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Rovista Crea do Cisnctas Sosiais MARIA CELIA PAOLI Departamento de Sociologia da Universidade de Sao Paulo Movimentos Sociais, Cidadania, Espaco Publico: Perspectivas Brasileiras para os Anos 90 Nestas uitimas décadas do século, a Sociedade brasieira apresenta tracos novos @ contraditérios em sua reali: dade politica. Como conciliar a genera: zacao da percepeao da cidadania com a generalizacao do sentimento de uma crise moralirresoldve! — ambas convi- vendo no mesmo espaco, nos mesmos grupos, na mesma pessoa? Opresente artigo analisao surgimento no Brasil de uma cultura politica nova, intimamente relacionada com a afrmagao de movi- mentos sociais cuia ago obriga a des- locar @ redefinir os limites do espaco pUbico € as formas de participagio politica. Outubro 4 1 115 JA muitas indicagdes que, nestas Gitimas décadas do século, a sociedade brasileira apresenta tragos novos e contra- ditdrios em sua realidade politica. De um lado, novas formas de luta e de atores politicos tornaram-se visiveis na feitura da nova constituigao do pais (1988, que selouo proceso de transigao da ditadura militar para um regime democratico formal), seguidos de novas representagGes sobre o papel do voto e da importancia da opiniao publica que se mobilizou nas eleig6es presidenciais de 1989. Durante os anos 80, alguns temas democraticos abriram seu caminho no debate sobre o presente eo futuro desta sociedade to extremamente desigual e autoritaria — como, por exemplo, a urgéncia em modificar o “apartheid” entre suas classes sociais, a descompressao politica da sociedade civil, a necessidade de uma mudanga drastica na face naturalizada da pobreza de 70% da populacao, a responsabilidade em construir um espaco civil cuja legitimidade modifique o autoritario funcio- namento do aparato estatal. Apesar do carater intermitente deste debate — e do fato de estar sendo feito tanto no meio da hostilidade tradicional com que as elites dominantes olham a populagao que se organiza, como da inoperancia politica da 116 Maria Célia Paoli grande parcela da populag&o no organizada —os temas da cidadania parecem estar mais presentes em muitos lugares da sociedade: nas ruas e nas casas, nos noticiarios da imprensa, nos lugares de trabalho. De algum modo, isto parece apontar para uma nova sensibilidade as perspectivas politicas modifica- das. O fato de, tradicionalmente, a populacao brasileira ser percebida como exclusivamente centrada em sua sobrevivéncia @, portanto, a tender a ignorar a politica como participagéo no espago pubblico, confere a esta presenga da nogao de cidadania um valor indicativo de mudangas nas formas como se relaciona e se debate a relacao entre politica e cotidiano. De outro lado, a sociedade brasileira entra na década de noventa sentindo-se diante de dificuldades inéditas em sua histéria. Sao inéditas por atingirem um debate sobre os padrées 6ticos exercidos tanto na politica como no cotidiano: haum clima visivel © audivel de doscronga © desosperanga a respeito da viabilidade de esta sociedade inventar seu presente e futuro. Este clima € feito de muitas referéncias, que vao desde o comportamento da juventude a violéncia e inseguranca nas ruas, passando pelo descrédito na politica representativa & desmoralizagao das instituigdes puiblicas. O ponto central desta crise poderia ser enunciado como incidindo sobre os valores @ticos que constituem a “coisa publica’, onde a constante trans- gress&o das regras do jégo parece impodir a criagdo de horizon- tes coletivos, sociais e politicos. Sua origem 6 dupla: a crise do proprio Estado e a crise da sociabilidade cotidiana. A forma democratica e constitucional do governo falha em aparecer como instancia politica, minimamente mediadora dos conflitos sociais e interesses em jdgo, como também fracassa em orga- nizar eficaz e racionalmente o proprio funcionamento do aparato de Estado: critérios patrimonialistas e prebendalistas so clara- mente exercidos pelo governo, a corrupgao 6 aberta, aineficién- cia 6 espantosa, o estilo presidencial é pessoal, exibicionista e cansativo, os escandalos palacianos apenas preenchem mo- mentaneamente o fracasso das metas e realizacées (sobretudo econémicas) prometidas. A sociabilidade cotidiana é atingida pela deterioragao da qualidade de vida que vem, sobretudo, da estagnagao do emprego, da falta de perspectivas de ascengao profissional, da pobreza espantosa da metade da populagao do pais que, somados aos 20% de familias "remediadas”, formam uma visivel sociedade excluida que convive com as classes médias de forma extremamentetensa. Tudoisso, além deoutras coisas, gerou comporiamentos que os jornais e os sociélogos detectam como um desinteresse crescente por tudo o que diz tespeito a coletividade e como uma porda das referéncias que limitam as normas e valores legitimos. O pais que tradicional- mente se aceitava com humor e que valorizava-se como tendo uma cultura aproximativa das pessoas encontra-se com a sen- sagao do “vale-tudo”: aquém das leis, das normas, dos limites éticos. Como conciliar esta dupla leitura da sociedade brasileira hoje, este encontro direto, diferenciado ¢ contraditério entre a generalizag&o da percepgao da cidadania e a generalizagao do sentimento de uma crise moral irresolivel — ambas convivendo nos mesmos espagos, nos mesmos grupos, numa mesma pessoa? Creio que se poderia dizer que esta se configurando, no Brasil de hoje, uma |uta em torno da formagao de uma cultura politica