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Ruptura e continuidade nas instituições judiciárias do Brasil Joanino: um

olhar panorâmico sobre o direito brasileiro do início do século XIX

Mariana Armond Dias Paes


Graduanda em Direito pela UFMG

João Vitor Rodrigues Loureiro


Graduando em Direito pela UFMG. Monitor de Graduação em História e Filosofia do Direito

1. Considerações iniciais
Antes de se traçar uma linha da organização do direito vigente na colônia
brasileira, é necessário ressaltar que Portugal procurou reproduzir na colônia os
institutos que compunham a sua organização estatal. Os portugueses implantaram no
Brasil uma administração que era apenas uma continuidade do que já estava instituído
na metrópole. Não houve uma preocupação em se adaptar as instituições portuguesas à
realidade colonial.

Conceitos como direito público, direito privado, administração, jurisdição,


separação de poderes e funções estatais não eram princípios que norteavam as estruturas
políticas dos Estados europeus do período e que, portanto, também não estavam
presentes no funcionamento dos poderes do Brasil Colonial.

Durante o período colonial brasileiro, não havia uma nítida separação entre
administração e jurisdição. Os órgãos e instituições que compunham o aparato estatal
colonial, assim como seus agentes, exerciam ora funções administrativas, ora
jurisdicionais.

O Estado, por sua vez, era visto como uma entidade universal, indivisível, que
abrangia todos os aspectos e manifestações individuais dos cidadãos. Não se fazia uma
distinção clara entre Direito Público e Direito Privado. A esfera pública e a esfera
privada se imiscuíam a todo momento. Ressalta Caio Prado Júnior:

Todas estas noções se consideram hoje “princípios científicos”, o que quer


dizer, dados absolutos, universais. Rejeita-los na pratica, na regulamentação
jurídica de uma sociedade, naquilo que se chamou direito positivo, constitui
perante a “ciência jurídica” moderna, um “erro”; da mesma natureza e tão
grave como seria o do arquiteto que planejasse uma construção sem atenção
às leis da gravidade. Mas o fato é que não era assim entendido então, naquela
monarquia portuguesa do séc. XVIII de que fazíamos parte. (PRADO JR.:
1994, p. 298)
O judiciário brasileiro anteriormente à chegada de D. João ao Brasil, era
estruturado de forma hierárquica, sendo o Rei o chefe supremo. Abaixo do monarca
estavam situados os Tribunais Superiores, que se encontravam em Portugal. Eram a
Casa da Suplicação de Lisboa, a Mesa da Consciência e Ordens e a Mesa do
Desembargo do Paço. Na colônia, as instâncias recursais eram a Relação da Bahia e a
Relação do Rio de Janeiro. Subordinadas às relações, estavam as Juntas de Justiça.

A primeira instância era composta por ouvidores, juízes de fora, juízes


ordinários, juízes de órfãos e juízes de vintena. Os ouvidores, além de atribuições
administrativas, julgavam ações em que figurassem como partes outros juizes,
procuradores, tabeliães, fidalgos e abades. Também conhecia dos agravos e das
apelações. Os juízes de fora eram nomeados pelo poder central e substituíam os juízes
ordinários em causas de maior valor que versassem sobre bens móveis ou imóveis. Os
juízes ordinários eram eleitos entre os chamados “homens bons” e tinham a função de
julgar os processos cíveis e criminais. Já os juízes de órfãos eram responsáveis pelos
processos de inventário, partilha, tutela, curatela ou ações que envolvessem menores ou
incapazes. As causas de pequeno valor e complexidade eram julgadas pelos juízes de
vintena, eleitos anualmente pela Câmara de Vereadores.

Com o crescimento das cidades, ocorreu uma especialização das funções


exercidas pelos agentes estatais. Começou a se delinear uma separação entre
administração e jurisdição. O juiz deixou de ser um proprietário local, passou a “vir de
fora” e a exercer a função em caráter fixo e permanente. Os serventuários da justiça
também passaram a ter seus rendimentos aumentados e começaram a se sustentar
apenas com o salário do cargo, sem necessidade de exercer outras funções. Nasce a
figura do advogado e do solicitador, que passam a ser considerados essenciais no
exercício da jurisdição.

