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APSICOLOGIA SOCIAL AS VESPERAS DE SEU PRIMEIRO CENTENARIO Aroldo Rodrigues A psicologia social é um fenémeno do século XX. Os primeiros tra- baihos classicamente considerados como marcos iniciais da discipti- Na (Le Bon, 1895, Triplett, 1897) estao ainda por atingir um século de existéncia. E, embora algumas ocorréncias importantes tenham tido lugar nas primeiras décadas deste século, a psicologia social come- gou, de fato, a florescer na década de 30, através dos trabalhos de mensuragao de atitudes de Thurstone & Chave (1929) e de Likert (1932) _ 8, principalmente, através do grupo de pesquisa liderado por Kurt Le- win. Como bem assinala Jones (1985), a psicologia social é, em gran- de parte, um fendmeno norte-americano, embora seus mais destaca- dos precursores sejam europeus (por ex.: Lewin, Helder, Lazarsield, @tc.). E t40 marcante a influéncia de autores radicados nos Estados Unidos na psicologia social, qua até em livros e artigos publicados por psicélogos do leste europeu predomina, via de regra, as referén- cias a esses autores. Conforme levantamento que fizemos-a 10 anos atras (Rodrigues, 1979), 80 a94% das referéncias listadas em quatro li- vros de psicologia sociai latino-americanos s4o autores americanos ou radicados nos Estados Unidos; num livro de autor francés, a porcen- tagem de referéncias a esses autores ¢ de 73%; num livro monografi- co sobre o principio do equilibrio de Heider, de autoria de um psicdlo- go social polonés, a porcentagem de autores americanos ou residen- tes nos Estados Unidos citados 6 de 33% e, num artigo de um psicéio- go soviético publicado em margo de 1982 no Personality and Sociat Psychology Bulletin, 100% das referéncias tistadas sdo autores ameri- canos. Os fatores histéricos que ensejaram este estado de coisa sao conhe- cidos. Em primeiro lugar, o éxodo de europeus motivado pelo advento do nazismo levou aos Estados Unidos psicdlogos sociais notaveis, co- mo ja mencionamos acima; além disso, a Segunda guerra mundial pro- Piciou o desenvolvimento dos estudos sobre mudanga de atitudes, agressao, preconceito, conflito, dinamica de grupo,etc., e os Estados Unidos, por n&o terem sofrido em seu territério os efeitos destrutivos dos combates, teve mais facilidades que os paises europeus para de- senvolverem, em suas universidades, pesquisas sobre fendmenos psi- cossociais. Cite-se ainda, como possivel razio para o predominio cta- to das contribuigées dos autores radicados nos Estados Unidos em Psicologia social, o incrivel efeito multiplicador de talentos suscitado pelo génio de Kurt Lewin. Nomes notaveis da psicologia social contem- u7 poranea, tais como Festinger, Kelley, Thibaut, Raven, Deutsch, Cart- wright, Zander, French, Gerard, Bavelas e muitos outros foram discipu- los de Lewin e muitos destes, por sua vez, nos legaram alunos como Aronson, Zimbardo, Carlsmith, Latané, Fishbein, Brehm, Zajonc e va- rios outros. Finalmente, a capacidade criativa de Fritz Heider, radica- do nos Estados Unidos desde 1930, foi responsavel pelo surgimento das teorias de consisténcia cognitiva, que dominaram as décadas de 50 e 60, e pela teoria da atribuigdo, que capturou a imaginagado dos psicdélogos sociais desde meados da década de 60 atéos dias de hoje. A predominancia da contribui¢ao dos autores americanos ou estran- geiros radicados nos Estados Unidos ao desenvolvimento da psicolo- gia social 6, talvez,.um dos poucos pontos incontroversos nestes qua- se 100 anos da disciplina. Em seu aspecto conceitual, metodolégico @ &tico e, principalmente, no que concerne aos aspectos epistemolégi- cos 6 de relevancia social, turbuléncias sérias tém ocorrido com fre- qiiéncia e intensidade no ambito desta area do saber psicoldgico. Nesta breve visao retrospectiva da psicologia social abordarei, den- tro das limitagées de tempo impostas por uma comunicagao desta na- tureza, os seguintes tépicos: {a) a psicologia social antes da crise de relevancia dos anos70; (b) a crise de relevancia; (c) a psicologia social apés a crise de relevancia; (d) 0 desenvolvimento e o estado atual da psicologia social na Améri- ca Latina. A fazdo de singularizar o estado da disciplina na América Latina (ai se incluindo, obviamente, a situagdo da psicologia social no Brasil) é que, nesta regio, contrariamente ao que ocorre no resto do mundo, a crise de relevancia nao se encontra totalmente superada. Sendo assim, iter (c) acima focaliza o estado da disciplina prevalente hoje nos pa- ises que mais contribuem para a psicologia social fora da América La- tina, enquanto que o item (d) leva em conta a contribui¢do dos psicélo- gos sociais latino-americanos, Espaco maior sera dedicadoao estado da psicologia social. latino-americana que ao dominante no resto do mundo, por dois motivos: primeiramente, por estar o Brasil nela inseri- do;em segundo lugar, porsera psicologia social latino-américana aque- la em que maior numero de controvérsias e pontos de vistas antagént- cos dificultam uma maior integragao e harmonia nos trabalhos aqui produzidos. A Psicologia Social anies da Crise de Relevancia — Suponhamos que alguém me perguntasse que a porcentagem dos indmeros conhecimentos acumulados pela psicologia social através dos tempos, eu atribuiria ao que foi feito no periodo pré-crise de rele = vancia. Sem hesitar, responderia que, no minimo, 70%. De fato, a psi- cologia social, mormente no periodo entre 1930 e 1960, estabeleceu a base sobre a qual sustenta até os dias de hoje. Medida de atitude e, logo em seguida, formagao e mudanga de atitude, dominaram 0 cena- rio da psicologia social neste periodo, no qual encontramos a maior. parte do que se sabe sobre o assunto. Os trabalhos de Sheriff (1936) sobre influéncia social e estabelecimento de normas, e os de Lewin, Lippit e White (1939) sobre as diferentes atmosferas de lideranga, mar- caram o inicio da preocupagdo dos psicologos sociais com a experi- mentagdo rigorosa e controlada, provavelmente influenciados pelos avangos dos psicélogos dedicados ao estudo dos fendmenos psicolé- gicos basicos que, na época, ja se destacavam pelo rigor cientitico de suas investigagées. Como se verd adiante, a metodologia experi- mental em psicologia social foi, durante a crise de relevancia, forte- mente