moditicada, cujos sinais mais visiveis esto menos em sua enunciagao comotale mais no fato de os temas dacidadania estarem informando a indignag&o da opiniao publica: se assim f6r, 0 campo da discussao politica jé foi deslocado para uma interrogagao ampla que julga o sentido da ago do poder e nao apenas uma situagdo de “ingovernabilidade” estritamente poli- tica. Isto significa que as opini6es sobre as bases do exercicio legitimo do poder deslizam, cada vez mais, das suas referéncias tradicionais de julgamento ( 0 "Estado-que-da’ eo “Estado-que- faz", ou seja, a tutela populista e/ou autoritaria) para a questo da responsabilidade do Estado diante da republica. O fato novo 6, portanto, que desvanecem-se as esperangas depositadas em um “bom Estado” e em uma encarnagao pessoal da nagao que garanta a sua viabilidade. Nao 6 apenas o julgamento do poder que se desioca; também se interroga sobre os padrées de sociabilidade politica praticados no modo como se partilha a cidade, no modo como se negoceiam as relacées de trabalho, no modo como se resolvem os conflitos no campo, na insuportavel fluidez dos limites entre violéncia, solidariedade e civilidade que constituem as relagdes cotidianas no pais. A sensagao de inseguranga pessoal e coletiva, que tém justificado para alguns a adogao do arbitrio e da insensibilidade diante dos dramas cotidianos (frente 20 “é preciso sobreviver’), encontra em uma grande maioria a busca de reteréncias sobre direitos ¢ deveres que possam balizar a miséria, a crescento violéncia sobre os poderes (policiais dos mais violentos do mundo, pistoleiros, “esquadrdes da morte”, bandidos comuns, milhdes de menores abandonados e instrumentados pela repressao), a impunidade dos responsaveis, a ineficiéncia dos servigos sociais, a moro- sidade da justiga. A indignagdo e a busca destas referéncias na cidadania, assunto cotidiano de todos os jornais e frequentes em Movimentos Sociais: Brasil — Anos 90 17 118 Maria Célia Paoli cada esquina, apontam para duas novidades importantes nas disposigSes da opiniao publica: primeiro, a desnaturali- ago dos privilégios (tradicionalmente aceitos como atributo de quem tem poder e riqueza) e, segundo, a publicizagéo dos negécios politicos (tradicionalmente existente apenas nas eleigdes). Como teriam emergido estes sinais de um novo horizonte de valores ptiblicos que, mesmo apenas vislumbrado, j4 coloca outros questionamentos para a representagao da vida comum em um espago social compartilhado? Teria vindo apenas da auséncia de virtudes e de fortuna dos governos pés-ditadura militar (autodenominados de “transigao democratica”), de sua incompeténcia e fraqueza no exercicio das fungdes governa- mentais? Ou da propria inviabilidade econdmica do pais, as vezes dito “ingoverndvel” pelo atoleiro que representa sua divida externa diante da miséria interna? Ou ainda pela incapacidade de o pais levar a sério a nogao de representacao parlamentar constitucional, criando politicos provincianos e corruptos que insistem em exercer a politica como pacto de interesses locais, sem povo e sem conflitos? Sem divida tudo isso existe, mas nao creio que esgotem a questao; nao é apenas a autoridade politica que se encontra abalada, mas a propria integridade da so- ciedade que se pds como questéo e como debate. E esta qualidade que {az das dentincias sobre a “desintegragao” do pais algo mais do que denuncias circunscritas ao momento politico; faz emergir uma linguagem cada vez mais frequente, que se pergunta sobre a validade e legitimidade das condigdes de existéncia coletiva. Esta linguagem, por sua vez, aponta para uma elaboragao da nogao de cidadania e direitos que vai além da mera opiniao; pois ela deve encontrar, na propria sociedade, ages coletivas que a enunciem concretamente, para além das ideias e das indignagdes. Onde encontrar a linguagem dos direitos explicitando-se © exercitando-se como acao e como discurso? Os relatos mais satisfatérios de como essas perspectivas democraticas sao vislumbradas relacionaram-nas ao surgimen- to de novas formas de acao coletiva — muito semelhantes ao que é chamado mundialmente de “novos movimentos sociais” — até entao pouco notadas na formagao histérica da sociedade brasileira (Sader, 1988; Telles, 1984; Singer e Brandr, 1980; Cardoso, 1983; Abramo, 1986; Caccia-Bava, 1983; Bonduki, 1987; Barreira, 1987; Paolie Sader, 1986). A emergénciadestes movimentos sociais e populares, durante a década de 70, foi a principio obscurecida pela excessiva ateng&o aos processos mais institucionais da chamada “transicaéo democratica”; no entanto, durante toda a década de 80, estes movimentos foram capazes de dotarem-se de uma estrutura organizativa e de uma fala prépria, 0 que mudou decisivamente a natureza das vias desta transigao, complicando os conflitos sociais e politicos em causa. Isto foi (e 6) especialmente claro no caso do movimento operario, que conseguiu mobilizar-se para além dos limites das instituigdes oficiais que o mantinham, ha mais de 50 anos, preso administrativa e organizativamente as burocracias estatais. Nos movimentos operdrios e sindicais dos Ultimos 15 anos, a luta pela autonomia organizativa e politica foi além da dentincia dos aparatos repressivos onde se bloqueava o exercicio classista e também além da montagem de “organizagGes paralelas” que agiam dentro econtra as amarras legais dos sindicatos. Esta luta foi otem sido de fato exercida a partir de outros pontos ocupados pola prosenga operdria. Uma pluralidade de mobilizagdes locais e