, sfo investidas de sentidos multifacetados e compardveis. Recentemente, passamos a entender, cada vez mais, que as coisas histéricas, tais como eventos e objetos, so \ “atualizagées tinicas” de um esquema cultural geral - “encapsulagdes primorosamen- te sucintas de construtos sociais, politicos e ideoldgicos” (Helms, 1987, p. 673 cf. Sahlins, 1985, p. 108). Como sugere Ortner (1973, 1990, p- 60), cada cultura “con- tém nao apenas feixes de simbolos, ou feixes de proposigdes genéricas sobre 0 uni- verso (‘ideologias), mas também esquemas organizados que atualizam relagdes € situagées”, esquemas que “tomam freqiientemente uma fungdo organizacional, adquirindo um grau de generalidade e transferibilidade através de uma variedade de situagdes sociais” [Os esquemas culturais (estruturas profundamente arraigadas) tor- nam-se incorporados e objetivados pela prética social de maneiras muito condi- cionadas e repetitivas: 0 passado é sedimentado, ou mesmo inscrito, tanto na paisa- gem, no arranjo das casas e aldeias, nos objetos, quanto na meméria, no movimento dos corpos, nos ciclos rituais (Bourdieu, 1977, p. 87-95), Essa redundancia de sig- nificados culturais possibilita-nos relacionar a localizagao da aldcia, o uso da terra, a otganizagio espacial, a tecnologia e a economia de subsisténcia - em parte enfa- tizados apenas por causa de sua visibilidade através do tempo —, com padrées cultu- rais mais amplos, que revelam uma continuidade bésica, clementar, num “modo de ser” xinguano genérico. Quando nos aprofindamos na histéria xinguana e ultrapassamos o nivel das transformagSes ¢ continuidades ébvias, o quadro que emerge de sua cultura na regifo através dos séculos — através da longue durée — nao é aquele da descontinuidade, da ruptura entre o passado e o presente, mas o da continuidade cultural — continuidade mente, da “fixidez na filosofia social, nos modos de vida em geral, no etos—, essencial interna” ou do Amago simbélico da cultura xinguana através do tempo. Em outras EsreeaUes, HstdRiA CTRAWStORMAGAD 2 > 7 palavras, ainda que a histdria xinguana seja pontuada por muitos eventos, invasées, epidemias, expansées e retragées de populagio notéveis, o que ¢ verdadeiramente marcante nfo sao as mudangas de escala, demogrdficas ou econdmicas, mas a surpreendente continuidade na forma ¢ no contetido — 0 padrao cultural. Por for- na , que também sofreu mudangas radicais (ver Heckenberger, neste volume), mas, antes, esquemas culturais ma ¢ contetido, entretanto, nfo entendo composigio étni ou tendéncias subjacentes que ligam as partes ao todo. Isso evoca a observagio de Braudel, segundo a qual “o contetido social pode se renovar quase completamente sem jamais atingir certas caracteristicas estruturais profundas” (Braudel, 1980, p. | 12). A montagem, os panos de fundo (paisagem) e os palcos (aldeias) mudaram dramaticamente quanto & escala; todavia, estas mudancas nfo foram radicais: o script cultural, por assim dizer, que acompanhou e guiou essas mudangas tem raizes histéricas muito antigas (profundas). Entretanto, pensar sobre a histéria xinguana tendo em vista o passado destaca certos aspectos de sua cultura. Os etnégrafos hd muito reconhecem que os xingua- nos so melhor caracterizados como uma formagiio social regional do que como co- munidades discretas; sdo relativamente sedentitios, com economias bastante fixas; ¢ uma organizagio social que mais se aproxima da forma hierérquica — um estatuto de “chefe” (Carneiro, 1985; Galvao, 1953; Lévi-Strauss, 1948a). No entanto, quando consideramos as manifestagées etnogréficas desses esquemas-chave — sedentarismo, regionalidade ¢ hierarquia — & luz de nosso entendimento atual do registro arqueo- Iégico, fica claro que eles nio sio os “limites mais altos” de um continuum de “floresta tropical”, ou de “padrdes amerfndios”, mas os “limites baixos’ de um continuum sécio-histérico xinguano. Em outras palavras, 0 passado faz sentido perfeitamente & uz do presente, ¢ o presente faz sentido