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Revista Adusp Dezembro 1998 Entrevista Robert Kurz por Jorge Grespan A CRISE VAI CONTINUAR AL £ A PROXIMA REGIAO A ENTRAR EMBANC. © Colapso da Modernizacao Dezembro 1998 Revista Adusp Adusp - Em 1991, enquanto 0 mundo capitalista festejava a der- rocada do socialismo sovittico, vo- cé escreveu um livro ( “O Colapso da Modernizagao”, explicando que aquela derrocada era, ao contrario das expectativas, apenas 0 preli- dio de um futuro colapso que atin- giria todo o sistema produtor de mercadorias, isto 6, 0 proprio capi- talismo mundial. A crise atual, que vem se alastrando rapidamente a partir de seu ponto de partida asitico, representa a comprova- ‘sao daquela expectativa? Kurz - Sim, minhas previsoes se confirmaram. Na época, éramos poucos os que pensavamos que a cri- se também chegaria ao Ocidente, que o capitalismo também entraria ‘em crise, Apesar de ja estar ocorren- do, naquela época, uma crise do mercado de trabalho em varias par- tes do mundo, inclusive na parte oci- dental, isso nao era entendido como ‘uma crise do capitalismo. © exem- plo mais claro deste processo talvez tenha sido a reunificacao alema, pois nela foram depositadas as maiores esperaneas. As pessoas na Alema- nha Oriental pensaram: “Agora va- ‘mos entrar no paraiso de consumo ocidental e no grande milagre eco- nomico”. Elas estavam um tanto de- fasadas, olhando para os anos 60 ou 70, e nao perceberam que ja havia ‘manifestagdes da crise na Alemanha Ocidental. O Ocidente pensou que a ‘Alemanha reunificada ficaria mais forte economicamente; que, além isso, ela tinha adquirido um forte potencial industrial e que tudo isso valeria bilhdes de marcos. Entretan- to, o que se verificou através da reu- nificagao e da sua integracao no es- aco monetario do marco, foi que a industria da antiga Alemanha Oriental experimentou um desastre praticamente completo. Nao houve nenhum ganho econdmico, nao hou- ve nenhum milagre da economia, nem surgiram novos mercados no Leste. © que aconteceu, a0 contré- rio disso, foi um colapso, pois nunca houve possibilidade de uma integra- 20 real. A Alemanha Oriental, hoje em dia, vive de subvencao, Todos os anos necesséria uma transferéncia liquida de duzentos bilhdes de mar- cos da antiga Alemanha Ocidental para a antiga Alemanha Oriental e, mesmo assim, a taxa de desemprego na Alemanha Oriental é de quase 20%, Em algumas regides, essa taxa chega a 30%. Adusp - © mesmo pode ser di- to da Europa Oriental e da Ras- sia, a antiga Uniao Soviética? Kurz - E mais verdadeiro ainda para o Leste Europeu todo e, quan- to mais para leste se vai, isto 6, para a Riissia, para a Asia Central, pior se apresenta a situacao, No comeco, esses pases (Reptiblica ‘theca, Po- Tonia, Hungria) eram os filhos do milagre das reformas econdmicas. ‘Agora ali também esta acontecendo um forte retrocesso, uma crise. So- bretudo na Reptblica Teheca, que era o pafs do milagre neoliberal, com Varschlav Klaus, 0 Ministro da Economia que alinhou seu pais 20 neoliberalismo e que teve depois de recuar diante de um iminente desas- tre financeiro, Agora a Reptblica ‘Teheca nao 6 mais o pais do milagre. ‘Toda a Europa Oriental, a Rissia, a Asia Central, as ex-reptiblicas sovié- ticas ndo puderam ser integradas economicamente. Confirmou-se, portanto, esse prognéstico, como também se confirmou outro prog- néstico, o de que os mercados orientais, ou seja, 0 capitalismo em répido crescimento nos paises asidti- cos nao duraria muito. O que eu apresentei em 1991, ainda como um prognéstico rudimentar, realmente se realizou com grande preciso. Os tigres asidticos ¢ 0 Japao esto ago- ra em crise. Pode-se dizer, portanto, que a expectativa foi confirmada. Adusp - Sobre a situacio lati- no-americana e, mais especifica- mente, sobre a situagio brasileira nesta crise, que anélise poderia ser feita? Existem saidas especificas para nés, ou teremos de, mais uma vez, adotar formulas impostas pe- los organismos internacionais? Kurz - Eu nao me sinto muito competente para falar sobre isso porque nao fiz andlises nacionais, e sim uma anélise global. Apesar dis- so, posso arriscar algumas previsdes, levando em conta como 0 socialis- mo de Estado e seu império no Les- te da Europa entraram em colapso no final dos anos 80 e, por outro la- do, como depois também os assim chamados “mercados virtuais” € suas economiias regionais aparente- mente novas foram atingidos pela