Ressalte-se, ainda, que o direito colonial atuava na sociedade mais por


intermédio dos usos e costumes locais do que pela própria legislação, a qual era
desconexa, repleta de particularidades e casuísmos e não se constituía em um todo
lógico. As Ordenações Filipinas eram o principal texto legal. Porém, as ordenações
anteriores não haviam sido revogadas e havia um imenso número de legislação
extravagante. A legislação produzida visava unicamente a satisfazer as necessidades
imediatas, sendo as leis aplicadas uniformemente no tempo e no espaço. Eram, ainda,
alheias à realidade e às particularidades de cada região, o que contribuiu para que
fossem, muitas vezes, ignoradas pela população local.

A grande quantidade de leis vigentes, a falta de conexão lógica entre elas e sua
distância da realidade fática e o fato de que a justiça colonial era cara, morosa e
inacessível à grande maioria da população colonial foram aspectos que contribuíram
sensivelmente para a falta de eficácia do direito.

2. Agentes, processos e o Direito.


Foi diante de tal contexto, que a cidade do Rio de Janeiro encarou, após a
chegada da família real, uma realidade que não estava restrita à mudança do quadro
institucional: os novos Tribunais então criados representavam a nova configuração de
poder na colônia, numa transplantação evidente não apenas de órgãos, mas sobretudo,
de pessoas e relações decorrentes de organizações sociais até então não presentes no
Brasil.

A alteração do quadro institucional do Poder Judiciário foi relevante para


mudanças posteriores, advindas de uma progressiva especialização da justiça e de suas
funções, tanto em razão do fortalecimento das relações evidenciadoras de privilégios,
uma vez sediada a corte portuguesa e toda sua composição, quanto da relativa segurança
oferecida por instâncias jurisdicionais mais complexas, cujo funcionamento não tinha
por fundamento oferecer garantias como devido processo legal e revisão judicial mas,
acima de tudo, favorecer aqueles que pudessem arcar com os ônus da Justiça, dando
respostas oficiais, advindas da boca do Estado, a seus pleitos.

Tal especialização da Justiça pôde ser observada, por exemplo, na criação de


órgãos que, em última instância, eram responsáveis por oferecer às elites locais
dirigentes, soluções imediatas a seus problemas. A solução jurídica, originada em tais
órgãos, nada mais representava que um adicional ao sistema de concessão de graças e
mercês, vigente em sociedades coloniais de Antigo Regime.

A sociedade de corte encontrava visivelmente marcada por concessões advindas


do rei, capazes de revogar leis e distribuir a cada um sua pertença, alterando estamentos
e ordens naturais.(HESPANHA: 2005, p.6) A realeza, despojada de suas pertenças,
ainda conservava, no momento de sua chegada, sua honra e seu caráter sagrado, que lhe
conferiam o poder de transferir aos súditos liberalidades capazes de alterar suas
condições, em troca de favores ou compromissos pessoais. Fato que nada foi
desconhecido no Brasil joanino, conforme ressalta MALERBA:

Ao franquear largamente mercês a seus vassalos, dom João não inaugurou no


Brasil nenhuma prática que já não fosse conhecida no reino. Pagou com
honrarias e distinções a todos que o assistiram. Para contemplar e remunerar a
lealdade dos serviços relevantes dos que com ele se arriscaram na fuga
redentora, ressuscitou com um decreto a Ordem da Torre e Espada(...)
(MALERBA, 2000, p. 213)

A obra de governar estava, neste espaço, muito próximo do ofício de julgar,


mesmo porque a concessão de cargos públicos e honrarias das mais diversas dependia
de atos de liberalidade do rei, o qual via por necessário e imprescindível criar uma
classe de magistrados fiéis e partícipes do processo de rearticulação da engrenagem
governativa joanina.(GOUVÊA: 2005, p. 723)

Tal aspecto será decisivo na formação de uma elite correspondente aos interesses
da realeza portuguesa e às bases da instalação do regime monárquico no Brasil
independente, uma vez ocorrida uma absorção para o funcionamento das instituições, de
hábitos e de concessões fundadores de uma ordem de fidelidade e compromisso. Nesse
aspecto, tais relações se constituem em instrumentos do poder, oferecendo uma relativa
segurança das instituições e de seu funcionamento. Era necessário acomodar o séquito
real, e mantê-lo.(MALERBA: 2000, p. 232)

