Você está na página 1de 16
Ruinologias Sumario AT Apresentagao cae Tugurizando | ‘AS RU{NAS OU MEDITAGAO SOBRE AS REVOLUGOES DOS IMPERIOS ..... - Conde de Volney 1 | Ubi sunt? As ruinas do Oriente Médio nas cronicas dos viajantes espanhdis do século XIX... + Lily Litvak + 2| Do matadouro ao monumento: as muta¢6es das ruinas da cidade de Santo Domingo... + Médar Serrata 3 | Nas ruinas de Detroit . - José Antonio Gonzalez Alcantud - 37 Tugurizando Il A RUINA...... + Georg Simmel + 4| Leonilson: lugar do corpo, do nome... fiilia Studart « 5 | Zweig: a ruina, 0 arquivo e o fantasma.... - Maria Augusta Vilalba Nunes - da Ilha Brasil as ruinas 6| A psicose do maravilhos: de Francisco Brennand - Rodrigo Lopes de Barros Tugurizando Ill UMA ARTE DE FAZER RUINAS.. + Antonio José Ponte ~ 7 | Introdugao a fisiognomia de ruinas .. + Vladislav Tédorov- 8 | A fala que antecede a queda: a museificagdo de Havana por Antonio José Ponte Rafaela Scardino 9 | Os tugures e a meméria: uma construgao em ruinas.... Djulia Justen - Tugurizando IV UMA METAFORA DA ESPERANGA: AS RUENAS.. * Maria Zambrano + 10 | Ruinas do arcaico: o primitivo na poesia de Joao Cabral e Murilo Mendes... ‘Susana Scramim - 11 | Rastros rangentes: escavacées capronianas + Patricia Peterle 12 | A morte em Veneza: ruinologias de um mundo decadente .... + Helano Jader Cavalcante Ribeiro Tugurizando V ENTRE AS RU[NAS.... + Euclides da Cunha 13 | Buclides e a escritura em ruinas... Carlos Eduardo Schmidt Capela + 14 | Ruinas pobres, cidades mortas. + Denilson Lopes * 15 | A modernidade de uma linguagem em ruinas: contra-arquiteturas .... + Ana Luiza Andrade Tugurizando VI FRAGMENTOS SOBRE A PSICOLOGIA DO INSETO... » Jean-Henri Fabre - Sobre os autores CapfTuLo 2 Do matadouro ao monumento: as mutagées das ruinas da cidade de Santo Domingo’ Médar Serrata Durante séculos, as ruinas de Roma inspiraram poetas, histo- riadores, turistas e antiquarios. A fama, o poder e a gloria da cidade, segundo escreve Rose Macaulay (1953, p. 165), criou uma mistica sem paralelos: “Roma em ruinas é um simbolo de um mundo perdido [...] Era a era, pouco a pouco, a hist6ria cai com Roma; era a era, pouco a pouco, a histéria se levanta quando Roma se levanta - esse é 0 relato do homem histérico ocidental”. O interesse pelas ruinas como legado de um passado glorioso surge no século XIV, com o humanismo italiano. Fragmentadas, reduzidas a escombros, essas construgées falavam ao visitante de um poder formidavel, capaz de esmagar os inimigos. Ao pe- rambular por elas, Petrarca se admira “nao por aquilo que Roma tinha conquistado no mundo, senao porque tinha tardado tanto em domind- lo” (VRANICK, 1981, p. 64). A visdo das ruinas 0 incita a destacar 0 contraste entre a grandeza do passado e a miséria que via ao seu redor. E precisamente essa outra cidade, a Roma do século XIV, que seria descri- ta séculos mais tarde pelo historiador alemao Ferdinand Gregorovius, ao fazer referéncia As condigdes em que a haviam deixado uma série de terremotos e de guerras intestinas, além da indiferenga de seus governantes: Por toda parte, viam-se torres e castelos sombrios, basilicas e con- ventos meio destruidos, monumentos enormes cobertos de vege- tagdo; banhos, aquedutos, colunatas ¢ arcos triunfais avariados. '“Tradugao de Diego Cervelin. Traducao dos poemas por Carlos Eduardo Schmidt Capela. AUINOLOGIAS ENSWIOS SOBRE DESTROGOS 00 PRESENTE. [As estreitas ruas estavam repletas de lixo e as éguas do Tibre fluiam tristemente