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Da colénia ao império: uum percurso historiografico! Maria Fernanda Bicalho? Uma das nmudangas mais significativas ocorridas nos estudos sobre o Brasil colonial consistiu na adogao do conceito de império para a compreensio do conjunto de relagdes que deram vida a dinamica ultramarina portuguesa nos tempos modernos. A opgao por esse conceito vem se enunciando a partir da percepgao de que a anilise das relages entre me- tespole ¢ colénia nao é mais suficiente para explicar a complexidade das redes ¢ conexdes gue ligaram os diferentes dominios ultramarinos, entre si e com o centro da monarquia. exigiu dos historiadores a insergao de seus respectivos objetos — cidades, feitorias, for- talezas, estabelecimentos, territérios, regides, bens, pessoas ¢ interesses administrados pela Cora portuguesa — num contexto bem mais amplo e plural do que até entéo se pensara. Este artigo se propde a discutir — resgatando algumas obras seminais da historiografia, tanto brasileira, quanto estrangeira — 0 conceito e as dinamicas do império a partir das no- des de redes, conexdes e das relacdes entre centro e periferia, poder central e poder local. ‘As dinamicas do império... Ha muito que a historiografia — principalmente a anglo-saxénica — utiliza, na and- lise das relagdes ultramarinas ¢ coloniais, um conceito s6 recentemente incorporado & 1 Agradego a leitura atenta, os comentarios e sugestdes de Ronald Raminelli, Rodrigo Bentes Mon- teiro, Maria de Fatima Gouvéa ¢ Jodo Fragoso. A forma e o contetido finais deste texto sao de minha inteira responsabilidade. 2. Professora do Departamento de Histéria , UFF. ‘Lavra DE MELLO £ Souza ” JONTA FERREIRA Furbo * MARIA FeRNANDA BICALHO (ORGS.) producao académica brasileira: o de império portugués. Desde a década de 1960, C.R. Bo- xer — e podemos citar aqui, a titulo de exemplo, O império maritimo portugués; Portuguese society in the tropics. The municipal councils of Goa, Macao, Bahia, and Luanda; Salvador de ‘Sé ea luta pelo Brasil e Angola} — discute a construgao da soberania portuguesa em dreas tao distintas e distantes, do Maranhao a Macau, conjugando redes comerciais, incursdes missionérias, campanhas militares e administragao imperial. Esta abordagem fez escola, distinguindo alguns de seus disefpulos, como AJ.R. Russell-Wood, cujo livro, Um mundo em movimento. Os porlugueses na Africa, Asia e América,* é uma contribuigao fundamental a andlise e interpretacao de toda a complexidade do império portugués. No entanto, a difusao do conceito de império é recente na historiografia brasileira. Basta conferir que, apenas no inicio do século XXI, no hojo das comemoragdes pelos 600 anos dos descobrimentos portugueses, O império maritimo porlugués ganhou sua pri meira trad: gao e edigdo no Brasil. Portuguese society in the tropics ainda nao teve, até hoje, a mesma fortuna. Isso porque os historiadores brasileiros, a partir da década de 1940, percorreram um outro caminho — extremamente fecundo, deve~se reconhecer. Desde entao os estudos sobre o perfodo colonial tém sido amplamente influenciados pela tese de Caio Prado Jiinior em Formagao do Brasil contemporaneo, que nos levou a incorporar definitivamente o sentido da colonizacao: fundamentado em motivagdes de carater econdmico, apresentan- do-se enquanto uma decorréncia do desenvolvimento comercial europeu.* Cerca de trinta anos mais tarde, a analise de Fernando Novais, em Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), publicada na década de 1970, explora a nogao de sentido mercantil da colonizaga Seu conceito de pacto colonial fundamenta-se na prética do exclusive metropolitano, mecanismo essencial de explicagao da relagao de dependéncia e subordinacao da colénia a metrépole, ¢ de favorecimento dos grupos de comerciantes reindis no processo de acumulagao primitiva de capital que marcou a economia mercantilista dos Estados europeus nos tempos modernos.