atacada, porém, como também se mostrar, resistiu aos ata- ques @ permanece como a forma mais adequada de estabelecer rela- des nao aleatérias entre as varidveis consideradas no estudo dos fe- ndémenos psicossociais. Fatores situacionais conjunturais, tais como a segunda guerra mundial, o nazismo, a ascengao social das minorias, etc., contribuiram também para o desenvolvimento, no periodo acima citado, de varios tépicos estudados até hoje em psicologia social (por ex.: propaganda, relagdes intergrupais, preconceito, mudanga de atitu- de, conflito e resolugdo de conflito, barganha, negociagdo, etc.). Tam-" bém o ampio setor de medida de opiniao publica, tao em voga em nos- sos dias, teve seus precursores e principais construtores do cabedal de conhecimento disponivel, nas trés décadas que precederam a cri- se de relevancia em psicologia social. Como se n&o bastasse tudo is- so, foi na fase pré-crise que se solidificou aquilo que passou a ser a marca registrada da psicologia social contemporanea, ou sela, o de- senvolvimento de teorias especificas e a geracdo de hipdteses delas derivadas para entender os fenémenos interpessoais. Neste particutar, assoma de maneira nitida a contribuigdo notavel de Leon Festinger, através de suas teorias da comunicag4o social informal, dos proces- sos de comparagao social e, finalmente, da teoria da dissonancia cog- nitiva, todas elas geradoras de intensa atividade experimental e todas elas vindo a lume na década de 50. Fol ainda nesta década, que o clas- sico livro de Fritz Heider — The Psychology of Interpersonal Relations — foi publicado. Poucos anos depois se iniciava o intenso trabalho tedrico e experimental sobre atribuigéo de causalidade, tema que do- mina a psicologia social nas Ultimas duas décadas de forma absoluta- mente incontestavel e desencadeou o que se poderia chamar de “revo- lugdo cognitiva” em psicologia social. E tal o predominio do enfoque ng cognitive na psicologia social contemporanea, que Markus & Zajonc (1985) afirmam no ter ele, praticamente, competidores na psicologia social de hoje em dia. Além do estabelecimento dos fundamentos que norteiam a psicologia social contemporanea, 0 pericdo pré-crise foi ain- Ga fértil em descobertas importantes acerca de uma grande varieda- de de fendmenos psicossociais, tais como: os estudos sobrecomunica- gao e persuasdo do Grupo de Yale, na década de 50; 0 intenso trabalho relativo a dindmica de grupo desenvolvido por Lewin e seus alunos no renomado Research Center for Group Dynamicsdo MIT, seguido por Cartwright, French, Zander e varios outros na Universidade de Mi- chigan; o importante trabalho de Salomon Aschsobre influéncia social; as relevantes contribuigdes de Morton Deutsch no campo da coopera- G30 & competigao e sobre a psicologia social do conflito; os estudos sobre percepgdo social de Bruner, Goodman, McGuinnes e Tagiuri e, principlamente, de Heider; asvdrias teorias de consisténcia cognitiva {equilibrio, simetria, congruéncia, dissonancia, eqiidade) tambem flo- resceram no perlodo anterior a crise de relevancia em psicologia so- cial, cujos primeiros sinais se manifestam em fins da década de 60. Os exemplos acima citados se referem a contribuigées substantivas ao significativo cabedal de conhecimentos da psicologia social que fo- ram desenvolvidos antes da’crise. A isso se pode acrescentar ainda os grandes avangos metodolégicos também anteriores a ela. Além do desenvolvimento do método experimental ja aludido, deve-se a Theodo- ra M. Newcomb o desenvolvimento de engenhosos estudos de campo (Newcomb, 1943; 1961); a Moreno, a proposi¢ao do métodos oclométri- co; a Bales, 0 método de observagao de grupo; a Triandis, os progres- 808 metodoldégicos nos estudos. transculturais. Os psicélogos sociais trabalhavam tranqiila e aceleradamenteneste periodo, na ansia de co- nhecer melhor a dinamica dos processos psicossociais e das relagées interpessoais e faziam acentuados progressos, quando a extravagan- cia da guerra do Vietn4, as continuas ameagas de um holocausto nu- clear, os protestos estudantis na Sorbonne e em Berkeley em 1968 e as sucessivas manifestagdes das minorias em busca de seus direitos, fizeram com que um grande numero deles optassem por uma pausa para reflexdo-e comegassem a por em divida a corregao do paradig- ma até entdo por eles seguido em sua atividade cientifica. Era o inicio da famosa “crise de relevancia".em psicologia social. A Crise de Retevancia em Psicologia Social £m varias ocasides eu tive oportunidade de externalizar publicamen- te minha visdo da crise de relevancia em psicologia social (por ex.: Ro- drigues, 1976, 1981; 1986). Em meu livro entitulado Aplicagdes da Psico- fogia Social posicionei-me a respeito do assunto e incorporei esta po- sigao a eqigae revista e atualizada de outro livro meu ~~ Psicologia So- cial — que veio alume em 1986. Reproduzo aqui essa posigdo, de vez que meu pensamento sobre o assunto nado sofreu modificagées. Eis o que eu disse entdo e que subscrevo agora: Leonard Berkowitz (1975), depois de referir-se a varios topicos que atraem a atencdo dos psicdlo- gos sociais, faz a seguinte observagdo: “Minha lista de interesse dos psicdélogos sociais pode sugerir que eles estio amplamente preocupa- dos com problemas sociais contemporaneos. Entretanto, na realida- de, a situagdo ndo é esta. Embora um némero crescente de psicdiogos sociais esteja profissionaimente envolvido com problemas tais como desordens urbanas, pobreza, preconceito racial e violéncia criminal, a ateng&o principal da disciplina tem sido a formulagao e a testagem de proposigées tedricas que explicam as reagdes da pessoa a certos estimuios sociais sob certas condigées”. (p.9). A citagdo que acaba de ser feita confirma o que foi dito acima acer- ca do paradigma dominante da psicologia social. Ela serve para intro- duzir 0 assunto de que estamos tratando nesta segao, de vez que acri- se de relevancia foi deflagrada pela convicgdo de que os psicédlogos sociais estavam se dedicando a tarefas triviais e atienadas da realida- de social, ao invés de dedicarem-se 4 solugdo dos problemas sociais que nos preocupam. Dependendo do extremismo e da exaltagao de ca- da critico, os que atacaram o status quo variavam desde uma mera pre- ocupagdo com a