por entre os desperdicios, sob as ruinas das pomtes de pedta. (GREGOROVIUS, 2001, p. 115). Qualquer um que tenha lido as crdnicas dos viajantes europeus fe norte-americanos que visitaram Santo Domingo entre meados do século XIX e principios do XX concordard que a cidade descrita por Gregorovius muito se parece com aquela que esses forjadores de impérios encontraram ao chegar 4 espanhola. Um sentimento de indignagio semelhante a0 que se percebe na prosa de Gregorovius embaraga 0 proeminente cirurgido britinico Frederick Treves, a0 contemplar 0 estado de imundicia e abandono em que se achavam as construgées erigidas pelos espanhéis no Novo Mundo. Ruas, igrejas, ‘monastérios, antigas mans6es senhoriais; ndo havia um edificio que no estivesse exposto ao abandono e repleto de lixo ~ 0 que o vigjante interpreta como uma imperdodvel falta de reveréncia pelo passado. ‘Os magnificos edificios coloniais se encontravam destinados aos pro- pésitos mais baixos: Aqui ha uma graciosa construgio com € portdes de pedra delicadamente talhada, Podia ter sido um convento ou ‘uma universidade, Agora é uma loja de madeiras ea talha esté vilmente caiada. Um beco leva a um patio de pedras por onde, ‘nos velhos tempos, algum castelhano arrogante deve te passado;, ‘mas est cheio de lixo, suas arcadas de miltiplos pilaresestdo em rruinas,e suas paredes recobertas pelo verde das ervas daninhas, laustradas de nobrestrabalhos em ferro estdo se convertend ‘em ferrugem; portas enormes ~ onde podem ter batido os ios de Drake ~ caem dos gonzos; 0 “patio” refinado se transformou em um lugar para secar roupa, (TREVES, 1991, p.76). 0s fragmentos de Gregorovius ¢ Treves revelam a condicio das ruinas como objetos em processo de mudanca. Destinadas aos mais variados usos, diante do contato permanente com 0 lixo e do perigo cons- tante de serem recicladas a fim de satisfazerem as voliveis necessidades do presente, as ruinas se apresentam ao espectador estrangeiro como que suspensas, em um estado de indefinigdo suprema no qual elas mais se assemelham a dejetos do tempo quea “lugares da memaéria’* As mudangas softidas pelos edificios de Santo Domingo mostram que a relacio de contiguidade entre as ruinas e as lixeiras constitui uma parte essencial no sistema de criagio e transmissio da heranca cultural. Os mecanismos desse sistema se fazem particularmente sensiveis nos testemunhos dos viajantes estrangeiros, nos quais a capacidade que cada construgao antiga tem de despertar o prazer estético ou de evocar a experiéncia subjetiva do passado entra em conflito com a aparente indiferenga dos locais, que as apteciam apenas pela sua utilidade pritica. Somente quando as elites as separam do fluxo da vida cotidiana, as ruinas podem alcangar a categoria de monumentos. Alois Riegl eo papel do espectador na valorizagao das ruinas No ensaio sobre El culto moderno a los monumentos (1903), 0 historiador aleméo Alois Riegl (2008) questiona as razbes das mudangas que a ecepgio das ruinas experimentou no Ocidente, O texto, publicado como preficio a um projeto de lei destinado a preservacao da arquitetura monumental do Império Austro-Hiingaro, inscreve-se_no debate entre restauradores ¢ conservadores no qual participaram figuras tio proeminentes como francés Eugene Viollet-le-Duc eos britanicos John Ruskin e William Morris, entre outros (HEINSEN, s.d.). Rastreando as origens de ambas as correntes, Riegl classifica os monumentos em trés categorias: intencionais, histéricos e antigos. Um