° CR. Boxer. 0 mpério maritimo portugués (1415-1825). Sao Paulo: Companhia das Letras, 2002) Portuguese society in the tropics. The municipal councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda, 1510-1800. Madison: University of Wisconsin Press, 1965; Saluador de Sé e a luta pelo Brasil e Angola (1602- 1680). S80 Paulo: Editora Nacional/Edusp, 1973. 4 AJR Rassell-Wood. Une mundo em movimento, Os portugueses na Africa, Asia e América, 1415-1808. Lisboa: Difel, 1998. Caio Prado Junior, “O sentido da colonizagao’ In: Formacae do Brasil contempordnzo. 15. ed. S80 Paulo: Brasiliense, 1977, pp. 19-32. 6 Fernando Nowais, Portugal e Brasil na crise de antiga sistema colonial (1777-1808). $0 Paulo: Huci- tee, 1979. 92 © GOVERNO DOs POV. Esta tradicao historiogréfica privilegia, em sua andlise do processo de colonizagao, 08 aspectos econdmicos — (em termos politicos, o pacto colonial fundava-se, segundo No- vais, nas relagdes entre “dois elementos: um centro de decisdo (metrépole) e outro (cold- nia) subordinado”).’ Embora atenta aos aspectos politicos e administrativos da América portuguesa,° trata-se de uma vertente historiografica que, de cunho sistemico, estrutural e marxista, relegou a um plano subordinado a tessitura de redes de poder, interesses, pa~ rentesco e negdcios entre o centro as varias regiées do ultramar portugués, cuja andlise torna-se hoje fundamental para a configuragao da dinamica de escopo imperial. Fora do Brasil, a historiografia portuguesa contemporanea atrela a existéncia e a logica da colonizagao moderna ao movimento da expanséo ultramarina européia. Ex- poente nesta vertente explicativa, e influente na produgao académica que se impds nos dois lados do Atlantico, destaca-se a obra de Vitorino Magalhaes Godinho. A economia dos descobrimentos henriquinos ¢ Os descobrimenios e a economia mundiaP discutem as so- ciedades ultramarinas enquanto espagos de atualizagao dos mecanismos que motivaram 2 expansao, privilegiando igualmente seus aspectos econémicos."” Em trabalho sobre a influéncia de Magalhaes Godinho na recente historiografia brasi- leira — em coléquio realizado em 2003 na Fundagao Calouste Gulbenkian de Paris -, Joao Fragoso e Maria de Fatima Gouveia afirmam que na obra desse historiadox, o império portugués deixava, definitivamente, de ser tomado como um amontoado de colénias subordinadas a uma metrépole. [...] possuia uma dinamica, cuja compreen- so passa pela abordagem de certos fendmenos: [...] a presenga de uma sociedade de tipo antigo em Portugal, cabendo ao ultramar fornecer recursos para a reprodugao da hierarquia social, ciosa de suas diferengas de qualidade." Enfatizam a distingao feita por Magalhaes Godinho entre as “conjunturas do im- pério”, ligadas nao somente as transformagoes da Europa, mas também aos movimentos Fernando Novais, Portugal e Brasil... p. 62. o Estes sto discutidas por Novais na segunda metade do século XVIII, no terceiro capttulo de seu liveo, “Os problemas da colonizagao portuguesa’ Cf, Fernando Novais. Portugal e Brasil... pp. 7-211 Q Vitotino Magalhtos Godinho. A sconamia das dascobrimentos henriquinos. Lisho 10a: Presenga, 1981-83. 0 Magalhaes Godinho nao foi o nico de sua geragdo que pensou a dinamica imperial sob esta dtica. da Costa, 1962; ¢ Os descobrimenios ¢ a economia mundial. 4 vols, Li Ao seu lado pode ser citado Féderic Mauro, euja obra, no entanto, nde iremos diseutir aqui LL Joso Fragoso & Maria de Fatima S. Gouvéa. “Vitorino Magalhaes Godinho et viaux’, Anguivos do Centre Cultural Calouste Gulbenkian, vol. 50, 2005, p. 83. Utilizo-me aqui, para efeito de citagdo, da versao preliminar em portugués, inédita. 