necessidade de tornarem-se os conhecimentos da psicologia social mais orientados para as necessidades sociais (no sentido de pesquisa-agdo de que nos falava Lewin), até um virulento e destrutivo libelo contra toda atividade desenvolvida pelos psicétogos sociais até entao, A crise se iniciou através de um clamor para maior relevancia das atividades desenvolvidas pelos psicGlogos sociais e, no seu desenrolar, chegou 4 atingir o paradigma vigente, como vere-' mos a seguir. Berkowitz, numa comunicagao pessoal a Brewster Smith (1972), diz estar a psicologia social num “estado de crise”, no sentido em que Kuhn usou este termo em seu livro The Structure of Scientific Revolu- tions. Parecemos um tanto perdidos no que concerne a problemas im- portantes a serem investigados e em relagdo a modelgs a serem em- pregados em nossa pesquisa 6 em nossa teoria (Berkowitz, citado em Brewster Smith, 1972, p.86). Harré e Secord (1972) também criticam o estado da disciplina no momento da crise de relevancia, dizendo: “A necessidade de um tratamento teérico global da psicologia social e de uma reformulacgdo de sua metodologia é, em nossa opinido, premen- te e nos parece evidente face a insatistagao com o estado da psicolo- gia social mesmo no interior das cidadelas da profiss&o” (p.1). Comen- 121 tando o clima das reunides de psicdlogos sociais, Steiner (1974) focali- za o ambiente de insatisfagao e o mea culpa nelas dominante. Salien- ta ainda que este desespero tem levado a “violentas criticas dirigidas a pesquisa de laboratdrio, 4s qualidades éticas e metodoldégicas de nossas estratégias de investigagdo e até a sugestées de que abando- nemos nossa tradicdo cientifica em favor da participagao em movimen- tos sociais” (p. 106). Brewster Smith (1976), apés comentar a crise da psicologia social iniclada na década de 60, diz que o “setor esta ain- da em crise, sem que haja novas diregdes claramente aparentes, embo- ra haja maior énfase na observacdo, nos experimentos em ambientes naturais da vida real e em aplicagées” (p. 611). Poder-se-ia apresentar a posigao de muitos outros psicélogos so- ciais no mesmo sentido, ou seja, apontando o estado de crise da disci- plina naquela época. Por ser muito representativa da corrente de pen- samento que conduziu a crise de relevancia em psicologia social, a re- feréncia a posig&o de Zimbardo (1975) se impée. Diz ele que seu treina- mento enquanto estudante na Universidade de Yale, assim como seu grupo de referéncia entre seus colegas psicélogos sociais, foram am- bos conducentes a formagéo de uma mentalidade de cientista rigoro- $0, dedicado a pesquisa basica.Foram necessarias”, diz ele, “as atro- cidades da guerra do Vietna, para me fazer novamente consciente de que eu me havia tornado um psicdlogo, nado para acrescentar ao cabe- dal do conhecimento, mas para tentar, de maneira modesta, melhorar a qualidade de vida humana”. (p. 60). Depreende-se do exposto que, por volta de meados da década de 70, apoderou-se de grande parte dos psicélogos sociais um forte senti- mento de cuipa, 0 que os levou a repudiar a condigdo de ciéncia basi- ca prevalente na psicologia social desde que ela se firmou como um setor aut6énomo em psicologia. A magnitude, a complexidade e a gravi- dade dos problemas sociais de nossa época fizeram com que surgis- se este movimento em diregdo ao abandono do paradigma classico e 4 busca de uma outra orientagado em psicologia social que passaria, assim, de ciéncia basica que é, 4 constituigéo de um movimento articu- lado de ago social. Gerardo Marin (1980), psicdlogo social colombia- no, afirma que “esta mudanga do psicdlogo social que, através dos ul- timos anos, se converteu de um cientista em um profissional 6, sem duvida, um dos eventos mais importantes da histéria da psicologia so- cial” (p.172). Em minha opiniao, a crise de relevancia em psicologia social foi ar- tificial e desnecessaria. Ela decorreu da ignorancia da distingéo entre ciéncia e tecnologia. Penso que causaria espanto 4 maioria das pesso- as, se houvesse lima crise de relevancia na fisiologia, porque os fisidlo- 122 gos nao curam doentes; uma na fisica porque os fisicos nao constréem pontes, represas e casas; outra na quimica, porque os quimicos nado evitam a poluigdéo da natureza; e assim por diante. © fato de a crise ter eclodido nos Estados Unidos e logo acompanhada pela Europa Ocidenta! é muito sintomatico. Como bem disse Jacobo Varela, em co- municagdo pessoal ao autor, os economistas dividem o mundo em na- ¢des desenvolvidas e sub-desenvolvidas. Varela acrescenta uma tercei- ra categoria; a das super-desenvolvidas, e as define como aquelas que possuem imensos recursos para conduzir pesquisas magnificas, e que podem dar-se ao luxo de nao aplicar seus resultados na solugdo de seus miiltiplos problemas sociais... Foi exatamente isto que originou a crise de relevancia em psicologia social. Para que se possa empreen- © der uma ac¢do social destinada a resolugao dos problemas sociais, ndo € preciso modificar o paradigma dominante na psicologia social, nem transforma-la de uma ciéncia em um movimento de agdo social, neces- sariamente ideolégico; basta, simplesmente, que se utHizemos ensina- mentos basicos que ela nos oferece e, através da aglutinagdo destes achados proporcianada por uma tecnologia social eficaz, sejam eles empregados na resolugdo de problemas sociais. E o que o médico faz no tratamento dos doentes amparado pelas descobertas dos bidlogos e dos fisidlogos; é exatamente isto que o engenheiro faz na constru- go de pontes, avides, edificios e maquinas, amparados pelas desco- bertas dos fisicos, dos quimicos e dos gedlogos; é exatamente isto que o tecndlogo social deve fazer, amparado pelas descobertas da psi- cologia social e das demais ciéncias sociais. Nao ha, pois, razdo pa- raextinguir a pesquisa fundamental; muito pelo contrario, ela deve pras- seguir a fim deque possa propiciar, ao tecndlago social, o conhecimen- to necessario a aplicagdo da solugdo ao caso concreto. A crise derele- vancia que, felizmente, deixou de ocupar os psicdlogos sociais nesta década, teve 0 efeito benéfico de exigir certas definigdes, certos escla- recimentos e certas reformulagGes que vieram a favorecer a psicologia social. Teve, porém, o efeito maléfico de induzir