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EMILE BENVENISTE PROBLEMAS DE LINGUISTICA GERAL II ‘Tradugio: Parte I— Eduardo Guimaraes Parte II —Mareo Anténio Escobar Parte III — Rose Attié Figueira Parte 1V —~ Vandersi Sant’Ana Castro Parie V— Jodo Wanderlei Gerald Parte VI~Ingedore G. Villaga Kock Revisfo Técnica da Tradugio: Eduardo Guimardes CAMPINAS. PONTES, 1989 CAPITULO 5 0 aparelho formal da enunciagio* Todas as nosses descrigdes linglistcas consagram um lugar freqlentemente importante a0 “emprego das formas”. O que se centende por iso é um conjunto de regras fixando as condigaes sin taticas nas quais as formas podem ou dever normalmente sparecet, ‘uma vez que elas pertencem a um paradigma que arrla as esco- has possiveis. Estas regras de emprego so artculadas @ rogeas e formagio indicadas antecipadamente, de maneira a estabelecer ‘uma certacorrelagdo entre as variagSes morfoligicas e as latitudes combinatérias dos signos (acordo,selegio mits, preposigtes e re- gimes dos nomes e dos verbos, lugar e ordem, ei). Como as esco- Tha estéo limitadas de uma parte € de outra, parece que se obtém assim um inventéio que poderia ser, teoricamente, exaustivo, dos empregos como das formas, ¢ em conseqtincia uma imagem pelo ‘menos aproximativa da lingua em emprego. Gostarfames, contudo, de introdusie aqui uma ditinglo em tum funcionamento que tem sido considerado somente sob o ingulo da nomenclatura morfoligica e gramatical. As condigées de em prego das formas no so, em nosso modo de entender, idénticas as condigbes de emprego da lingua. Séo, em realidade, dois mundos diferentes, © pode ser stil insstir nesta diference, a qual implica ‘uma outra maneira de ver as mesmas coisas, uma outra mancira de as descrever e de as interpreta. (© emprego das formas, parte necesséria de toda descricso, TFonasen Pai, DitierLaroue, $° ane, n® 17 (mango de 1970), p ine at fem dado lugar a um grande némero de modelos, tio variados quanto 05 tips linglsticos dos quais eles procedem. A. diversida das estruturas lingiisticas, tanto quanto sabemos anaiséls, nfo se deixa reduzie « um pequeno nimero de modelos, que comprecn ‘dem sempre € somente os elementos fundamentais. Ao menos dis- ppomos assim de certas represntagGes muito precisas, construidas por meio de ume técnica comprovads, CCoise bem diferente é o emprego da lingua. Trate-se aqui de tum mecanismo totale constante que, de uma maneira ov de outa, feta lingua inteira, A dificuldade & apreender este grande fend ‘meno, tio banal que parece se confundit com a pr6pria Kingua, to necessério que nos passa despercebido. ‘A enunciagao € este colocar em Funcionamento «King tum ato individual de wtilizacio, © discurso, dirsed, que & produzido cada vez que se fala, smanifestagbo da enunciaedo, nlo é simplesmente a “fala”? — F precio ter cuidado com a condigio especfica da enunciagio: & © ato mesmo de produzir um enunciado, © nio 0 texto do enun ciado, que & nosso objeto, Este ato € 0 fato do loewtor que mobilza 2 lingua por sua conta. A relagdo do locutor com a lingua detsr- ‘mina os carateres linglisticos da enunclagio, Devese consideré.la como o fato do locutor, que toma a lingua por instumento, © nos ‘aracteres lingifsticos que marcam esta relago. Fete grande processo pode ver estudado sob diversos aspetos. ‘Veremes principelmente ts. ‘© mais imediatamente perceptivel e © mais direto — embera de um modo geral nio seja visto em relacio a0 fendmeno geral da fenunciago — é a realizacdo vocal da lingua. Os sons emitidos e percobidos, quer sejam estudador no quadro de um idioma part cular ou nas suas manifestages gerais, como processo de aquisiiv, de difusfo, de alterasio — sio outras tantas ramifcagses da fo. nética — procedem