93 réseaux impé- LAURA DE MELLO E SOUZA * JONTA ParREIRA FURTADO * MARIA FERNANDA BICALHO (ORGS) particulares vivides em suas diferentes regides dominios ultramarinos. Segundo os autores, “bom exemplo disto é a nogao de viragem estrutural, nogdo-chave para entender a dinamica deste império depois de meados do século XVI, quando se volta progressiva- mente para o Atlantico”, E concluem: “Esta reorientacao de rumos resultaria da conflu- ancia de fenémenos europeus com mudangas no contexto politico africano e asidtico”, ultrapassando, deste modo, a simples dualidade metrépole x colénias.! A recente producao historiogréfica portuguesa procura pensar as relagdes entre Portugal ¢ seus territérios ultramarinos discutindo suas varias conexdes, além de priorizar, a0 lado dos fendmenos econdmicos, a politica, a administragao, a cultu- 1a, a religiao ¢ as formas de produgao literéria, artistica e arquitetonica. Exemplo disso é 0 gigantesco trabalho editorial em cinco volumes coordenado por Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri: Historia da expansdo portuguesa. Os trés primeiros volumes da colegao, relativos aos séculos XVI, XVI e XVIII, apresentam a dinami- ca imperial em suas miiltiplas dimensdes: a apropriagao reorganizagao dos terri- térios; a “disseminagio das gentes” e as dinamicas sociais; a constituigdo de espagos e sistemas econdmicos; as “configuragdes do império”, destacando-se os complexos politico-administrativos ¢ os poderes locais, como as cdmaras ¢ as misericérdias; © “enguadramento religioso” no Oriente, na Africa, na América, e as “praticas de identidade’'? Nas dltimas décadas, os estudos sobre as articulagdes imperiais dos portugueses {rutificaram, ¢, em certa medida, especializazam-se nos seus diferentes circuitos geogréficos. Eo caso das publicages de Sanjay Subrahmanyam, em particular O império asidtico portugués,* ou ainda do livro De Couta a Timor, de Luis Felipe Tho- maz.!® Consolidou-se, assim, uma nova chave interpretativa com a qual os historia- dores brasileiros passaram a dialogar. E essa chave interpretative levou-nos a novos conceitos.!® 12 Joao Fragoso & Maria de Fatima $. Gouvea. “Vi srino Magalhaes Godinho et les réseaux impé- 43 Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri. Histéria da expansdo portuguesa, vols, 1-3. Lisboa: Cir culo de Leitores, 1997-98. 14 Sanjay Subrahmanyam. O império asidtico portugués, 1500-1 200. Lisboa: Difel, 1996. 18 Luts Filipe Thomaz. De Ceuta a Timor. Licboa: Difel, 1994. 16 Exemplo desse diélogo e da construgio de novos conceitos encontram-se em Joao Fragoso, Maria de Fétima §. Gouvéa e Maria Fernanda B. Bicalho. “Uma leitura do Brasil colonial: bases da ma- torialidade e da governebilidade no Império". Penélope, Revista de Histsria Ciéncias Soviais, n. 23, 2000, pp. 67-88; ¢ no conjunto dos textos reunidos em Joao Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fatima Gou (orgs.) O Antigo Regime nos trépicos.. 94 ° GOVERNO DOs POVOS Redes imperiais... Um deles ¢ 0 conceito de rede ou redes imperiais. No capitulo “Estrutura politica e edministrativa do Estado da India no século XVI’, Luis Felipe Thomaz alirma que: ‘A 0 ‘Bstado da India’ designava, no século XVI, nao um espago geograficamente bem definido, mas 0 conjunto dos territorios, estabelecimentos, bens, pessoas, e interes- administrados pela Coroa portuguesa no Oceano Indico” E continua: Dat que, quando confrontado com a nogio corrente de império, o Estado portugués da india ce nos apresente como algo de original , por vezes, desconcertante [..] A razto é que, normalmente, os impérios represeutam a etfuturasio politice de determinedos expacos geogrdficos, enquanto o Estado da India é na sua esséncia uma rede, sistema de comunicagio entre virios capas Neste lado do império, ou seja, a Ocidente, Luiz Felipe de Alencastro também o espacial, com implicagdes econémicas e politicas, No prefacio de O trato dos viventes. A formagao do contribuiu para uma nova perce} omplexo atlantico portugu Brasil no Ailantico Sul, 0 autor afirma: “Nossa histéria colonial nao se confunde com a continuidade do nosso territério colonial’. E desenvolve: a colonizagdo portuguesa, fundada no escravismo, dew higar a um espago econdmico ¢ social bipolar, englobando uma zona de produgdo escravista situada no litoral da América do Sul e uma zona de reprodugao de escravos centrada em Angola. Querendo demonstrar “como essas duas partes unidas pelo oceano se completam um 36 sistema de exploragao colonial”!