Para se ter uma idéia da continuidade de uma chamada economia e espaço de


relações de graça e mercê, em 22 de abril de 1808, foi criado o ofício de Escrivão do
Registro das Mercês do Estado do Brasil, no âmbito da Real Câmara, para “fazer
constar, a todo tempo, com a legalidade necessária às mercês” (GOUVÊA: 2005, p.
720). Essa legalidade encontra-se em muito distante do paradigma da lei que, conforme
se vê na história jurídica do ocidente, assume seu papel de importância especialmente
após as revoluções liberais iniciadas no século XVIII. Na realidade colonial brasileira, e
no período ora analisado, a lei nada mais representava que parte de um sistema de
direito comum, jamais se sobrepujando às ordens particulares, ao costume local; abaixo
do plano do reino, proliferavam as ordens jurídicas particulares, todas elas protegidas
pela regra da preferência do particular sobre o geral. (HESPANHA: 2005, p. 05). A lei e
a legalidade, neste sentido, encontram respaldo muito mais numa oficialidade, numa
assunção de formas e fórmulas produzidas pelo Poder real, verdadeira mens legislatoris,
por meio do registro de seus atos de liberalidade e concessões, do que na conformidade
com qualquer norma ou ordem superior de direito. Os atos de administração e
jurisdição, ainda mixados entre si em forma e em competência de produção, passavam
por uma formalização crescente, cada vez mais registrados por escrito (GOUVÊA:2005,
p. 712)

Assim, o direito está, neste período de revisão das estruturas coloniais, ainda
intimamente ligado à concepção de uma justiça natural, uma ordem que dependesse de
atos de autoridade humana, de um poder capaz de restabelecer a ordem, concedendo a
cada um aquilo que lhe pertencesse. Tal pensamento atinge outros grupos;
evidentemente a presença de uma nobreza na terra brasileira, reforça o fetiche de grupos
sociais locais por títulos, honrarias e condecorações, transformando a noção de virtude,
antes estritamente ligada às condições de nascimento e de modo diferente percebida nas
sociedades ibéricas de corte, conforme leciona HOLANDA:

Por estranho que pareça, a própria ânsia exibicionista dos brasões, a profusão
de nobiliários e livros de linhagem constituem, em verdade, uma das faces da
incoercível tendência para o nivelamento das classes, que ainda tomam por
medida certos padrões do prestígio social longamente estabelecidos e
estereotipados. A presunção de fidalguia é requerida por costumes ancestrais
que, em substância, já não respondem a condições do tempo, embora
persistam nas suas exterioridades. A verdadeira, a autêntica nobreza já não
precisa transcender ao indivíduo; há de depender das suas forças e
capacidades, pois mais vale a eminência própria do que a herdada. A
abundância dos bens da fortuna, os altos feitos e as altas virtudes, origem e
manancial de todas as grandezas, suprem vantajosamente a prosápia de
sangue. (HOLANDA: 1963, pp 09-10)

A administração joanina, evidenciando a cultura de privilégios no Brasil, criou o


chamado Conselho Supremo Militar, o Conselho de Justiça e os Juízos especiais da
Santa Casa de Misericórdia, o Juízo conservador dos Privilégios do Comércio e Juízo
dos Falidos, para citar alguns exemplos, conferindo claramente jurisdições a
especialidades distintas, a fim de favorecer segmentos sociais também distintos ou a fim
de outorgar novos espaços em que o poder jurisdicional não alcançava. Exemplo mais
que significativo dessas jurisdições especiais estava, conforme afirma CASTRO, numa
das mais “estranhas anomalias jurídicas que se tem conhecimento na Idade Moderna e
Contemporânea: o Juiz Conservador da Nação Britânica”(CASTRO: 2007, p. 339), que
possuía jurisdição exclusiva sobre os cidadãos britânicos estabelecidos no Brasil. Ora,
um cargo de tal natureza demonstrava a unilateralidade das relações diplomáticas da
Coroa Portuguesa, que criara verdadeiro Juízo de Foro privilegiado, favorecendo
diretamente sua nação aliada, a qual deveria oferecer, em contrapartida, segundo o
Tratado de 1810, a compensação desta Concessão, fato que jamais fora observado.