perfeitamente a luz do que sabemos sobre 0 passado. Estaremos entio violentando a histéria xinguana se tentarmos forgé-la a encaixar-se em modelos genéricos provenientes de uma “condensagao” dos dados etnogréficos coletados ao longo do tiltimo século (a baixa demogréfica), tais como 0 que sugerem fortes mecanismos internos (ver Clastres, 1987; Descola, 1996) ou externos (cf. Meggers, 1996; Roosevelt, 1980, 1994) que agiriam contra hierarquia social, a regionalidade ou o sedentarismo. A hierarquia xinguana e sua encarnagao no capital simbélico e econdmico, por exemplo, nao é uma “torgao” hierdrquica de um modelo fundamentalmente igualitérios 6, a0 contraio, uma “torgao” igualitaria de um modelo fundamentalmente hier4rquico. Entretanto, o sedentarismo, a inte- gracio regional e a hierarquia sio clementos tio culturalmente relativos, eu diria, que uma aldeia xinguana de 200, mesmo de 20 pessoas, pode perfeitamente ser tio essencialmente hierdrquica, assentada regional — em termos dos modelos que as pessoas tém em stias mentes ~ quanto uma aldeia tupinambé de 2 mil pessoas. D8 GD os roves vo atte xine Sc hd uma conclusio gerala ser tirada desta discussio, 6 seguinte: as mudancs: dramaticas que testemunhamos através do tiltimo milénio representam transformacSes de uma estrutura subjacente basica. H4 uma continuidade visivel sublinhande os diversos aspectos da cultura xinguana através do tempo que nos permite definir uma mentalité xinguana—o simbolismo, a ideologia ¢ os padrées culturalmente distintivos. que se estendem por um grande espago de tempo. O conservadorismo dessas estruturas de sentido arraigadas nao deveria nos surpreender; na verdade, afora as afirmagées programdticas do contrésio (por exemplo, Harris, 1979, p. 260), boa parte dos estudas queabrangem mudangas histéricas através de longos perfodos de tempo tém revelado. precisamente tal continuidade (cf. Ohnuki-Tierney, 1990; Sahlins, 1992). Na Amaz6nia, por exemplo, comecamos a perceber que as estruturas simbélicas mostram plasticidade ¢ resisténcia surpreendentes, mesmo quando confrontadas a mudangas dramdticas na demografia, orientagio ecolégica, escala econdmica e relagbes sociopoliticas (dentro e entre comunidades e regides), desencadeadas pelo colonialismo europeu ¢ pela subsegiiente encapsulagio no seio dos Estados nacionais americanos, E ento imposstvel prever, através dos modelos gerais, que tipos de circunstncias ou processos hist6ricos sao suficientemente poderosos para transformar essas estruturas basicas de sentido. A tinica forma de revelar mudangas duradouras nas estruturas profundas, ou bdsicas, da cultura € obviamente através de estudos da performance! dessas estruturas ao longo de extensos perfodos de tempo: devemos adentrar dominios ® que esto para além da durée da experiéncia vivida. A antropologia xinguana (ou amaz6nica) tem, portanto, uma tarefa dificil pela frente: desenvolver meios para elucidar essa profunda histéria da cultura, ligando o presente a um passado remoto, cobrindo, assim, uma fissura de 500 anos. Como antropélogos, somos privilegiados, por podermos desenvolver essa investigagio no contexto do Alto Xingu, um dos poucos lugares onde ainda existem as condig&es para fazé-lo, Tradugdo: Ana Paula Ratto de Lima NOTAS 1. Este trabalho beneficiou-se imensamente das discusses que tive com meus colegas do Programa de Pés-Graduagéo em Antropologia Social (PGAS/Museu Nacional/UFR)), particularmente Bruna Franchetto, Carlos Fausto, Eduardo Viveitos de Castro, Cesar Gordon Matcela Coelho, durante o perfodo em que fui professor-visitante nesta instituigéo (1997-1998). Os recursos para a pesquisa de campo me foram fornecidos por: Social Science Research Council, National Science Foundation (Grant #9214806), W, T. Hillman Foundation, Univer- sity of Maine em Farmington, Archaeology Research Center e Victor ¢ Mary ESTROTURA, HISTURIA € TRAMSEDRAACKE GD Heckenberger. Sou profundamente grato aos kuikuro e as outras comunidades guanas, ¢ particularmente