* O recorte tedrico-metodoldgico de Alencastro — estrutural e marxista — baseia- se no coneeito de sistema, embora apresente peculiaridades e diferengas em relagio ao intigo sistema colonial, de Fernando Novais. A historiografia brasileira mais recente tem sido habil em fazer outros deslocamentos interpretativos e tedricos, conferindo novos sentidos ao conceito de império: novas dimensdes, novas tramas, novas densidades. No trabalho ja citado de Joao Fragoso e Maria de Fatima Gouvéa sobre a obra de Magalhaes Godinho, os autores desenvolvem “um estudo sobre a rede ultramarina, que, 7 Luis Filipe Thomaz, De Couta a Timor..... pp. 207-8. 18 Luiz Felipe de Alencastro. O trato dos viventes, A formacao do Brasil no Atlintico Sul. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 9. 95 ——eeEtrtltltttttstit—SS Laura DE MELLO £ Souza * JUNIA Ferre FurTApo * Magia FERNANDA BICALHO (oRGS.) em fins do século XVII e principios do XVIII, envolvia diferentes agentes do império: casas aristocraticas do reino, oficiais régios, negociantes e nobreza da terra’, Tal, ou tais redes eram tecidas por trajetérias administrativas de oficiais régios que circularam por postos governativos nas duas margens do ‘Mlantico, Brasil e Angola, e pela flexibilidade dos circuitos comerciais que cruzaram os oceans, conectando diferentes pragas ultra~ marinas entre sie ao reno. Fram ainda adensadas por relagdes de parentesco clien- telisticas, aproximando e afastando diferentes grupos, em termos de aliangas politicas e interesses materiais. Os autores argumentam que este circuito de relagdes deu lugar a determinadas formas nao #6 de acumulagao e cit= culagao de informagaes, bem como de definigao de estratégias governativas, voltadas para 0 acrescentamento politico ¢ material dos interesses portugueses, [| sejam of intereses individuais e de redes clientelares, sejam 03 corporativos da Coroa como um todo.'? Essa dinamica levaria a “construgéo de uma visdo mais abrangente do império, possibilitando, assim, 0 surgimento de mecanismos que concorressem para 0 exercicio da soberania portuguesa’. Este ¢ hoje, a meu ver, um caminho tedrico-metodoldgico pro- ficuo e interessante para atribuirmos novos sentidos ao império. Retomando os argumentos de Luis Filipe Thomaz, no texto “Estrutura politica e administrativa do Estado da {ndia’, de acordo com o autor, E verdade que cada espago é om maior ou menor medida, em si mesmo também uma rode, um sistema de relagbes entre as suas partes que assegura a unidade do conjunto. [..] num dado espaso geogréfico &, em regra, mais relevante a unidade funcional que aunidade morfologica (J. A maior parte dos impérios assentou sua unidade politica sobre uma unidade econdmica e cultural — o que pressupde a cixculagdo de bens, pes- soas ¢ idgins, logo, um sistema de comunicagdes, uma estrutura de sede, dori comporlamentos e valores, gerando uma circulagéo cultural que roforgava tanto ¢ flexi atrocadem as também a difusao de i Tais redes permitiram na bilidade, quanto a solidez da rede, As redes foram o veiculo privilegiado de difusa d grande: de eepitito universalista: o budismo na velha rede caravaneira da Asia Central, a estrada da seda; o islamismo na rede maritima da Africa Ocidental, pelas cida- des-estados que balizavam a rota do ouro; ¢ o cristianismo na expansao portuguesa.”