sempre de atos individusis, que 0 linglista surpreende sempre que possivel em uma produgio nativa, no inte rior da fala. Na prética cientfica procurase eiminar ou alenvar os tragos individuals da enunciago fonica recorrendo a suits di ferentes ¢ multiplicando os registro, de modo a obter ume imagem média de sons, dstintos ou ligedos. Mas cada um sabe que, para por 2 ‘© mesmo sujeito, os mesmos sons nio so jamais reproduzidos exe tamente, e que a nogio de identidade nio 6 sendo aproximativa ‘mesmo quando a experiénci € repetida em detalhe. Estas diferengas dizem reapeito & divesidade dss situagdes nas quais a enunciagio 6 produzida (© mectnismo desta produsio é wm outto aspecto maior do mesmo problema. A enunciacio supse a conversio individual da lingua em dizcuteo, Agui a questio — muito dificil © pouco estu- dada ainda — 6 ver como 0 "sentido" se forma em “palavras”, em {que medida se pode distingur entre as duas nogdes e em que ter ros descrever sua interagio. Fa semantizacdo da lingua que esté ro centro deste aspecto da enunciagio, e ela condux a teovie do signo e 8 andlise da significancia. Sob a mesma consideracio dis poremos of procedimentos pelos quais as formas linglistices da enunelagio se diversificam e se engendram. A “gramética trans formacional” visa codifici-las a formlizlas para dat depreen der um quadro permanente, e, de ume teoria da sintaxe universal, prope remontar a uma teoria do funcionamento do espiito. Pode-se, enfim, considerar ume outra abordagem, que consis. tira em definir « enunciagio no quadro formal de sua realizaséo. 0 objeto proprio destas paginas. Tentaremos esbocar, no interior 4a lingua, 08 caracteres formais da enunciagGo a partic da’ mani festasio individual que ela atualiza. Estes caracteres sio, uns ne cessios © permanentes, os outros incidentals ¢ligados & particule ridade do idioms escalhide. Por comodidade, of dados utilizados qui s8o trados do portugués (francés} usual e da lingua da con- versago. Na enunciacao consideraremes, sucesivamente, 0 préprio sto, as situagées em que cle se realiza, os instrumentos de sua reali- zs. © ato individual pelo qual se utiliza a lingua introduz em primeieo lugar 0 locutor como parimetro nas condigses nocesséias dda enunciagio. Antes da enunciagéo, a lingua nio é sendo posibi- Hidade da lingua, Depois da enunciagdo, » lingua ¢ efetuada em 1. Tratames disso particularmente nam estudo publisado pel revista Semio- ta, 1969 claim. P4365). 8 uma instncia de discurso, que emana de um locator, forma sonora ‘que tinge um owvinte © que suscite uma outra enunciagao de Enquanto reaizacio individual, a enunciaglo pode se defini, fem relagdo 2 lingua, como um processo de apropriga. O locutor se apropria do aparelho formal da lingua e enuncia sua posigSo de locutor por meio de indices espectices, de um lado, e por meio de procedimentos acessrios, de outro. Mas imediatamente, desde que ele se declara loeutor ¢ assume 4 lingua, ele implanta o outro diante de si, qualquer que tea 0 ara de presenga que cle atribua a este outro. Toda enunciagso 6, expli- cita ou implictamente, uma alocusio, ela postula um alocutéio. Por fim, na enunciagio, a lingua se acha empregada pare a ‘expresséo de’ uma certa relagdo com 0 mundo. A eondigio mesma dessa mobilizasio e dessa apropriaglo da lingua €, para o locutr, necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a possibi lade de coreferiridenticamente, no consenso pragmiético que faz de cada locutor um colocutor. A referéncia é parte integrante da cenunciagio, Estas condigées inicais vio reger todo © mecanisma da refe réncis no procesto de enunciagio, ciando uma situasio muito sin- gular e da qual ainda no se tomou a necesséia conseiénca, © ato individual