cise, inclusive os alunos-modelo co- mo 0 México, o Chile e a Argentina, na América Latina, e a Republica Teheca, a Polonia e a Hungria, no Leste Europeu, além de, natural- igres Asiaticos ( Coréia, Tailandia, Indonésia etc. Produziu- se, assim, uma pseudo-perspectiva para esses alunos-modelo. Na ver- dade, tudo isso foi financiado desde Revista Adusp Dezembro 1998 © come¢o pelo capital ficticio e nun- ca houve qualquer base real. Agora nds estamos vendo como essas re- gides entraram em colapso, uma apés a outra. A Russia est na ban- carrota, 0 Japao esta tecnicamente na bancarrota, os Tigres Asidticos estio na bancarrota. Nao é preciso muito engenho para dizer, a partir dai, que a proxima regido a entrar em bancarrota sera a América Lati- na, Jé existe inclusive a expressio “pedras de domin6". Eu nao conhe- 0 nenhuma razao pela qual a Amé- rica Latina pudesse escapar dessa situagao. Esta se tentando, 6 claro, protelar o problema. O Brasil, por exemplo, possui mais reservas cam- biais que a Tailandia e pode agiien- (ar por mais tempo. Além disso, ha ‘um grande medo nos EUA de que, se o Brasil falir, possa falir também a Bolsa de Wall Street, Por isso 0 Presidente Cardoso talvez tenha a possibilidade de se colocar, por as- sim dizer, na posicao forte do gran- de devedor diante do credor, e di- zer, parodiando 0 ditado: “Se voces nao passarem para cé 0 carvao isto 6, ‘se vocés nao passarem para cé 0 dinheiro’, voces também vao passar frio”. Mas estes mecanismos so apenas protelatérios, e eu acredito que jé provavelmente nos préximos meses ou, de qualquer forma, em poucos anos, todos os “mercados virtuais” vao desabar, como na Asia. Adusp - E qual é a situacio dos Estados Unidas nessa crise financei- ra mundial? Eles poderio “expor- tar” sua crise para outros paises, ou terao também de enfrenta-la? Kurz - Os Estados Unidos estao no centro de todo o capital ficicio, pois podem se endividar com a pré- pria moeda, o délar, e acumularam déficits comerciais gigantescos com quase todos os paises do mundo, principalmente os da Asia. Com a crise dos paises astaticos, eles trans- feriram seus excedentes de volta aos EUA, como capital-dinheiro, de forma que se formou uma dupla bolha especulativa no centro, onde ‘os EUA esto. Por isso eu creio que © colapso financeiro realmente grande, a crise financeira realmente grande, chegaré quando vier a crise dos EUA, quando ficar claro que os mercados financeiros nao conse- guem mais controlar este gigantes- co processo de endividamento ex- terno, ¢ isto nao esté muito longe de acontecer. Portanto, o centro da crise serao os EUA, pois 0s EUA estdo no ponto de partida dessa grande “bomba de dinheiro”, uma “bomba de dinheiro” global, na qual essa circulagao passiva de défi- cits entre a Asia e os EUA produziu liquidez sem fundamentos reais. Es- te € 0 centro de toda a crise finan- ceira ¢ eu acredito que os EUA nao sero poupados dela. Quanto a América Latina... bem, se a Asia nao agiientou, nao sei como a Amé- rica Latina iré agiientar. Adusp - Falando agora mais genericamente da crise econdmica mundial, como vocé a caracteriza- ria em seus elementos essenciais? O noticiario da grande imprensa vem atribuindo uma importancia quase que exclusiva, excessiva, a0 aspecto financeiro-monetario. Mas qual é realmente a relevan- cia desse aspecto, ou seja, qual 6 a relacdo do lado financeiro com © lado produtivo da economia, no quadro da crise que vivemos? Kurz — Acredito que, neste pon- to, devemos fazer uma distingao ri- gorosa, A causa mais profunda da crise remonta a mais de 20 anos atras, Ela esta relacionada com 0 inicio da terceira revolucio indus- trial, isto 6, com o inicio da revolu- 40 microeletrénica, diferenciando- se qualitativamente das duas revolu- Ges industriais anteriores. A primei- ra foi a revolucio industrial original a segunda foi a fordista, taylorista, da esteira rolante etc. E agora temos a terceira, a revolucdo microeletro- nica, que acredito ser diferente qua- litativamente, na medida em que, pela primeira vez na historia capita- lista, o potencial de automacao e ra- clonaliza¢ao avanca mais rapida- mente que a expansio dos merca- dos. Ou seja, os produtos estao fi- cando realmente cada vez mais ba- ratos, de modo que, como no caso dos computadores, quanto mais ba- ratos eles forem, mais pessoas os comprarao. Mas, apesar disso, a ra- Dezembro 1998 Revista Adusp

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