monumento inten- cional éaquele que se erige coma finalidade de comemorar um individuo ‘oa um acontecimento. Por sua vez, 0s monumentos histéricos no foram criados com o propésito de comemorar nada, mas de satisfazer alguma necessidade pritica. E uma geracio posterior que, ao percebé- los como representantes de um periodo da histéria, outorga a eles um valor rememorativo. Esse valor deriva da capacidade que 0 espectador eventualmente possui de restaurar em sua imaginagao a forma que teve em outros tempos. Por tiltimo, 0s monumentos antigos so aqueles Pierre Nora (1980, p. 11) denomina “lugares da meméri recursos de que e vale uma comunidade para preservaro con Diferentemente da memria "verdadela os “lugares da mem ‘monuments, aniversrio, et.) sio 0 produto de um esforgo evar a desaparigio deintva do passado. lies de memoir) 08 nento do pasado. ente a fim de 65 CAPITULO? BO MATADOUR Ao MONUMENTO 66 'STROQOS 00 PRESENTE UINOLOGIAS ENSAIDS SOBRE {que evocam no espectador a ideia geral da passagem do tempo. Assim como no caso dos monuments histéricos, aquele que os olha ¢ quem outorga a eles um valor rememorativo - com a diferenca de que ele: no dependem da informagao histérica que poderiam oferecer, senao os indicios visiveis de sua antiguidade, As ruinas, como Riegl destaca, pertencem a essa iltima categoria: EE impossivel que as ruinas de um castelo, por exemplo ~ cujos restos destruidos das paredes revelam apenas algo de sua forma, de sua técnica, da disposigio dos aposentos, ete. -, como que buscando satisfazer um interesse historico-artistico ou historico- cultural [..] - devam a0 seu valor histricoo interesse manifesto que, apesar de tudo, os homens modernos thes prestamos sem. (RIEGL, 2008, p. 29) ‘Ao destacar as mudangas na maneira pela qual os edificios foram valorizados na cultura ocidental, Riegl observa que os trés tipos de monumentos ~ intencionais, histéricos € antigos ~ representam fases ‘consecutivas na historia da preservagio. Na Antiguidade e na Idade Média, s6 se conheciam os monumentos intencionais. Os artistas eam contratados por individuos ou instituigées a fim de realizar uma obra ‘que honrasse a meméria de uma figura ou de um acontecimento notavel A duragao da obra estava garantida enquantoa pessoa ou oacontecimento ‘que se pretendia comemorar seguisse sendo apreciado pela comunidade que a criou. Se o individuo ou 0 acontecimento perdesse interesse, 0 monumento corria o perigo de ser sacrificado para satisfazer alguma necessidade pritica, assim como ocorreu com os monumentos romanos, Eapenas no século XIV que as obras arquitetonicas da antiga Roma ‘megam a ser apreciadas, tanto por sua vinculagao com o poder imperial ~ do qual os somsaitos da Idade Média se acreditavam herdeiros ~ quanto por seu valor artistico e histérico. Segundo Riegl (2008, p. 33-34), essa maneira de ver os monuments ¢ algo novo: pela primeira vez, as pes- soas estabeleciam uma conexao entre as obras criadas séculos atrés € suas proprias manifestagdes artisticas e politicas?