muitos a confundirem ciéncia com tecnologia, o que, em minha opinido, nao beneficia a dis- ciplina, nem tampouco a intervencdo na realidade social a fim de ame- nizaros problemas sociais. Passada a crise, nao se notam, nas principais revistas especializa- das em psicologia social, qualquer mudanga significativa no paradig- ma vigente antes de seu surgimento (ver Jablonski, 1985). Na América Latina, todavia, a repercussdo da crise fai bastante intensa e teve efei- tos bastante claros, como veremos mais adiante ao focalizar o esta- do da psicologia social nesta regiao. A Psicologia Social apdés a Crise de Relevancia Estudo empreendido por Jablonski (1985), comparando o tipo de pu- blicagées nas principais revistas especializadas em psicologia social, mostra que, pelo menos através deste indicador, nao houve mudanga significativa na metodologia utlizada, e continua dominando o mode- lo anterior, segundo o qual mini-teorias destinadas a entender um fend- meno psicossociail éspecifico inspiramas pesquisas na area. E certo que a crise sensibilizou os psicélogos sociais para a necessidade de conduzir mais estudos em ambientes naturais e, também, a procurar mostrar a relevancia de suas investigagdes, apontando sempre para as possiveis aplicagdes do conhecimento veiculado através de suas pesquisas, Também é verdade que, apos a crise, maior énfase foi da- da a aplicagées da psicologia social, aumentando consideravelmente o numero de publicagdes importantes sobre o assunto, bem como sur- gindo programas especificos, a nivel de pés-graduagdo, destinados a formar psicélogos sociais aplicados. Exemplos de tais programacgao encontrados na Claremont Graduate School, na California, na Universi- dad Central de Venezuela, em Caracas, e na Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro. Nota-se também o aparecimento de programas de pds-graduagao em aplicagdes da psicologia social, principalmente ao direito, a satide, a politica, A questao da protegdo ambiental. Creditem- se aos debates provocados pela crise, muitas destas novas énfases. encontradas na psicologia social contemporanea. No que concerne ao conteudo das atividades de pesquisa, é notério 0 predominio dos principios ¢ teorias relativos ao fenémeno de atribui- ¢&o de causalidade. igualmente notoria, como dissemos anteriormen- te ao citar Markus e Zajonc-{1985}, 6 adominancia do enfoque cogniti- vo de processamento da informagdo recebida no relacionamento inter- Pessoal. Prototipos, esquemas sociais, esquemas pessoais, heuristi- ca, armazenamento e recuperagdo de informagdo sao termos que fo- ram incorporados ao jargao da psicologia social de forma avassalado- ra na ultima década. Todos eles decorrem da domindncia do enfoque cognitivo em psicologia social hoje. Um claro exempio da influéncia benéfica dacrise de relevancia pode ser visto na popularidade adquiri- da por um tépico que, embora surgido anteriormente, & otise, sé nos ditimos 15 anos passou a ocupar lugar de destaque em psicologia so- cial. Refiro-me aos estudos sobre justic¢a distributiva, assunto que me- receu um numero inteiro do Journal of Social Issues em 1975, ou seja, em plena crise de relevancia. Em outras palavras, embora ainda se ve- rifiquem trabathos eminentemente especulativos, nao ha de se negar que a tendéncia dominante no periodo apdés a crise é de estudarem- se tépicos cuja aplicabilidade seja mais evidente, embora se continue 124 tratando estes assuntos de forma cientifica e predominando, em seu estudo, a metodologia experimental do periodo anterior a crise. Esta situagdo levou muitos psicélogos sociais a pensarem que estado fazen- do psicologia social aplicada, simplesmente pelo fato de estarem lidan- do, teoricamente, com um assunto de relevancla social clara. Trata-se de grave equivoco, de vez que néo é a natureza do assunto, mas sim a forma pela qual ele é tratado que caracteriza a atividade do psicdlo- go como tedrica ou aplicada. O estudo das formas de influéncia so- cial, por exemplo, constitui atividade clentifica basica; ja a aplicagdo desses conhecimentos num hospital para induzir médicos e enfermel- ras a observarem os habitos de higiene capazes de diminuir o risco _ de infecgdo hospitalar (Raven, 1986), 6 a atividade concreta de interven- cdo na realidade para modificar um determinado estado de coisas. Fenémeno digno de nota na psicologia social dos ultimos trinta anos 6 o notavel desenvolvimento da psicologia social na Europa. Co- mo se disse no inicio, por razdes de ordem varia, a psicologia social constituiu, durante muito tempo, um fendmeno tipicamente norte-ame- ricano. A partir dos anos 60, todavia, nota-se um significative aumen- to do numero e da importancia das contribuigdes de autores europeus. Indicadores inequivocos desse avango podem ser vistos ndo apenas na qualidade das publicagées de psicdélogos sociais como Mikula, Nut- tin Jr., Moscovici, Tajfel, Schwinger, Jaspars, Himmeiveit, Flament, Rij- man e muitos outros, mas também na criagdo, em 1964, da Associagao Européia de Psicologia Social e, ainda, no langamento, alguns anos . depois, da revista European Journal of Social Psychology. Embora com caracteristicas préprias, principalmente no que diz respeito a uma maior consideragéo de problemas macro-socials, a psicologia social européia contemporénea em muito se assemelha ao que foi aqui des- crito em relagdo a psicologia social norte-americana. Substanciam es- ta afirmagao os artigos e capitulos de livras de autoria de psicélogos sociais europeus publicados nas revistas e livros de malor impacto no cenadrio mundial. Em suma, a psicologia social contemporanea nos paises do primei- ro mundo se caracteriza, principalmente, pelos seguinteg aspectos: (a) preservacdo e aprimoramento do método experimental, queconti- nua sendo 0 instrumento preferencial (se bem que nao exclusivo) de pesquisa na area; (b) preocupagdo com aplicagdes da psicologia social e com o estudo tedrico de temas de relevancia clara e indicagao de potencial de aplica- des do tema investigado; {c) florescimento marcante da psicologia social européia; (c) dominancia absoluta do enfoque cognitive no estudo dos fenéme- 125 nos psicossociais. . Haver4 semelhanga entre as caracteristicas principals da psicologia social no primeiro mundo e as encontradas