de spropriagao da lingua itrodue aquele que fala em sua fala. Este € um dado constitutive da enunciasio. A presenga do locutor em sua enunciagio faz com que cada instincla de discurso consitua um centro de referénca interno. Esta situaglo vai se manifester por um jogo de formas especiicas euja unglo & de colocae o locutor em relagdo constante e necesséria com sua cenunciagzo. Testa descigio um pouco absteata se aplica a um fendmeno iglstico familiar no uso, mas cuja enliseteérca esté apenas co- megando. E primeiramente a emergincia dos indices de pessoa (a relago eu-tu) que néo se produz senio na e pela enunciagdo: 0 termo eu denotando © individuo que profere a ennciagdo, €0 ter mo fu, 0 individvo que af esté presente como alocutirio, Da mesma natureza ¢ se relacionando mesma estratura de fenunciasfo so os numerosos indices de ostensio (ipo este, agui, a cte.),termos que implicam um gesto que designa 0 objeto ao mesmo ‘tempo que & pronunciada a instincia do term, ‘As formas denominadss tadicionalmente “pronomes pesosis", “demoonstrativos”,aparecem egora como ume classe de “individuot lingisticos", de Tormas que enviam sempre e somente a “indivi duos", quer se trate de pessoas, de momentos, de lugares, por opo- slo bos teemos nomingis, que enviam sempre e somente a con crits, Ore, o estatuta destes “individuos lingisticas” se deve 20 fato de que eles nascem de uma enunciagdo, de que sio produzidos por este acontecimento individual e, e se pode dizer, “semelnatit” les sfo engendrados de novo eada ver que uma enunciagio € pro- ferida, e cada vez cles designam algo nove, ‘Uma terceira série de terms que dizem respeito & enunciacdo 6 constituida pelo paredigma inteiro — freqientemente vast e com: plexo — das formas temporas, que se determinam em relagéo @ EGO, centro da enunciagio, Os “tempos” verbuis exje forma axial, ‘0 “presente, coincide com 0 momento da enuncisg, fazem parte deste eparclho necesséro Esta relagio com o tempo merece que ai nor detenhames, que meditemos sobre sua necessidade, e que interroguemos sobre 0 que 4 fundamenta. Poder-seia supor que a temporaidade é um quadro inato do pensamento. Ela € produzida, na verdade, na e pela enun- iago. Da enunciacéo procede a instaurasdo da categoria do pre sente, © da categoria do presente nasce a categoria do tempo. O presente & propriamente a origem do tempo. Ble é esta presenga no ‘mundo que somente 0 ato de enunciagéo torna possive, porque, & necesséio refletir bem sobre isso, o homem no dispde de nen ‘outro meio de viver 0 “agora e de tornélo tual sendo realizando-o pela insergio do discurso no mundo, Poderseia mostrar plas ané Tiss de sistemas temporais em diversas linguas a posigéo central do presente. O presente formal nio faz senéo explictar © presente Inerente 8 enunciagio, que se renova a cada produedo de discurso,e 1 partir deste presente continuo, coextensivo & nossa prépria pre sence, imprime na conscitncia 6 sentimento de uma continuidade 20s deals dos fats de ling que apretentamos aqui de um modo sin {eco edo exposton em mutos caps de noses Problemes de nga Yq genre | (Pars, 1965), 0 ue Hos sense de isis sobre eles. 85 «que denominamos “tempo”: continuidade © temporalidade que se cengendram no presente incessant da enunciaglo, que € o presente do prOprio ser e que se delimita, por referéncia intema, entre © ue vai se fornar presente e 0 que jf no o & mas, Assim a enunciagio & ditetamente responsivel por cetas clas- ses de signos que ela promove literalmente & existéncia. Porque cles no poderiam surgir nem ser empregados no uso cogaitivo 43 lingua. f preciso entio distinguir as entidades que tém na lingua seu estatuto pleno e permanente © aquelas que, emanando da enn: ‘ndividuos” que