diferenciadas, feitas no chao de fabricas, foi-se construindo, articulada ou naoa sindicatos e ativa sobretudo contra o mando patronal, abrindo, por esta via, espago para a alteragao das concepgées sobre o trabalho fabril, sobre a representacao sindical, sobre 0 que vem a ser os direitos dos trabalhadores e sua participagao nos negécios ptiblicos. Destas mobilizagoes surgiu uma nogo coletiva, sem precedentes, da insergao do movimento operdrio em um horizonte democratico mais amplo. Cada mobilizagao local e organizada tornou-se um instrumento para negociar nao apenas salarios econdigbes de trabalho, mas © proprio cédigo cultural que invalidava o direito dos trabalha- dores como cidadaos plenamente aptos a discutirem seu tra- balho, sua classe e as politicas econémicas e industriais nas quais so situam. Esta dinamica foi essencial para a construgao de sindicatos auténomos e, depois, para a formagao de centrais sindicais como formas novas de organizagao e expresso operarias, montadas, alids, a revelia da legislagao vigente na época (1983). Que hoje essas formas de organizagao estejam reconhecidas como legitimas e constitucionais mostra que se normalizou aquilo que parecia como potencialmente perigoso e destruidor de uma ética conservadora. O fundamental 6 que, como se assinala frequentemente, 0 exercicio de uma pratica saida diretamente das condigdes sociais deu espagos, ainda que inesperados e nao to seguros, para a criagéo de novos direitos que ancoram novas percepgées de justiga e de politica. Alguns outros exemplos padem ser mencionados para mos- trar como grupos sociais, diversificados pela elaboragao de uma Movimentos Sociais: Brasil — Anos 90 119 120 Maria Célia Paoli identidade prdpria que inventa novos direitos, podem ser lidos como perspectivas para uma nova cultura politica. A crescente visibilidade das mulheres, feministas ou nao, no debate politico veio de uma presenga diversificada em espacos multiplos nos 6rgaos publicos, narepresentagao de interesses populares mais amplos, como interlocutoras formais e informais na formulagao de politicas publicas, na informagao e formagao de direitos das mulheres no mercado de trabalho, na legislacao, na cultura, nas politicas partidarias. Os movimentos negros, por sua vez, vem criando uma nova identidade pela releitura de valores e tradiges que informam 0 tradicional ¢ no abertamente admitido procon- ceito racial que opera rotineiramente na vida social brasileira. Requalificar 0 racismo representa redefinir uma identidade, buscada em outras leituras histéricas da heranga escravocrata do pais. Ao mesmo tempo, isto baseia uma atuagao também diversificada, que vai desde as assessorias em 6rgaos publicos da administragZo educacional e cultural até praticas associati- vas auténomas. No campo, a guerra civil por um direito a terra que possa ser regido por concepgdes préprias aos camponeses etrabalhadores rurais varreu aimagem de incapacidade politica de que estes eram portadores. Nem mesmo as nagées indige- nas — sujeitas aos juigamentos que mais as desvalorizam como atores politicos — aceitaram 0 tradicional veredito da sociedade que hes prognosticava uma morte inevitavel diante de uma modernizagao inevitavel. Articularam-se em uma organizagao que afirma seus dircitos a uma idontidade temporal e espacial proprias a sua cultura e que representa seus interesses diante da sociedade nacional. Além disso, conseguiram estabelecer um diglogo com os diferentes povos da floresta, e juntos demandam odireito a serem respeitados em sua diferenga. Finalmente, ha grupos que, nas cidades, lutam por niveis dignos de reprodugao social — por casa, por satide, por educagao, por transporte, por creches, por alimentacZo — e que existem em cada cidade de grande © médio porte do pafs. S40 movimentos que elaboram, pordiferentes canais, um campo miltiplo de agao societéria, mal coberto pela enunciagao homogénea que deles faz a socio- logia —“movimentos sociais urbanos”. E evidente que, em todos e em cada exemplo mencionados acima, dificuldades, retluxos e divisées aparecem e reaparecem ao longo da historia desses movimentos. E que eles nao eram, ao final das contas, um bloco unitario de interesses que visasse o poder instituido para instaurar, uma vez dentro dele, asonhada democracia. Nao eram, também, “meios” de se estabelecer uma democracia direta, popular, como sonharam alguns militantes Politicos. O que os movimentos sociais so, @ tam sido, estana descoberta que fazem de si mesmos como atores politicos, ou seja, na ideia e no exercicio de uma participacao equivalente, diferenciada e coletiva na condugao dos assuntos publicos que Ihes dizem respeito — por mais localizados que sejam. A sua importancia nao esta no localismo e no comunitarismo de sua mobilizagao coletiva, mas no alcance que ha, em cada uma destas mobilizag6es e agdes, em sua enunciagdo como sujeitos coletivos de direitos. E esta enunciagdo que aponta para uma nova cultura politi- ca, exercida ainda desarticulada e fragmentariamente no es- paco social. No entanto, sob seu efeito, inaugura-se concreta- mente uma nogao de cidadania nao idealizada nem abstrata, que pés em movimento uma referénciaparaaprépria sociedade, mesmo que esta atribua outras origens para a figuragdo de si como sociedade que aspira a cidadania. Por que é assim? Este texto procura mostrar que a efetividade da nogo de direitos, produzida pelos movimentos sociais contemporaneos no Brasil, 86 pode ser adequadamente avaliada luz da heranca histérica que este pais