O documento é um excerto do livro "Um copo de cólera" de Raduan Nassar. Conta a chegada do narrador em sua casa e seu encontro com uma mulher, onde ele age de forma indiferente e calculista para despertar o desejo dela. Depois descrevem momentos íntimos entre os dois marcados pela manipulação e jogos de poder.
O documento é um excerto do livro "Um copo de cólera" de Raduan Nassar. Conta a chegada do narrador em sua casa e seu encontro com uma mulher, onde ele age de forma indiferente e calculista para despertar o desejo dela. Depois descrevem momentos íntimos entre os dois marcados pela manipulação e jogos de poder.
O documento é um excerto do livro "Um copo de cólera" de Raduan Nassar. Conta a chegada do narrador em sua casa e seu encontro com uma mulher, onde ele age de forma indiferente e calculista para despertar o desejo dela. Depois descrevem momentos íntimos entre os dois marcados pela manipulação e jogos de poder.
no 27, ela j me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir o porto pra que eu entrasse com o carro, e logo que sa da ga ragem subimos juntos a escada pro terrao, e assim que entramos nele abri as cortinas do centro e nos sentamos nas cadeiras de vime, fi- 7
cando com nossos olhos voltados pro alto do lado oposto, l onde o sol ia se pondo, e estva- mos os dois em silncio quando ela me per- guntou que que voc tem?, mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensa- mento solto na vermelhido l do poente, e s foi mesmo pela insistncia da pergunta que respondi voc j jantou? e como ela dissesse mais tarde eu ento me levantei e fui sem pressa pra cozinha (ela veio atrs), tirei um to- mate da geladeira, fui at a pia e passei uma gua nele, depois fui pegar o saleiro do arm- rio me sentando em seguida ali na mesa (ela do outro lado acompanhava cada movimento que eu fazia, embora eu displicente fingisse que no percebia), e foi sempre na mira dos olhos dela que comecei a comer o tomate, salgando pouco a pouco o que ia me restando na mo, fazendo um empenho simulado na mordida pra mostrar meus dentes fortes como os dentes de um cavalo, sabendo que seus olhos no des- grudavam da minha boca, e sabendo que por baixo do seu silncio ela se contorcia de impa cincia, e sabendo acima de tudo que mais eu lhe apetecia quanto mais indiferente eu lhe pa- recesse, eu s sei que quando acabei de comer o
tomate eu a deixei ali na cozinha e fui pegar o rdio que estava na estante l da sala, e sem voltar pra cozinha a gente se encontrou de no- vo no corredor, e sem dizer uma palavra entra- mos quase juntos na penumbra do quarto.
camos dois estranhos que seriam observados por algum, e este algum ramos sempre eu e ela, cabendo aos dois ficar de olho no que eu ia fazendo, e no no que ela ia fazendo, por isso eu me sentei na beira da cama e fui tirando calmamente meus sapatos e minhas meias, to- 10
mando os ps descalos nas mos e sentindoos gostosamente midos como se tivessem sido arrancados terra naquele instante, e me pus em seguida, com propsito certo, a andar pelo assoalho, simulando motivos pequenos pra mi- nha andana no quarto, deixando que a barra da cala tocasse ligeiramente o cho ao mesmo tempo que cobria parcialmente meus ps com algum mistrio, sabendo que eles, descalos e muito brancos, incorporavam poderosamente minha nudez antecipada, e logo eu ouvia suas inspiraes fundas ali junto da cadeira, onde ela quem sabe j se abandonava ao desespero, atrapalhandose ao tirar a roupa, embaraando inclusive os dedos na ala que corria pelo bra- o, e eu, sempre fingindo, sabia que tudo aqui- lo era verdadeiro, conhecendo, como conhecia, esse seu pesadelo obsessivo por uns ps, e mui- to especialmente pelos meus, firmes no porte e bem-feitos de escultura, um tanto nodosos nos dedos, alm de marcados nervosamente no pei- to por veias e tendes, sem que perdessem con- tudo o jeito tmido de raiz tenra, e eu ia e vi- nha com meus passos calculados, dilatando sempre a espera com mnimos pretextos, mas assim que ela deixou o quarto e foi por instan- 11