na América Latina em ge- ral.e no Brasil em particular? E 0 que veremos a continuagdo. A Psicologia Social na América Latina A psicologia social na América Latina desenvolveu-se multo nas Ul- timas duas décadas. Como bem assinala Maritza Montero (no prelo), a psicologia social entre nds era, em seus primdrdios, de natureza pu- ramente académica e sua fungao iniciat era de mera complementagao curricular na formagéo de especialistas em outros setores da psicolo- gia ou da sociologia. Antes de apontarmos 0 que, em nossa opiniao, caracteriza a psicologia social latino-americana contemporanea, con- vém que se faga um breve bosquejo histérico da disciplina em nossa regio geografica. N&o foi grande a contribuigao dos psicéloges so- clais latino-americanos no periodo anterior acs anos 60. No Brasil, des- taca-se o trabalho de Otto Klineberg no Instituto de Psicologia da Uni- versidade de S&o Paulo em fins da década de 40, criando naquela uni- versidade um Interessepor psicologia social que seria mais tarde refle- tido nos trabalhos de Anita Marcondes Ferraz, Arrigo L. Angelini, Caro- lina M. Bori e Dante Moreira Leite. No Rio de Janeiro, Eliezer Schnel- der era a principal figura a lutar pelo avango da psicologia social nes: te periodo, fazendo-o de forma incansével e quase sem ajuda, Nos de- mals estados brasileiros, Plerre Weiel em Minas Gerais, Juracy Mar- ques no Rio Grande do Sul e sociélogos, como Gylberto Frere em Per- nambuco, contribuiam para fazer com que 0 interesse pela psicologia social se desenvolvesse entre nds. Predominava, todavia, o interesse pelos testes psicoldgicos, pela psicologia cl{nica e pela psicologia es- colar. Nos demais paises da América Latina parece-me que, naquela época, também era pequeno o numero de psicdioges que faziam da psicologia social seu campo principal de atuagdo. No México, Rogéllo Diaz-Guerrero j4 comegava a destacar-se e, na Venezuela, José Miguel Salazar plantava as primeiras sementes da atual pujante psicologia so- cial venezuelana. Durante este tempo, uma pléiade de psicdlogos lati- no-americanos treinavam-se no exterior em psicologia social {por ex.: © chileno Ricardo Zutliga em Harvard; o mexicano HéctorCappello na Universidade de Texas; a argentina Catalina Weinerman na Columbia; os venezuelanos José Miguel Salazar e Maritza Montero se aperfeico- avam na Inglaterra). Sentia-se pois que, am breve, o setor receberla o Impulso de que carecia para tornar-se, juntamente com outras areas da psicologia, relevante e atraante aos que se dedicavam ao estudo da psicologia em nossa regido. Emseguida mostraremos os frutes que vieram a ser colhidos. 126 Em 1968, Leon Festinger, entao Presidente do Committee on Trans- national Social Psychology do Social Science Research Council, em- preendeu uma viagem a América Latina, com o objetivo de aglutinar os psicdlogos sociais existentes e de, se possivel, criar uma associa- gao latino-americana de psicologia social. O Comité havia sido bem sucedido em Iniciativa semelhante na Europa, alguns anos antes, ense- Jando a criagdo da European Association of Experimental Social Psycho- logy em meados da década de 60. Apéds a viagem por varios palses la- tino-americanos, Festinger logrou porém contato diversos psicdlogos soclais que néo se conheciam, Estava preparado o terreno para a cria- g&o, em Montevidéo, em 1969, durante a realizagado do XIt Congresso da Sociedade Interamericana de Psicologia, do Comité Latino-America- no de Psicologia Social — COLAPSO —, sob a presidéncia do entéo Oiretor da FLACSO, Luis |. Ramallo. Associaram-se ao recém-criado Comité, varios psicélogos socials latino-americanos, os quais se reuni- ram por trés semanas em Valparaiso, Chile, em janeiro de 1970. Turbu- lénclas pollticas e outras dificuldades (falta de recursos, largas distan- clas, comunicagao dificil, etc.) ensejaram o desaparecimento do Comi- té, cuja sigla, diga-se de passagem, ndo constitula um bom pressagio... © desaparecimento do GOLAPSO causou grande decepgao entre os psicdlogos socials latino-americanos que comegavam a interagir, a conhecerem-se melhor ¢ a acreditar na possibitidade de um trabalho efetivo am nossa regiéo. Em 1973 Héctor Cappello, com o apoio decisi- vo da Editorial Trillas S/A. do México, logrou promover em Bogota, uma raunido a qual estiveram presentes quase todos os psicdélogos socials que se haviam empenhado na criagao do COLAPSO e outros mals que - a eles se juntaram. Foi crlada entéo a Assoclagaéo Latino-Americana de Psicologia Social -- ALAPSO —, que permaneceaté hoje. Tendo co- mo primeiro presidente o autor desta trabalho, a ALAPSO estruturou- se com Estatutos e Regimento registrados oflcialmente em cartérlo e segue atuando, agora sob a presidénciado psicélogo social mexicano Héctor Cappello. Quatro seminérios intemacionais foram promovidos pela ALAPSO nestes 16 anos de existéncia; além disso, ela se tern fei- to representar em quase todos os congresses da Sociedade Interame- ricana de Psicologia, publicou boletins trimestrais até 1979 @, a partir dal, passou a editar a Revista Latino-Americana de Psitologia Social, JA tendo vindo a lume quatro numeros, Ademais, a ALAPSO apoiou a publicagdo de varios livros de psicélogos socials latino-americanos e facilltou o enquadramento profisslonal de refuglados politicos ligados 4 psicologia social. A existéncia da ALAPSO, n&o obstante aos miulti- plos problemas que tem encontrado em sua trajetéria, desampenhou um papel agiutinador de psicélogos socials na regio que se mostrou de excepclonal importancla. N4o sera exagero afirmar que, nao fora a 127 atuagéo da ALAPSO, a psicologia social na América Latina nao teria atingido o desenvolvimento evidenciado hoje. De uma ALAPSO sdlida, bem estruturada e dinamica depende, em grande parte, a continuagao do progresso da psicologia social em nossa regiao. Vejamos, a seguir, apds esta breve resenha histérica, 0 estado atuat da psicologia social na América Latina. Maritza Montero escreveu re- centemente um artigo entitulado La Psicologia Social en América Lati- na, 0 qual sera publicado no préximo némero da Revista de Psicologia Social, editada por Amalio Blanco, na Espanha. Trata-se de uma leitu- ra obrigatéria para todos os que se interessam pelo estado da arte em nossa