construiu para a sua modernidade — uma heranga histérica que conseguiu urbanizar e industrializar o pais sem, na verdade, republicaniza-lo no sentido integral da palavra. O Brasil, onde os movimentos sociais nascem, comemora cem anos da instauragao politica da republica sem que, como aponta Marilena Chauf (Chaul, 1986), seja capaz de operar a distingao entre arbitrio e transgresso, entre o publico eo privado, defazer valer a igualdade juridica formal, de modificar uma forte hierar- quia de privilégios, de superar umacomplexae variada estrutura de preconceitos, de responder com uma outra linguagem, que nao a tradicional violéncia, as reivindicagées coletivas popula- res. Poroutto lado, é umaheranga histéricaque instrumentalizou anogao de cidadania para reforcar atutela das elites edo Estado sobre as classes populares, tornando da nogao de direitos e de lei algo exterior A experiéncia coletiva de vida: nao sé despoli- tizou a experiéncia dos direitos como desenraizou o conheci- mento deles como descoberta da sociedade. Ao construir a nogao de cidadania nos préprios dominios da aco coletiva, os movimentos sociais de hoje tentam exercer uma qualidade longamente reprimida: 0 exercicio coletivo, © diferenciado, das faculdades politicas do cidadao comum ea legitimidade das iniciativas populares de proposicéo e participagao nas leis democraticas. Movimentos Sociais: Brasil — Anos 90 121 122 Maria Célia Paoli Duas expe- riéncias de se conhecer a cidadania: a herancga historica Decifrar uma sociedade que, em seu caminho para a moder- nidade, evitou confrontar-se com a figura universal do cidadao moderno e construir uma esfera piblica intermediadora de seus conflitos implica, antes de mais nada, compreender o lugar que nela foi aberto para alocar simbolicamente (e portanto politica- mente) suas novas classes subalternas. Por este lugar entendo as concepgées simbdlicas sobre o carater, os atributos, as possibilidades e os limites assignados aos trabalhadores comuns, pelas quais é possivel ler as caracteristicas prevale- centes de toda a concepgo que a sociedade faz de si mesma. Quais as concepgSes que comandaram a divisdo do podere das classes sociais na histéria do Brasil modemno? Quais as regras simbdlicas que operam a legitimidade possivel da desigualdade capitalista que se implantava? Creio nao estar reduzindo excessivamente a complexa experiéncia da modernidade brasileira quando a resumo a dois modelos de ajustamento possiveis entre a figura do trabalhador livre e a do cidadao, tentados em periodos diferentes de sua histéria, mas persistentes como referéncias e critérios para situar as classes populares em seu espago social (Paoli, 1989). Oprimeiro é formado no peculiar republicanismo liberal brasilei- fo, originalmente adotado entre as Ultimas décadas do século XIX e as trés primeiras décadas deste século. Ele instituiu uma oxperiéncia de proletarizagao dentro do que Azis Simao chamou de “ordem privada do trabalho”, ou seja, dentro do “direito privado de determinar as condigdes de locagao da forga de trabalho” (Simao, 1966). Isto significa que o poder de mando patronal era exercido de modo tao arbitrario e hierarquico quanto fora na experiéncia assalariada que existiu nos intersticios da ordem escravista: as relagdes de trabalho eram governadas por acordes verbais entre patrdes e empregados, sem nenhuma forma semelhante a de um contrato de trabalho com garantias legais. Essa matriz privada de autoridade permitiu uma explo- rag&o selvagem e dilapidadora dos trabalhadores comuns e pobres, tendeu a corroer a plausibilidade de suas formas de sociabilidade ordenada e tornou de grande parte de suas vidas um espago de miséria, violéncia e arbitrio. As condigdes de trabalho registradas em documentos variados mostram que este trabalhador comum era visto como um verdadeiro paria— no sentido proposto por Hannah Arendt — sobretudo a partir do lugar que ocupava na figuragéo simbélica da hierarquia de desigualdades sociais, Nao aparecem como sujeitos validos da equivaléncia juridica republicana, mas precisamente como pes- soas constituidas por um lugar aquém ou fora dela. E de se notar que, como norma e valor aceito pela sociedade, esta situagao vigorou por mais de 40 anos e que, como situagao “informal” de fato, persiste para além da existéncia posterior de uma regu- lamentacao trabalhista. A situagao de ‘parias” se apoia, evidentemente, em um ancoramento negativo da figura dos trabalhadores na ordem dominante, trago que se aprofunda quando estes trabalhadores comegam a organizar-se, valorizando seu trabalho e protes- tando, através de greves, contra 0 estilo senhorial de mando de seus patrées. Se, déceis, os trabalhadores eram homogeneiza- dos como pobres genéricos, merecedores de caridade, assis- téncia e favor mas jamais de direitos, rebeldes eram objeto de uma violéncia extremada apoiada na figuragdo de uma “plebe rude” e de uma “escéria sem patria” ('). Claramente, a faléncia em produzir um liberalismo real que construisse as regras da transigéo da ordem escravista para as relagées capitalistas de produgao emoldurou esta imagem de trabalhador, especial- mente se considerarmos que mesmo alguns dos desiderata liberais cléssicos — como alivre expressao, a discussao publica a livre associagao — nao apenas nao valiam como, provavel- mente, eram consideradas incoerentes e sem sentido pelas lites dirigentes apenas recém-urbanizadas. E bastante provavel que, no interior desta cultura politica, a experiéncia proletaria tenha sido