Você está na página 1de 3

Das gripes e das pandemias

16/10/2005

Autor: MARCELO GLEISER


Origem do texto: COLUNISTA DA FOLHA
Editoria: MAIS! Página: 9
Edição: São Paulo Oct 16, 2005
Seção: + CIÊNCIA; MICRO/MACRO

Das gripes e das pandemias

Uma nova pandemia está sendo esperada a qualquer momento,


devido ao número de casos de aves infectadas na Ásia

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Em 1918, cerca de 50 milhões de pessoas morreram nos quatro


cantos do mundo vítimas da terrível epidemia de gripe espanhola.
De fato, o evento é chamado de "pandemia", dado o seu alcance
global.

A diferença principal entre uma epidemia e uma pandemia de gripe,


fora o número de vítimas, é a natureza do vírus. No caso da
epidemia, o vírus já existe e circula entre pessoas, atuando mais
agressivamente durante períodos específicos, como no caso do
inverno nos EUA, quando milhões de pessoas (inclusive este autor)
são vacinadas preventivamente.

Já uma pandemia surge quando um novo vírus emerge, em geral


como resultado de mutações genéticas que o permitem não só
atacar humanos, mas, também, passar de indivíduo a indivíduo. Foi
o caso da Aids, com o HIV vindo de primatas, e da Sars (que não
chegou a ser uma pandemia devido ao estrito controle), vindo de
aves. Um novo vírus significa um novo inimigo imunológico, sem
tratamento desenvolvido, ou, na melhor das hipóteses, com
tratamento parcial ou inacessível ao grande número de infectados.

A última pandemia, a gripe de Hong Kong, ocorreu em 1968-69 e


matou 34 mil pessoas só nos EUA. Uma nova pandemia está sendo
esperada a qualquer momento, devido ao número de casos de aves
infectadas na Ásia com um novo vírus, o H5N1.

Uma pandemia é um exemplo doloroso da teoria da evolução em


ação, demonstrando a transformação do vírus de modo a se
adaptar a outro meio onde possa se multiplicar, nossos corpos.
Aparentemente, o H5N1 já se espalhou da Ásia para Turquia e
Romênia. Vacinas conhecidas não são efetivas.

No mundo moderno, vírus e bactérias viajam quase tão rápido


quanto as pessoas. Portanto, quando um vírus se torna capaz de
infectar humanos, todo cuidado é pouco. Quarentenas, isolando
vizinhanças, bairros ou até mesmo cidades inteiras são um método
de controlar o avanço da doença. Mas isso ocorre depois que a
doença ataca.

O que me é surpreendente é que vacinas não sejam pesquisadas


em grande escala assim que um novo vírus aparece, mas apenas
quando uma epidemia já existe. Uma das razões é a pior possível:
vacinas rendem menos aos laboratórios médicos do que a produção
de medicamentos e, portanto, têm menor prioridade. Fora isso,
alguns laboratórios foram processados devido a efeitos colaterais
causados pelas suas vacinas e deixaram de produzi-las ou de se
interessar em desenvolver outras. Por trás da falta de tratamento
preventivo achamos razões econômicas.

Quem viu o filme de Fernando Meirelles, "O Jardineiro Fiel", sabe


bem que motivações econômicas ditam o trabalho de muitos
laboratórios farmacêuticos. Isso levanta uma questão crítica, o valor
da vida humana perdida pela falta de medicamentos. Quem decide
isso? Os acionistas da companhia ou os governos, que têm o dever
de proteger sua população? A resposta me parece óbvia.

Na ausência de uma vacina preventiva, a gripe tem de ser tratada


com remédios. Para a gripe causada pelo H5N1, que já matou mais
de 50 pessoas na Ásia, parece que só um remédio é eficaz, Tamiflu,
produzido por um único laboratório dos laboratórios Roche na
Suíça. Com a ameaça da pandemia, a demanda cresceu
enormemente e o laboratório não dá conta. Resultado, não existem
doses suficientes. Mais uma vez me surpreendo: se milhões de
vidas estão em jogo, não seria ético vender a patente para
laboratórios do mundo inteiro? Será que a vida não vem antes dos
lucros?
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth
College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do
Céu"

Você também pode gostar