regido. Suscintamente, Maritza Montero salienta os seguin- tes aspectos em seu excelente artigo: (a) a origem eminentemente aca- démica da psicologia social latino-americana; (b) sua total dependén- cia, em seus primérdios, do conhecimento gerado em paises do pri- meiro mundo; (c) a tomada de consciéncia, na década de 70, da neces- sidade de levar em conta aspectos tipicos da cultura latino-america- na nos estudos.de psicologia social; (d) o significative aumento das contribuigées em forma de livro e de artigos, na década de 70, por par- te da psicdlogos socidis latino-americanos; (e) a importancia da ALAP- SO e da AVEPSO no cendrio da psicologia social latino-americana,; (fo aparecimento de uma psicologia social com caracteristicas tipicas de problemas especificos da realidade latino-americana;, (h) a relevan- cia da busca de uma tecnologia social para a solugdo de problemas socials; (i) énfase em problemas ambientais e politicos e o acréscimo de uma componente ideoldgica e critica, de base predominantemente dialética. Eu, pessoalmente, concordo com todos os pontos acima arro- lados pela autora em sua analise da psicologia social na América Lati- na, Duas posigdes suas, todavia, ndo contam-com minha anuéncia. Diz a autora que “fazer psicologiasocial significa um compromisso e que esse compromisso leva diretamente a transformagao, para bem, da sociedade em que se vive” (Montero, no prelo). E continua: “Para onde vai a psicologia social na América Latina? Para sua consolida- go como ciéncia prépria no sentido que em que Fals Borda (1981) da ao termo prépria; em diregao 4 geragao de teorias e métodos préprios”. Ndo concordo com estes dois pontos porque, em minha opiniao, uma ciéncia engajada politicamente e um cientista preocupado prioritaria- mente com a transformagao da sociedade (obviamente na diregao dita- da por sua ideologia), a qual determinara o que 6 bom e o que é mau para a sociedade), nao me parece constituir 0 modelo ideai de ciéncia ou de cientista. Minha divergéncia com a posigdo de Montero reside na prioridade por ela dada ao compromisso do psicdlogo social com a transformagao da sociedade; para mim, o compromisso prioritario 128 do cientista 6 com o conhecimento da realidade, podendo e devendo decorrer dal, através das aplicagées desse conhecimento, eventuais transformagées guiadas pela ideologia do aplicador ou do tecndlogo social. O Unico engajamento admissivel em ciéncia 6, para mim, 0 compro- misso desinteressado, objetivo e persistente na busca da verdade aces- sivei ao arsenal metodolégico disponivel. Também discordo da énfase dada 4 geragao de teorias e métodos préprios. Ndo que eu seja contra a produgdo de teorias e métodos novos na América Latina; muito pe- lo contrarlo; ache que carecemos e muito de produgao original. Minha objecdo 6 a énfase dada a busca de idiossincrasias quando, a meu ver, a ciéncia deve procurar universals. A psicologia social, especificamen- te, deve procurar os universais do comportamento social os quais, por definigao, $40 transculturals e transistoricos (Rodrigues, 1988; Triandis, 1978). Ndo s6 a universalidade de comportamentos especificos deve ser buscada, como também a de redes nomoldgicas integrantes de te- orias sobre fendmenos psicossociais. Isto n&o elimina o reconhecimento da importancia da cultura por duas raz6es: (a) a descoberta de universais ndo exclui a possibitidade de eles assumirem, em interagdo com a cultura, caracteristicas espe cificas; (b) nao afirmo que todo conhecimento em psicologia social se- ja transcultural e transist6rico; defendo apenas a posig¢do de que a busca de universais é valida e constitui um objetivo central do clentls- ta. Estou plenamente de acordo comos psicélogos sociais latino-ame- tiganos que nao fiquem os exclusivamente dependentes do conheci- mento gerado no exterior; entretanto, acho que devemos buscar conhe- cimentos que possam, igualmente, ser utilizados em outras culturas. No que houver de especifico e tipico de nossa cultura, af sim, teremos que gerar conhecimento préprio; nao devemos, todavia, ficar limitades A gerag&o de conhecimentos préprios e de métodos utilizavels unica @ exclusivamente na América Latina: Em outra publicagao (Rodrigues, 1988), enumerel uma lista de oito Pontos que, em minha opinido, retratam a posigaéo de um bom contin- gante de psicélogos sociais latino-americanes em relagdo a psicologia social. Aiguns deles s40 partllnados peta quase totalidade dos psicdlo- gos sociais da atualidade, mas a matoria constitut uma forma tipica .de ver a psicologia social por estes psicdlegos latino-americanos. Sao os seguintes os pontos por mim ressaltados: (a) nao concordam com © predominio da experimentagdoe da quantificagdo que caracteriza a psicologia social clentifica; (b) nao concordam,.do ponto de vista epis- temolégico, com a consideragdo da psicologia’ social como cléncla; (c} nao concordam com a énfase dada‘ pela psicologla social clentifi- awe ca ao estudo das retagdes interpessoais, preferindo um enfoque que saliente mais o papel da sociedade, da histéria e da cultura; (d) defen- dem uma maior érifase nas aplicagées da psicologia social; (e) criticam a situagdo de dependéncia da psicologia social latino-americana das descobertas e das teorias oriundas dos pafses do primeiro mundo; {f) favorecem uma psicologia social ideoldgica, eivada profundamente de pressupostos filosdficos marxistas; (9) enfatizam a necessidade de uma psicologia social comunitdria, ou seja, de uma psicologia so- cial inserida na comunidade e que tenha por objetivo promover o de- senvolvimento de seus integrantes; (h) uns poucos defendem ainda a posigao segundo a qual a psicologia social deve resumir-se a uma agdo social destinada 4 mudanga dasesiruturas socials “ultrapassadas". Considerando a atividade dos psicélogos soclais latino-americanos nos Ultimos 15 anos, sou de opinido que a psicologia social mostra um grande desenvolvimento na regido, apesar das controvérsias revela- das nos pontos acima mencionados. A seguir serdo indicados os méri- tos e os deméritos da atividade desenvolvida em psicologia social na América Latina, obviamente a luz das percepgdes e das conviccdes de autor. Focalizarei cincotépicos e os prés e os contras que eu vejo na postura dos que trabalham em psicologia