Some-se a este painel de especialização judiciária e de controle de concessões e


liberalidades, o acentuado processo de intelectualização que se verificava no Brasil,
com a fundação de escolas superiores por D. João VI – apesar de ainda não ter sido
fundado nenhum curso de Direito no país, o que se verificaria anos mais tarde, após a
independência (1827), a criação da Biblioteca Nacional, a chegada de missões artísticas
e científicas estrangeiras, a fundação da Imprensa Régia e tantas outras políticas levadas
a cabo foram fundamentais à circulação de novas idéias entre as elites brasileiras. Elites
que compunham, em grande parte, o quadro de magistrados, cuja formação se dava em
Coimbra, significativamente transformada no século XVIII, após as reformas
pombalinas. É esse quadro de juristas letrados que criará os cursos jurídicos nacionais
anos mais tarde, e dará novos contornos à própria história da independência política
nacional.

3. Instituições.
O Rio de Janeiro, capital da colônia desde 1763, por obra da administração
pombalina, passou por uma completa reestruturação após a chegada da família real. A
coroa evocou naturalmente para a Guanabara a justiça e administração de toda a
colônia e, aliás, de toda a Monarquia, incluindo domínios africanos e asiáticos
(BARRETO: 2003, p. 162). A criação de diversos órgãos, muitos chamados de tribunais
(ainda que contassem com competências estritamente administrativas), foi decisivo ao
novo horizonte em construção na cidade.

Ainda que predominante a população rural durante muitos anos da história


brasileira, o espaço urbano é o primeiro local evidenciador das relações complexas de
jurisdição, de conflitos entre órgãos criados e agentes sociais diversos. Na cidade se
desenvolvem atividades econômicas variadas, e o magistrado desempenha um papel
relevante na manutenção da ordem social, conforme se vê neste relatório do Intendente-
Geral de Polícia, Paulo Fernandes Viana:

Outro exemplo darei em Polícia inferior. Pela correspondência ativa com os


Magistrados de todo o Brasil, tenho procurado o melhoramento de estradas
interiores que facilitaram o comércio, comunicam e civilizam os povos [...] e
porque a falta de Magistrados civis nas grandes distâncias [...] e comarcas é
tão reconhecidamente extensa de modo que os Comandantes de Distritos
sempre serviram no Brasil com uma certa autoridade de Ministros Criminais
para acudirem as mal-feitorias acontecidas nos seus territórios, perseguirem
ladrões, e prenderem malfeitores, negros fugidos o que no país se chamam
calhambolas, dar nos Quilombos (...)1

Ressalte-se, a especialização de juízos foi traço marcante da administração da


justiça no Brasil joanino, exemplo disso foi a criação de juízos para a concessão de
sesmarias e direitos reais, como se vê no seguinte Alvará, datado de 1809:

Eu o Príncipe Regente Faço saber os que o presente Alvará com força de Lei
virem, que sendo-Me presente em Consulta da Meza do Desembargo do
Paço, que muito importava a prosperidade deste Estado remediar o abuso de
se confirmarem as Sesmarias sem preceder a necessaria Medição e
Demarcação Judicial das terras concedidas, contra a expressa Decisão do
Decreto de vinte de Outubro de mil setecentos e cincoenta e tres, e de muitas
outras Ordens Minhas, que o prohibirão, e que da transgressão dellas
provinha a indecencia de se doarem terras, que já tinhão Sesmeiros, e a
injustiça de se dar affim occasião a pleitos, e litigios, e a perturbação dos
direitos adquiridos pelas anteriores concessões: Propondo-se me quanto
cumpria, (...) se nomeassem Juizes, e officiaes competentes, e se lhes taxasse
conveniente salario.2

E o que mudou nesse período, além do aumento do número de comarcas e


magistrados no interior do país, foi a criação da Mesa do Desembargo do Paço e da
Consciência e das Ordens, por meio do Alvará de 22 de abril de 1808, órgão
diretamente subordinado ao Rei, bem como de uma Casa de Suplicação, por meio do
Alvará de 10 de maio de 1808, que elevou a antiga Relação do Rio de Janeiro à
condição de instância superior da Justiça:

“I – A Relação desta cidade se denominará Casa da Suplicação do Brasil, e


1
Plano de melhoramento geral do estabelecimento da Polícia do Reino do Brazil que apresenta o
Intendente Geral Paulo Fernandes Vianna e a que serve de demonstração a representação que o
acompanha na data de 24 de novembro de 1816. Rio de Janeiro: Arquivo Público Nacional.
2
Alvará com força de lei, pelo qual V. A. R. Há por bem ordenar que se não passem Cartas de
Concessão, ou Confirmação de Sesmaria, sem preceder Medição, e Demarcação Judicial: E
Estabelece a forma de nomeação dos Juizes das Sesmarias, e os Salarios, que elles, e mais Officiaes
devem vencer: E Dá outras Providencias, a fim da boa ordem, e regularidade das mesmas Sesmarias.
Imprensa Régia: 1809. Arquivo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Setor de Obras Raras.
será considerada como Superior Tribunal de Justiça para se findarem ali todos
os pleitos em última instância, por maior que seja o seu valor, sem que das
últimas sentenças proferidas em qualquer das Mesas da sobredita Casa se
possa interpor outro recurso, que não seja o das Revistas, nos termos restritos
do que se acha disposto nas Minhas Ordenações, Leis e mais Disposições. E
terão os Ministros a mesma alçada que têm os da Casa da Suplicação de
Lisboa. (...)”3

No entanto, a última voz era a do rei, que havia por decidir qualquer conflito por
meio da Mesa do Desembargo do Paço e da Consciência e das Ordens. Assim, havia
uma duplicidade de órgãos jurisdicionais: tanto em Lisboa quanto no Rio funcionavam
Tribunais superiores, não existindo uma centralização efetiva das decisões. No entanto,
a cidade do Rio de Janeiro se sobrepôs no cenário brasileiro, ao concentrar a instância
máxima dos órgãos de jurisdição de todo o espaço do Império Português.

Em nada mudou, no cenário do Brasil Reino, o abismo que separava a Justiça da


grande massa da população: seja pela estrutura centralizada, seja pelo funcionamento
hermético e controlado por uma elite letrada, conhecedora dos métodos de interpretação
e aplicação do mesmo, pela morosidade das decisões ou ainda por outras razões, como
os altos custos dos provimentos, como denuncia esta carta de Principal Souza para o
príncipe regente, D. João VI:

Sobe à Real Presença huma consulta sobre o augmento dos salários,


consignaturas nos Tribunaes e Justiças: Augusto Senhor, o povo miúdo está
muito pobre, como poderá pagar, por exemplo, huma Provisão do
Dezembargo do Paço, por 3200r em lugar de 1600r os provedores das
Comarcas, os Juízes dos Órfãos absorverão em despesas huma bôa parte das
Vendas dos Concelhos , e dos Órfãos nos emolumentos. Eu, Senhor, fui de
voto cazo que V.A.R. Ordene algum augmento, que este não exceda a huma
terça parte mais da actual; na realidade os povos do Reino não podem com
esta despeza, sendo repetida pelo cruel foro, e sua pratica, cheia de abusos,
que pedem grande emmenda. 4

4. Conclusão
Objetivou-se por fim, demonstrar, ainda que superficialmente, que o
funcionamento das instituições judiciárias, aliado à organização de novos grupos sociais

3
BRASIL. Colecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro : Imprensa Nacional, 1891. p. 23-26
Regula a Casa da Supplicação e dá providencias a bem da administração da Justiça.
4
Ofício de 13 de fevereiro de 1816 de Principal Souza para o príncipe Regente, relatando a situação de
Portugal com recomendações sobre como ocupar os ociosos, realizar o recrutamento e fomentar a
indústria, dentre outros. In: D. João VI e o Império no Brasil: a Independência e a missão Rio Maior.
Rio de Janeiro: Biblioteca Reprográfica Xerox, 1984, p. 314.
refletiu tanto na conservação quanto na transformação dos padrões do direito vigente no
Brasil. Isto significa dizer que há uma influência direta dos agentes envolvidos na
produção do direito com a conformação de estruturas que vigiam desde o período
colonial, ao mesmo tempo em que ocorre, paralelamente a essa conformação, a
redefinição do papel político desses grupos, no desenrolar da história de independência
política brasileira.