! Em trabalho sobre a administragao portuguesa em Angola na segunda metade do culo XVIII, Catarina Madeira Santos afirma que é legitimo desobjetivar a nogao de do em rede, de Lui so da Africa, onde a descontinuidade territorial se articula com o pluralismo institu- Filipe Thomaz, e usd-la como categoria analitica, sobretudo no cional, juridico e jurisdicional. Segundo a autora: Em Angola, a relagao que o Estado colonial sustentava com o territério traduzia-se ‘na construgao de uma espécie de rede. As formas de presenga no territério — os presi- dios — eram satelizadas, reticuladas a partir de um centro, mas sem justaposigao. (...) O objetivo da presenga colonial nao passava pela conquista de espagos vazios de rotas comerciais e mercadorias, mas antes pela apropriagdo da rede comercial existente, através de fortalezas, feitorias e feiras. Nessa perspectiva, o essencial para os coloni- zadores e os se néo seria “fazer territério” mas, antes, aceder ¢ intensificar gent aserventia de uma rede A autora vai além das conotagdes espaciais do conceito de rede, utilizando-o na anélise do cruzamento de culturas politicas. A seu ver, o conceito operatério de Estado om rede deve ser entendido nao sé como lugar de trocas comerciais, mas também insti- tucionais, ideoldgicas e politicas, na medida em que a teia das relagdes inter-africanas tecia-se paralela a malha administrativa portuguesa. Essa configuragao dotada de uma ande plasticidade gerava equilibrios que resultavam na coexisténcia de diferentes mun- e logicas politicas, permitindo que um poder colonial, embora fragil, sobrevivesse por longo tempo. Coneluindo, © Estado em rede, policentrado ¢ juridicamente pluralista, capaz de integrar e fazer coexistir as concepgdes ¢ usos sociais europeus do espaco com a circulasdo ¢ a movi- mentagao das populagdes ¢ dos poderes politicos africanos, tem mais condigdes para prevalecer sobre o projeto de um Estado territorial, espacialmente continuo, unitério do ponto de vista do dominio, e homogéneo no plano institucional e também jur Trocas e apropriagdes culturais entre Portugal, Brasil e Africa sao igualmente temas estudos de Alberto da Costa e Silva e de Marina de Mello e Souza. Em Reis negros no 21 Luis Filipe Thomaz. De Ceuta a Timor... pp. 208-9. 22 Catarina Madeira Santos. Um governo “polida’.., p. 109. 23 Catarina Madeira Santos. Um governa ‘polido’.. pp. 111-2. a LAURA DE MELLO & SouzA * JONIA FerREIRA FURTADO * MARIA FERNANDA BICALHO ora.) Brasil cscravista, a autora reconstr6i as légicas africanas que levaram a incorporagao de aspectos do catolicismo difundido por missionarios portugueses nos séculos XV e XVI, assim como a aceitacao do singular cristianismo africano por parte destes, o que relorgou a legitimidade da conversio para as duas partes envolvidas.* Conexées imperiais... Algumas das consideragdes acima nos levam a pensar no Mediterraneo a época de Filipe II, de Fernand Braudel.’® Em trabalho publicado na revista Annales — num dossié que reine também artigos de Serge Gruzinski e de Sanjay Subrahmanyan”® — 0 historiador Bin Wong, recupera o Mediterréneo de Braudel como um interessante recorte metodoldgico para analisar as “regides braudelianas” na Asia. Ao mesmo tempo discute colocadas na aurora deste novo milénio. A regido braude- uma série de questdes ted: liana, segundo ele, é animada por uma rede de relagdes humanas, politicas, econdmicas, sociais e culturais — um inventario de experiéncias -, podendo comportar um ou varios centros econdmicos, sendo constituida pela multiplicidade e diversidade de lagos entre popullagdes e sociedades que vivem em seu seio, A forga e a substincia desses lagos so suscetiveis a mudangas, e tais inflexdes sio capazes de alterar a prépria regido de maneira fundamental. A seu ver, para Braudel, o Mediterraneo representa muito mais do que um universo existente em si préprio, ligando-se, nos séculos XVI e XVII, a outras partes da Europa, a Africa, a Asia e ao Novo Mundo.” 