social em nossa regido em relag4o a esses mesmos tépicos, que 840 os seguintes: (a) a pes- quisa centrada num problema; (b} a psicologia social comunitaria; (c) a psicologia social cientifica; (d} a tecnologia social, e (e) a psicologia social politizada ou ideoldgica. (a) A pesquisa centrada num problema Uma das vantagens da pesquisa em psicologia social na América Latina é a de ser, muito freqdentemente, centrada num problema so- cial relevante. Dal ter sido a crise de relevancia tao bam recebida entre nés. Os grandes problemas sociais dos paises do terceiro mundo as- sim 0 estdo aexigir. A sensibilidade do psicélogo social latino-america- no a relevancia de sua atuagdo é marcante e isto 6 bom. Podera, entre- tanto, deixar de sé-lo se, nesta preocupagdo com a relevancia, for ne- gligenclada a exatidao das medidas, a exceléncia do planejamento da pesquisa e a isengdo na busca da verdade. Faz-se, migter, pois, que na bus¢a de solugées para problemas sociais especificos, o pesquisa- dor ndo esqueca a necessidade de revestir sua pesquisa do maior ri- gor metodolégico que o conhecimento contemporaneo permite. Sou de opiniao que; ndo raro, a obstinagdo com a relevancia leva a um des- cuido na exatiddo da coleta e da andlise das informages. Que se con- tinue a empreender pesquisas centradas em problemas relevantes, mas que ndo descuidemos do esmero necessdrio 4 exatiddo e a isen- g4o na condugdo destas mesmas pesquisas. 130 {b) A psicologia social comunitaria . A ja mencionada preocupagdo dos psicélogos sociais latino-ameri- canos com as condig¢des de vida de nosso povo e com a justiga, facili- tou 0 desenvolvimento, entre nés, da psicologia social comunitaria que, outra coisa ndo é, sendo a preocupagéo em levar 4 comunidade o8 beneficios que os conhecimentos adquiridos em psicologia social permitem. Fazé-lo dentro desta perspectiva é, a meu ver, altamente elo- giavel. O dificil neste empreendimento, todavia, 6 ter-se a humlldade suficiente para reconhecer que nossos pontos de vista podem néo ser necessariamente os melhores. Em outras palavras @ mais especifica- mente, toda atividade pratica ndo é neutra e, conseqdentemente, 6 guia- da pela posigdo ideolégicado condutor da intervengdo. Vé-se, com fre- qdéncia, em alguns praticantes da psicologia social comunitaria na América Latina, o desejo claro e incontroverso de impér a comunida- de em que atuam padrées de conduta ditados por uma determinada ideologia politica, religiosa ou politico partidaria. Sera isto defensavel? Se, como foi dito antes, toda atividade aplicada é ditada pelos valores do aplicador, ndo seria aconselhavel e mesmo ético que os aplicado- res deixassem claro aos destinatdrios de suas intervengdes, quals os valores sobre os quais repousa a intervencdo que pretendem fazer? Fanatismos pollticos e religiosos podem comprometer a reputagdo e a credibilidade de um setor de atividade capaz de prestar relevantes servicos. (c) A psicologia social cientifica Os que se dedicam a psicologia social “basica” se esmeram, via de regra, por revestir suas investigagdes dos maiores cuidados meto- dolégicos. Rigor metodolégice e exatidado de medidas, entretanto, re- querem estudo arduo e aperfeigoamento constante. Nota-se, na Améri- ca Latina, um certo desinteresse por parte de alunos e, 0 que é mais grave, até de profissionais, pelo aperfeigoamento em planejamento de pesquisa e habilidades psicométricas. Dentro das cléncias sociais, s40.0s psicdlogos sociais os que, em geral, melhor treinamento rece- bem em metodotogia clentifica e técnicas variadas de andlise de da- dos: Parece-me que maior énfase deve ser dada, na formagéo de futu- - ros psicdlogos socials latino-americanos, aos aspectos metodolégicos e quantitativos, a fim de meinor habilita-los a realizagao de pesquisas cientificas capazes de contribuir significativamente para o conheci- mento das caracteristicas psicossociais de nossa gente. Causa espan- to encontrarem-se, por vezes, “psicdlogossocials" dizendo que a ativi- dade cientifica classica do teste de hipéteses darivadas de teorias re- presenta uma psicologia social ultrapassada, allenada, alienigena, su- pefada e inadequada a nossa realidade. Esta posigdo, sobre ser grotes- 131 ca, contradiz a réalidade refletida nas mais renomadas revistas de psi- cologia social contemporanea, de qualquer parte do mundo. E um des- servigo que se faz a psicologia social na América Latina defender es- sa tese equivocada. Como dissemos anteriormente, citando estudo de Jablonski (1985), passada a crise de relevancia, os psicdlogos so- ciais continuam, felizmente, a fazer ciéncia... (d) A tecnologia social Gragas ao génio criativo de Jacobo Varela, os anos 70 constituiram 0 marco histérico do advento, disseminagao e fortalecimento da cha- mada tecnologia social. Em 1972, um engenheiro uruguaio que, em de- terminada fase de sua vida, modificou o foco de seu interesse profis- sional da engenharia para as relagdes interpessoais, brindou a comu- nidade dos cientistas sociais com a publicagéo, pela editora Acade- mic Press, do livroPsycho/logical Solutions to Social Problems (Varela, 1971). Este livro leva um Sub-titulo: An introduction to Social Techno- logy ¢ contém o pensamento do autor sobre a necessidade de utiliza- tem-se os conhecimentos cientificas acumulados pelas ciéncias so- ciais através de uma tecnologia prépria — a tecnologia social. Vare- la(1975) define assim a tecnologia social: “é uma atividade que conduz ao planejamento de solugées de problemas sociais através da combi- ger Na achados derivados de diferentes areas das cléncias sociais” p. 160). A posig&o de Varela é polémica, porém representa, em minha opi- nido, a solugdo para a crise de relevancia da psicologia social, como afirmei em minha conferéncia de 1974 no Congresso da Sociedade Inte- ramericana de Psicologia em Bogota. De fato, com o advento da tecno- logia social, tornaram-se triviais e sem sentidoas criticas de “irrelevan- cia” das descobertas cientificas cuja aplicabilidade imediata nao po- de ser facilmente detectada. Nenhuma descoberta cientifica é irrele- vante de vez que, no futuro, ela podera a ser utilizada pelo tecndlogo social na solugdo de um problema relevante. Assim tem sido nas cién- cias da natureza e nao ha razdo para que assim