Logo, se durante o período colonial a Justiça brasileira esteve caracterizada pela


morosidade, escassez de magistrados, muitas vezes despreparados para o exercício da
jurisdições, pela imiscuidade entre os poderes administrativos e jurisdicionais, tal
quadro pouco ou nada se modificou com a chegada da família real em 1808.

No entanto, essa mesma chegada representou a institucionalização de práticas


consagradas em Portugal, e que passaram a fazer parte da vida brasileira. A cidade do
Rio de Janeiro foi completamente modificada, a fim de sediar a nova capital do Império
Português. Evidentemente, a chegada de estrangeiros aos novos ares da cidade serviu de
inspiração ao processo de inserção das elites locais na formação de um direito
conforme o paradigma liberal em construção na Europa.

É exatamente essa elite social que tomará as rédeas do processo de


independência política brasileira, que oferecerá uma base ideológica à Constituição de
1824 e que ocupará os principais cargos do Poder Judiciário brasileiro, preconizando
valores como o bacharelismo e o patrimonialismo. Logo, a chegada da família real não
só impulsionou os ares de administração independente, mas foi fator decisivo na criação
de novos órgãos que implicavam a autonomização da Justiça, completamente separada
da subordinação a Lisboa.

Com isto, conclui-se que o olhar histórico de tal período depende de uma
compreensão de inserção dos atores no theatrum tropicalis (MALERBA: 2000, p. 91):
tais atores desempenham papel importantíssimo à nova dinâmica das instituições
brasileiras as quais, por sua vez, refletem o comportamento dos indivíduos e sobre seu
comportamento influenciam diretamente, construindo percepções sobre o processo
histórico de soberania e independência em que se inseriam. Verifica-se, portanto, uma
via de duas mãos, em que se sobrepõem influências estruturais. Parte-se rumo aos
preceitos da história nova, em que não há lugar para se encarar antagonismos ou
divisões da história entre história social e história institucional. Encara-se, assim uma
história que não é econômica ou social, mas sim um história pura e simples em sua
unidade. A história que é toda social, por definição. (LE GOFF: 2001, p. 28)

5. Referências Bibliográficas.
BRASIL. Colecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1891. p. 23-26. Regula a Casa da Supplicação e dá providencias a bem da
administração da Justiça.

______. Alvará com força de lei, pelo qual V. A. R. Há por bem ordenar que se não
passem Cartas de Concessão, ou Confirmação de Sesmaria, sem preceder Medição, e
Demarcação Judicial: E Estabelece a forma de nomeação dos Juizes das Sesmarias, e
os Salarios, que elles, e mais Officiaes devem vencer: E Dá outras Providencias, a fim
da boa ordem, e regularidade das mesmas Sesmarias. Rio de Janeiro: Imprensa Régia:
1809. Arquivo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Setor de Obras Raras.

BARRETO, Célia de Barros et. al. História da civilização brasileira: tomo II – o Brasil
monárquico. v. 3. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

CASTRO, Flávia Lages de. História do direito geral e Brasil. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2007.

GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. As bases institucionais da construção da unidade dos


poderes do Rio de Janeiro joanino: administração e governabilidade no Império luso-
brasileiro. In: JANCSÓ, István. Independência: história e historiografia. São Paulo:
Editora Hucitec, 2005.

HESPANHA, António Manuel. Porque é que existe e em que é que consiste um direito
colonial brasileiro. Comunicação apresentada no Encontro Brasil-Portugal: sociedades,
culturas e formas de governar no Mundo Português – sécs. XVI a XVIII, Departamento
de História e Linha de Pesquisa História Social da Cultura/PPGHIS, UFMG, Belo
Horizonte, 2005. Disponível em <www.hespanha.net>. Acesso em: 31/08/2008.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 4. ed. Brasília: Editora da UnB:
1963.

LE GOFF, Jacques. A história nova. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da


independência (1808 a 1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

MENDONÇA, Marcos Carneiro. D. João VI e o Império no Brasil: a Independência e


a missão Rio Maior. Rio de Janeiro: Biblioteca Reprográfica Xerox, 1984.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 23ª edição. São Paulo:
Editora Brasiliense: 1994, p.298.

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