24 CE. Alberto da Costa e Silva. Uin rio chamado Atlantica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003; ¢ Marina de Mello ¢ Souza. Reis negros rio Brasil escravista. Historia da festa de coroagae do rei congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, especialmente o capitulo Il: *Catolicismo e Poder. © caso congolés’, Cf, também, o artigo apresentado pela autora nesta coletanea, “Religiao ¢ poder no Congo e Angola, séculos XVI e XVII. 25 Fernand Braudel. La Méditerranée ot le monde méditerrangen a I"époque de Philippe II. 2 vols. 9. ed. Paris: Armand Colin, 1990. A referéncia ¢ exclusivamente a este livro de Braudel, ¢ nao a sus bea posterior. " An- fevrier 2001, n. 1, pp. 85-117. Sanjay Subrahmanyam. “Du Tage au Gange ax 26 Serge Gruzinski. “Les mondes mélés de la monarchie catolique et autres ‘con! nected histories’ nales HSS, janvier-fe XVleme siécle: une conjoncture milénariste a léchelle eurasiatique’s Annales HSS, janvier-février 2001, ». 1, pp. 51-84. 27 R. Bin Wong. “Entre le monde et le nation: les regions Braud er 2001, n. 1, pp. 5-41. jennes en Asie’, Annales HSS, oR O GOVERNO DOs POVOS Interessa-me aqui a critica que Bin Wong faz nao s6 a historiogralia dos Estados~ Nagao/?8 ao resgatar um Mediterraneo vibrante, constituido por uma multiplicidade de ® Universalidade e relativa uniformidade de um modelo de organizagao itico-administrativa que nao era exclusivo de Portugal peninsular, nem restrito ao itério atlantico. Reproduziu-se e adaptou-se com modificagoes, de acordo com as expecificidades locais, por todo o império.*° Desde o livro, em vérios sentidos pioneiro, de C.R. Boxer, Portuguese society in the topics. The municipal councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda, s6 muito recentemente o nteresse pelo poder local tem sido partilhado pela historiogealia brasileira, produzindo scabalhos académicos que discutem os mecanismos de comunicagao centro-periferia, os eipos de articulagao existentes entre o poder municipal e outros pdlos de autoridade cociabilidade locais, as estratégias de formagao e de atuagao das elites ultramarinas. Uma andes contribuigdes da andlise de Boxer é a énfase na prerrogativa das camaras de se comunicarem diretamente com a Coroa, interferindo e partilhando o governo dos povos e do império, Estas s8o algumas das questoes abordadas pelos trabalhos de Evaldo Cabral de Mello que, ao analisar as representagdes da Camara de Olinda — alegando sua participagao na restauragao pernambucana, “a custa de nosso sangue, vidas e despesas de européias dos séculos XVI e XVII" Penslope. Fazer ¢ Desfazer a Histéria, n. 6, 1991, pp. 129-30; Robert Descimon, Jean-Frédéric Schaub ¢ Bernard Vincent (orgs.) Les figures de ladministrateur. Instituitions, réseaux, pouvoirs on Espagne, en France et au Portugal. 160-10e sitcle, Paris: Editions de EHESC, 1997; e Emmanuel Le Roy Ladurie. O estado mondrquico. Franga 1400-1010. Si Companhia das Letras, 1994, p. 22. 39 Nuno Gongalo Monteiro. “Poderes municipais ¢ elites locais (séculos XVII-XIX): estado de uma questo” In: Alberto Vieira. O muniefpio no mundo portugués. Funchal: Centro de Estudos de His- téria do Atlantico, 1998, p. 79. 40 Cf, acsse respeito, Francisco Bethencourt. ‘As cdmaras e as miseriesrdias’ In: Francisco Bethen- ‘ao Paulo: court e Kirti Chaudhuri. (orgs.) Historia da expansdo portuguesa... vol. 1, pp. 353-60, vol. 2, pp. 343-80, vol. 3, pp- 270-80. O livro O municipio no mundo portugués, organizado por Alberto Vieira, € produto de um seminério promovido pelo Ceha, em 1998, constituindo-se em testemu- nho da vitalidade da produgao académica sobre a histéria municipal em Portugal continental, ilhas atlanticas, América, Africa e Asia. Cf. nota acima. 103 LAURA DE MELLO £ SOUZA * JUNIA FERREIRA FURTADO * MARIA FERNANDA BICALHO (ORGS.) nossas fazendas” — discute a extensao e os limites da nomeagao dos naturais da terra para os cargos piblicos da capitania e demais partes do ultramar.