* 7B necessirio reconhecer,entretanto, que a priica de conservar os monumentos do passado exstia desde muito antes do Renascimento, Conforme Karmon (2011, 160-161) destaca, o proprio fundador do Império Romano, César August, ins No século XVII, os artistas e escritores também recorriam as ruinas da Antiguidade, mas apenas para ressaltar o contraste entre a igrandeza do passado ¢ a degradacao do presente. Tratava-se do pathos ‘parroco, do qual < poesia espanhola nos legou exemplos memoraveis Diferentemente do Renascimento, quando os despojos materiais do passado eram apreciados em fungao de um valor artistico considerado universal e absoluto, no século XIX, a condigéo de universalidade foi transferida para todos os periodos histéricos (RIEGL, 2008, p. 36). As leis de preservagio de monumentos desse periodo estavam baseadas na ideia de que cada objeto especifico, inclusive aquele mais insignificant fazia parte de uma cadeia evo} juardava informacées valiosas para o conhecimento do passado. A iiltima etapa no modelo de Riegl corresponde ao deslocamento ~ ocorrido em principios do século XX ~ da valorizagao “objetiva” do acontecimento histérico para a experiéncia subjetiva da passagem do tempo. Para a sensibilidade moderna, a destraigio progressiva de um edificio € um fendmeno naturale inevitivel, ndo algo trigico tal qual entendiam os artistas do Barroco (RIEGL, 2008, p. 38-38). Como toda essa taxonomia pode nos ajudar a entender as reagdes dos viajantes do século XIX ao contemplar as ruinas de Santo Domingo? ‘A tese de Riegl, segundo a qual a valorizagio dos monumentos depende do contexto histérico em que 0 espectador esta localizado, permit nos entender a perplexidade que observamos em Treves, por exemplo, como a expressio de um sistema de valores diferente daquele que encontrariamos em um poema do século XVII. A nogao de uma série de etapas sucessivas, no entanto, ndo explica o conflito entre sistemas de valores distintos em um mesmo periodo histrico. Tome-se 0 caso do conhecido ornitélogo norte-americano Frederick Ober, autor de varios livros relacionados & histiria do México e da Espanha, bem como de cite volumes sobre o Caribe. Ober, que chegou a Santo Domingo, em 1891, com a missio de recolher objetos para a Exposigéo Universal de Chicago (Worlds Columbian Exposition), anotou suas experiéncias sobrea cidade no livro En la estela de Colén, no qual admira a beleza das de continuidade com o passado, unindo desse modo a proteio do turbanos a nogdo de poder imperial 67 ‘CAPITULO? 00 MATADOURO AOMONUMENTO FUINOLOGIAS ENSAIOS SoaRe DESTROGaIS.0O PRESENTE ruinas coloniais e, a0 mesmo tempo, lamenta o seu estado deplorivel. No trecho que melhor ilustra a impressio que a cidade Ihe causou, 0 visitante se mostra escandalizado com a “sujeira e a imundicia da praga, com suas ruas horrendas, com suas calgadas arrebentadas e perigosas fe seus habitantes linguidos ¢ cabisbaixos’ (OBER, 1993). Reacio semelhante Ihe causa 0 encontro com “um sapateiro ou um alfaiate ou tum vendedor de comida ocupando uma pequena sala em um edificio originalmente destinado & funsao de palicio, cujo resto esté vazio € caindo aos pedagos” (OBER, 1993, p. 170). O interessante aqui é que Ober parece olhar as construgdes coloniais diferentemente de como 0 fazem os habitantes da cidade, que sio, contudo, seus contemporineos. Nem 0 alfaiate nem o sapateiro parecem outorgar aos edificios cujas salas ocupam mais valor do que aquele derivado de sua utilidade. Como cexplicar essa discrepancia? Se aceitarmos a premissa de que a percepgio € uma funcio do contexto histérico, teremos que concluir que resposta reside nna existéncia simultinea de dois tempos distintos: 0 tempo da modernidade, no qual as ruinas so vistas como objetos cujo valor deriva de sua relagio com o passado; e um tempo pré-moderno, no qual clas sio vistas como objetos cuja vida itil ainda nio se exauriu, prolongando-se até o presente. Seria possivel