a enuncia 80 cria © em relagéo 20 “aquiagore” do locutor. Por exemplo: 0 eu", o “aguele”, 0 “amanhi” da deserigéo gramatical néo sto senio os “nomes” metalingiistcos de eu, aguele, amanha produ- idos na enunciac. [Além das formas que comanda, a enunclagio fornece as con- Aigbes necessrias as grandes fungées sintticas. Desde 0 momento fem que o enunciador se serve da lingua pera influenciar de algum modo 0 comportamento do alecutério, ele disp para este fim de tum aparetho de fungdes. E, em primeiro lugar, a interogacio, que € uma enunciagio construida para suscitar uma “resposta”, por um process lingUstico que & 90 mesmo tempo um processo de com portamento com dupla entrada. Todas as formas lexicas e sintéticas da interrogacio, particulas, pronomes, seqiénca, entonagio, ee. erivam deste aspecto da enunciagéo. De modo semelhante distibuirsedo os termos ov formas que denominamos de intimagdo: ordens, apelos concebidos em catego- ras como o imperativo, 0 voeative, que implicam uma relaglo viva « imediata do enunciador so outro numa referéacia necessitia 90 tempo da enunciagéo. ‘Menos evidente talvez, mas também certo, é 0 fato de a asser. fo pertencer a este mesmo repertrio. Em seu rodeio sintétco, como em sua entonagio, a assergéo visa a comnicar uma certeza, cla & 2 manifestagio mais comum da presenga do locutor na env ciagdo, ela tem mesmo instrumentos especificos que & exprimem ow que a implicam, as palavras sim © ndo afiemando posiivamente ‘ou negativamente uma proposigie, A negagéo como operagso 16 aica & independente da enunciagdo, ela tem sus forma propria, que 86 no, Mas a particule assertiva ndo, substituta de uma proposicio, classificase como « particula sim, com a qual cle repare 0 esta tuto, nas formas que dizem respeito 8 enunciagdo. De modo mais amplo, ainda que de uma maneira menos cate sotinivel,onganizamse aqui todos 0s tipos de modalidades forms, tans pertencentes aos verbos, como os “modes” (optativa, subj tivo) que enunciam atitudes do enunciador do Sngulo daguilo que suncia (expecttiva, dese, apreensio), outros & fraseologia ("ta ver", “sem divida”, “provavelmente") ¢ indicando incerteza, poss bilidade, indocisio, ete, ou, deliberadamente, reusa de asserso. (© que em geral caracteriza a enunciagso é a acentuapio da elope discursina com o parceiro seja este real ou imaginado, ind Vidal ou coletiv. [Esta caracteristica coloca necetariamente © que te pode de- rnominar 0 quadro figurativo da enunclagio. Como forma de dis- curso, a emunciagdo coloca duas “figuras” igualmente necesirias, uma, origem, a ote, fim da enunciagso. F a estrtura do didlogo, Duss figuras na posigdo de parceiros sio alterativamente prota gonistas da enunciagio. Este quad & dado necessariamente com a Aefinigdo da enunci Poder sia objetar que pode haver dilogo fora da enunciasao, fu enunciagao sem dislogo. Os dois casos devem ser examinados. [Na dispute verbal.pratcada por diferentes povos © da qual uma variedade tpica é 0 hain-teny dos Merinas, nd se tata na verdade nem de dislogo nem de enunciagéo. Nenhum dos dois par- xis se enuncia: tudo consiste em provérbios citados e em prov vérbios oposts citados em répica. Nao hi uma Gniea referéncia explicta a0 objeto do debate. Aquele, dos dois participants, que dispie do maior estoque de provérbios, ou que os emprega de modo sais hébil, mais malicioso, menos prevsivel deixa 0 outro sem saber o que responder e é proclamado vencedor. Este jogo nfo tem senio a aparéncia de um dislogo. Tnversamente, 0 “mon6logo” procede claramente da enuncia «io, Ele deve ser classificado, nfo abstante @ apaetneia, como una Variedade do diglogo, estrutura fundamental. O “monslogo" € um

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