expatriada para o mundo privado, desde que privada da expressao publica e da legi- timidade a demandar responsabilidade politica sobre suas condigSes de trabalho. Até emergir um movimento operario organizado com uma imprensa independente, a experiéncia proletaria © popular foi elaborada no plano familiar © da v nhanga, @ neles foi construida uma outra interpretagéo de si mesmos e dasociedade onde viviam e trabalhavam. Eestaoutra interpretagao que monta as revoltas localizadas e as tentativas mais amplas de organizag4o operaria, teimosamente repetidas e reprimidas em um ciclo exasperante de rebeldia e repressao. A cada revolta, os trabalhadores tomaram posse do seu lugar positivo diante de uma ordem social que nao os acolhia e foi no confronto que fizeram sua experiéncia de identidade e dignidade coletivas. Das lutas que diferentes trabalhadores empreenderam, em diferentes lugares do pais e em diferentes formas de organiza- Gao, durante estes 40 anos, surgiu uma formulagaéo que, em certo sentido, modificava aquilo que estava em causa: o direito () Esta Ultima expressao referia-se aos trés milh6os de imigrantes europeus {que entraram no pais neste periodo. Movimentos Sociais: Brasil — Anos 90 123 124 Maria Célia Paoli de reconhecimento dos trabalhadores, de sua representagdo e de suacapacidade de negociagao, ou seja, odireito deumaoutra figuragao da vida popular e de sua preseng¢a — sem os quais 0 projeto da modernidade urbana, industrial e republicana ficaria implausivel. Esta formulgao se expressoucomo “questao social” e, de sous termos, surgiu 0 segundo modélo de cidadania que © pais experimentou: a tutela estatal desses direitos, ou, como o chamou Wanderley Guilherme dos Santos (Santos, 1979), a “cidadania regulada”. Aparecendo espetacularmente no cenario politico brasileiro através da intervengao autoritaria de um “Es- tado novo" que havia deslegitimado o liberalismo e denunciado amatriz privada de autoridade, este modélo encapsulou em suas leis e regulamentagées trabalhistas todas as demandas de cidadania e de justiga que haviam sido construfdas na propria ag&o coletiva dos trabalhadores. Através de uma novidade importante no aparato de Estado — um ministério para os as- ‘suntos do trabalho e da industria — 0 novo governo instituiu dois conjuntos de leis para os trabalhadores. O primeiro Ihes conce- dia “amparo”: uma jornada de trabalho de cito horas, 0 direito ao emprego, a férias, a descanso semanal, a seguranga nos locais de trabalho, a condigdes especiais para mulheres e criangas trabalhadoras e, sobretudo, a um salario minimo e a aposenta- doria. O segundo era uma lei sindical que reconheciac direito a organizar-se desde queos sindicatos seguissem 0 modélo legal formulado pelo governo, e que inclufa o arranjo de suas dis- posig6es internas: quem poderia ser sdcio, como deveriam ser suas finangas, quais deveriam sersuas|lutas e filiagdes; e incluia fiscalizagao governamental direta sobre tudo isso, além do direito do governo em intervir no sindicato e destituir suas lidorangas caso este nao estivesse cumprindo a lei. O primeiro conjunto de direitos subordinou-se ao segundo, de modo que a figura dos direitos passou do trabalhador ao sindicato e este, ao invés de representar os trabalhadores diante dos patrOes e da lei, passou a ser um representante do Estado diante dos tra- balhadores: uma investidura estatal. Foi neste segundo modélo que a sociedade brasileira real- mente criou a sua nogao real de cidadania, acoplada a situagao. de trabalho controlado e imposta autoritariamente pelo Estado (Paoli, 1987; 1988). O direito a ter direitos ficou preso ao funcionamento das prescrigdes legais e formalizadas das insti- tuigdes juridicas trabalhistas governamentais, e qualquer inicia- tiva de proposigao e participacao fora deste espago foi con- siderada ilegal © portanto sujeita a violéncia da repressao e da intimidago policial—o que efetivamente aconteceu nos 57 anos da vigéncia do modélo. Codificandodeste modoanogéo @ 0 exercicio dos direitos, a lei autoritaria diluiu 0 seu sentido politico e, mais do que isso, diluiu um horizonte interpretativo em construgao na pratica operaria, que sequer podiafiscalizar ano implantagao destes direitos em seu cotidiano detrabalho — algo também considerado prerrogativa do ministério especializado. Com isto, os direitos ja enunciados burocratizaram-se e foram separados da aco e da reflexdo coletivas, incapacitadas por decreto a criar novos direitos. Por isso 0 conhecimento das leis esta apenas na instrumentalizagao possivel que os trabalha- dores possam fazer dos direitos legais previdencidrios, do salario minimo e dos servicos assistenciais do sindicato. Todo um espaco pblico em formacéo foi sistematicamente destruido pelo Estado, que reprimiu qualquer tentativa de mobilizacdo e Participagao popular na organizag&o de assuntos publicos e a partir das experiéncias de vida coletiva. Como toda a sociedade foi organizada neste modélo — qualquer profissao reconhecida devia ser sindicalizada nestes moldes para poder negociar seus interesses, inclusive os empresarios —foi todo o Brasil “mo- derno” que se subordinou ao Estado e a lei autoritaria, evidente- mente exercida em meio a uma bruma de violéncias, particula- rismos e ineficiéncias. Este modelo tornou do Estado o campo por exceléncia das lutas e conilitos de classes e destes, uma negociag&o burocratizada e repressiva, que no entanto, aparece como tendo o poder de revelar, pela sua vontade, os trabalha- dores como cidadaos. A