especular inclusive que 0 habitante da cidade nem sequer vé as ruinas que hé ao seu redor, mas ‘que se limita a existir entre elas, em uma espécie de presente perpétuo. ‘Talver seja a isso que se refere Marc Auge (2003, p. 27) quando afirma que “nos paises em que 0 antropélogo tradicionalmente trabalha, as, ruinas néo tém nem nome nem estatuto (de rufna). Sempre tém a ver ‘com os europeus, ocasionalmente, com seus autores, frequentemente, ‘com seus restauradores e, invariavelmente, com seus visitantes” Michael Thompson: por uma teoria do lixéo [A discrepincia entre a visada de Ober e a dos habitantes de Santo Domingo expoe claramente a insuficiéncia da tese historicista para entender a natureza da mudanga na valorizacdo das disso esté no fato de que a condigdo de simultaneidade & com 0 pensamento evolutivo, o qual, assim como 0 proprio Riegl (2008, p. 24) destaca, constitui “o niicleo de toda concepgio historica moderna’, Necessitamos, pois, de uma explicacio que considere o papel desempenhado pela posigao social do sujeito no sistema de criagao € ‘alorizagao das ruinas, uma teoria que leve em conta tanto as diferencas Gntre um aristocrata inglés e um sapateiro, um alfaiate e um vendedor de comida, quanto 0 modo como essas diferencas impactam suas respectivas maneiras de olhar, ‘Michael Thompson nos oferece um modelo viével em seu estudo sobre o significado do lixo, no qual sugere que 0s edificios estao sujeitos ‘mesma dindmica social de producio ¢ de destruigao de valor que 0s “objetos mais corriqueiros. O argumento de Thompson é uma resposta 4 teoria econdmica que explica a perda de valor de um objeto como 6 resultado do desgaste natural de suas propriedades fisicas. Para os feconomistas, uma casa recém-construida tem um valor elevado e um tempo determinado de vida itil. Na medida em que o tempo passa, ela vvai desvalorizando até que seu valor desaparega por completo, Chegando a esse ponto, a construsio é demolida, e em seu lugar € construida uma nova, de tal sorte que o ciclo se repita indefinidamente. Para Thompson (1979, p. 36-37), pelo contrario, as propriedades fisicas dos objetos sio ‘o efeito € nao a causa do processo através do qual se determina o valor. (O sistema de criagio e de destruicio do valor divide os objetos em tués categorias cognitivas: efémeros ou transit6rios (aqueles cujo valor esté diminuido), duradouros (aqueles que, contrariando qualquer légica, consideram-se eternos ecujo valoraumenta como tempo), descartiveis {aqueles cujo valor se exauriu). A duragio de um objeto depende de que se dé a ele uma manutencio “razodvel”; € essa manutencio, por sua vez, estaré determinada pela fungio social atribuida a ele, Se um edificio ‘muda de categoria social, 0 nivel de manutencéo mudaré e, com ele, ‘suas expectativas de vida itil. A perda de valor nao é consequéncia da deterioragao “natural” jé que. propria deterioragio nao é natural, sendo social. Eo resultado da categoria cultural ¢ das expectativas de vida; surge da interacdo entre as propriedades fisicas dos edificios ¢ fatores sociais como a tecnologia e a moda (THOMPSON, 1979, p. 38). ‘Ainda que o sistema que estabelece a separagao entre as categorias parega elaborado de modo a se perpetuar, o fato € que tanto as casas como seus habitantes podem passar de uma categoria para outra. Trata- se, entio, de uma construcio flexivel em maior ou menor medida: um objeto efémero ou transitério costuma ser transferido a categoria de 69 ‘CAPITULO? BO MATADOURO AO MONUMENT 