a Afukaka Kuikuro. & no ser quando especificado, como os anos relativos ao calendério antes de to (a.C.) ou os anos antes do presente (AP), todas as datas se referem a0 datio depois de Cristo (C.). ‘Kearajé (lingua macro-jé), assim como os bororo, também partilham certas cteristicas distintivas da periferia meridional da AmazOnia (Menger, 1993), is como forte lideranga hereditétia, feiticaria pronunciada, regionalismo e dentarismo; dessa forma, devem ser levados em consideragao em qualquer dis- mais ampla sobre a drea. Ainda assim, suas histérias so substancialmente ites daquelas dos grupos da periferia meridional da AmazOnia aqui dis- tidos, devendo, portanto, ser tratados separadamente. ard os chamou de marginais do sul da Amaz6nia (1949, p. 699). mbém conhecida como as macrotradigées “Inciso-modelado” ou “Borda-incisa” sthrap, 1970; Meggers e Evans, 1961; ver particularmente, Dole, 1961/1962, ‘¢Lathrap, 1970, p. 126-127), devido as técnicas de decoragao. ‘Ver também Nordenskiéld (1917, p. 18-19), Bennett (1936, p. 406), Denevan (1966) e Lathrap (1970, p. 124-125) sobre os movimentos da populagao aruak no sul da Amazénia; os trés tltimos acreditam que estes ocorreram apés c. 500. Wer Dole, 1961/1962 e, particularmente, Schmidt, 1914 € 1917, no tocante as _gzandes semelhangas e ligagGes histéricas dos aruak na Amazénia. | Em 1720, Antonio Pires de Campos Jr. (1862, p. 443) observou: “E esta gente "em tanta quantidade, que se ndo podem numerar as suas povoagdes ou aldeias, -muitas vezes em um dia de marcha se Ihe passam dez e doze aldeias, e em cada _ uma destas tem dez até 30 casas, ¢ nestas casas se acham algumas de 30 até 40 passos [+ metros] de largo...”. As aldeias eram ligadas por “ruas” e, como Cam- pos atesta, “até suas estradas fazem mui diretas e largas, e as conservam tao limpas econsertadas que se Ihe no achard nem uma folha” (1862, p. 444). Embora __ imprecisas, as estimativas dos missiondtios do norte de Llanos de Mojos su- gerem que os bauré ocupavam 124 aldeias e contavam 80 mil habitantes (mé- dia de 650 por aldeia) ao longo de uma area geogréfica de 5 mil km? a 10 mil km? (Block, 1980, p. 42, 45). Rogas fixas eram usadas provavelmente segundo um padrao de pouso mais curto ¢ cultivo mais longo do que a agricultura xinguana atual (Denevan, 1992; Heckenberger, 1998a; Campos, 1862, p. 443; Denevan, 1966, p. 96-99). Os xinguanos, assim como certos grupos pareci (por exemplo enawené-nawé), sio igualmente pescadores-agricultores, sendo que o aparente movimento dos grupos 6 0 <2 as raves vo atte ninco pareci em direcio ao sul, aos cerrados das dreas do planalto do Brasil Central, pode ter reduzido a produtividade da pesca nessas dreas. Evidéncias eeno-historicas sugerem que “a pesca era a atividade econdmica mais produtiva” ao longo do norte de Mojos (Métraux, 1942, p. 60). Métraux, 1942, p. 72-73, 165. No tempo dos primeiros contatos (c. 1700-1710), os bauré viviam em aldeias fortificadas com valetas/fossos ¢ palicadas (Block, 1980, p. 59); outras aldeias fortificadas sao conhecidas etno-historicamente nas dreas vizinhas do meio do Guaporé (Nordenskidld, 1919), entre os tapacura e os canichana da Bolivia (Denevan, 1966), ¢ arqueologicamente na confluéncia dos rios Beni ¢ Madre de Diés na Bolivia (Arnold e Prettol, 1988) e no médio-alto Guaporé no Brasil (Miller, 1983). No que diz respeito aos pareci, Campos (1862, p. 444) escreveu: “estes gentios nao sdo guerteiros, ¢ sé se defendem, quando os procuram”, mas, se existiram aldeias fortificadas aqui, tais como as encontradas em Areas vizinhas, como o Alto Xingu, o Guaporé e as terras baixas bolivianas, as construgdes de- fensivas foram provavelmente abandonadas por volta do comeco a meados de 1700, como parecem ter sido nessas outras dreas. No que diz respeito a aldeia pareci, Métraux (1942, p. 165; ver também Schmide, 1914, p. 188-191) observa: “Era liderada por um chefe promovido por here- ditatiedade, que presidia as ceriménias religiosas e recebia os