nao seja nas ciéncias sociais e humanas. Como assinalam Reyes e Varela (1960), ‘‘frequiente- mente achados cientificos foram feitos por alguém que ndo tinha a menor idéia deque eles iriam ser utilizados para algo de dtl! ou de uma determinada maneira”’ (p49), Varela ministrou varios cursos sobre tecnologia social em universi- dades canadenses, americanas e latino-americanas, Atualmente, na medida de meu conhecimento, uma universidade no Brasil — a Univer- sidade Gama Filho — e uma na Venezuela — A Universidad Central de Venezuela — oferecem treinamento em tecnologia social a nivel de pds-graduagdo. Na Venezuela a tecnologia social teve bastante de- ~132 mento, principalmente devido aos trabaihos de Euclides Sanchez e Es- ther Wiesenfeld. Estes professores desenvolveram a tecnologia social, realizaram e realizam varias intervengdes tecnolégicas e formaram uma pleiade de estudantes interessados em resoiver problemas sociais. Também a parte aplicada do trabalho desenvolvido no Centro de Inves- tigaciones Psicoldgicas de Mérida, Venezuela, por Romero Garcia, Sa- lom de Bustamante e toda sua competente equipe, pode ser caracteri- zado como um trabalho de tecnologia social! destinado a desenvolver a motivag4o a realizagao e ao aumento da internalidade. Seria deseja- vel que outros paises desenvolvessem também o estudo e a pratica da tecnologia social que muito tem a contribuir para a solugdo de pro- blemas sociais. {e) A psicologia social politizada ou ideoldgica Provavelmente devido A grande penetragdo da filosofia marxista na América Latina, nota-se um crescente interesse por uma psicologia so- cial engajada e destinada 4 mudanga das estruturas sociais vigente. N4o se trata de uma aplicagdo de conhecimentos de psicologia social a politica, o que se faz em todo o mundo e também 6 feito competente- mente em nossa regiéo, mas da utilizag&o de conhecimentos de psico- logia social a fim de promover mudangas estruturais na sociedade. Es- ta posigdo é defendida por um numero razoavel de psicélogos socials latino-americanos que, via de regra, privilegiam o chamado método dia- lético e a pesquisa-agdo. O método dialético, como j4 asseverou Bun- ge (1980), nado é propriamente um método de investigacao cientifica. Trata-se de uma forma de encarar a reatidade, forma esta determina- da pelos pressupostos filoséficos hegellanos. A pesquisa-agado defen- dida pelos que a praticam atualmente na América Latina, pouco ou na- da tem a ver com a pesquisa-a¢do preconizada por Lewin, ha cerca de cinqGenta anos atrds. A pesquisa.agdo de hoje se resume a uma tentativa de conhecimento da realidade através de um trabalho conjun- to com os integrantes da realidade social que s4o, a0 mesmo tempo, * sujeitos agentes de mudancas. N&o se pode negar que haja, nesses esforgos, aspectos positives. Entretanto, no que conceme a psicologia como ciéncia, a mescla de atividade cientifica com atividade politica é, a meuver, preocupante. A atividade politica 6, por definigao, uma atividade apaixonada, ideo!6- gica e proselitista; a atividade cientifica deve ser neutra (no que tan- ge a Sua metodologia e a replicabilidade de seus resultados), isenta, descompromissada com ideologias e engajada apenas na busca da verdade. O contraste entre estas duas posigées gera, inevitavelmente, sérios conflitose dificulta um trabalho mais produtivo entre os defenso- res das duas correntes. A postura do autor ¢ a de que a psicologia social deve ser encara- da como ciéncia-e, através de pesquisas cuidadosas sobre a nossa re- alidade psicossocial, fornecer ao tecndlogo social as !uzes necessa- rias a uma praxis eficaz (eficacia essa definida pelo praticante). E pre- judicial ao desenvolvimento da psicologia social, entretanto, confundi- la com uma atividade politica, proselitista, ideoldgica ou religiosa. Conctusdo Procuramos neste trabalho apresentar uma visdo panoramica da psicologia social, salientando as tendéncias gerais que nos pareceram mais significativas em sua trajetéria de quase um século. Paradoxaimente, a psicologia social latino-americana 6, via de regra, menos conhecida na prépria América Latina que as contribuigdes nor- te-americanas e europdias. Fendmeno semethante ocorria na Europa, antes da criagdo da Associacdo Européia de Psicologia Social Experi- mental. LA também era comum encontrarem-se psicdlogos sociais mantendo assiduo contato com seus colegas americanos e pouco con- tato com seus colegas europeus. Devido a esse pouco conhecimento da psicologia social !atino-americana, dedicamos mais espago a psico- logia socia! na América Latina nesta visdo restrospectiva do “estado da arte”. Apesar das limitagées de tempo impostas pela natureza des- sa Ccomunicagado, acreditamos que essa breve retrospectiva dos qua- se 100 anos da psicologia social mostrou que este setor é pujante, amadurecido, e que j4 acumnulou uma boa quantidade de conhecimen- tos importantes e que esta em condigées de fornecer aos.interessados, ensinamentos relevantes no campo das relagées interpessoais. Co- mo toda ciéncia em seus primdrdios, a psicologia social ainda se deba- te com problemas de identificagdo e de estabelecimento de objetos @ métodos reconhecidos universalmente como adequados e validos. Oai as polémicas, as crises, as divergéncias de pontos de vista que, comose viu, S40 freqdentes entre os que se dedicam a este setor do saber psicolégico. Ao invés de significar fraqueza e indefinigdo, toda- via, isto mostra 0 vigor da disciplina e o empenho, dos que a ela se de- dicam, em desenvolvé-la e aprimord-la. Embora possa parecer tenden- closo de minha parte, concluo esta retrospectiva dizendo que a psicolo- gia social contribuiu, efetivamente, para um melhor conhecimento das telagdes interpessoais @ que Seus achados deveriam ser utilizados por todos aqueles que, em sua atividade profissional, lidam com proble- mas de interagéo humana. Referéncias Berkowitz, L. (1975). A Survey of Social Psychology. Hinsdale: The Dryden Press. Brewster Smith, M. (1972). ls social psychology ad- vancing? Journal of Experimental Social Psychology, 8, 86-96. Bunge, M. (1980). Epistemofogia. SAo Pauto: EDUSP. Harré, R. & Secord, P. (1972). The Explanation of Social Behavior. London: Blackwell. 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