70 NSAIDS SOBRE DESTHOGOS DO PRES UNOLOGAS refugo e, em determinadas condigdes, um objeto rejeitado pode passar categoria do duradouro. A passagem direta da categoria do transitério do duradouro e vice-versa nunca se produz. O que significa que um ‘objeto jogado ao lixo esta mais perto de se converter em pega de museu do que outro cujo valor de uso ainda nao se exauriu. Como Jonathan Culler observa em seu comentério ao livro de Thompson, os objetos descartiveis ¢ 0s duradouros compartilham de certo carter atemporal, contrastando assim com os transitérios, cujo valor depende do tempo, de modo que “a categoria do desperdicio é a margem ¢ 0 ponto de comunicacio entre as categorias do valor” (CULLER, 1988, p. 172) Se aplicarmos a argumentacio de Thompson a esfera da arqui- tetura, concluiremos que a deterioracio cria as condicbes de possibi- lidade para que um edificio se converta em monumento. Antes de ser valorizado pelo seu significado histérico ou pela sua antiguidade, um edificio deve sertirado de circulagao, deve se transformar em ruina. Uma vex admitidas na categoria do duradouro, as ruinas sia consiceradas parte do legado cultural. £ necessério conservé-las para que possam ser transferidas & geragdo seguinte. Nessa mudanga de mios, esti em jogo a preservagao da propria cultura. Em outras palavras: a preservagio dos bens duradouros ¢, essencialmente, uma luta pela sobrevivéncia cultural. Uma cultura dura tanto quanto sua capacidade de diferenciar entre um monte de escombros ¢ um monumento. Claro que aqueles que atribuem valor de monumento a um objeto nao é a totalidade dos membros de uma comunidade, sendo apenas aqueles que tém o poder de controlar seus “sistemas de acesso” (FISHER, 1975, p. 587). Dai que ‘ perpetuagao das categorias de valor também atue como a perpetuagio da estrutura de poder. A criagio ea destruigdo do valor de uma cidade A vila de Santo Domingo foi construida pela primeira vez entre 1496 e 1498 por Bartolomeu Colombo na margem oriental do rio Ozama, Destrufda por um furaco em 1502, © governador Nicolas de Ovando ordenou seu translado para a outra margem do rio. As obras comegaram. «em fins de 1504 ou em prinefpios de 1505, com a construgio de edificios pliblicos e casas - essa vez, usando materiais mais duradouros. A respeito disso, Gonzalo Fernindez de Oviedo escreve: E assim esta cidade esta tio bem edificada, tal qual nenhum povo tem na Espanha, tanto eralmente com melhores talhas, deixando & parte a insigne e mul nobre cidade de Barcelona. Porque, além deste grande aparato que disse sair da pedra e de toda boa cal que ao propésito da fabrica é mister, haaqu singular terra para as taipas, efazem-se as tas, que se constituem com mui forte argamassa E assim hi aqui mustas casas principais ce tito boas que, nelas, qualquer grande senhor poderia hospedar- c ainda algumas delassio tas, que em muitas aldeias espanholas ceuvia Cessirea Majestade hospedando-se em casas que no eram ‘como as tas, quanto aos seus labores, eem muitas que, quanto a0 lugar e& vista, no se igualam a estas. FERNANDEZ DE OVIEDO, 1851, p. 83, grifo nosso). (© fragmento nos dé uma ideia de quais eram as expectativas que 0s construtores tinham no que dizia respeito a vida util da cidade, tanto pela selegio dos materiais - pedra, cal etaipa - quanto pela posigao social *Oshispedes do Palico / que habitam o piso acima / A varanda saem cedo /vestidos 6 de calgbes/slteando, vozeando /cogand e enchendo-se 0 aco” 81 ‘CAPITULO? 