longa duragao desta experiéncia comum de se conhecer direitos (desde entao, frequentemente associada ao individuo que, ocupando o cargo de presidente da republica, 6 investido como a “pessoa-coletiva” da nao, pois a dota de cidadania) excluia tanto a cidadania liberal fundada na equivaléncia politica dos individuos como a de uma cidadania coletiva diferenciada fundada no exercicio da participagao e da agao comum. Também foi através do modélo que indmeros trabalhadores ficaram sem cidadania, pois suas situagdes de trabalho no favoreciam os direitos institucionalizados: todas as ocupagées da chamada “economia informal” (trabalhadores ambulantes, trabalhadores temporarios, trabalhadores domés- ticos), bem como os desempregados, para nao mencionar as mulheres e as criangas que, requerendo protegdo legal excessi- vamente cara, comegaram a ser expulsas do mercado de trabalho a nao ser quando aceitassem trabalhar “fora da lei”, (0 que elas aceitavam). Sao trabalhadores que, jogados em uma forma de ilegalidade “moderna”, conseguem, nos melhores casos, constituir-se como cidadaos de segunda classe. Movimentos Sociais: Brasil — Anos 90 125 126 Maria Célia Paoli A disputa pela cidadania: os conflitos para acriacdo de uma nova cultura politica Assim, 0 Brasil moderno e o cidadao nele definido se insti- tuiram as custas de uma dissolug&o das referéncias ultimas da agao e participagao coletivas que constré6em um horizonte democratico. E umaheranga pesada que desaba sobreas novas tentativas de formular uma outra nogao de sociedade e cidada- nia, que nao dependa de uma autorizagao externapara garantir sua coesao e seu movimento. E isto o que constituio significado primeiro dos movimentos sociais: ao proporem a autonomia da agao coletiva, eles trabalham também paraavalorizagaode uma sociedade finalmente politica e aberta aos contlitos através de uma referéncia democratica: nem mais parias a politica, nem mais siditos do Estado, mas cidadaos. Poder-se-ia objetar que os novos movimentos sociais, em- bora restabelecendo, de modo inovador, o liame entre agao coletiva e direitos, nao conseguem generalizar de modo signi- ficativo suas lutas e conquistas e, portanto, nao se universalizam como perspectiva de um outro horizonte politico para a socie- dade. Com efeito, é frequente este argumento na literatura socioldgica critica a respeito dos movimentos sociais: aponta-se para seu carater intermitente, ciclico e defensivo, para a frag- mentacao de seus interesses, parao imediatismo da acaoe para © localismo de seu alcance, para ano¢ao corporativa de direitos que elaboram e para o comunitarismo de suas identificagdes. Aponta-se também para a recusa que tém das formas de repre- sentago politica instituidas, deduzindo-sedaf asuaincapacidade para formular projetos mais abrangentes (Carvalho e Laniado, 1989). Gostaria de polemizar brevemente, nesta parte final do artigo, com este tipo de argumento, indicando em seguida alguns dos espacos sociais onde sua “eficdcia” pode ser lida: no impacto que provocaram no pensamento e nas praticas juridicas exercidos no pais; e nas mudangas, jd perceptiveis, no modo como se implanta certas politicas sociais em contextos onde existem mobilizagdes populares. Ambos os efeitos sao visiveis em praticas fragmentérias e localizadas, mas a frequéncia de seu acontecer ja gerou brechas profundas no sentido das politicas oficiais e dos instrumentos formais instituidos, abrin- do-se para significagdes de grande alcance. ‘As objegdes a que os movimentos sociais possam ser lidos como tema politico relevante tem uma dupla origem: elas ques- tionam, primeiro, metodoldgica e tedricamente, o procedimento que aceita o estatuto diferenciado e singular da a¢ao coletiva reivindicado pelos préprios movimentos — a representagao de si mesmos como sujeitos especificos — vendo nele uma perda da analise sociolégica em seu préprio objeto. O fascinio e as esperangas suscitadas por tais mobilizagdes — especialmente porque estas sao fundadas na afirmagao de uma subjetividade que se recusa a ser dissolvida, como objeto, em um modelo unificado de acao coletiva e, desta recusa, parece retirar sua forga e, portanto, sua novidade — teria feito da andlise sociolé- gica uma espécie de exercicio etnografico caleado em pequenas narrativas, que sequer podem ser “estudos de casos” porque nao se sabe “casos” de que seriam. Pede-se que os movimentos sociais sejam construidos como uma categoria simultanea- mente analitica e explicativade umanovaforma de acao coletiva e, no limite, que se fundamente uma nova “teoria” da agao coletiva apoiada em algum tipo de objetividade, ou seja, para além das praticas @ identidades especiticas (que a propria enunciag&o sociolégica diz estar constituindo e distinguindo estas agées, estes agentes e estas perspectivas inovadoras). Em segundo lugar, questiona-se o compromisso valorativo e engajado que estaria operando na interpretagao das possibi- lidades politicas dos movimentos, que produziria uma proxi- midade alarmante entre sujeito e objeto do conhecimento com- prometedora de sua cientificidade. O primeiro tipo de objegao envolve, antes de mais nada, um paradigma de racionalidade cientitica que est em crise e cuja concepgaio epistemoldgica néo cabe aqui discutir; (temeto a discussao especializada para Santos, 1988; 1990). Na literatura sobre as premissas tedricas das investigagdes sobre os movi- mentos sociais, busca-se compreender a especificidade e a autonomia do agir social coletivo contemporaneo que