convidados, mas dividia sua autoridade com individuos influentes e determinados. O filho mais velho do chefe gozava de algum prestigio. Os cabecas das familias monoga- micas formavam uma espécie de aristocracia. Eles controlavam uma classe de dependentes cujo estatuto era o de servos ¢ que tinham, entre outras coisas, de abrir clareiras, carregar madeira para aldeia, construir casas e dar aos seus mestres tudo o que ganhavam. Os habitantes de aldeias diferentes visitavam uns aos outros freqitentemente ¢ mantinham ativas as relagdes comerciais interaldeias”. Em relago aos chefes bauré, ele afirma: “Os chefes bauré, chamados arama, formavam uma casta aristocritica (...) € apenas seu filho com uma mulher nobre era considerado candidato a uma sucesso de sua posigao. Chefes nao trabalhavam ¢ eram providos de comida e bebida por seus stiditos. Gozavam de grande poder ¢ podiam até mesmo impor uma sentenga de morte. Entretanto, os velhos que representavam a comunidade exerciam certo controle sobre sua autoridade, e os lembravam de seus deveres. (...) Chefes também decidiam quando uma aldeia deveria mudar de lugar...” (Métraux, 1942, p. 69). Finalmente, entre os manasi (vizinhos néo-aruak dos bauré), Métraux (1942, p. 128-129) mencionou que: “Na praca principal de suas aldeias, havia duas ou B + v EsneeTeen, Hstbata CTEAWSERRNAGAE 36 1 quatro casas habitadas pelo cacique principal (“governador”) ¢ pelos chefes de estatuto mais baixo (“capitaes”) (...) Ninguém ousava deixar a aldeia sem a permissio do chefe. Jovens jamais sentavam em sua presenga, ficavam sempre respeitosamente de pé, & distancia. O chefe organizava festas, para as quais convidava aldeias vizinhas, através de mensageiros. O chefe principal vivia numa casa enorme, construida pela-populagio (...) possufa dois campos grandes, que eram arados por seus stiditos (...) Chefes mortos eram enterrados com ceriménias especiais ¢ entre lamentos gerais”. Essa conchusao baseia-se em: 1) classificacio de mais de 8 mil fragmentos de ceramica ¢ andlise detalhada de todas as bordas dos fragmentos, algumas bases, € outros fragmentos selecionados (n=1135) de contextos arqueolégicos; 2) exame de mais de 500 potes inteiros de cerimica da manufatura waurd contempora- nea (1950-presente) no Alto Xingu e em museus (Museu Nacional (UERJ), Museu de Arquelogia ¢ Etnologia (USP), Museu Antropolégico (UFGo), Museu Pa- raense Emilio Goeldi ¢ em colegdes particulates); ¢ 3) duas semanas de aulas priticas de cerimica com duas ceramistas no Alto Xingu (outubro, 1993). Meu uso dos termos “tradi¢ao” e “fase” difere daquele do Pronapa. Em par ticular, fase nao tem aqui a implicagéo de uma “cultura” ou “tribo", como é usual no contexto etnogréfico, mas implica um grupo ou regio de sitios arqueolégicos estreitamente ligados, delimitével espacial ¢ temporalmente. Uso ternt preta para me referir a solos antropogenicos escuros conhecidos como “cerra preta do indio” ou terra preta arqueolégica. Simées (1967, 1972) publicou apenas duas das cinco datas radiocarbénicas obtidas através das investigagSes no Diauarum: 830 + 90 AP relativa ao sitio MT-AX- 01 (Diauarum) e 830 + 75 AP relativa ao sitio MT-AX-02. Duas datas invertidas estratigraficamente, do sitio MT-AX-01, 2095 + 65 AP (SL717) ¢ 1470 + 135 AP (S1-714), e uma data adicional, 1390 + 140 AP (SI-715), invertidas estrati- graficamente com a data acima mencionada, foram obtidas do sitio MT- AX-02. Segundo o sistema nacional de cadastramento de sitios arqueolégicos, estas duas dreas pertencem aos formadores do Xingu (FX) acima de Morend e o Alto Xingu (AX) abaixo. O modelo desse processo é obviamente a Polinésia (Firth, 1936; Kirch, 1984; Kirch ¢ Green, 19875 Sablins, 1958). Devido & hierarquia social, & presenca do complexo “templo/idolo/sacerdote” € A escala econdmica e demogréfica, Steward ¢ Faron (1959) classificaram os pa- reci € 05 aruak bolivianos como “chiefdoms teocriticos” do mesmo tipo das 6.2

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