00 MATADOURO KO MONUMENTO 82 RUINOLOGIAS ENSAIDS SOBRE DESTROGES DO PRESENTE fa incursio de um grupo de escasso ou de nenhum capital ‘em um espaco que deveria permanecer reservado ao exercicio do poder. Em 1876, apenas dois anos depois da aparigio do poema sobre © Palacio de Borgellé, Salomé Urefia de Henriquez publica “Ruinas’, ‘um dos textos mais candnicos da literatura dominicana. O poema, que expressa a ambivaléncia da elite intelectual e politica do pais, presa entre ‘a evocacio nostalgica do passado colonial ¢ 0 sonho da modernidade, talver seja 0 primeiro a ser escrito por um autor domi se atribui &s ruinas um valor monumental, tal como se pode ver jé nas rimeiras estrofes: ‘Memorias venerandas de ottos dias, soberbios monumento: del pasado esplendor reliqui donde el arte verti sus fantasias, donde el alma expresé sus pensamientos, Alveros jay! con rapider que pasma por la angustiada mente ue suefia con la gloria y se entusiasma discurre como aljero fantasma la bella historia de otra edad luciente. (URENA DE HENRIQUEZ, 1880). AAs velhas construgdes coloniais devém, aqui, lugares da me- méria, objetos dignos de veneragao, vinculados simbolicamente com tum passado mitico no qual @ cidade era conhecida como 0 centro cultural do Novo Mundo. A contemplacio desses restos do tempo leva o espectador a reconstruir em sua “angustiada mente” a imagem de uma Idade de Ouro. O sentimento de angistia perceptivel nos versos emerge da fugacidade dessa imagem. A medida que o poema avanga, a primazia 5 *Memerias as de outros dias, /soberbos monumentos,/ do passado esplen- or religuasfrias, onde a arte verteu suas fantasis,/ onde a alma expressou seus pensamentos// Ao vé-los, all, com rapider que pasina/ pela mente angustiads / que sonha com a gloria ese entuslasma /acorre como lig sma fa bela histéria decoutraidade luzente’ da cidade € relegada a0 esquecimento: “y hoy nos cuenta tus glorias olvidadas / Ia brisa que solloza en tus escombros” Paradoxalmente, 1s escombros sio veiculos tanto da meméria quanto da deslembranga, tensio que se mantém ao longo do texto. Quando as vicissitudes da histéria fazem com que as ciéncias estendam “fugitivas / a otras regiones con dolor su vueio* do esplendor da cidade sobram apenas as ruinas. Isso nao evita que 0 poema termine com um clamor & ago. Na visio otimista dos versos finais, Ureita de Henriquez devolve a cidade sua primazia, anunciando a chegada de um tempo em que a contemplagio das ruinas jé nao causaré angiistia: (Que mientras suefio para ti una palma, yal porvenir caminas, (URENA DE HENRIQUEZ, 1880, p. 40-42). © texto de Urea de Henriquez. representa o inicio da transferéncia simbélica das ruinas da categoria de refugo para aquela de objetos durdveis, Os restos arquiteténicos do periodo colonial aparecem isolados do fluxo da vida da cidade. Salvo por sua prépria condicéo de escombros, nenhum dos distiirbios da ordem de que foram testemunhos tanto 0s viajantes quanto o autor anénimo do poema sobre o Palacio de Borgellé tem lugar aqui: nem montes de lixo, nem mulas e cabras, nem alfaiates, nem sapateiros, nem mendigos do cais, nem homens de cuecas surpreendidos nas varandas. E como se, antes de serem convertidas em ‘monumentos, as ruinas tivessem sido submetidas a um processo de purificagio. A mudanga no sistema de acesso se produz primeiro na linguagem. 