incide, exatamente, na questao da subjetividade e da identidade dos seus atores; remeté-la as determinagées da estrutura social ou a.um campo politico unificado, bem como interpreté-la a luz de uma teoria da histéria, é iludir 0 acontecimento em sua forma sensivel e escapar do desafio de repensar 0 estatuto simbdlico da aco e da encenago do proprio espaco social onde estes movimentos sociais acontecem. Ao invés da perda da analise sociolégica em seu préprio objeto, a busca de uma universali- dade e generalizago a priorie para além dele seria a busca de uma articulagao ou totalizagao cujo objetivo, afinal, seria o de coincidir com os limites da prépria ciéncia—o que isto, sim, seria uma perda do impulso interpretativo que se faz, simulta- neamente, como discurso da ago e sobre a ago, de modo que mundo multiplo, em sua disparidade de conflitividade, apareca comocampo pratico onde asciéncias sociais pretendem exercer seu significado e sua critica. Movimentos Sociais: Brasil — Anos 90 127 128 Maria Célia Paoli Talvez por isso mesmo a proximidade do investigador com seus sujeitos esteja implicita nas pesquisas sobre o tema, o que nao significa, em principio, auséncia de critica. Pelo contrario, cada estudo empirico sobre cada movimento coletivo mostra a abertura dos cientistas sociais em escutar os temas, as concei- tuagSes e as oposigdes que encenam, a cada vez, a presenga dos atores destes movimentos. Registrar a enunciagdo dos préprios atores e tomd-las em sua capacidade singular de revelar 0 mundo a partir de suas préprias perspectivas significa articula-las a outros lugares cognitivos, transcendendo seus contextos de origem sem dissolvé-las em um modelo formali- zado das relagOes sociais. Suponho que seja isto que as investigagées localizadas e proximas aos movimentos estejam fazendo como via de conhecimento destas novas formas de ago coletiva, e sua real proposta analitica 6 menos a do construir tipologias do que evidenciar a situagao comum que os constituem, como pertencentes a uma mesma sociedade e aum sistema de significados amplo e muito pouco homogéneo como matriz objetiva de interpretacao. E exatamente por isso que conseguem avaliar 0 seu impacto sobre a sociedade: um im- pacto que nao se mede pelo julgamento destas diferentes agdes coletivas em relagao a conquista ou a conservacao do poder (de Estado), mas que busca as referéncias pelas quais uma sociedade elabora sua realidade e sua legitimidade, seus confli- tos e suas utopias. No entanto, se isto ainda nao parece suficiente para dar conta da importancia politica dos movimentos sociais no con- texto da sociedade brasileira e das inovag6es singulares que eles constituem natrama do proprio social, é importante apontar onde se corporificam os efeitos destas agdes. Creio que ha, pelo menos, dois espagos fundamentais de poder, cujas fungdes reais e modos de serem exercidas foram abalados em sua legitimidade, e que mudam sob o impacto dos movimentos: as praticas judiciarias do Estado e as praticas de implantagao das politicas sociais dirigidas as classes populares. A crescente lagitimidade dos movimentos sociais em sua luta por direitos humanos e sociais © seu efeito potencial na mudanga nos padrées valorativos, pelos quais a sociedade brasileira visualiza seus grupos populares, questionou profun- damente a auto-imagem cos juristas em seu papel de media- dores efetivos dos contlitos sociais dentro de uma ordem institu- cional essencialmente normativista (Faria, 1988; 1991; Sousa, 1991). Isto ficou claro com a dolorosa consciéncia da crescente perdade legitimidade de sentencas judiciarias, descumpridas ou desconsideradas em casos como greves fabris consideradas ilegais mas que continuam, de tato, forgando negociagdes diretas entre operarios e empregadores sem a intermediagéo necesséria da justiga estatal; em invasées rurais e urbanas que se recusam a deixar as terras ociosas de proprietarios parti- culares e outros muitos litigios, onde a atitude hostil dos mo mentos populares em relagao a juizes e tribunais, investidos tradicionalmente de pouquissima credibilidade, gorava o forta- lecimento ao recurso do confronto direto. A partir de um certo momento, no entanto, estes movimentos passaram a requerer um tipo de garantia juridica a seus ganhos que nao apenas acomodasse institucionalmente as demandas populares espe- cificas aos direitos j4 existentes, mas uma pratica juridica que * criasse uma nova legalidade para direitos enunciados nas agdes coletivas populares. A montagem de servigos de assessoria juridica a organizagdes populares, bem como a liberdade inter- pretativa das leis vigentes em sentengas judiciais sobre conflitos por direitos sociais, trouxe ao nivel pratico a questo, até entéo plenamente académica, de como construir uma “ordem alterna- tiva” onde a legitimidade das demandas populares encontrasse a legalidade um novo contrato—e isto parece estar sendo conseguido & medida em que negociagées politicas (que movi- mentam representagdes simbélicas sobre o justo e 0 injusto, 9 certo eo errado) invadem os processos judiciais e jurisdificam © tratamento de novas reivindicagées que se enunciam como novos direitos. Ao mesmo tempo, o pensamento juridico que teflete sobre estas praticas passou a entender o significado daquilo que Santos chamou de “modas de produgao da lei e do poder social” (Santos, 1988), ou seja, a existéncia de varias ordens legais, coexistentes em sua diversidade e significado, ocultadas pelo monopélio do Estado na enunciagao do