*! Nesse sentido, a perspectiva tedrica e conceitual que, em vez de se pautar apenas na coergao e na exploragao, recupera a dinamica da negociagao, incorporagao e colaboragao — sem negligenciar os conflitos e a dominagao — entre poder central e poderes locais tem sido cada vez mais desenvolvida pelos historiadores nos dias de hoje. Da formagao da nagao as conexées imperiais e especificidade colonial. Esse artigo pretendeu, por meio do percurso historiografico trilhado nas tiltimas décadas, apontar alternativas de andlise das tramas, redes e conexdes que informaram a dinamica do império portugués nos tempos modernos. Concluo, citando o artigo que Silvia Lara apresentou no Simpésio Tematico Modos de Governar, no Encontro Nacional da Anpuh, em 2003. Segundo a autora, a dualidade Brasil-Portugal, que havia presidido boa parte de nossa produgao histo- riografica, pode ganhar outras dimensdes e conectar-se a outras regides do império. As trocas atlanticas passaram a ser compreendidas também a partir de suas conexdes com os mercados asidticos e os mecanismos do poder podiam ser agora estudados na sua dimensio imperial. Em vérios sentidos, nao se trata mais de pressupor uma separagao irredutivel entre Portugal e o Brasil, nem de considerar uma “realidade” co- [ontel que, deodesa tnivto,fecmio umaiementeraifemmiane ee contznoumtiea dominio metropolitano. Ganhando nuances temporais e perspectivas mais amplas, a historia do pertodo colonial deixou de ser concebida como a primeira etapa da formagao da nagao e desvinculou-se do paradigma que havia se cristalizado nos anos 1960-1970. © grande desafio aberto a nds, historiadores, 6, segundo a autora, “conectar historiografias" uma vez que “a presenga maciga da escravidao diferenciava a experi- 41 Evaldo Cabral de Mello. Rubro Vaio. O imagindrio da restauracdo pernambucana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, cap. 3 42 Silvia Hunold La América portuguesa “Conectando historiografias: a escravidio africana e o Antigo Regime na Maria Fernanda Bicalho @ Vera Liicia Amaral Ferlini (orgs.) Modos de 3s. Sto Paulo: Alameda, 2008, p. 33. nvolvidos numa governar. Idéias ¢ praticas politicas no império portugué: 43 Nos iltimes snos, os estudlos vobre esceaviemo « escrevilio ttm sido da peisyec}iyn gue ov gonucés uuar x peilicad waspementarta do Aniigat Reginae, quer’s dindsaina imperial. Ver, entre outros, Hebe Maria Mattos, ‘A eseravidao moderna nos quadros do império és: o Antigo Regime em perspectiva atlantica’, In: Joao Fragoso, M. F. Bicalho e M. FS. 104 O GOVERNO DOs POVOS encia colonial da metropolitana, redimensionando e dando novo significado as praticas hierarquicas que ordenavam as sociedades no Antigo Regime’. Trata-se de — sem esque- cer a importincia dos cléssicos na formagao da nosza historiografia, mas discutindo os novos paradigmas sobre os quais se baseiam interpretagdes mais recentes — analisar as, caracterfsticas que marcaram a cultura politica de antigo regime nos trépicos ¢ teceram a dinamica e as redes imperiais, conectando-as a discussao da especificidade da América portuguesa; uma sociedade, como afirma Stuart Schwartz, escravista-colonial** Gouvéa (orgs). © Antigo Regime nos trépicos.... pp. 141-62; Silvia H. Lara, Fragmentos Sete~ centistas, Escravidio, cultura e poder na América portuguesa. Sto Paulo: Companhia das Letras, 2007; ¢ Joio Fragoso. “Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro”, In: Joio Fragoso, Anténio Carlos Jucé de Sampaio, ¢ Carla Almeida (orgs). Conquistadores e negociantes: Historias de elites no Antigo Regime nos Trépicos. América lusa, séculos XVI a XVIIL Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 2007, pp. 22-120. 44 Silvia Hunold Lara. “Conectando historiografias...", p. 38. 45 Stuart B. Shwartz. Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedads colonial. Sac Paulo: Compa- hia das Letras, 1998, capitulo 9. 105

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