5 "hoje nos conta as glriasesquecidas/ a brisa que soluca em teu escombros! " fagitiva a outs rides, com pesa, seu oo!” * Que /¢20 futuro caminhas, nio mais se opri- alma / quando contemple em muda calma /' majestade solene 83. {CAPITULO 2 DO MATADOURO AO MONUMENTO 84 AUINOLOGIAS ENSAIOS SOBRE DESTAOCOS DO PRESENTE ‘As transformagdes dos edificios coloniais da cidade de Santo Domingo sugerem que as diferentes maneiras de entender as ruinas correspondem nio s6 a posigio do espectador na cadeia evolutiva da historia ocidental, como Riegl pensava, sendo também & sua posicio na estrutura social, outorgando valor aos objetos. Tanto a passagem do ‘monastério ao lixio quanto do matadouro ao monumento implica uma mudanca de categoria cognitiva, uma redefinicio do espago segundo 60s termos da classe social do sujeito que 0 ocupa. Se, por um lado, € sta condigio de individuos nascidos no século XIX que permite aos vigjantes atribuir valor histdrico as ruinas de Santo Domingo, por outro, 6 sua posigao como representantes do poder imperial que confere a eles a autoridade para denunciara “ignordncia” ou o descuido dos habitantes da cidade, No momento em que a elite crioula se arroga esse direito, as ruinas devém lugares da meméria, portas de acesso a0 passado ¢ pressigio da sorte que se depara com o porvir. REFERENCIAS [AUGE, Marc. El siempo en ruinas, Barcelona: Editorial Gedisa, 2003, BONSAI Stephen. El Mediterrineo Americano. In: VEGA, Bernardo (Ed) Los primerosturstas en Santo Domingo. Tradugio de Jeannette Canals. Santo Domingo: Fundacin Cultural Dominicana, 1991 p 89-100. CULLER, Jonathan, Framing the sign: criticism and its institutions, Oklahoma: University of OMahoma Press, 1988, DE FOREST DAY, Susan. The cruise ofthe sythian inthe West Indes. London E Tennyson Neely 1899. DOUGLAS, Mary Purity and danger an analysis of concepts of pollution and taboo, London: Routledge, 1966. FERNANDEZ DE OVIEDO, Gonzalo. Historia general y natural de las Indias (1535) Ed, José Amador De los Rios. Madrid: Real Academia de la Historia 1851 ‘The futures past. New Literary History, v. 6,1. 3, p. 587-606, GREGOROVIUS, Ferdinand. Roma y Atenas en la Edad Media y otros ‘ensayos, México: Fondo de Cultura Econémica, 2001 HAZARD, Samuel. Santo Domingo: past and presente with a glance at Hayti New York: Harper and Brothers, 1873, HEINSEN, George Latour Alois Riegl el culto moderno alos monuments. Periferia: Internal Resources for Architecture and Urban Desig in the Caribbean, Disponive em: .Acesso em: 18 mar. 2014 KARMON, David, Archaeology and the Anxiety of Los: facing Preservation from the History of Renaissance Rome. American Journal of Archaeology, 115, 1n.2p. 159-174, 2 KEIM, Kandolph. Santo Domingo, pincelatas y apuntes de wn viaje (1870) ‘Tradugio de Alberto Malagén. Santo Domingo: Editora de Santo Domingo, 1978. LATOUR HEINSEN, George. Alois Rieg: El eulto moderno alos monumentes. Periferia: Internal Resources for Architecture and Urban Design in the taripbean, Disponivel em: . URENA DE HENRIQUEZ, Salomé. “Ruinas”. Poesias. Santo Domingo: Sociedad Literaria “Amigos del Pais”, 1880. p. 40-42. VERRIL, Hyatt. The book of the West Indies, New York: E. P. Dutton & Company, 1917. VERRILL, Hyatt. El libro de las Indias Occidentales. In: VEGA, Bernardo (Ed.). Los primeros turistas en Santo Domingo. Traducao de Jeannette Canals. Santo Domingo: Fundacién Cultural Dominicana, 1991. p. 133-153. VRANICH, S. B. La evolucion de la poesia de las ruinas en la literatura espafiola de los sighos XVI y XVIL In: . Ensayos sevillanos del siglo de oro. Valencia: Albatros, 1981. p. 64-72.

Você também pode gostar