direito. Foipreciso, no Brasil, que os movimentos sociais rompessem os muitos siléncios que permitem a hegemonia deste monopdlio para que juizes, advogados e pensadores juridicos, situando-se ao nivel onde se produz esta ruptura, evidenciassem a urgéncia de uma nova enunciacao da legitimidade, uma enunciacao cuja importancia ultrapassa as circunstancias do conflito porque opera uma mudanga na prépria ordem simbélica. Algo diverso, mas também importante, acontece no modo como certas politicas sociais s4o implantadas em contextos sociais organizados por movimentos reivindicativos de direitos de sobrevivéncia. Tradicionalmente ineficazes em dois sentidos importantes: 0 de regular os processos de formagao, qualifi- cagao e distribuigao da forga de trabalho, como sugere Oife Movimentos Sociais: Brasil — Anos 90 129 130 Maria Célia Paoli (1984), quando pensa nas politicas sociais do mundo central, @ © de gerir em um nivel politicamente aceitavel os conflitos sociais, como sugere Santos (1990), as politicas sociais no Brasil mantiveram um carater emergencial e assistencialista da imensa pobreza criada ao longo de sua histéria moderna. Isto no seria espantoso se o Brasil nao contasse com um grande sistema previdenciério, cujo nivelde gastos sociais chega a 18% do seu produto nacional bruto (Draibe, 1990). Analistas indicam que o imenso aparato da previdéncia social no pais tem funcio- nado, desde seu comego, como o maior mecanismo de controle politico dos trabalhadores, por reproduzir o clientelismo ¢ o corporativismo da tradigao da cidadania regulada. E um sistema que foi criado em uma ditadura e notavelmente expandido em outra. Além disso, a burocracia constréi caminhos contusos que fazem desaparecer recursos, ou fazem-nos aparecer como moeda corrente da manipulagao eleitoral. E em meio a esta “ineficacia” dos servigos previdenciarios publicos, acoplada ao modo de funcionamento das relagdes de trabalho, a miséria aprofunda-se de modo espantoso. As recentes investigagdes sobre as decisées e implemen- taco de politicas sociais tem mostrado que, nos locais do pais onde existem associagSes organizadas populares, a perspec- tiva assistencialista modificou-se completamente ao se integrar tais associagdes como participantes da gestdo dos programas (Braga e Barreira, 1991). Isto abriu todo um campo conflitivo entre os técnicos governamentais e as reivindicagées organiza- das, produzindo efeitos construtivos e disruptivos em ambos os lados. O principal a ser destacado, no entanto, 6 que a questo da desigualdade, da justica e dos direitos passou a ser 0 crivo principal por onde passam as prioridades, os limites o aleances dos programas, a dinamica das reivindicagdes nao atendidas, a proposigao de alternativas e a criagao de novas praticas reivin- dicativas. Apesar de todas as dificuldades, significou que o dominio ptblico passou a ser efetivamente publico, isto é, debatido, conflituoso, negociado, e, sobretudo, incluindo a par- ticipacao plural como pratica e discurso fundado sobre o signi- ficado dos direitos. Isto significa que, nestas brechas que comegam a tentar romper as tradicionais praticas autoritarias —sem garantias de éxito, sem segurangas, com significados mutaveis —, a onipoténcia das praticas de poder é quebrada por ter sido obrigada a aceitar a representacdo positiva de seu outro: reconhecer sua diversidade, reconhecé-lo como sujeito de direitos, com um poder efetivo de agdo © de representa- Estas sumarias indicagdes a respeito da presenga e do impacto dos movimentos sociais contemporaneos na sociedade brasileira ( e talvez também em alguns outros paises latino- -americanos) tem menos o propésito de demonstrar uma “efica- cia politica” de sua agéo do que apontar a sua capacidade de dotar de significado positivo a estera politica, ou seja, de Ihe dar sentido e histéria. Ao mesmo tempo, mostram que sua mobiliza- 80 muda a qualidade ¢ o modo de entendimento do que vem a ser ‘participagéo popular”: sendo ago coletiva localizada e diferenciada, 6 ao mesmo tempo algo que vai além da agdo, como momentos de descoberta do mundo diversificado e confli- tivo, onde os “pobres e carentes” se descobrem como cidadaos destinados ao exercicio das praticas, da reflexdo, do debate e das incertezas sobre a condug&o dos assuntos piblicos. i Movimentos Sociais: Brasil — Anos 90 131 132 Maria Célia Paoli Referéncias Bibliograficas Abramo, Lais Barreira, Irys Bonduki, Nabil Braga, Elza: Barroira, Irlys (orgs.) Caccia-Bava, Silvio Cardoso, Ruth Carvalha, Inaia; Laniado, Ruthy Chaui, Marilena Draibe, Sonia Miriam Faria, José Eduardo (org.) Faria, José Eduardo Gomes, Angela Castro Offe, Claus Paoli, Maria Célia; ‘Sader, Eder Paoli, Maria Célia Paoli, Maria Célia ‘Sader, Eder Santos, Boaventura de Sousa Santos, Boaventura de Sousa Santos, Boaventura de Sousa 1986 1987 1987 1991 1983 1983 1989 1986 1980 1988 1901 1988 1986 1987 1989 1988 1988 1988 1990 O Resgate da Dignidade, Dissertagao de Mestrado, USP. Refazendo a Politica, Tese de Doutorado, USP, Constiuindo Territérios da Utopia, Tese de Mestrado, USP. APolltica de Escassez: Lutas Urbanas e Programas Sociais Governamentais, Fortaleza, Fundagao Deméerito Rocha e Universidade Federal do Ceara. Prdticas Cotidianas e Movimentos Sociais, Dissertagao de Mestrado, USP. “Movimentos Sociais, balango critico”, Sorj e Almeida, Sociedade e Politica no Brasil pos-64, Brasiliense. “Rediscutindo © tema: movimentos sociais e democracia’, ANPOCS, mimeo. 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