tes at o banheiro, tirei rpido a cala e a cami- sa, e me atirando na cama fiquei aguardando por ela j teso e pronto, fruindo em silncio o algodo do lenol que me cobria, e logo eu fe- chava os olhos pensando nas artimanhas que empregaria (das tantas que eu sabia), e com is- so fui repassando sozinho na cabea as coisas todas que fazamos, de como ela vibrava com os trejeitos iniciais da minha boca e o brilho que eu forjava nos meus olhos, onde eu fazia aflorar o que existia em mim de mais torpe e srdido, sabendo que ela arrebatada pelo meu avesso haveria sempre de gritar este canalha que eu amo, e repassei na cabea esse outro lance trivial do nosso jogo, prembulo contudo de insuspeitadas tramas posteriores, e to ne cessrio como fazer avanar de comeo um simples peo sobre o tabuleiro, e em que eu, fechando minha mo na sua, arrumavalhe os dedos, imprimindolhes coragem, conduzindo os sob meu comando aos cabelos do meu peito, at que eles, a exemplo dos meus prprios de- dos debaixo do lenol, desenvolvessem por si ss uma primorosa atividade clandestina, ou ento, em etapa adiantada, depois de criterio samente vasculhados nossos pelos, caroos e
tantos cheiros, quando os dois de joelhos me damos o caminho mais prolongado de um nico beijo, nossas mos em palma se colando, os braos se abrindo num exerccio quase cris- to, nossos dentes mordendo ao outro a boca como se mordessem a carne macia do corao, e de olhos fechados, largando a imaginao nas curvas desses rodeios, me vi tambm s voltas com certas prticas, fosse quando eu em tran- se, e j soberbamente soerguido da sela do seu ventre, atendia precoce a um dos seus (dos meus) caprichos mais inslitos, atirando em ja- tos sbitos e violentos o visgo leitoso que lhe aderia pele do rosto e pele dos seios, ou fos- se aquela outra, menos impulsiva e de lenta maturao, o fruto se desenvolvendo num cres- cendo mudo e paciente de rijas contraes, e em que eu dentro dela, sem nos mexermos, chegvamos com gritos exasperados aos ester tores da mais alta exaltao, e pensei ainda no salto perigoso do reverso, quando ela de bruos me oferecia generosamente um outro pasto, e em que meus braos e minhas mos, simtricos e quase mecnicos, lhe agarravam por baixo os ombros, comprimindo e ajustando, rea por rea, a massa untada dos nossos corpos, e ia 13
pensando sempre nas minhas mos de dorso largo, que eram muito usadas em toda essa geometria passional, to bem elaborada por mim e que a levava invariavelmente a dizer em franca perdio magnfico, magnfico, voc especial, e eu da entrei pensando nos mo- mentos de renovao, nos cigarros que fumva- mos seguindo a cada bolha envenenada de si- lncio, quando no fosse ao correr das conver- sas com caf da trmica (escapvamos da cama nus e amos profanar a mesa da cozinha), e em que ela tentava me descrever sua confusa expe- rincia do gozo, falando sempre da minha se- gurana e ousadia na conduo do ritual, mal escondendo o espanto pelo fato de eu arrolar insistentemente o nome de Deus s minhas obscenidades, me falando sobretudo do quanto eu lhe ensinei, especialmente da conscincia no ato atravs dos nossos olhos que muitas vezes seguiam, pedra por pedra, os trechos todos de uma estrada convulsionada, e era ento que eu falava da inteligncia dela, que sempre exaltei como a sua melhor qualidade na cama, uma inteligncia gil e atuante (ainda que s debai- xo dos meus estmulos), excepcionalmente aber- ta a todas as incurses, e eu de enfiada acabava 14
falando tambm de mim, fascinandoa com as contradies intencionais (algumas nem tanto) do meu carter, ensinando entre outras balelas que eu canalha era puro e casto, e eu ali, de olhos sempre fechados, ainda pensava em mui- tas outras coisas enquanto ela no vinha, j que a imaginao muito rpida ou o tempo dela diferente, pois trabalha e embaralha simulta neamente coisas dspares e insuspeitadas, quando pressenti seus passos de volta no corre- dor, e foi ento s o tempo de eu abrir os olhos pra inspecionar a postura correta dos meus ps despontando fora do lenol, dando conta como sempre de que os cabelos castanhos, que brota- vam no peito e nos dedos mais longos, lhes da- vam graa e gravidade ao mesmo tempo, mas tratei logo de fechar de novo os olhos, sentindo que ela ia entrar no quarto, e j adivinhando seu vulto ardente ali por perto, e sabendo co- mo comeariam as coisas, quero dizer: que ela de mansinho, muito de mansinho, se achegaria primeiro dos meus ps, que ela um dia compa- rou com dois lrios brancos.